Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
318/13.2IDBRG.G3
Relator: CÂNDIDA MARTINHO
Descritores: PENA ADMOESTAÇÃO
CRIMES TRIBUTÁRIOS
PRESSUPOSTOS LEGAIS
NÃO APLICAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
Sendo o critério de aplicação da pena de admoestação exclusivamente preventivo, tendo-se concluído que a mesma não é adequada à satisfação das necessidades de prevenção especial de socialização e que as exigências de prevenção geral são elevadíssimas quando estão em causa crimes tributários, mostra-se afastada a possibilidade da sua aplicação.
Decisão Texto Integral:
Acordam em audiência os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

1.
No processo comum, com intervenção do tribunal singular, com o nº318/13.2IDBRG.G3, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga - Juízo Local Criminal de Guimarães - realizado julgamento, foi proferida sentença a condenar o arguido/recorrente V. F. pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105º, n.º 1 do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 05/06, na pena de 100 (cem) dias de multa à taxa diária de €6,00 (seis) euros.


2.
Não se conformando com essa condenação, o arguido V. F. veio recorrer da sentença, extraindo da motivação as conclusões que a seguir se transcrevem:

1 – É imerecido, desajustado e desproporcionado aplicar ao Recorrente uma pena de multa efectiva e na medida determinada pois, atendendo à matéria de facto adquirida no processo e à decisão proferida, estão reunidos os pressupostos necessários para impor ao mesmo uma simples admoestação penal, ou, pelo menos, atenuar de forma especial a pena de multa.
2 – No acolhimento legal consagrado nos artigos artigo 40.º, n.º 1 e 2, e 71.º, n.º 1 e 2, ambos do C.P., e no artigo 13.º, do R.G.I.T, a Sentença recorrida atendeu, para esse efeito, ao mediano grau de ilicitude face ao montante apropriado pelo arguido, ao pagamento integral, ao dolo directo, uma vez que o arguido agiu com consciência da ilicitude da sua conduta e ainda assim persistiu em praticá-la, à confissão, e à existência de antecedentes criminais, entendendo, neste contexto, justo, adequada e proporcional à culpa e às exigências de prevenção, a aplicação ao Recorrente de uma pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros).
Sucede que,
3 – Essencialmente, na sequência dos factos provados constantes dos pontos 4., 5. e de 9. a 21. da fundamentação de facto da Sentença recorrida, resulta que:
a) o Recorrente não foi condenado em qualquer pena nos três anos anteriores à prática do crime em apreço (15/02/2013);
b) O dano ocasionado com a conduta descrita mostra-se, totalmente, reparado, pois, a dívida a que se referem os presentes autos foi paga no âmbito do processo de execução fiscal, que se extinguiu pelo pagamento, através de várias entregas à administração fiscal realizadas pelo próprio Recorrente;
c) A ilicitude e a culpa do Recorrente são reduzidas, quer pelo facto em si quer pelo comportamento posterior que este assumiu reparando o dano provocado ao Estado, liquidando, todas as quantias que lhe eram devidas, juros moratórios e todos os encargos associados ao incumprimento da obrigação.
Por sua vez,
4 - Da própria decisão recorrida resulta que a medida da pena de multa aplicada pelo Tribunal a quo ao Recorrente situa-se nos 100 (cem) dias de multa e, portanto, inferior ao limite máximo estabelecido (240 dias) para a aplicação da pena substitutiva da admoestação.
5 – Multa, esta, que, quer na sua medida e quer no seu quantitativo, consubstancia, inegavelmente, um valor reduzido e de pequena gravidade, pois é equivalente a € 600,00 (seiscentos euros), montante, este, inferior ao salário mínimo nacional.
Pelo que,
6 - Deve a pena de multa aplicada ao Recorrente pelo Tribunal a quo ser substituída pela aplicação de uma pena de admoestação penal porquanto, no caso concreto, mostram-se verificados todos os pressupostos legalmente exigidos.
Noutro âmbito,
7 – Face às normas constantes do artigo 22.º, do R.G.I.T., e do artigo 72.º, do C.P., é notório que há um tratamento privilegiado que decorre do R.G.I.T., enquanto lei especial, na medida em que a atenuação especial da pena surge em termos mais amplos do que no âmbito do C.P.
8 - Dali decorre que são pressupostos necessários, particulares e exigíveis para o accionamento do instituto da atenuação especial da pena: a) o reconhecimento da responsabilidade por parte do infractor; b) regularização da situação tributária até à decisão do processo.
Ora,
9 – No caso em apreço, atento o referido no ponto 3 destas conclusões de recurso cremos evidenciados os mencionados pressupostos, mormente:
a) A justa causa do não pagamento atempado do tributo devido ao credor tributário;
b) O Recorrente sempre reconheceu a sua responsabilidade pela infracção cometida e tudo o fez para, pelo meio mais expedito que lhe era possível, regularizar a sua situação tributária;
c) Procedeu ao pagamento integral dos montantes que se encontravam em dívida a título do imposto de IVA, juros de mora, remuneratórios e compensatórios, e demais acréscimos;
d) O prejuízo para o erário público é diminuto, senão inexistente, pois a prestação tributária encontra-se totalmente regularizada, acompanhada dos juros devidos avultados; e, finalmente,
e) A culpa do Recorrente não é grave, dado que a mesma desenvolveu esforço no sentido do cumprimento das obrigações fiscais, tendo reparado a infracção na medida das suas escassas disponibilidades, assumindo todos os acréscimos devidos pelas conduta.
Assim sendo,
10 - Justifica-se, in casu, a atenuação especial da pena aplicada ao Recorrente.
11 – À qual, de acordo com o disposto no artigo 12.º,n.º 1, e 22.º, n.º 2, ambos do R.G.I.T. e nos moldes decorrentes da norma constante do artigo 73.º, n.º 1, alínea c), do C.P., aplicável por força do artigo 3.º, alínea a), do R.G.I.T., entendemos como justo, adequado e proporcional à culpa e às exigências de prevenção, a aplicação ao Recorrente de uma pena de 20 (vinte) dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis euros) o que perfaria uma pena de multa no montante global de € 120,00 (cento e vinte euros).
12 - A sentença recorrida viola, frontalmente, e faz, cremos, uma errada interpretação das disposições legais constantes dos artigos 40.º, n.º 1 e 2, 60.º, 71.º, n.º 1 e 2, e 73.º, n.º 1, alínea c), todos do C.P., e dos artigos 12.º, n.º 1, 13.º e 22.º, todos do R.G.I.T.

