Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
969/17.6T8BGC.G1
Relator: AFONSO CABRAL DE ANDRADE
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CULPAS CONCORRENTES
PROPORÇÃO
PRIVAÇÃO DE USO
MEDIDA DA INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/28/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO PRINCIPAL E SUBORDINADA
Decisão: APELAÇÕES IMPROCEDENTES
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Num acidente de viação em que um ligeiro circula atrás de um tractor, numa recta com 900 metros, em plena luz do dia, espera que passe pelo sinal de fim de proibição de ultrapassar e após inicia a ultrapassagem, ocupando a faixa contrária e acelerando, para ser embatido pelo referido tractor, cujo condutor nesse exacto momento iniciou uma manobra de mudança de direcção para a esquerda, num entroncamento ali existente mas não sinalizado por qualquer placa vertical, sem olhar para trás para verificar que o podia fazer em segurança, existem culpas de ambos os condutores na produção do acidente, devendo ser graduadas na percentagem de 80% para o condutor do tractor e 20% para o condutor do ligeiro.
II- O dano da privação do uso existe pelo simples facto de o lesado ficar impossibilitado de utilizar o seu veículo, devendo ser ressarcido, na falta de elementos concretos e detalhados sobre o prejuízo causado, com recurso à equidade tendo por base algumas informações de carácter patrimonial.
III- Qualquer acto do lesado ou de terceiro destinado a ajudar o lesado a suportar melhor as consequências do acto lesivo não têm qualquer interferência na determinação da medida da indemnização, que segue as regras do art. 566º CC.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

M. J., T. M. e V. M. vieram instaurar a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, n.º 969/17.6T8BGC, contra X - Companhia de Seguros, S. A. (anteriormente denominada Y Companhia de Seguros, S. A.), concluindo com o pedido de que esta seja condenada a pagar-lhes a quantia de € 200.000,00 (duzentos euros), nomeadamente, à primeira Autora, a quantia de € 114.000,00 (cento e catorze mil euros) e a cada um dos outros Autores, a quantia de € 43.000,00 (quarenta e três mil euros), acrescidas essas quantias dos juros legais, contados à taxa legal em vigor, desde a data da citação até integral pagamento.

Também a Construções W, Lda. instaurou contra a Ré acção declarativa sob a forma de processo comum, que foi apensada à dos presentes autos, sob o n.º 969/17.6T8BGC-A, concluindo com o pedido de que a Ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 48.300,00 (quarenta e oito mil e trezentos euros) e a quantia de € 40,00 (quarenta euros) / dia, a titulo de indemnização pela privação de uso da viatura, desde a entrada em juízo da acção até efectivo e integral pagamento da indemnização peticionada, e juros sobre todas as quantias, desde a citação até integral e efectivo pagamento.

Para o efeito e em síntese, os Autores de uma e outra acção deduziram a alegação de factos tendentes a demonstrar que a Ré está constituída na obrigação de os indemnizar nos termos peticionados.
A Ré, regularmente citada, demonstrando que ora se denomina X – Companhia de Seguros, S. A., apresentou as respectivas contestações, impugnando parte dos factos articulados por uns e outros Autores e deduzindo factos modificativos das alegadas causas de pedir.

Procedeu-se à realização das audiências prévia e final com observância das formalidades legais.

Foi então proferida sentença que julgou parcialmente procedentes as acções e, em consequência:

a) Condenou a Ré X - Companhia de Seguros, S. A. a pagar à Autora M. J., a quantia de € 35.600,00 (trinta e cinco mil e seiscentos euros), à Autora T. M., a quantia de € 25.900,00 (vinte e cinco mil e novecentos euros) e ao Autor V. M., a quantia de € 28.600,00 (vinte e oito mil e seiscentos euros), acrescidas essas quantias dos juros legais, contados à taxa legal, desde a prolação da presente sentença até efectivo e integral pagamento.
b) Condenou a Ré X - Companhia de Seguros, S. A. a pagar à Autora Construções W, Lda. a quantia de € 16.300,00 (dezasseis mil e trezentos euros), acrescida dos juros legais, sobre a quantia de € 12.000,00, a contar da presente sentença, e sobre a quantia de € 3.440,00, a contar da citação, até efectivo e integral pagamento; e a pagar a indemnização correspondente à privação do uso da viatura, a contar da prolação da presente sentença e até ao momento em que a Ré proceda ao pagamento da quantia de € 3.440,00 (três mil quatrocentos e quarenta euros), a liquidar em execução de sentença.
c) Absolveu a Ré do demais contra si peticionado.

Inconformada com esta decisão, a ré dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo (ex vi artigos 629º,1, 631º,1, 633º, 637º, 638º,1,7, 641º,1,2, 642º, 644º,1,a, 645º,1,a, e 647º,1, do Código de Processo Civil).
Termina a respectiva motivação com as seguintes conclusões:

I. Das presunções do artigo 623º do CPC e 530º do CC.

1. Para que uma decisão penal condenatória seja oponível a terceiros, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 623º do Código de Processo Civil, tem de estar demonstrado que se trata de uma condenação definitiva, pois só preenchido esse requisito é que a sentença assume eficácia probatória por si mesma em relação à presunção da existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal.
2. No caso em apreço, a presunção prevista naquele artigo 623º não pode operar, já que não consta do(s) processo(s) qualquer meio de prova da definitividade da decisão penal condenatória, designadamente, certidão do seu trânsito em julgado, pelo que a decisão tomada de que a factualidade dos artigos 3º a 10º, 15º e 16º dos factos provados deva ser considerada provada “por integrarem os pressupostos da punição e condenação definitiva do condutor do tractor”, e por a “sua existência não ter sido ilidida”, não é legalmente aceitável.
3. De qualquer forma, e com excepção das decisões proferidas sobre a matéria de facto impugnadas pela presente apelação, a recorrente aceita os demais factos dados como provados e aqui não impugnados, pois resultaram da discussão da causa.
4. As decisões de facto e de direito a proferir na presente acção devem assentar num facto essencial que é a qualidade de comissário com que o condutor do MH exercia a condução (artigo 22º dos factos provados), e donde decorre uma presunção de culpa que impende sobre aquele condutor que onera os autores a fazerem prova dos factos donde se possa concluir que aquele condutor não foi culpado pelo acidente sob pena de, não o fazendo, se decidir com base na presunção legal da culpa desse condutor (artigos 503º, nº 3 e 487º, nº 1 do Código Civil).