Termos em que, invocando-se o Douto suprimento do Venerando Tribunal, deverá o presente recurso ser declarado procedente e em consequência, revogar-se a decisão recorrida, determinando, concludentemente, que a pena de multa aplicada ao Recorrente pelo Tribunal a quo seja substituída pela aplicação de uma pena de admoestação penal, ou, pelo menos, se proceda a uma atenuação especial da pena de multa determinando a aplicação de uma pena de 20 (vinte) dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis euros) o que perfaria uma pena de multa no montante global de € 120,00 (cento e vinte euros).
Porém, V. Ex.as decidirão como for de JUSTIÇA.

3.
O Ministério Público na primeira instância respondeu ao recurso, apresentando as seguintes conclusões que se transcrevem:

1. O arguido foi condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 05/06, na pena de 100 (cem) dias de multa à taxa diária de €6,00 (seis) euros, o que perfaz a quantia global de € 600,00 (seiscentos euros),vindo impugnar a concreta medida da pena.
2. No que tange à medida concreta da pena aplicada ao arguido, cumpre referir que, atentos os fundamentos aduzidos na decisão ora em crise, sempre foram observados os critérios ínsitos nos artigos 40.º, 70.º e 71.º, todos do Código Penal, na medida em que aplicou ao arguido a pena que considerou ajustada em função da culpa dos mesmos e das exigências de prevenção que no caso se faziam sentir, quer ao nível da prevenção geral, quer ao nível da prevenção especial.
3. Tanto assim que o Tribunal a quo optou pela aplicação ao arguido de uma pena de multa.
4. E, neste particular, em face da moldura penal prevista para o tipo em apreço, a condenação do ora Recorrente na pena de 100 (cem) dias de multa se situa abaixo do terço da sobredita moldura penal.
5. Relativamente ao quantitativo diário, este deve ser fixado, nos termos do disposto no artigo 47.º, n.º 2, do Código Penal, entre € 5,00 e € 500,00 em função da «situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais»,
6. Donde, atentas as condições pessoais do arguido dadas como provadas na sentença ora em crise, a fixação do mesmo em € 6,00 (seis euros) não ataca os princípios basilares do direito penal, nomeadamente ser proporcional, adequado e necessário às circunstâncias concretas do caso.
7. Pelo exposto, andou bem o Tribunal a quo, quando condenou o Recorrente pela prática da infracção retro aludida na pena acima mencionada.
Posto isto, face a tudo o quanto foi supra exposto, bem como o demais que V.ªs. Exªs. doutamente suprirão, entende-se que não deverá ser dado provimento ao recurso, e que, apenas mantendo-se a douta sentença proferida, se fará INTEIRA E SÃ JUSTIÇA!

4.
O arguido requereu a realização da audiência a que alude o artigo 423º do C.P.P. para serem debatidos os pontos 2.3. e 2.4 da motivação.

5.
Procedeu-se à realização da audiência com observância do formalismo legal, tendo a Exma Procuradora – Geral Adjunta perfilhado da posição assumida pelo Ministério Público na instância recorrida, concluindo assim pela improcedência do recurso.

A instância mantém-se válida e regular.

Cumpre decidir


II. Fundamentação

A) Delimitação do Objeto do Recurso

Dispõe o art. 412º,nº1, do Código de Processo Penal, que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.
O objecto do processo define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, onde deverá sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - arts. 402º,403º e 412º - naturalmente sem prejuízo das matérias do conhecimento oficioso (Cf.Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, VolIII, 1994,pág.340, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição,2009,pág.1027 a 1122, Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 7ªEd, 2008, pág.103).
O âmbito do recurso é dado, assim, pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, delimitando para o tribunal superior ad quem, as questões a decidir e as razões que devem ser decididas em determinado sentido, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que eventualmente existam.
No caso vertente, atentas as conclusões apresentadas pelo recorrente, a questão a decidir passa apenas por saber se a pena de multa fixada deverá ser substituída pela aplicação da pena de admoestação ou, caso assim não se entenda, atenuada especialmente, de modo a ser-lhe aplicada uma pena de 20 dias de multa.

B) Da sentença recorrida

Com interesse para a apreciação da questão supra enunciada, importa ter presente o seguinte teor da decisão objecto de recurso.

«2.1. Os factos
Com interesse para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:

1. A sociedade comercial «X Calçados Unipessoal, Lda.», contribuinte n.º ………, com sede na Rua …, Guimarães, está registada em Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) na actividade de “Fabricação de Calçado” (CAE: 015 201) e está enquadrada, para efeitos de Imposto Sobre o Valor Acrescentado (IVA) no regime normal de periodicidade trimestral.
2. Em data indeterminada, mas seguramente no quarto trimestre de 2012 o arguido, legal representante da sociedade supra referida, formulou o firme propósito de não pagar os impostos devidos ao Estado, apoderando-se das quantias que eram liquidadas a título de I.V.A., nas operações comerciais que iam efectuando.
3. No desenvolvimento desse propósito, muito embora tenha vindo a exercer, de modo habitual, continuado e sem interrupções, a mencionada actividade, no 4.º trimestre de 2012, o arguido apoderou-se das quantias entregues pelos seus clientes à referida sociedade a título de I.V.A., utilizando-as em seu proveito.
4. Efectivamente, o arguido não procedeu à entrega aos cofres do Estado, a título de I.V.A. liquidado e recebido pela sociedade comercial supra referida: Ano de 2012, Quarto Trimestre - €13.242,34.
5. Na verdade, apesar de estar obrigado a enviar à administração tributária, até ao dia 15 do 2.º mês seguinte àquele a que respeitam as operações, as declarações periódicas acompanhadas dos correspondentes meios de pagamento, respeitantes ao imposto liquidado nas transacções que efectuava, o arguido, perfeitamente, ciente dessa obrigação, enviou naquele período a declaração desacompanhada do montante do imposto exigível, ascendendo, presentemente, ao valor de €13.242,34 (treze mil, duzentos e quarenta e dois euros e trinta e quatro cêntimos), passando a dele dispor como se seus fossem.
6. De igual forma não o fez nos 90 (noventa dias) dias após o prazo mencionado em 5.º.
7. E, apesar de regularmente notificado nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b), do n.º 4, do artigo 105.º, do Regime Geral das Infracções Tributárias, com a redacção introduzida pelo artigo 95.º, da Lei n.º 53-A/2006, de 20/12, para efectuar o pagamento da quantia de IVA, supra referida, com os acréscimos legais e coimas aplicáveis pela falta de entrega daquelas prestações tributárias, não o fez, após o decurso do prazo de 30 dias, nem posteriormente.
8. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente – sempre em representação da sociedade comercial supra referida - com o propósito de obter vantagem patrimonial a que sabia não ter direito, apossando-se do montante do imposto supra mencionado, deduzido nos termos da lei, que estava legalmente obrigado a entregar ao Estado, não desconhecendo que a sua posição era tão só a de assegurar, enquanto mero depositário, a sua detenção para ulterior entrega à Administração Fiscal, bem sabendo que tal conduta é proibida por lei.
9. O arguido confessou os factos de forma integral e sem reservas.
10. A dívida a que se referem os autos foi paga no âmbito do processo de execução fiscal nº ………….137.
11. No âmbito do referido processo de execução fiscal foram efetuados vários pagamentos, nomeadamente, em 11-11-2015, 29-12-2015, 19-02-2016, 06-04-2016, 29-09-2016, 01-02-2017, 15-03-2017, 17-03-2017, 13-04-2017 e 26-09-2017.
12. O processo de execução fiscal, ficou extinto por pagamento, em 26-09-2017.
13. O arguido trabalha como cortador de peles e aufere cerca de €618,00 mensais.
14. Vive com a esposa, a qual trabalha como gaspeadeira e aufere cerca de €620,00 mensais, e a sogra que é reformada, e, ainda, uma filha estudante.
15. Vive na casa da sogra.
16. Frequentou a escola até ao 6º ano.
17. O arguido aos 14 anos de idade integrou o mercado de trabalho, desenvolvendo a sua atividade profissional em diversas fábricas de calçado.
18. Em 2006, o arguido, criou, em conjunto com a esposa, empresa própria (X Calçados, Unipessoal, Ldª), de corte e costura de calçado, tendo chegado a contar com onze funcionários ao seu serviço.
19. A firma manteve-se em funcionamento até 2013. O arguido refere o surgimento de dificuldades financeiras após a produção de encomendas sem o respetivo pagamento por parte dos clientes.
20. Posteriormente a 2013, o arguido e a esposa continuaram a atividade na mesma área, por conta de outrem, que mantêm no presente.
21. O arguido tem antecedentes criminais: 1 crime de abuso de confiança fiscal, praticado em 31.12.2012, condenado em 30.06.2017, na pena de 90 dias de multa á taxa de €7,00; 1 crime de abuso de confiança fiscal, praticado em 15.02.2016, condenado em 22.01.2018, na pena de 100 dias de multa à taxa de €6,00;
***
(…)
2.3. Enquadramento Jurídico