II. Impugnação das decisões relativas à matéria de facto provada e ampliação desta.

5. Da discussão da causa e dos documentos juntos aos autos (investigação da GNR) resulta que o MH seguia a velocidade superior aos 80 km/h, e não a “cerca de 80 km/h” como decidido na sentença recorrida.
6. Com efeito, da certidão do processo crime que a ré juntou aos autos consta o depoimento da testemunha e passageiro do MH, J. B., o qual, apenas um mês após o acidente declarou que esse veículo circulava “entre os 80 km/h e os 90 km/h”, valores que alterou no julgamento cível para 70/80 km/h, por motivos óbvios, sem, contudo, deixar de referir que poderia haver uma diferença de 5 ou 10 km nessa sua nova avaliação da velocidade.
7. Por outro lado, comparando os dados objectivos constantes no relatório da investigação levada a cabo pela GNR com a tabela de distâncias de paragem constantes no Manuel de Acidentes de Viação, de Dario Martins de Almeida, nos termos da qual, a distância de paragem de um veículo ligeiro que transite à velocidade de 80 km/h é de 43,86 metros, tem de se concluir que o MH seguia a uma velocidade bem superior a 80 km/h.
8. É que, tendo em conta que a uma velocidade de 80 km/h e no tempo de reacção de 1 segundo o MH percorreria 22,22 metros; que o MH deixou marcado no pavimento um rasto de travagem de 9,70 metros; que desde o fim desses rastos de travagem até ao local de embate distam ainda 12 metros (cfr. croquis à escala do referido documento), o que tudo perfaz 43,92 metros; a violência com que o MH ainda foi embater no PE (que fez com que o tractor mudasse de trajectória para a sua direita, derrapasse lateralmente com os pneumáticos numa extensão de 4,30 metros e atravessasse toda a faixa de rodagem, e o MH tivesse entrado em derrapagem e capotado – artigos 4º a 16 dos factos provados); e que no local do acidente a via “é constituída por uma recta de cerca de 900 metros em patamar, em regular estado de conservação” (artigo 5º dos factos provados, é por demais evidente que o MH teria de rodar a uma velocidade superior a 80 km/h.
9. Assim sendo, deve revogar-se parte da decisão tomada no artigo 4º dos factos provados respeitante à velocidade do MH, julgando-se provado que esse veículo circulava “a velocidade superior a 80 km/h.”
10. A recorrente discorda ainda da decisão constante no artigo 11º dos factos provados, na parte em que concluiu que o condutor do tractor PE iniciou a respectiva manobra sem olhar para trás no sentido de avistar o MH, decisão essa que foi tomada apenas com base na referida presunção decorrente do artigo 623º do CPC (inaplicável, como se referiu), e sem avaliar o que foi discutido em sede de julgamento e a documentação junta aos autos, designadamente, os sucessivos depoimentos do condutor do PE, I. G..
11. No processo crime esse condutor referiu que “próximo do local onde pretendia mudar de direcção para a esquerda”, “fez o pisca e olhou para trás”, e como “não se apercebeu de nenhum veículo no mesmo sentido (à retaguarda), iniciou a manobra de mudança de direcção para a esquerda”, versão que confirmou e sustentou sucessivamente na audiência de julgamento destes autos, nunca hesitando em esclarecer peremptoriamente que olhou para trás imediatamente antes de começar a virar para a sua esquerda e que naquele momento não havia qualquer veículo a realizar manobra para o ultrapassar, e que fez tudo bem (minuto 00:03:03 a 00:42:13 do seu depoimento gravado).
12. Em função deste depoimento, o artigo 11º dos factos provados deve passar a ter a seguinte redacção: “Quando a viatura, ligeira de mercadorias, MH se encontrava a distância não concretamente apurada da traseira do veículo tractor, PE, este reduz de velocidade, passando a circular a cerca de 10 km/hora, sinaliza mudança de direcção para esquerda, olhou para trás, e após ter confirmado que não havia qualquer veículo a iniciar ou a efectuar manobra de ultrapassagem, iniciou a mudança de direcção para a esquerda com vista ao acesso ao entroncamento existente à esquerda e referido em 6.º” e
13. Como consequência desse julgamento, deve ser revogada a decisão constante na última parte do artigo 12º dos factos provados, onde se refere “cortando a via de marcha em que seguia o veículo MH”, facto esse que deve ser julgado não provado.
14. O condutor do PE esclareceu ainda que antes de iniciar a mudança de direcção accionou o pisca da esquerda, e que o fez a cerca de 30/40 metros antes de iniciar a manobra de mudança de direcção (minuto 00:08:15 a 00:08:30 do seu depoimento gravado), facto que assume particular importância dado que o condutor do MH referiu não ter visto o pisca do tractor ligado, nem reparou que o mesmo tivesse reduzido de velocidade, o que é demonstrativo da forma distraída e desatenta com que fazia a condução.
15. Deve ser aditado aos factos provados um novo artigo (11º-A) com o seguinte teor: “O condutor do PE sinalizou a manobra de mudança de direcção para a esquerda, accionando o pisca esquerdo, 30/40 metros antes de iniciar essa manobra”.
16. Tal como alegado pela ré nas contestações, dos documentos juntos aos autos (relatório elaborado pelos militares da GNR) e do depoimento do condutor do MH (minuto 00:23:19 a 00:23:27) resultou provado que o embate entre os veículos ocorreu junto à berma esquerda atento o seu sentido de marcha, facto de particular importância para a boa decisão da causa, pois demonstra que quando foi embatido, a frente do PE havia já percorrido toda a metade esquerda da faixa de rodagem.
17. Deve ser aditado aos factos provados em novo artigo (artigo 14º-A) que “o embate ocorreu sobre a linha que delimita, pela esquerda, a faixa de rodagem da E.N. 206, atento o sentido de marcha de ambos os veículos”.
18. Deve ainda ser aditado aos factos provados (artigo 12º-A) que “O condutor do MH não accionou o sinal sonoro para prevenir o condutor do PE da sua intenção de o ultrapassar”, tal como alegado pela ré e confirmado pela testemunha L. B. (minuto 00:31:20 a 00:31:57 do seu depoimento gravado), facto também importante para julgar a censurabilidade de cada um dos condutores intervenientes por respeito ou desrespeito pelas regras estradais, porquanto o artigo 21º, º 1 do Código da Estrada estabelece que quando o condutor pretenda iniciar uma ultrapassagem, deve assinalar com a necessária antecedência a sua intenção.
19. O artigo 5º, nº 2, al. a) do CPC determina ao juiz que deve ter em consideração, além dos factos essenciais (que terão de ser invocados pelas partes), os factos instrumentais que resultem da discussão da causa, enquanto que o artigo 607º, nº 2 prescreve que na fundamentação da sentença o juiz deve ter presente as ilações tiradas desses factos instrumentais.
20. Através do seu gerente A. T., a autora Construções W, Lda. prestou depoimento de parte no decurso do qual confessou que 6 meses após o acidente adquiriu um outro veículo, precisamente igual ao sinistrado (minuto 00:24:28 a 00:24:57 do depoimento gravado), factualidade que deveria ter sido atendida enquanto facto instrumental resultante da discussão da causa, tanto no julgamento de facto como no de direito da indemnização atribuída pela privação do uso do veículo MH.
21. Esse facto pode ser aditado aos factos provados por este Tribunal da Relação por imperativo do disposto no nº 4, do artigo 607º do CPC, pois trata-se de um facto desfavorável à autora que a própria confessou em sede de audiência de discussão e julgamento (nesse sentido, Ac. do TRP de 15.09.2014, Proc. 3596/12.0TJVNF.P1), pois só assim se pode fazer justiça material.
22. Deve ampliar-se os factos provados, acrescentando-se novo artigo (artigo 45º-B) com a seguinte redacção “Seis meses após a data do acidente, a autora Construções W, Lda., adquiriu outro veículo automóvel, igual ao MH e com as mesmas características deste”.
23. Pela mesma ordem de razão, deve ainda acrescentar-se aos factos provados novo artigo (45º-A) que “A fim de colmatar as carências decorrentes da privação do uso do MH, o gerente da Construções W, Lda. pôs ao serviço desta, de forma gratuita, um veículo de sua propriedade, sempre que era necessário, e uma ou duas vezes por semana”, resultante da confissão feita pelo mesmo gerente (minuto 00:17:00 a 00:19:43 do depoimento gravado), pois assume particular importância para determinação do dano efectivamente sofrido pela autora/lesada em consequência da privação do uso do veículo sinistrado.
24. Apesar de ser verdade o que consta no artigo 46º dos factos provados (a ré nunca forneceu à autora qualquer viatura de substituição), isso sucedeu porque a autora nunca solicitou à ré que lhe disponibilizasse um veículo de substituição, o que está devidamente alegado e foi confirmado pelo mediador de seguros da autora, M. M. no seu testemunho (minuto 00:17:04 a 00:17:20).
25. Assim, o facto vertido no artigo 46º dos factos provados deve ser substituído por “a autora nunca solicitou à ré qualquer viatura de substituição do MH”.

III. Impugnações relativas à matéria de direito.

26. Os autores não lograram ilidir a presunção de culpa que recaía sobre o condutor do MH, que conduzia na qualidade de comissário (artigo 503º, nº3 e 487º, nº 1 do Código Civil), pois não alegaram nem provaram factos susceptíveis de afastar tal presunção.
27. Pelo contrário, além da culpa presumida por força da comissão, constata-se a culpa efectiva desse mesmo condutor, e ainda a sua culpa judicialmente presumida, pois vem provado que: i) imprimia ao veículo uma velocidade superior a 80 km/h; ii) iniciou uma manobra de ultrapassagem ao PE imediatamente antes do entroncamento ali existente à esquerda; iii) não vem alegado nem provado que o condutor do MH tenha sinalizado, de qualquer forma, a manobra de ultrapassagem ao PE, estando provado que aquele não accionou o sinal sonoro para avisar o veículo que o precedia da sua intenção de o ultrapassar.
28. Este comportamento do condutor do MH viola várias regras estradais, designadamente, a velocidade máxima permitida no local (80 km/h), o artigo 25º, nº 1, al. f) do Código da Estrada que impõe moderação especial da velocidade na aproximação dos entroncamentos, e ainda a proibição imposta no artigo 41º, nº 1, al. c) daquele Código, nos termos da qual é proibida a ultrapassagem imediatamente antes e nos entroncamentos, infracções que foram a única causa do acidente.
29. O acidente ocorreu, pois, por culpa efectiva e exclusiva do condutor do MH.
30. O depoimento do condutor do MH (minuto 00:23:44 a 00:26:12) é revelador da total falta de atenção e desprezo que votava à condução, e até do desconhecimento das mais elementares regras do Código da Estrada, pois declarou que não se apercebeu que o tractor abrandou a sua marcha, se travou ou não, que deu o pisca para a esquerda, expressando livremente que eu seu entender lhe era lícito fazer a ultrapassagem antes do entroncamento ali existente, o qual conhecia perfeitamente.
31. A culpa na produção do acidente por parte do condutor do MH deve ainda ser presumida judicialmente, por incumprimento das regras estradas acima identificadas, destinadas precisamente a evitar este tipo de acidentes (Ac. STJ de 10/11/2011, Proc. 8597/07.8TBBRG.G1, in www.dgsi.pt).
32. Acresce que tem de se tomar em consideração, o que não foi feito pela 1ªInstância, o princípio geral da confiança que os condutores devem depositar uns nos outros no que se refere ao respeito e cumprimento nas regras do Código da Estrada, e do qual resulta que “os condutores de veículos automóveis não têm que prever a imprevidência alheia” (Ac. do STJ de 06.11.2008, Proc. 08B3313), e que “não pode um condutor ser responsabilizado por não se ter apercebido da infracção cometida por outro condutor” (Ac. TRG de 10.11.2011, Proc. 8597/07.8TBBRG.G1).
33. No respeito por tal princípio, não poderá ser exigido ao condutor do PE que contasse que um qualquer veículo o ultrapassasse naquele local, por se tratar de um entroncamento onde essa manobra é proibida.
34. O condutor do veículo PE não praticou qualquer infracção estradal (ilicitude), nem qualquer acto culposo (culpa) que tenha estado na origem do acidente, tendo tomado o comportamento adequado e o exigível em face das circunstâncias que se lhe apresentavam e das normas que se lhe impunham, não merecendo qualquer censura.
35. Pelo contrário, o condutor do MH, ao violar conscientemente diversas regras estradais que concorreram para a verificação do acidente, actuou de forma ilícita e agiu ainda de forma culposa já que podia e devia ter agido de outra forma em face das circunstâncias que no momento se lhe apresentaram, não se tendo comportado de acordo com a diligência de um bom pai de família.
36. Tendo o acidente ocorrido por acto ilícito e por culpa exclusiva (quer presumida, quer efectiva), do condutor do MH, não se verificam dois dos requisitos do dever de indemnizar relativamente à atitude condutor do PE, a saber, a ilicitude e a culpa, pelo que a ré não pode ser condenada a indemnizar os autores por inexistirem esses pressupostos legais do dever de indemnizar por responsabilidade civil extracontratual.
37. As decisões que condenaram a ré a pagar aos autores (em ambos os processos) as quantias indemnizatórias e as custas, devem ser revogadas e substituídas por outra que a absolva dos pedidos e que condene os autores ao pagamento das custas processuais.