Ao arguido é imputada a prática de um crime de abuso de confiança fiscal p. e p. pelos art.º 7º, 105º, nº.s 1 do R.G.I.T., aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, com referência ao disposto no art. 6º do mesmo diploma.
Este preceito estatui que "quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias."
Preceituando o seu nº 4 que “Os factos descritos nos n.ºs anteriores só são puníveis se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação”.
Cada cidadão, tem, para além de direitos, deveres constitucionalmente consagrados, e um dos deveres fundamentais é o de pagar impostos, assegurando desse modo, também, a satisfação de prestações sociais, indispensáveis a qualquer Estado com a configuração do nosso. Mas, outro dever essencial dos cidadãos é o de entregar os impostos que o Estado lhes confia enquanto depositários.
Ao não o fazer, não estão só a prejudicar o Estado mas também os outros cidadãos e as empresas que cumprem as suas obrigações legais, desvirtuando as regras da livre concorrência violando assim o disposto no artº 13º da Constituição da República Portuguesa - Princípio da Igualdade.
Ao novo regime geral das infracções tributárias subjaz uma finalidade nítida de pragmatismo, celeridade e eficácia, donde resulta que da tipificação deste crime desaparece o elemento da apropriação da prestação tributária.
O crime de abuso de confiança fiscal passa a ficar preenchido com a falta de entrega total e parcial, à administração tributária, de prestação deduzida nos termos da lei a que o sujeito passivo estava obrigado a entregar ao credor tributário.
Desta feita, para que o crime se consume, basta, assim, que o agente não entregue as quantias liquidadas ao fisco.
Tem-se como assente que atento o mecanismo de liquidação e cobrança do IVA, o dinheiro referente a esse imposto nunca pertence ao sujeito passivo, nunca integra o seu património - apesar de, contabilisticamente, ele dar entrada nos seus cofres.
Trata-se, no entanto, de uma normal operação contabilística e matemática, sendo o contribuinte desse imposto como que um fiel depositário dessas quantias, desde o momento em que elas lhe são entregues (incluídas no pagamento da factura), até ao momento em que, posteriormente, as há-de entregar ao verdadeiro dono: o Estado.
A anterior versão da norma em causa exigia, para além do dolo genérico que se reflecte de actos desta índole, ainda a verificação do chamado dolo específico, ou intenção final, consubstanciada na intenção de obtenção de vantagem patrimonial.
Tal elemento da infracção deixou de existir na norma nova do RGIT, ou seja, agora, basta, como já supra se disse, a não entrega da prestação (omissão), à qual acresce o dolo genérico.
Neste sentido, também o Tribunal da Relação de Guimarães decidiu, em 06-09-2005, que “o crime de abuso de confiança fiscal, actualmente previsto no art. 105.º do R.G.I.T. (republicado pela Lei n.º 15/2001, de 05/06, alterado pela Lei n.º 109-B/2001, de 27/12) não tem como pressuposto nem a intenção de obter para si ou para outrem vantagem patrimonial indevida (como acontecia na previsão do art. 24.º do R.J.I.F.N.A. na sua redacção inicial), nem a apropriação, total ou parcial, da prestação tributária deduzida nos termos da lei (como acontecia na redacção dada àquele art. 24.º do D.L. n.º 394/93, de 14/1), bastando--se com a não entrega total ou parcial à administração tributária da prestação tributária deduzida nos termos da lei”.
O IVA é um imposto que visa tributar todo o consumo em bens materiais e serviços, abrangendo na sua incidência todas as fases do circuito económico, desde a produção ao retalho, sendo, porém, a base tributável limitada ao valor crescente em cada fase.
O sujeito activo deste imposto é o Estado, ao passo que sujeitos passivos serão as pessoas singulares ou colectivas que, com carácter de habitualidade, exerçam transacções de produtos em geral.
A sua orgânica faz intervir na recolha do imposto a generalidade dos operadores económicos, diluindo-se o seu peso por um maior número de operadores, desincentivando assim a evasão e a fraude, tornando eficaz o funcionamento do imposto com taxas relativamente elevadas.
O objectivo deste imposto é tributar todo o consumo em bens materiais e serviços, abrangendo na sua incidência todas as fases do circuito económico, desde a produção ao retalho, repercutindo-se o mesmo no consumidor final.