Sem prescindir, e subsidiariamente,

38. Subsidiariamente, impugna-se a decisão que graduou a culpa dos condutores em 80% para o condutor do tractor e 20% para o condutor do outro veículo, pois que na eventualidade do condutor do PE ser também culpado pelo acidente, o grau dessa culpa é diminuto em face da culpa manifestada pelo condutor do MH.
39. No exercício de graduação das culpas há que ponderar o grau de censurabilidade do comportamento dos agentes na realização das respectivas manobras, devendo para o efeito atender-se ao grau de ilicitude de cada uma das acções e aos deveres especiais de cuidado que na situação se impunham a cada agente.
40. No que à ilicitude diz respeito, o condutor do MH violou diversas regras estradais já acima enunciadas, todas elas que têm por escopo evitar este tipo de acidentes.
41. Relativamente os especiais deveres de cuidado, há que atender que “é ao condutor que vai na esteira de um outro veículo que compete observar o que o condutor deste último vai fazer, desde que dê indicação da manobra que se propõe efectuar”, sendo certo que o condutor do tractor reduziu de velocidade e sinalizou antecipadamente a manobra de mudança de direcção e o condutor do ligeiro declarou que nada disso viu, o que significa que conduzia desatento ao que se passava à sua frente.
42. Acresce que o Código da Estrada determina que o condutor que pretenda fazer uma ultrapassagem tome especiais cautelas e procedimentos especiais como sinalizar a manobra (21º, nº 1), certificar-se de que o pode fazer sem perigo de colidir com veículo que transite no mesmo sentido (38º, nº 1), e que a faixa de rodagem se encontre livre em toda a sua extensão (artigo 38º, nº 2, al. a), sendo que quanto a estes especiais cuidados, não vem sequer alegado que o condutor do MH os tenha tomado, apesar da presunção de culpa que sobre ele impende.
43. Acresce que em função do referido princípio da confiança, o condutor do tractor não estava obrigado a prever que o outro não respeitasse a proibição de ultrapassagem no local, antes devesse prever que tal não aconteceria, pelo que não pode ser censurado nem responsabilizado por não se ter apercebido da infracção cometida pelo outro condutor.
44. As claras e diversas violações às normas do Código da Estrada, a condução desatenta e descuidada, e o desconhecimento das regras estradais expressamente verbalizado pelo condutor do MH, determinam se conclua por uma grave censurabilidade da sua conduta, em contraponto ao comportamento manifestado pelo condutor do tractor, numa proporção de 90% para aquele e de 10% para este.
45. Para o caso de se entender existir concorrência de culpas, deve esta ser distribuída na proporção de 90% para o condutor do MH e de 10% para o condutor do PE alterando-se, nesses termos, o que foi decidido pela 1ª instância, com a consequente redução nos valores indemnizatórios daí decorrentes.
46. Vem provado que 6 meses após a data do acidente a autora adquiriu outro veículo automóvel, igual ao MH e com as mesmas características deste, que a autora nunca solicitou à ré qualquer viatura de substituição do MH, e que no ato de comunicação do acidente a autora referiu à ré a sua perda total.
47. Em face da informação de “perda total” assumida desde sempre pela proprietária do veículo, a indemnização eventualmente devida deve ser cumprida em dinheiro e não através da reparação do veículo, pelo que não há qualquer privação de uso tal como têm sido entendimento jurisprudencial: “estando as partes acordadas, desde a vistoria, na inviabilidade da reparação de veiculo automóvel, por perda total, o direito do respectivo proprietário transferiu-se para o direito ao recebimento de indemnização por equivalente (Ac. STJ de 09/03/2010, Proc. 1247/07.4TJVNF.P1.S1), e de que “a partir do momento em que se constata a inviabilidade económica da reparação de veículo automóvel (situação de «perda total»), o direito do proprietário deixa de ter por objecto o veículo (sua reparação e veículo de substituição ou indemnização pela privação do uso), passando a ter por objecto a indemnização em dinheiro; e o atraso no pagamento desta é ressarcido pelos juros de mora. (Ac. TRG de 19/01/2017, Proc. 1060/16.8T8VCT.G1).
48. A decisão que condenou a ré a pagar à autora uma quantia a título de indemnização pela privação do uso do seu veículo deve ser revogada e substituída pelo pagamento dos juros moratórios legais sobre o valor da indemnização devida em função da perda da viatura (sem prejuízo do invocado sobre a obrigação de indemnização indevida).
49. Não se aceita a decisão que condenou a ré a pagar à autora uma indemnização pela privação do uso do MH desde a data do acidente e até que ponha à sua disposição a quantia equivalente à diferença entre o valor do veículo à data do acidente e os respectivos salvados, pois não teve em conta os factos instrumentais confessados pela autora, mais concretamente, que nunca solicitou à ré qualquer viatura de substituição do MH, que o seu gerente lhe disponibilizou, de forma gratuita e sempre que foi necessário, um veículo de sua propriedade, e que que seis meses após a data do acidente adquiriu outro veículo automóvel, igual ao MH e com as mesmas características deste.
50. Desta factualidade resulta que a autora não teve um efectivo prejuízo decorrente da imobilização do MH, cujas necessidades foram colmatadas pelo próprio gerente, não tendo a autora suportado qualquer dano, requisito essencial da responsabilidade civil delitual.
51. Acresce que a autora confessou ter adquirido outro veículo 6 meses após o acidente, precisamente igual ao sinistrado, confissão a considerar para efeitos do momento a partir do qual deve findar o ressarcimento do dano pela privação do uso do veículo, pois que “o montante da indemnização devida a este título (pela privação do uso) deverá ter como limite o momento da aquisição do veículo pelo Autor… não se justificando a atribuição a partir desse momento de uma indemnização que não tenha já por base concretos e efectivos prejuízos, o que não decorre dos autos” (Ac. TRG de 31.05.2020, Proc. nº 500/18.6T8MDL.G1).
52. A douta sentença recorrida violou, por omissão de aplicação e por erro de interpretação, as normas previstas nos artigos 5º. nº 2, al. a), 607º, nº 4 e 623º do Código de Processo Civil, e 344º, nº 1, 349º, 350º, 351º, 483º, 487, nº 1 e 2, 503º, nº 3, 562º, 563º e 570º do Código Civil.

Também a autora CONTRUÇÕES W, LDA, veio interpor recurso de apelação subordinado (art. 633º CPC), e contra-alegar no recurso interposto pela ré.

Apresenta as seguintes conclusões:

I -Da resposta às alegações da R.

1- O Tribunal recorrido formou convicção quer na decisão sobre a matéria de facto quer na decisão sobre a culpa dos condutores, com base na prova produzida em audiência de julgamento, com motivação pormenorizada dessas decisões.
2- Deixando assim resolvida, afastando-a por convicção diversa, a presunção legal de culpa do condutor comissário,
3- e notoriamente não se socorreu, o tribunal recorrido, da decisão penal condenatória para formar a convicção quer sobre os factos provados quer sobre a culpa decide, até, de forma diversa, relativamente à decisão penal condenatória, quanto aos factos provados – artigo 11º dos factos provados - e quanto à culpa que decidiu pela divisão da mesma entre os condutores, afastando também aqui a presunção de culpa do condutor comissário limitando-a a 20%.
4- Na impugnação da decisão sobre a matéria de facto o recorrente deverá indicar os meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que IMPUNHAM decisão, sobre a matéria de facto impugnada, diversa da recorrida (art. 640º nº 1 alínea b).
5- A ré/recorrente na sua impugnação sobre a matéria não indicou meios de prova que impusessem uma decisão diversa da recorrida, limitando-se a ter uma interpretação diferente e nada objectiva da prova produzida, pelo que deverá ser indeferida tal impugnação.
6- Quanto à ampliação do julgamento da matéria de facto sobre o local onde ocorreu o embate, nem sequer, nos termos em que é requerida, tem suporte no meio probatório indicado.
7- Quanto à ampliação do julgamento da matéria de facto relativa à falta de sinalização com o sinal sonoro da manobra de ultrapassagem, em nada serve à boa decisão da causa, incorrendo a ré/recorrente em erro notório na sua fundamentação, pelo que também deverá ser recusada.

II – Do recurso subordinado

8- Não se conforma a autora recorrente com a decisão recorrida
-Quanto à divisão de culpa dos condutores intervenientes no acidente,
-Quanto ao montante de indemnização atribuída pela privação de uso da viatura MH.
8- O acidente, em causa nestes autos, apenas se verificou devido a total e grosseira falta de cuidado do condutor do PE, que de forma temerária e desrespeitadora das normas de trânsito, sobretudo de manobra considerada perigosa, como é o virar à esquerda em entroncamento.
-não assinalou atempadamente a mudança de direcção,
-invadiu a faixa destinada à circulação do trânsito em sentido contrário sem se assegurar que não estava a ser ultrapassado e que o podia fazer em segurança,
-nem sequer tendo olhado para trás.
9- Tal comportamento do condutor do PE viola de forma gravíssima as regras de trânsito pelo que deve ser considerado o único responsável pelo acidente.
10- Não pode ser exigível a um condutor, que acabou de passar por um sinal de fim de proibição de ultrapassagem e não existindo qualquer sinal a indicar a existência de um entroncamento, entenda que naquele local lhe é proibido ultrapassar porque pode existir um cruzamento não assinalado.
11- Pois violaria de forma a grave a confiança dos condutores na sinalização rodoviária, obrigando-se a que continuamente, com graves perigos para o trânsito, andassem a perscrutar as bermas da estrada à procura de entroncamentos, nomeadamente em terra batida, não sinalizados para saber se poderiam ultrapassar, apesar de circularem em via com linha descontinua e nenhuma outra sinalização existir que proibisse a ultrapassagem.
12- Em caso de perda total a indemnização por privação de uso de viatura é devida até ao pagamento da indemnização pela perda total. (Ac. do STJ de 13/07/2017 Revista. Nº 188/14.3T8PBL.C1.S1 e deste Tribunal da Relação de Guimarães Ac. TRG de 25/06/2020 no processo 1136/18.78PTL.G)
13- A indemnização por privação e uso de viatura é devida sem necessidade de qualquer prova de prejuízo dai decorrente, como vem sendo entendido pelos nossos tribunais, pois o simples impedimento, ao dono do bem, do exercício dos direitos inerentes à propriedade, isto é, de usar fruir e dispor do bem é gerador dessa responsabilidade de indemnizar (entre outros Ac. TRC de 08/04/2014 no processo 1091/12.7TJCBR.C1, Ac. TRG de 11/07/2017 no processo 833/14.0T8VNF.G1)
14- a autora/recorrente W usava diariamente a viatura MH para o transporte de pessoal e materiais no exercício da sua actividade de construção civil - art. 47º factos provados - e está privada do seu uso desde a data do acidente ou seja 18/06/2014, sendo o prejuízo evidente e notoriamente avultado.
15- deverá ser fixado o valor de € 40,00/dia para indemnização pela privação de uso da viatura MH e desde a data do acidente até ao pagamento efectivo da indemnização pela perda total da viatura.
16- A sentença recorrida violou o disposto nos artigos 483º e 487º, 562º, 563º, 564º do Código Civil e 5º nº 1, 21º, 35º nº1, 38º nº 2 alinea d) e 44º do Código da Estrada

Finalmente, a ré X vem contra-alegar no recurso subordinado interposto pela CONTRUÇÕES W, LDA, terminando com a afirmação de que tal recurso não merece qualquer provimento.

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando as referidas conclusões, as questões a decidir são estas:

a) ocorreu erro no julgamento da matéria de facto
b) a culpa na produção do acidente
c) a indemnização da privação do uso

III
A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:

1º- A Autora M. J. é viúva de F. C..
2º- Os Autores T. M. e V. M. são filhos legítimos da Autora M. J. e de F. C..
3º- No dia 18 de Julho de 2014, pelas 17h30, o arguido, I. G., conduzia o veículo tractor agrícola, marca Massey Fergusson, modelo 394S, matrícula PE, pela EN 206, Km 196, no sentido Agrochão/Vilarinho de Agrochão, pela metade direita da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha, a velocidade não concretamente apurada, mas não superior a 30 Km/h.
4º- Nas mesmas circunstâncias de tempo e de lugar, o veículo ligeiro de mercadorias, marca Toyota, modelo Dyna, matrícula MH, conduzido por L. T., levando como passageiro no lugar do pendura, J. B., e, no banco traseiro, F. C., seguia no mesmo sentido Agrochão/Vilarinho de Agrochão, a cerca de 80 Km/h, alguns metros atrás do veículo de matrícula PE.
5º- A EN 206 é constituída por uma recta de cerca de 900 metros em patamar, em regular estado de conservação, sem qualquer tipo de intersecção e sem obstáculos que dificultem a visibilidade e sem iluminação pública.
6º- A sensivelmente meio da recta referida em 5.º, existe um entroncamento à esquerda com referência à direcção Agrochão/Vilarinho de Agrochão, o qual dá acesso a vários terrenos agrícolas.
7º- Inexiste no local referido em 6.º qualquer sinal vertical sinalizando a existência do entroncamento aí mencionado.
8º- A velocidade máxima permitida no local aludido em 6.º é de 80 Km/hora.
9º- No sentido Agrochão-Vilarinho de Agrochão em que seguiam as viaturas supra identificadas, ao Km 196,260, existe sinalização vertical (C20c) com a indicação de fim da proibição de ultrapassar.
10º- Nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas em 3.º a 9.º, após a passagem do referido sinal de fim de proibição de ultrapassar, a viatura MH iniciou a manobra de ultrapassagem ao tractor agrícola com a matrícula PE, colocando-se na faixa da esquerda.
11º- Quando a viatura, ligeira de mercadorias, MH se encontrava a distância não concretamente apurada da traseira do veículo tractor, PE, este reduz de velocidade, passando a circular a cerca de 10 km/hora, sinaliza mudança de direcção para esquerda e inicia a respectiva manobra com vista ao acesso ao entroncamento existente à esquerda e referido em 6.º, sem olhar para trás no sentido de avistar aquela viatura.
12º- Para o efeito, a viatura PE ultrapassa a linha descontínua que delimita as faixas de rodagem, introduzindo-se na faixa contrária e cortando a via de marcha em que seguia o veículo MH.
13º- O condutor do veículo MH, apercebendo-se da intenção do condutor do tractor, ainda efectua uma manobra evasiva, guinando para a esquerda e travando, deixando no asfalto marcas de travagem numa extensão de 9,70 metros.
14º- No entanto, o condutor do MH não conseguiu imobilizar o veículo que conduzia, acabando por embater com a frente direita na roda da frente esquerda do PE.
15º- Atento o embate, o tractor agrícola mudou a sua trajectória para a direita, atravessando toda a faixa de rodagem e ficando imobilizado num terreno agrícola situado no lado direito, atento o sentido de circulação do referido veículo.
16º- Por seu turno, a viatura MH, entrou em derrapagem e capotou transversalmente sob o seu lado esquerdo, imobilizando-se no antigo troço da EN 206 (adjacente a esta).
17º- Na sequência do capotamento da viatura MH, F. C., que seguia no banco traseiro, sem cinto de segurança, sofreu traumatismo crânio-encefálico e torácico, sendo causa directa e necessária da sua morte.
18º- No local onde os veículos PE e MH embateram entre si, a E.N. 206 tinha uma faixa de rodagem com 5,50 metros de largura.
19º- Encontrava-se afecta a dois sentidos de trânsito.
20º- O condutor do MH utilizava a E.N. 206, e por ela circulava, a conduzir, nos dois sentidos, várias vezes por semana, desde, pelo menos, há cerca de um mês.
21º- O condutor do MH tinha conhecimento da existência desse entroncamento.
22º- O L. T. conduzia o MH por conta, sob a direcção e no interesse da sociedade Construções W, Lda., no exercício de funções que por esta lhe foram determinadas, num itinerário previamente definido por aquela sociedade e contra o pagamento de determinada quantia.
23º- Estava transferida para a Ré, através da apólice nº .........7, a responsabilidade civil emergente da circulação do tractor agrícola marca Massey Ferguson, matrícula PE.
24º- F. C., tinha prazer em viver, era saudável, feliz, estava bem com a vida e com a família.
25º- Apesar de se encontrar reformado, continuava a trabalhar diariamente.
26º- Auferia uma média mensal de € 500,00 (quinhentos euros).
27º- Era intenção da vítima trabalhar, pelo menos, durante mais cinco anos a sete anos, o que lhe permitiria ganhar, pelo menos, mais € 30.000,00 (Trinta mil euros), (60 meses x € 500,00).
28º- Desfrutando o amor que os unia, a Autora M. J. e o falecido marido viviam felizes e despreocupados.
29º- Desde a morte do marido, a Autora M. J. tem desgosto, tristeza e solidão.
30º- Teve de abandonar a casa de família na aldeia para ir viver com o filho para poder encontrar apoio psicológico.
31º- Doente, após a morte do marido, vive medicada e sob o efeito de calmantes e ansiolíticos.
32º- O falecido F. C. era o apoio moral do Autor V. M., que nele encontrava o conforto e a força enfrentar as dificuldades desta vida.
33º- Os Autores V. M. e T. M. tinham pelo pai o normal amor de filho e filha.
34º- O autor, filho V. M. hoje, sente-se triste.
35º- O veículo MH estava dotado com cintos de segurança para condutor e passageiros.
36º- Pelo facto de não levar o cinto de segurança colocado, o F. C. foi violentamente projectado do seu assento.
37º- No dia 24 de Julho de 2014, a Autora, através do seu mediador de seguros, participou o acidente à Ré, enviando-lhe uma Declaração Amigável de Acidente Automóvel, referindo na rubrica “danos visíveis no veículo A [MH]”, “PERDA TOTAL”.
38º- No entanto, a Ré não promoveu a peritagem da viatura MH e em carta com data de 29-08-2014, comunicou que declinava a responsabilidade pelo pagamento de qualquer indemnização, já que a responsabilidade pela produção do sinistro pertenceu ao condutor do veículo MH.
39º- Por carta registada em 02-12-2014, enviada à Ré pelo advogado da Autora, esta solicitou a peritagem da viatura MH.
40º- A Ré informou a Autora de que para proceder a essa peritagem era necessário a identificação da oficina onde o veículo se encontrasse.
41º- Tal peritagem à viatura, efectuada pela Ré, aconteceu em Agosto de 2015, tendo sido comunicado, então, pela Ré à Autora e por carta com data de 13/08/2015, que a reparação era desaconselhável, configurando uma situação de perda total;
42º- Atribuindo um valor à MH, antes do sinistro, de € 7.000,00 e um valor ao veículo acidentado (salvado) de € 2.300,00, sendo que quanto à responsabilidade pelo sinistro informava que o processo continuava em fase de instrução.
43º- De imediato a Autora, através do seu mediador de seguros, comunicou à Ré que aceitava receber a quantia de € 4.700,00 a título de indemnização pelos danos na MH.
44º- A Autora alienou o MH, pelo menos, em 07-12-2015.
45º- Desde a data do acidente, em virtude deste, ficou a Autora privada do uso da sua viatura.
46º- A Ré nunca forneceu à Autora qualquer viatura de substituição.
47º- A viatura MH era usada diariamente para o transporte de pessoal e materiais pela Autora no exercício da sua actividade de construção civil.,
48º- O aluguer de uma viatura semelhante à MH custaria valor diário não concretamente apurado.

IV
Conhecendo do recurso.

Constam do art. 640º CPC os requisitos formais de admissibilidade do recurso sobre matéria de facto. Uma vez que nos parece ser evidente que a recorrente respeitou todos esses ónus, vamos conhecer desde já desta parte do recurso.
A primeira observação prende-se com a referência feita pela recorrente sobre os requisitos para que uma decisão penal condenatória seja oponível a terceiros, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 623º do Código de Processo Civil, e com a afirmação de que no caso em apreço não estão reunidos os requisitos para tal por não constar do processo certidão do trânsito em julgado da decisão penal.
Ora, independentemente de saber se o Tribunal podia ou não utilizar a sentença penal condenatória para dela extrair presunções sobre os factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, da leitura da fundamentação da sentença sobre o julgamento da matéria de facto resulta evidente que o Tribunal recorrido não se baseou na decisão penal quanto aos factos que aqui foram controvertidos, antes analisou de per si toda a prova que foi perante si produzida.