A base tributável fica limitada ao valor acrescentado em cada fase e determina-se aplicando a taxa ao valor global das transacções da empresa em determinado período, deduzindo o imposto suportado pela empresa nas compras desse mesmo período, revelado nas facturas de aquisição. Daí que, na fase retalhista, este mecanismo represente uma repercussão do imposto para a frente, correspondente a uma taxa tributada e efectuada de uma só vez. Por outras palavras, trata-se de um imposto de auto-lançamento, ou auto-liquidação, por a mesma caber ao próprio contribuinte. Normalmente, aplica-se a taxa ao valor global das transacções da empresa, em determinado período, deduzindo-se a esse montante o imposto suportado por ela através de aquisições durante esse mesmo período; é o designado método do crédito do imposto
Trata-se, desta forma, de um imposto instantâneo ou de obrigação única, que incide sobre actos ou factos isolados, isto é, sem carácter de continuidade, pelo que terá de ser ainda qualificado como um imposto indirecto no sentido de que logo que se verifica o elemento material – a transmissão do bem ou a prestação de serviço – surge o imposto, a obrigação de imposto, certa e exigível.
Esta é a regra que surge plasmada no artigo 7º do Código do IVA (aprovado pelo Decreto Lei n.º 394 B/84, de 26 de Dezembro), quando refere que o imposto é exigível e torna-se devido no momento em que os bens ou serviços objecto de operações tributáveis entram na disponibilidade do seu adquirente ou destinatário. Como se vê, tal momento coincide, nas transmissões de bens, com o momento em que os bens são postos à disposição dos seus adquirentes, que corresponde, regra geral, ao momento da sua entrega.
Nos termos dos artigos 27º e 41º do Código do IVA, os sujeitos passivos deste imposto devem entregar nos serviços do IVA a declaração periódica relativa às operações efectuadas no exercício das suas actividades no decurso do mês correspondente, com indicação do imposto devido e dos elementos que serviram de base ao cálculo (artigo 19º do mesmo diploma). Isto é: incumbe ao contribuinte enviar, mensalmente ou trimestralmente, consoante o regime, ao Serviço de administração do IVA, uma declaração relativa às operações efectuadas no exercício da sua actividade desse mês precedente, já acompanhada do pagamento do montante do imposto respectivo (artigo 27º).
Como se refere, ainda, no Ac. TRP 664/13.5TAPRD.P1, de 12-10-2016in www.dgsi.pt “I – A responsabilização criminal dos gerentes da sociedade pelo crime de abuso de confiança à Segurança Social, pressupõe o exercício de facto e efectivo do cargo de gerente.
II- O crime de abuso de confiança à segurança social é um crime omissivo próprio, em que o evento típico consiste na violação do dever de agir imposto por lei.
III – A omissão dolosa (artº 14º CP) reside na vontade consciente de abstenção da actividade devida, no conhecimento da possibilidade de verificação do resultado típico e na aceitação intencional ou necessária desse resultado ou na mera conformação com a sua produção.
IV – Comete tal crime também o gerente da sociedade se o ilícito criminal (não entrega da contribuição à Segurança Social) for praticado por outra pessoa a quem ele permitiu que tomasse a decisão (de entrega ou não entrega), por omissão do seu dever de vigilância ou controlo (artº 11º 1 CP).” (sublinhado nosso)
Neste jaez e uma vez analisados os elementos típicos do crime de abuso de confiança fiscal e tendo em conta a matéria dada como provada, dúvidas não existem de que os arguidos, praticaram, efectivamente, os crimes em apreço, pois preencheram os respectivos elementos constitutivos, senão vejamos.
O arguido enviou a(s) declaração(ões) modelo A com o seu apuramento, e não entregaram ao Estado-­Administração Fiscal, até ao termo do respectivo prazo legal, a(s) mencionada(s) quantia(s) de I.V.A., que liquidou aos seus clientes e as quais receberam.
Do mesmo modo, o arguido não entregou as mencionadas quantias à Administração Fiscal nos noventa dias posteriores ao termo do prazo legal indicado para cada uma delas, nem posteriormente, antes se apoderaram das mesmas e integraram-nas no património da sociedade à medida que as receberam.
Constata-se, assim, que o referido arguido preencheu os elementos objectivos do tipo legal de crime em causa.
Por outro lado, também se encontra preenchido o elemento subjectivo, uma vez que o arguido agiu de vontade livre e consciente, com o propósito conseguido de, contra a vontade e sem autorização do legítimo dono, fazer suas as quantias de I.V.A. mencionadas, que liquidou e recebeu para entregar ao Estado, bem sabendo que não lhe pertencia e que a sua conduta não era permitida.
Pelo exposto, mostram-se verificados todos os pressupostos objectivos e subjectivo da infracção em causa, não ocorrendo qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.
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3.2. Da escolha e medida concreta da pena.