Isto dito, vejamos os pontos de discordância da recorrente.

a) Não concorda a recorrente com o facto provado 4, na parte em que fixa a velocidade do veículo Toyota Dyna a cerca de 80 Km/h. Entende que deveria antes ser provado que o veículo seguia a velocidade superior a 80 Km/h.
Em primeiro lugar, e ainda antes de olhar a prova, temos de dizer que a alteração pretendida é praticamente inócua. Com efeito, quando não se tem um método electrónico, científico, de medição da velocidade de um veículo automóvel, que permite obter um valor preciso e seguro, o usual é recorrer a expressões como a que foi usada. Dizer que o veículo se deslocava a cerca de X Km/h, significa que ele se deslocava a uma velocidade que não foi possível medir com precisão, mas que pode variar entre um pouco abaixo de X e um pouco acima de X: é uma mera aproximação à velocidade real. E, convenhamos, é muito difícil a prova testemunhal dar-nos mais do que esta aproximação.
Por outro lado, a formulação que a recorrente pretende que fique a constar, é tão ampla que não cumpre a sua função de nos dar uma ideia da velocidade do veículo. E como tal, acaba por não ser útil. Repare-se que dizer que o veículo ia a velocidade superior a 80 Km/h tanto pode significar que ele ia a 80,1 Km/h como que ia a 300 Km/h, ou ainda que ia à velocidade da luz no vácuo, passe o exagero. Ora, dizer que ia a 80,1 km/h não é de todo possível com o tipo de prova disponível.
Queremos com isto dizer que entre a formulação que ficou a constar da sentença e a que a recorrente pretende agora inserir há uma zona óbvia de sobreposição, e na parte em que não existe essa sobreposição existe indefinição. Percebemos, como é evidente que por detrás desta pretensão da recorrente está a regra da velocidade máxima permitida no local. Mas a fundamentação apresentada na sentença é sólida, assenta no que as testemunhas declararam, e no bom senso necessário para conciliar depoimentos testemunhais que não são sempre coincidentes. Assim, concordamos com a sentença recorrida quando conclui que não foi possível dar como provada a velocidade acima dos 80 km/h, apenas com a prova que foi produzida. Dizendo de outra forma, para dar como provada a formulação pretendida pela recorrente teria de haver prova sólida que a velocidade era notoriamente superior a 80 Km/h. Recorde-se que esse facto foi alegado no art. 32.º da contestação do processo principal e no art. 27.º da contestação do processo apenso. Como tal o ónus da sua prova cabia à ré contestante. Daí que a falta de prova cabal desse facto, aliada à aplicação do art. 342º,1 CC, levou, e bem, a dar tal facto como não provado.

b) Insurge-se seguidamente a recorrente contra o facto provado nº 11, concretamente na parte em que se refere que o condutor do tractor iniciou a manobra sem olhar para trás no sentido de avistar o ligeiro de mercadorias. Entende que ficou provado que o condutor do tractor olhou mesmo para trás.

Ora, também aqui não podemos dar razão à recorrente. Mais uma vez remetemos para a fundamentação da sentença, com a qual concordamos. E podemos ainda dizer que nas suas contra-alegações, a autora põe o dedo na ferida, dizendo aquilo que nos parece óbvio: se o condutor do tractor, naquele momento e naquela via, que é uma recta de cerca de 900 metros em patamar, sem obstáculos que dificultem a visibilidade, às 17:30 do dia 18 de Julho, ou seja, em plena luz do dia, tivesse olhado para trás, não poderia ter deixado de ver o veículo que o estava a ultrapassar, e não teria invadido a faixa de rodagem contrária. Daí a decisão óbvia do Tribunal recorrido de ter concluído que ele não olhou para trás no momento em que iniciou a manobra. A recorrente faz fé no depoimento do condutor do tractor, que disse que “fez o pisca e olhou para trás”, e como “não se apercebeu de nenhum veículo no mesmo sentido (à retaguarda), iniciou a manobra de mudança de direcção para a esquerda”. Porém, sendo a prova testemunhal sujeita à regra da livre apreciação, o Tribunal recorrido e esta Relação, pura e simplesmente, não podem acreditar nessa parte do seu depoimento, por ser contra todas as regras da experiência.
Veja-se que a redacção proposta pela recorrente não pode ser, de todo, aceite: “Quando a viatura, ligeira de mercadorias, MH se encontrava a distância não concretamente apurada da traseira do veículo tractor, PE, este reduz de velocidade, passando a circular a cerca de 10 km/hora, sinaliza mudança de direcção para esquerda, olhou para trás, e após ter confirmado que não havia qualquer veículo a iniciar ou a efectuar manobra de ultrapassagem, iniciou a mudança de direcção para a esquerda com vista ao acesso ao entroncamento existente à esquerda e referido em 6º”. Esta descrição é desde logo negada pelo embate que imediatamente se seguiu, e pelo rasto de travagem.
Donde, também nesta parte o recurso não merece provimento, o mesmo se devendo dizer quanto ao facto nº 12, que, por ser coerente com o nº 11, se mantém.

c) Quanto ao facto que a recorrente pretende ver aditado aos provados (11º-A) com o seguinte teor: “O condutor do PE sinalizou a manobra de mudança de direcção para a esquerda, accionando o pisca esquerdo, 30/40 metros antes de iniciar essa manobra”, igualmente não cremos que lhe assista razão. E também aqui concordamos com a análise feita na sentença recorrida, para chegar à veracidade dos factos vertidos no ponto 11, baseada no depoimento de J. B., que disse que o I. G. devia ir distraído, fez pisca quando o T. (condutor da Toyota) estava em cima dele. Estava a carrinha mesmo ao lado dele, quando ele fez pisca. Já deve ouvir mal, o I. G., não contava ali com ninguém, fez o pisca e virou de repente; L. T., que conduzia o veículo Toyota Dyna, disse que nunca viu o pisca do tractor; I. G. disse que antes de virar, ligou o pisca. Fez pisca 30-40 metros antes (questionado sobre o comprimento da sala de audiências, que tem cerca de 18 metros, respondeu que a sala teria cerca de 40 metros). Mas conjugando estes depoimentos e o teor do “croqui” do acidente, junto a fls. 118 e 123, esclarecido na audiência final pelo militar que o elaborou, a testemunha A. A., cabo da GNR, verifica-se que, antes do embate, o veículo MH travou, porquanto, antes desse local, deixou um rasto de travagem com 9,70 metros de extensão. E concordamos com a análise feita pelo Tribunal recorrido sobre esse rasto de travagem de 9,70 metros, que ocorre alguns metros antes do local do embate.
Também aqui o recurso não merece provimento.

d) Pretende ainda a recorrente aditar mais um facto: (artigo 14º-A)- “o embate ocorreu sobre a linha que delimita, pela esquerda, a faixa de rodagem da E.N. 206, atento o sentido de marcha de ambos os veículos”.
Este facto foi alegado pela ré nos arts. 44º e 39º das suas contestações. E o Tribunal consignou que faltou a necessária prova para o dar como provado.
Temos de concordar.
Da prova testemunhal produzida, o mais que se consegue extrair com segurança foi o que o Tribunal fez constar nos pontos 10 a 16 da matéria de facto provada. A reter que a participação de acidente elaborada pela GNR não assenta em testemunho directo, pois o militar que a elaborou não assistiu ao acidente. Assim, o que ele indica no “croquis” é apenas a sua interpretação do que viu no terreno, e provavelmente, do que as testemunhas lhe disseram. E ainda assim, diga-se que no primeiro esboço é indicado o ponto F, junto à linha delimitadora da berma (e não sobre a linha delimitadora), como sendo o ponto de colisão, mas já no esboço seguinte a localização dos veículos indicia o ponto de embate mais para dentro da faixa de rodagem.
A testemunha J. B. declarou que quando bateram, a carrinha estava do lado esquerdo da estrada, a maior parte da carrinha já estava na terra batida. Por sua vez, a testemunha L. T. disse que o local do embate foi junto à berma do lado esquerdo.
Assim, com esta prova não é possível localizar o ponto do embate com a precisão que pretende a recorrente, sobre a linha que delimita pela esquerda a faixa de rodagem. Sabe-se apenas que foi do lado esquerdo da faixa de rodagem, atento o sentido de deslocação dos veículos, e mais perto da berma.
Também aqui a sentença não merece censura.

e) Pretende ainda a recorrente que seja aditado aos factos provados o artigo 12º-A com este teor: “O condutor do MH não accionou o sinal sonoro para prevenir o condutor do PE da sua intenção de o ultrapassar”.
Aqui temos de dar razão à recorrente: a testemunha L. T. confirmou-o, sem qualquer hesitação.
E uma vez que a prova desse facto foi cabal, deverá o mesmo ser aditado aos factos provados.

f) Pretende depois a recorrente que quando prestou depoimento de parte, A. T., gerente da autora Construções W, Lda, confessou que 6 meses após o acidente adquiriu um outro veículo, precisamente igual ao sinistrado, factualidade que deveria ter sido atendida enquanto facto instrumental resultante da discussão da causa, tanto no julgamento de facto como no de direito da indemnização atribuída pela privação do uso do veículo MH. E o mesmo se diga do outro facto que a recorrente pretende ver aditado aos factos provados, sob o nº 45º-A, com este teor: “a fim de colmatar as carências decorrentes da privação do uso do MH, o gerente da Construções W, Lda. pôs ao serviço desta, de forma gratuita, um veículo de sua propriedade, sempre que era necessário, e uma ou duas vezes por semana”, resultante da confissão feita pelo mesmo gerente.
É certo que estes factos podem ser considerados pelo juiz, nos termos do disposto no art. 5º,2,b CPC, e não há dúvida de sobre eles ter sido cumprido o contraditório, aliás, eles foram trazidos ao processo pelo próprio representante legal da autora Construções W, Lda.

Assim, assiste razão à recorrente neste particular, devendo ser aditados aos factos provados os seguintes factos:

45º-A:A fim de colmatar as carências decorrentes da privação do uso do MH, o gerente da Construções W, Lda. pôs ao serviço desta, de forma gratuita, um veículo de sua propriedade, sempre que era necessário, e uma ou duas vezes por semana”;
45º-B:Seis meses após a data do acidente, a autora Construções W, Lda., adquiriu outro veículo automóvel, igual ao MH e com as mesmas características deste”.

g) Finalmente, afirma a recorrente que apesar de ser verdade o que consta no artigo 46º dos factos provados (a ré nunca forneceu à autora qualquer viatura de substituição), isso sucedeu porque a autora nunca solicitou à ré que lhe disponibilizasse um veículo de substituição, o que está devidamente alegado e foi confirmado pelo mediador de seguros da autora, M. M. no seu testemunho. Assim, o facto vertido no artigo 46º dos factos provados deve ser substituído por “a autora nunca solicitou à ré qualquer viatura de substituição do MH”.
Aqui, mais uma vez, não podemos dar razão à recorrente, sobretudo quando afirma que nunca forneceu à autora qualquer viatura de substituição porque esta nunca lho solicitou. Pelo contrário (doc. 4 junto com a contestação), é pacífico nos autos que a ré e ora recorrente, confrontada com a participação do acidente feita pela autora, respondeu por carta de 29 de Agosto de 2014, a comunicar que declinava a responsabilidade pelo pagamento de qualquer indemnização, já que a responsabilidade pela produção do sinistro pertenceu ao condutor do veículo MH. Tal consta aliás do facto provado nº 38.
Assim, a alteração que a recorrente pretende sempre seria inócua, e até poderia ser vista como afloramento do venire contra factum proprium: qual poderia ser a relevância de a autora nunca ter solicitado à ré que lhe disponibilizasse um veículo de substituição, quando essa autora já sabia que a ré tinha por escrito declinado qualquer responsabilidade pelo acidente ?
Assim, o único facto relevante é o que já consta do art. 46º dos factos provados, que se deve manter inalterado. A alteração pretendida pela ré afigura-se totalmente irrelevante, pois decorre da sua própria posição de se negar a assumir a responsabilidade pelo acidente.
Também aqui não assiste razão à recorrente.

Aqui chegados, parece-nos conveniente reproduzir a lista definitiva dos factos provados com as alterações agora determinadas.

Ficaram assim provados os seguintes factos:

1º- A Autora M. J. é viúva de F. C..
2º- Os Autores T. M. e V. M. são filhos legítimos da Autora M. J. e de F. C..
3º- No dia 18 de Julho de 2014, pelas 17h30, o arguido, I. G., conduzia o veículo tractor agrícola, marca Massey Fergusson, modelo 394S, matrícula PE, pela EN 206, Km 196, no sentido Agrochão/Vilarinho de Agrochão, pela metade direita da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha, a velocidade não concretamente apurada, mas não superior a 30 Km/h.
4º- Nas mesmas circunstâncias de tempo e de lugar, o veículo ligeiro de mercadorias, marca Toyota, modelo Dyna, matrícula MH, conduzido por L. T., levando como passageiro no lugar do pendura, J. B., e, no banco traseiro, F. C., seguia no mesmo sentido Agrochão/Vilarinho de Agrochão, a cerca de 80 Km/h, alguns metros atrás do veículo de matrícula PE.
5º- A EN 206 é constituída por uma recta de cerca de 900 metros em patamar, em regular estado de conservação, sem qualquer tipo de intersecção e sem obstáculos que dificultem a visibilidade e sem iluminação pública.
6º- A sensivelmente meio da recta referida em 5.º, existe um entroncamento à esquerda com referência à direcção Agrochão/Vilarinho de Agrochão, o qual dá acesso a vários terrenos agrícolas.
7º- Inexiste no local referido em 6.º qualquer sinal vertical sinalizando a existência do entroncamento aí mencionado.
8º- A velocidade máxima permitida no local aludido em 6.º é de 80 Km/hora.
9º- No sentido Agrochão-Vilarinho de Agrochão em que seguiam as viaturas supra identificadas, ao Km 196,260, existe sinalização vertical (C20c) com a indicação de fim da proibição de ultrapassar.
10º- Nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas em 3.º a 9.º, após a passagem do referido sinal de fim de proibição de ultrapassar, a viatura MH iniciou a manobra de ultrapassagem ao tractor agrícola com a matrícula PE, colocando-se na faixa da esquerda.
11º- Quando a viatura, ligeira de mercadorias, MH se encontrava a distância não concretamente apurada da traseira do veículo tractor, PE, este reduz de velocidade, passando a circular a cerca de 10 km/hora, sinaliza mudança de direcção para esquerda e inicia a respectiva manobra com vista ao acesso ao entroncamento existente à esquerda e referido em 6.º, sem olhar para trás no sentido de avistar aquela viatura.
12º- Para o efeito, a viatura PE ultrapassa a linha descontínua que delimita as faixas de rodagem, introduzindo-se na faixa contrária e cortando a via de marcha em que seguia o veículo MH.
12º-A- O condutor do MH não accionou o sinal sonoro para prevenir o condutor do PE da sua intenção de o ultrapassar.
13º- O condutor do veículo MH, apercebendo-se da intenção do condutor do tractor, ainda efectua uma manobra evasiva, guinando para a esquerda e travando, deixando no asfalto marcas de travagem numa extensão de 9,70 metros.
14º- No entanto, o condutor do MH não conseguiu imobilizar o veículo que conduzia, acabando por embater com a frente direita na roda da frente esquerda do PE.
15º- Atento o embate, o tractor agrícola mudou a sua trajectória para a direita, atravessando toda a faixa de rodagem e ficando imobilizado num terreno agrícola situado no lado direito, atento o sentido de circulação do referido veículo.
16º- Por seu turno, a viatura MH, entrou em derrapagem e capotou transversalmente sob o seu lado esquerdo, imobilizando-se no antigo troço da EN 206 (adjacente a esta).
17º- Na sequência do capotamento da viatura MH, F. C., que seguia no banco traseiro, sem cinto de segurança, sofreu traumatismo crânio-encefálico e torácico, sendo causa directa e necessária da sua morte.
18º- No local onde os veículos PE e MH embateram entre si, a E.N. 206 tinha uma faixa de rodagem com 5,50 metros de largura.
19º- Encontrava-se afecta a dois sentidos de trânsito.
20º- O condutor do MH utilizava a E.N. 206, e por ela circulava, a conduzir, nos dois sentidos, várias vezes por semana, desde, pelo menos, há cerca de um mês.
21º- O condutor do MH tinha conhecimento da existência desse entroncamento.
22º- O L. T. conduzia o MH por conta, sob a direcção e no interesse da sociedade Construções W, Lda., no exercício de funções que por esta lhe foram determinadas, num itinerário previamente definido por aquela sociedade e contra o pagamento de determinada quantia.
23º- Estava transferida para a Ré, através da apólice nº .........7, a responsabilidade civil emergente da circulação do tractor agrícola marca Massey Ferguson, matrícula PE.
24º- F. C., tinha prazer em viver, era saudável, feliz, estava bem com a vida e com a família.
25º- Apesar de se encontrar reformado, continuava a trabalhar diariamente.
26º- Auferia uma média mensal de € 500,00 (quinhentos euros).
27º- Era intenção da vítima trabalhar, pelo menos, durante mais cinco anos a sete anos, o que lhe permitiria ganhar, pelo menos, mais € 30.000,00 (Trinta mil euros), (60 meses X.€ 500,00).
28º- Desfrutando o amor que os unia, a Autora M. J. e o falecido marido viviam felizes e despreocupados.
29º- Desde a morte do marido, a Autora M. J. tem desgosto, tristeza e solidão.
30º- Teve de abandonar a casa de família na aldeia para ir viver com o filho para poder encontrar apoio psicológico.
31º- Doente, após a morte do marido, vive medicada e sob o efeito de calmantes e ansiolíticos.
32º- O falecido F. C. era o apoio moral do Autor V. M., que nele encontrava o conforto e a força enfrentar as dificuldades desta vida.
33º- Os Autores V. M. e T. M. tinham pelo pai o normal amor de filho e filha.
34º- O autor, filho V. M. hoje, sente-se triste.
35º- O veículo MH estava dotado com cintos de segurança para condutor e passageiros.
36º- Pelo facto de não levar o cinto de segurança colocado, o F. C. foi violentamente projectado do seu assento.
37º- No dia 24 de Julho de 2014, a Autora, através do seu mediador de seguros, participou o acidente à Ré, enviando-lhe uma Declaração Amigável de Acidente Automóvel, referindo na rubrica “danos visíveis no veículo A [MH]”, “PERDA TOTAL”.
38º- No entanto, a Ré não promoveu a peritagem da viatura MH e em carta com data de 29-08-2014, comunicou que declinava a responsabilidade pelo pagamento de qualquer indemnização, já que a responsabilidade pela produção do sinistro pertenceu ao condutor do veículo MH.
39º- Por carta registada em 02-12-2014, enviada à Ré pelo advogado da Autora, esta solicitou a peritagem da viatura MH.
40º- A Ré informou a Autora de que para proceder a essa peritagem era necessário a identificação da oficina onde o veículo se encontrasse.
41º- Tal peritagem à viatura, efectuada pela Ré, aconteceu em Agosto de 2015, tendo sido comunicado, então, pela Ré à Autora e por carta com data de 13/08/2015, que a reparação era desaconselhável, configurando uma situação de perda total;
42º- Atribuindo um valor à MH, antes do sinistro, de € 7.000,00 e um valor ao veículo acidentado (salvado) de € 2.300,00, sendo que quanto à responsabilidade pelo sinistro informava que o processo continuava em fase de instrução.
43º- De imediato a Autora, através do seu mediador de seguros, comunicou à Ré que aceitava receber a quantia de € 4.700,00 a título de indemnização pelos danos na MH.
44º- A Autora alienou o MH, pelo menos, em 07-12-2015.
45º- Desde a data do acidente, em virtude deste, ficou a Autora privada do uso da sua viatura.
45º-A- A fim de colmatar as carências decorrentes da privação do uso do MH, o gerente da Construções W, Lda pôs ao serviço desta, de forma gratuita, um veículo de sua propriedade, sempre que era necessário, e uma ou duas vezes por semana.
45º-B)- Seis meses após a data do acidente, a autora Construções W, Lda., adquiriu outro veículo automóvel, igual ao MH e com as mesmas características deste.
46º- A Ré nunca forneceu à Autora qualquer viatura de substituição.
47º- A viatura MH era usada diariamente para o transporte de pessoal e materiais pela Autora no exercício da sua actividade de construção civil.,
48º- O aluguer de uma viatura semelhante à MH custaria valor diário não concretamente apurado.

Aplicação do Direito aos factos provados (recurso da ré e recurso subordinado)

A ré recorrente pretende que o acidente ocorreu por culpa efectiva e exclusiva do condutor do MH. E isto porque, desde logo, os autores não lograram ilidir a presunção de culpa que recaía sobre o condutor do MH, que conduzia na qualidade de comissário (artigo 503º,3 CC). Para além disso, entende ainda que ficou demonstrada a culpa efectiva desse mesmo condutor, e ainda a sua culpa judicialmente presumida, pois vem provado que: i) imprimia ao veículo uma velocidade superior a 80 km/h; ii) iniciou uma manobra de ultrapassagem ao PE imediatamente antes do entroncamento ali existente à esquerda; iii) não vem alegado nem provado que o condutor do MH tenha sinalizado, de qualquer forma, a manobra de ultrapassagem ao PE, estando provado que aquele não accionou o sinal sonoro para avisar o veículo que o precedia da sua intenção de o ultrapassar.
E acrescenta ainda que o condutor do tractor não praticou qualquer infracção estradal (ilicitude), nem qualquer acto culposo (culpa) que tenha estado na origem do acidente, tendo tomado o comportamento adequado e o exigível em face das circunstâncias que se lhe apresentavam e das normas que se lhe impunham, não merecendo qualquer censura.