Importa agora determinar a natureza e a medida da pena a aplicar à conduta do arguido.
O crime de abuso de confiança fiscal é punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
As finalidades das penas encontram actualmente consagração no artº 40º do Código Penal, e visam em primeira linha a protecção dos bens jurídicos e a “estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada” (1) (prevenção geral), e ainda a reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).
Por outro lado, o nº 2º deste normativo dispõe como manifestação do princípio “Nulla poena sine culpa” que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”. A função da culpa é dupla: por um lado é pressuposto da pena uma vez que sem culpa não pode ser aplicada qualquer pena, mas eventualmente uma medida de segurança, e por outro é o limite inultrapassável de todas, sejam quais forem, as exigências de prevenção.
Atentando nesta matriz, a primeira opção a fazer é, entre a pena de multa e a pena de prisão, pois de harmonia com o preceituado no artigo 70º do Código Penal, se ao crime forem aplicáveis em alternativa pena privativa e pena não privativa da liberdade, deve o Tribunal dar preferência à medida não privativa da liberdade, sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Tal previsão decorre da génese da política criminal vigente no actual Código Penal que, veio consagrar como objectivo fundamental que as penas sejam aplicadas com um sentido pedagógico e ressocializador, (sendo que a prisão (…) “é um mal que deve reduzir-se ao mínimo necessário…). (2)
No caso vertente, o facto do arguido ter antecedentes criminais, mas tendo em conta o valor em causa e a data dos factos, e o pagamento integral, impõe, ainda, a opção por uma pena não privativa da liberdade, ou seja, pela pena de multa, entendendo o tribunal que a sanção pecuniária se revela suficiente para realizar as finalidades da punição.
Escolhida a natureza da sanção a aplicar, tendo em vista as finalidades que com a mesma se pretende atingir, há, agora, que determinar a respectiva medida.
Dispõe o nº 1 do artigo 71º do Código Penal, que a determinação da medida concreta da pena faz-se em função da culpa do agente, tendo em conta as exigências de prevenção geral e especial.
Decorre do disposto no n.º 2 da referida norma, que na determinação da pena, o Tribunal atenderá a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente.
E o artº 13º do RGIT estipula que “Na determinação da medida da pena atende-se, sempre que possível, ao prejuízo causado pelo crime.”
Atender-se-á assim, para o efeito, ao mediano grau de ilicitude face ao montante apropriado pelo arguido, o pagamento integral, o dolo directo, uma vez que o arguido agiu com consciência da ilicitude da sua conduta e ainda assim persistiu em praticá-la, a confissão, e existência de antecedentes criminais.
Tudo visto e ponderado, entende-se justa, adequada e proporcional à culpa e às exigências de prevenção, a aplicação ao arguido de uma pena de 100 (cem) dias de multa, nos termos das disposições conjugadas nos artºs 105º, nº 1 do R.G.I.T. e 71º do Código Penal.
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Relativamente ao quantitativo diário, há que ter em conta que “o montante diário da multa deve ser fixado em termos de se constituir um sacrifício real para o condenado sem, no entanto, deixarem de lhe serem asseguradas as disponibilidades indispensáveis ao suporte das suas necessidades e do respectivo agregado familiar” – Ac. STJ de 02.10.1997, in C.J., STJ, ano II, 3º, pág. 183.
Nos termos do art. 15.º, n.º 1 do R.G.I.T.: “cada dia de multa corresponde a uma quantia entre €5,00 e €500,00, tratando-se de pessoas singulares (…), que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos”
Assim, atenta a situação económica do arguido reflectida na factualidade dada como provada, entende-se fixar a taxa diária da multa em €6,00 (seis euros).
(…)».