Já a autora e recorrente Construções W, Lda entende o oposto: que o acidente apenas se verificou devido a total e grosseira falta de cuidado do condutor do PE, que de forma temerária e desrespeitadora das normas de trânsito, sobretudo de manobra considerada perigosa, como é o virar à esquerda em entroncamento:

-não assinalou atempadamente a mudança de direcção,
-invadiu a faixa destinada à circulação do trânsito em sentido contrário sem se assegurar que não estava a ser ultrapassado e que o podia fazer em segurança,
-nem sequer tendo olhado para trás.

Tal comportamento viola de forma gravíssima as regras de trânsito pelo que deve ser considerado o único responsável pelo acidente.

Começando pela argumentação da ré.
Temos de começar por chamar a atenção que esta argumentação, ou pelo menos, parte desta argumentação, assentava em que tivesse ficado provado que o condutor do MH imprimia ao veículo uma velocidade superior a 80 km/h, o que, como acabámos de ver, não ficou provado.
Mas mesmo com essa ressalva, vejamos se o juízo feito pelo Tribunal recorrido sobre a culpa na produção do acidente merece a censura que o recorrente lhe aponta.
Antes de mais, vejamos umas noções básicas que nos ajudam a descortinar a culpa nos acidentes de viação.
Um acidente de viação é um embate de dois objectos, que se deslocavam no espaço-tempo, e cujas trajectórias se cruzaram a determinado momento. Isto, claro, de um ponto de vista puramente físico/naturalístico. Deste ponto de vista não faz sequer sentido falar-se em culpa.

Então, o que significa perguntar de quem foi a culpa no acidente ?

Significa, numa primeira abordagem, perguntar qual dos intervenientes é que, pela sua conduta, que poderia ter sido evitada, deu origem ao mesmo. Mas assim, considerando e assumindo que os dois intervenientes actuaram de forma livre e consciente, voluntariamente dirigindo-se para o ponto de intercepção, não ficamos mais esclarecidos.
Falar em culpa implica falar em violação de regras de conduta.
A condução de veículos motorizados é uma actividade intrinsecamente perigosa, devido à proximidade a que todos os veículos circulam uns dos outros, e à velocidade que eles são capazes de atingir, e finalmente à inércia, que impede que um veículo em movimento pare instantaneamente perante um obstáculo surgido à sua frente.
Sendo a actividade em causa a condução de veículos e a circulação de peões, a forma encontrada para obstar a esse perigo permanente foi a definição de um conjunto de regras de conduta e de cautela a que todos os condutores e peões devem obedecer (o Código da Estrada). Logo, em abstracto podemos dizer que um condutor ou um peão que respeite todas as regras estradais, sejam as normas específicas seja o dever geral de cuidado, jamais pode ser visto como culpado de um acidente. Pelo contrário, o culpado de um acidente de viação será sempre aquele condutor que imediatamente antes do mesmo violou uma ou mais regras estradais ou o dever geral de cuidado.
E, como a realidade é sempre mais rica que as previsões normativas que sobre ela possam ser feitas, existem com frequência situações em que os dois intervenientes violaram imediatamente antes do acidente normas estradais. E nesses casos estaremos perante culpas repartidas. Que levantam o problema da quantificação das culpas. Mais: situações podem ocorrer em que houve da parte dos dois condutores violações das regras do código da estrada, mas umas foram causais do acidente e outras não. Imagine-se um condutor que circula numa recta a 200 Km/h e quando se cruza com outro condutor que circula a 90 Km/h, este guina para a sua esquerda, sem qualquer razão, galgando o risco contínuo, invadindo a faixa de rodagem do outro condutor e embatendo de frente com este. Aqui, a culpa na ocorrência do acidente é exclusiva do condutor que seguia a 90 Km/h, embora já o mesmo não se possa dizer quanto à extensão dos danos.

Dito isto, vejamos então.