C) Apreciação do Recurso

Está em causa no presente recurso saber se pena de multa fixada deverá ser substituída pela aplicação da pena de admoestação ou atenuada especialmente.
Nos presentes autos foi o arguido, ora recorrente, condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artº 105º, n.º 1 do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 05/06, na pena de 100 (cem) dias de multa à taxa diária de €6,00 (seis) euros.
Pugna o recorrente, a título principal, pela substituição da pena de multa por uma pena de admoestação.
Por força do artigo 3º, alínea a) do RGIT, são aplicáveis subsidiariamente quanto aos crimes e seu processamento, as disposições do Código Penal, do Código de Processo Penal e respetiva legislação complementar.

Ora, dispõe o artigo 60º, do Código Penal que:

“1 - Se ao agente dever ser aplicada pena de multa em medida não superior a 240 dias, pode o tribunal limitar-se a proferir uma admoestação.
2 - A admoestação só tem lugar se o dano tiver sido reparado e o tribunal concluir que, por aquele meio, se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
3 - Em regra, a admoestação não é aplicada se o agente, nos três anos anteriores ao facto, tiver sido condenado em qualquer pena, incluída a de admoestação.
4 - A admoestação consiste numa solene censura oral feita ao agente, em audiência, pelo tribunal.


Ora, os pressupostos de que o artº 60º CP faz depender a aplicação ao arguido da pena de admoestação, são os seguintes:
- um pressuposto formal, ou seja, que a pena concreta aplicada seja de multa não superior a 240 dias;
- que haja reparação do dano;
- que com a admoestação se realizem de forma adequada e suficiente as finalidades punitivas.
- inexistência, em princípio, de anterior condenação em qualquer pena.

Como decorre do citado artigo 60º, a pena de admoestação não se basta com a verificação do requisito formal previsto no n.º 1, pressupondo também a emissão de um juízo de prognose positiva sobre a sua adequação e eficácia à ressocialização do agente de facto criminoso e ainda de que “não porá em causa os limiares mínimos das expectativas comunitárias ou de prevenção de integração, sob a forma de tutela do ordenamento jurídico” – Figueiredo Dias, in obra citada, pág. 387, §605, parte final.
A propósito da pena de admoestação, escreveu-se no preâmbulo do Código Penal “trata-se de uma censura solene, feita em audiência pelo tribunal, aplicável a indivíduos culpados de factos de escassa gravidade e relativamente aos quais se entende ( ou por serem delinquentes primários ou por neles ser mais vivo um sentimento da própria dignidade, por exemplo), não haver, de um ponto de vista preventivo, a necessidade de serem utilizadas outras medidas penas que importem a imposição de uma sanção substancial”.

Como já referimos no acórdão por nós relatado em 13/1/2020, no âmbito do processo nº564/19.5GAFAF.G1:

“A pena de admoestação, como pena de substituição, está prevista essencialmente para os casos em que se mostra desnecessária a aplicação de uma pena ao arguido condenado tratando-se primordialmente das situações denominadas de bagatelas penais em que a ilicitude e ou a culpa são reduzidas, quer pelo facto em si quer pelo comportamento posterior (reparação do dano).
Na verdade, a admoestação é a pena mais leve que o nosso ordenamento jurídico-criminal comporta, subsistindo como pena de substituição de multas de pequena gravidade, tal como já preconizava Figueiredo Dias, in Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas-1993, pág. 385, §602.

Mas para que tenha lugar a aplicação da pena de admoestação, verdadeira pena de substituição, necessário se mostra que o tribunal se convença, através da emissão de um juízo de prognose favorável, que tal pena se revela um meio adequado e suficiente de realização das finalidades da punição.
Como refere o Acórdão n.º 945/05, de 11.05.2005 da Relação de Coimbra: "A pena de admoestação, a mais leve do nosso ordenamento jurídico, só pode ser cominada se o tribunal se convencer, através da emissão de um juízo de prognose favorável, que o delinquente alcançará por tal via a sua (re) socialização e que a sua aplicação não porá em causa os limiares mínimos das expectativas comunitárias ou de prevenção de integração, sob a forma de tutela do ordenamento jurídico, sem esquecer que a mesma só deve ser cominada para censura de factos de escassa gravidade, gravidade que deve ser aferida em função do bem ou do interesse jurídico tutelado e o grau e a intensidade da violação ou lesão nele produzida. "
Revertendo ao caso dos autos, mostra-se incontroverso que a concreta pena pecuniária a substituir é inferior 240 dias, bem como que o arguido não foi condenado em qualquer pena nos três anos anteriores à prática do crime em apreço, este relativo a factos ocorridos no último trimestre de 2012, sendo, aliás, primário à data dos factos.
Por outro lado, procedeu à reparação do dano.
Mas será que a admoestação se revela um meio adequado e suficiente de realização das finalidades da punição, como pugna o recorrente?
Adiantando a nossa conclusão, cremos que não.
Com efeito, ainda que o arguido tenha procedido à reparação do dano e confessado os factos, fosse primário à data da ocorrência destes e se encontre familiar, profissional e socialmente integrado, já sofreu duas condenações posteriores pela prática do mesmo tipo de crime, uma delas por factos posteriores aqueles pelos quais foi condenado nos presentes autos, o que faz com que as exigências de prevenção especial se façam sentir.
Por outro lado, são elevadíssimas as exigências de prevenção geral neste tipo de crime, não apenas por o crime de abuso de confiança fiscal ser atualmente dos mais frequentes, mas também pela necessidade de “promover a consciência ética fiscal” - Anabela Rodrigues – Contributo para a fundamentação de um discurso punitivo em matéria penal fiscal – Direito Penal Económico e Europeu – Vol. II, pág.484.
Na verdade, importa ter presente a banalização da prática de crimes tributários, demonstrada pelos elevados índices de criminalidade contra os interesses tributários do Estado Fiscal Social / erário público, existindo um sentimento generalizado de impunidade face a este tipo de ilícitos.
Como salienta Jorge dos Reis Bravo, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 9, Out/Dez. 1999, pág. 630, «O fenómeno da evasão fiscal, sendo uma realidade endémica e quase cultural, fez com que se reclamasse uma atitude mais firme e exigente por parte do Estado, no sentido de ser efectivado o cumprimento dos deveres fiscais, por todos os cidadãos e em condições de igualdade de tratamento”.
Sendo o critério de aplicação da pena de admoestação exclusivamente preventivo, tendo-se concluído que a mesma não é adequada à satisfação das necessidades de prevenção especial de socialização e que as exigências de prevenção geral são elevadíssimas quando estão em causa crimes tributários, mostra-se afastada a possibilidade da sua aplicação.
Pelo exposto, decide-se não proceder à substituição peticionada pelo recorrente.

A título subsidiário vem o recorrente pugnar pela atenuação especial da pena de multa, com a sua consequente redução para 20 dias de multa.
Estando em causa um crime de abuso de confiança fiscal, dispõe o artigo 22º, nº2, do RGIT que a “A pena será especialmente atenuada se o agente repuser a verdade fiscal e pagar a prestação tributária e demais acréscimos legais até à decisão final ou no prazo nela fixado”.

Face a esta redação foi assim intenção do legislador, no âmbito desta lei especial, impor o caráter de obrigatoriedade à atenuação especial da pena nos crimes fiscais, fazendo-a operar ope legis, desde que se verifiquem as circunstâncias e prazo aí referidos:
- o agente repuser a verdade fiscal e pagar a prestação tributária e demais acréscimos legais;
- que tal pagamento ocorra até à decisão final ou no prazo nela fixado.
Deste modo, contrariamente ao regime geral regulado no artigo 72º do C.Penal, não importa formular juízos de valor acerca da diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena.
Tal atenuação também não está condicionada aos limites impostos pelo nº1 do citado artigo 22º para a dispensa de pena, pelo que, independentemente da moldura penal que ao crime couber, a atenuação é sempre possível desde que verificados os requisitos enunciados no nº2.
O legislador quis regular tal instituto de modo diverso do previsto no C. Penal e a justificação dessas diferenças adequa-se à natureza pública do bem jurídico protegido pela incriminação e pelas especiais razões de prevenção.
Volvendo-nos no caso vertente, cremos estarem verificados os requisitos para que o recorrente possa beneficiar da atenuação especial da pena a que alude o citado preceito legal.
Como resulta dos autos, o arguido procedeu ao pagamento da dívida a que se referem os autos no âmbito do respetivo processo de execução fiscal, tendo este já sido declarado extinto por pagamento em 26/9/2017.
Ora, não podendo deixar de concluir-se que o arguido ao proceder a tal pagamento repôs a verdade fiscal, pagamento que efetuou na totalidade até à decisão final, não vemos como afastar a aplicação do regime da atenuação especial da pena, o qual, como referimos, é de aplicação automática, sendo os termos da atenuação em causa, face à ausência de norma reguladora especial no RGIT, os mesmos da lei geral, isto é, os do artigo 73º do C.Penal, de aplicação subsidiária, por força do citado artigo 3º.
Deste modo, em conformidade com o disposto na alínea c), do nº1, do citado artigo 73º, o limite máximo da moldura da pena de multa de acordo com a previsão do artigo 105º, nº1 (360 dias) será reduzido para 240 dias, mantendo-se o limite mínimo de 10 dias.
Concluindo-se pela aplicação da atenuação especial da pena, resta agora, em conformidade com a mesma, proceder à reformulação da pena concreta da pena de multa aplicada ao arguido.
Assim, dando por reproduzidas as considerações tecidas pelo tribunal recorrido a respeito dos critérios a ter em conta na determinação da medida concreta da pena, ponderando-se o grau mediano da ilicitude, face ao montante apropriado a título de IVA, a circunstância do arguido ter atuado com dolo direto, as exigências de prevenção geral (elevadas) e especial que se fazem sentir, salientando-se quanto a estas últimas que o arguido, não obstante delinquente primário à data dos factos, sofreu, posteriormente, duas condenações pela prática do crime em apreço e, por fim, que milita a seu favor a circunstância de confessado os factos, o que evidencia que interiorizou a gravidade dos factos e a desconformidade da sua atuação à lei, julga-se adequado e equilibrado fixar agora a pena de multa em 70 dias, a qual corresponderá ao montante de 420,00 €, tendo em conta a taxa diária fixada na sentença recorrida.
Procede assim parcialmente o recurso interposto pelo arguido.

III. Dispositivo

Nos termos e pelos fundamentos exposto, acordam em audiência os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido V. F., reduzindo-se a pena de multa que lhe foi aplicada para 70 (setenta) dias, à razão diária já determinada.

Sem custas.
(Texto elaborado pela relatora e revisto pelos signatários – art.94º,nº2, do C.P.P.)

Guimarães, 13 de julho de 2021

Desembargadora Relatora
Cândida Martinho
Desembargador Adjunto
António Teixeira
Juiz Presidente da Secção Penal
Fernando Chaves


1. Figueiredo Dias – “As Consequências Jurídicas do Crime”, Aequitas, 1993, 241.
2. Ponto 9º da introdução constante do DL nº 400/82, de 23 de Setembro.