A sentença recorrida, em síntese, considerou que por um lado, os condutores, antes de iniciarem qualquer manobra devem previamente certificar-se de que a mesma não compromete a segurança do trânsito e proceder em termos de não a comprometer, e, por outro lado que, além de respeitarem os limites gerais e especiais de velocidade, devem regulá-la de harmonia com as circunstâncias dos veículos, da configuração e estado geral das estradas e da sua luminosidade e visibilidade.
O ónus de prova dos factos integrantes da culpa no quadro da responsabilidade civil extracontratual, se não houver presunção legal da sua existência, cabe a quem com base nela faz valer o seu direito, designadamente o de crédito indemnizatório (artigos 342º,1 e 487º,1 do Código Civil). Depois de concluir que a culpa envolve a violação de regras estradais, acrescenta a sentença que sempre será necessário demonstrar que a violação da regra legal de trânsito, quando concomitante com um acidente de viação, tenha sido a causa do sinistro, ou para esse evento tenha contribuído adequadamente.
Das circunstâncias em que o acidente ocorreu, conclui o Tribunal recorrido que não será difícil concluir que o acidente não teria ocorrido, se o condutor do veículo PE, antes de mudar de direcção e, assim, cortar a via de marcha em que seguia o veículo MH, tivesse verificado que estava a ser ultrapassado, pois que, então, por inócua e a destempo, não sinalizaria a sua intenção de mudar de direcção para a esquerda e facultaria a ultrapassagem que estava a ser efectuada. Portanto, procedendo da indicada forma, o condutor do veículo PE deu causa ao acidente, infringindo as disposições dos artigos 3.º, n.º 2, 21.º, n.º 1, 35.º, n.º 1, e 39.º, n.º 1, do Código da Estrada, lugares onde se prescreve que “As pessoas devem abster-se de actos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança, a visibilidade ou a comodidade dos utilizadores das vias, tendo em especial atenção os utilizadores vulneráveis” (art. 3.º, n.º 2), “Quando o condutor pretender (…) mudar de direcção (…), deve assinalar com a necessária antecedência a sua intenção” (art. 21.º, n.º 1), “O condutor só pode efectuar as manobras de ultrapassagem, mudança de direcção (…) em local e por forma que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito” (art. 35.º, n.º 1) e “Todo o condutor deve, sempre que não haja obstáculo que o impeça, facultar a ultrapassagem, desviando-se o mais possível para a direita (…) e não aumentando a velocidade enquanto não for ultrapassado” (art. 39.º, n.º 1).
Mas logo a seguir, escreve-se na sentença: no entanto, o acidente também não teria ocorrido, caso o condutor do veículo MH não tivesse iniciado a ultrapassagem logo antes do entroncamento, cuja existência, embora não assinalada, era, no entanto, por si bem conhecida, pelo que, podendo e devendo prever a possibilidade de o veículo PE mudar de direcção para a esquerda, também deu causa ao acidente, infringindo as disposições dos citados artigos 3.º, n.º 2, e 35.º, n.º 1, e ainda a do artigo 41.º, n.º 1, alínea c), do Código da Estrada, a qual prescreve que “1 - É proibida a ultrapassagem: (…) c) Imediatamente antes e nos cruzamentos e entroncamentos”.
Estamos de total acordo com esta análise dos factos.
Os dois condutores violaram regras do Código da Estrada imediatamente antes do acidente.
Cumpre agora determinar a distribuição da culpa pelos dois, saber se devem ser considerados igualmente culpados ou um mais culpado que o outro.
A sentença conclui que “o condutor que vira para a esquerda é normalmente o único que poderá evitar o acidente - se olhar para trás (ou para o retrovisor) imediatamente antes de virar”. Mas ao mesmo tempo, considera que “a circunstância de não existir qualquer sinal vertical sinalizando a existência do entroncamento não exclui a culpa do condutor do veículo MH, pois que tinha conhecimento da existência desse entroncamento e, portanto, exigia-se-lhe um comportamento prudente, cauteloso, adequado a esse conhecimento”.
Assim, o condutor do veículo não ilidiu totalmente a presunção de culpa que sobre si impendia nos termos do artigo 503.º, n.º 3, do Código Civil.
Entendeu a sentença recorrida atribuir 80% da culpa ao condutor do tractor e 20% ao condutor do Toyota Dyna.
E, tudo visto e ponderado, pensamos que este julgamento da primeira instância é prudente, equilibrado, não violador de qualquer norma legal, e como tal não merece a censura da recorrente.
Afirma esta que o acidente ocorreu por culpa exclusiva do condutor do MH. Só que não vemos como, olhando para os factos provados, se possa pretender defender tão extremada posição.
Desde logo, afirma a recorrente que os autores não lograram ilidir a presunção de culpa que recaía sobre o condutor do MH, que conduzia na qualidade de comissário (artigo 503º,3 CC), o que não corresponde à verdade, pois os factos provados começam por impor uma distribuição de culpas entre os dois condutores, o que logo à partida ilide essa presunção.
Vejamos: o condutor da Toyota não seguia a velocidade superior ao limite permitido no local (esse limite era de 80 Km/h e ele seguia a “cerca de” 80 Hm/h). Logo, a velocidade dele não teve nada a ver com o processo causal do acidente.
Iniciou uma manobra de ultrapassagem ao PE imediatamente antes do entroncamento ali existente à esquerda, que, apesar de não estar sinalizado com o sinal vertical respectivo, era do conhecimento do referido condutor. Aqui, sim, temos uma violação do Código da Estrada (art. 41º,1,c).
É também verdade que não vem alegado nem provado que o condutor do MH tenha sinalizado, de qualquer forma, a manobra de ultrapassagem ao PE, em contravenção ao disposto no art. 21º,1,2 CE.
Está provado que ele não accionou o sinal sonoro para avisar o veículo que o precedia da sua intenção de o ultrapassar. Porém, aí não temos qualquer violação do Código da Estrada, pois o que resulta do art. 22º é que: 1) os sinais sonoros devem ser breves; 2) só é permitida a utilização de sinais sonoros: em caso de perigo iminente; fora das localidades, para prevenir um condutor da intenção de o ultrapassar e, bem assim, nas curvas, cruzamentos, entroncamentos e lombas de visibilidade reduzida.
Aqui não estamos perante a obrigação de fazer um sinal sonoro para avisar da intenção de ultrapassar: apenas a mera possibilidade de o fazer. O que sucede é que a lei estabelece como regra a proibição de utilização de sinais sonoros; mas, excepcionalmente, permite buzinar para alertar o condutor da intenção de o ultrapassar. Não existe qualquer obrigatoriedade de o fazer.
Agora vejamos o comportamento do condutor do tractor.
Diz a recorrente que ele não praticou qualquer infracção estradal (ilicitude), nem qualquer acto culposo (culpa) que tenha estado na origem do acidente, tendo tomado o comportamento adequado e o exigível em face das circunstâncias que se lhe apresentavam e das normas que se lhe impunham, não merecendo qualquer censura.
Nada mais longe da verdade.
Como se escreve na sentença recorrida, não será difícil concluir que o acidente não teria ocorrido, se o condutor do veículo PE, antes de mudar de direcção e, assim, cortar a via de marcha em que seguia o veículo MH, tivesse verificado que estava a ser ultrapassado, pois que, então, por inócua e a destempo, não sinalizaria a sua intenção de mudar de direcção para a esquerda e facultaria a ultrapassagem que estava a ser efectuada. Dessa forma violou as disposições dos artigos 3º,2, 21º,1, 35º,1, e 39º,1 CE.
Se imaginarmos o desenrolar do acidente como se tendo passado defronte dos nossos olhos, o que não é difícil atenta a descrição detalhada que resulta dos factos provados, veremos uma longa recta, na qual circula um tractor, a velocidade não superior a 30 Km/h e atrás dele um veículo ligeiro de mercadorias, que circula a cerca de 80 Km/h. Atenta a diferente natureza dos veículos, é mais que compreensível a diferença de velocidade entre os dois, assim como é mais que compreensível a necessidade do veículo ligeiro de ultrapassar o tractor. Após passar pelo sinal que marcava o fim da proibição de ultrapassar, o condutor do ligeiro iniciou a manobra de ultrapassagem, colocando-se na faixa da esquerda. Repare-se que, até aqui, não houve a criação de qualquer perigo. O condutor do veículo ligeiro mudou para a faixa destinada ao trânsito em sentido contrário em total segurança, pois não havia trânsito em sentido contrário. Não fora o comportamento do condutor do tractor, e o veículo ligeiro tê-lo-ia ultrapassado e retomado a sua faixa sem qualquer sobressalto ou problema.
O que sucedeu, porém, foi que quando estava a distância não concretamente apurada do tractor, este reduz de velocidade, passando a circular a cerca de 10 km/hora, sinaliza mudança de direcção para a esquerda e inicia a respectiva manobra com vista ao acesso ao entroncamento existente à esquerda, sem olhar para trás no sentido de avistar aquela viatura. Aqui sim, estamos perante o comportamento mais grave de todos os que ficaram provados, e que foi causal do acidente: o início da manobra de mudança de direcção sem sequer olhar para trás para verificar se o podia fazer, ou se vinha algum veículo a ultrapassá-lo. Assim, sem olhar para trás, repetimos, o condutor do tractor ultrapassa a linha descontínua que divide as faixas de rodagem, introduzindo-se na faixa contrária e cortando a via de marcha em que seguia o veículo ligeiro. O condutor deste, perante aquela manobra inesperada, ainda efectua uma manobra evasiva, guinando para a esquerda e travando, deixando no asfalto marcas de travagem numa extensão de 9,70 metros, mas não consegue evitar o embate com a frente direita na roda da frente esquerda do tractor.
Assim fica clara a diferença entre violações ao Código da Estrada que não são causais do acidente, e aquelas que o são.
A manobra de ultrapassagem tentada encetar pelo veículo ligeiro, apesar de ter sido feita em local não permitido, não foi a causa principal do acidente, pois não fora o comportamento (podemos dizê-lo com propriedade) criminoso do condutor do tractor, e essa ultrapassagem não teria dado lugar a acidente algum.
Já a manobra do condutor do tractor, de invadir a faixa contrária para mudar de direcção para a sua esquerda sem sequer olhar para trás para verificar se o poderia fazer em segurança, foi a principal causa do acidente.
Afirma a recorrente que a primeira instância não tomou em consideração o princípio geral da confiança que os condutores devem depositar uns nos outros no que se refere ao respeito e cumprimento nas regras do Código da Estrada, e do qual resulta que “os condutores de veículos automóveis não têm que prever a imprevidência alheia” (Ac. do STJ de 06.11.2008, Proc. 08B3313), e que “não pode um condutor ser responsabilizado por não se ter apercebido da infracção cometida por outro condutor” (Ac. TRG de 10.11.2011, Proc. 8597/07.8TBBRG.G1). E que no respeito por tal princípio, não poderá ser exigido ao condutor do PE que contasse que um qualquer veículo o ultrapassasse naquele local, por se tratar de um entroncamento onde essa manobra é proibida.
A este argumento é fácil de responder: primeiro, trata-se de um entroncamento que não está devidamente sinalizado, o que só por si é relevante, pois se os sinais de trânsito existem e estão omnipresentes ao longo das vias públicas por alguma razão é. É verdade que o condutor do ligeiro conhecia esse entroncamento, mas era essencial a existência do sinal para que não restasse qualquer dúvida que qualquer condutor que ali passasse estava alertado para o mesmo; segundo, ficou provado que no sentido Agrochão-Vilarinho de Agrochão em que seguiam as viaturas supra identificadas, ao Km 196,260, existe sinalização vertical (C20c) com a indicação de fim da proibição de ultrapassar. Ora, ficou provado que, após ter passado por esse sinal, o condutor do ligeiro iniciou a manobra de ultrapassagem ao tractor. Ou seja, o condutor do ligeiro de mercadorias aguardou pelo fim da proibição de ultrapassar, e quando esse momento chegou, iniciou a ultrapassagem. Parece haver erro na sinalização, pois esse sinal de fim de proibição, que pelos vistos antecede um entroncamento que não está de todo sinalizado, pode induzir os condutores em erro, fazendo-os pensar que já podem ultrapassar, quando, de facto, logo a seguir, surge um entroncamento não sinalizado; terceiro, não podemos perder de vista que o veículo que era necessário ultrapassar era um tractor, que como é sabido, são veículos que circulam nas estradas a muito baixa velocidade, e que, por isso mesmo, estão constantemente a ser ultrapassados. Logo, se há coisa que o seu condutor podia e devia saber e prever, era que poderiam vir veículos atrás dele, à espera de uma oportunidade para o ultrapassar.
Daí que o comportamento do condutor do tractor, violando o dever geral de cuidado, de iniciar a manobra de mudança de direcção sem o anunciar com a devida antecedência, e, sobretudo, sem sequer olhar para trás, tem de ser visto como a principal causa do acidente.
Quanto à distribuição de culpas entre os dois condutores, afirma a recorrente que deve ser feita na proporção de 90% para o condutor do MH e de 10% para o condutor do PE.

Porém, nada mais longe da verdade.

Não nos iremos repetir; basta porém ter presente que neste acidente em concreto, o perigo veio todo da invasão da faixa de rodagem contrária. O condutor do ligeiro fez essa invasão em total segurança, não tendo com essa manobra desencadeado nenhuma situação de perito concreto. Já o condutor do tractor, ao invadir a faixa de rodagem contrária sem primeiro se assegurar que o podia fazer em segurança, cortou a linha de marcha do ligeiro de mercadorias, e, por isso, criou uma situação de perigo concreto de tal forma iminente, que de imediato se converteu em dano.
Assim, a argumentação da recorrente ré contra a repartição de culpas feita pela primeira instância não merece provimento.

Entronca agora aqui a apreciação do recurso subordinado da autora W.
Pretende esta recorrente, ao invés do que acabámos de ver, que o acidente apenas se verificou devido a total e grosseira falta de cuidado do condutor do tractor, que de forma temerária e desrespeitadora das normas de trânsito, sobretudo de manobra considerada perigosa, como é o virar à esquerda em entroncamento, não assinalou atempadamente a mudança de direcção, e invadiu a faixa destinada à circulação do trânsito em sentido contrário sem se assegurar que não estava a ser ultrapassado e que o podia fazer em segurança, nem sequer tendo olhado para trás.
Estamos de acordo com esta análise, só não podendo concordar com a afirmação de que com tal comportamento o condutor do tractor deve ser considerado o único responsável pelo acidente.
A culpa que deve ser atribuída ao condutor do veículo ligeiro advém de ter encetado a ultrapassagem em cima de um entroncamento, coisa que o Código da Estrada proíbe. E a verdade insofismável é que se este condutor tivesse, como devia, esperado até passar o entroncamento antes de iniciar a ultrapassagem, não teria havido acidente. A sua conduta foi assim uma condição sine qua non do acidente. Donde, teria sempre de lhe ser assacada parte da culpa. A distribuição feita pela primeira instância, de 80/20 afigura-se-nos correcta e não temos argumentos para a alterar.

O dano da privação do uso

Incidem nesta matéria os dois recursos interpostos, principal e subordinado.

Recordemos que a Autora Construções W, Lda deduziu o pedido de condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 4.700,00 a título de indemnização pelos danos causados na viatura MH, a quantia de € 43.600,00 a titulo de indemnização pela privação de uso da viatura MH, a quantia de € 40,00/dia a título de indemnização pela privação de uso da viatura desde a entrada em juízo da presente acção até efectivo e integral pagamento da referida indemnização de € 4.700,00, e juros sobre todas as quantias desde a citação até integral e efectivo pagamento.
A sentença recorrida considerou que a ré tinha de pagar à Autora Construções W, Lda. a quantia de €12.000,00, a título de indemnização pela privação do uso da viatura até à data de prolação da sentença, acrescida da quantia de € 3.440,00 a título de indemnização pela perda total da viatura. E porque o dano da privação do uso só cessará quando a Autora receber a indemnização de € 3.440,00, a Ré está ainda constituída na obrigação de indemnizar o dano da privação do uso que evoluirá até ao momento em que ocorra o recebimento daquela quantia, não sendo cognoscível o momento em que esse recebimento irá ocorrer. Daí que tenha igualmente condenado a ré a pagar à autora a indemnização correspondente à privação do uso da viatura, a contar da prolação da presente sentença e até ao momento em que a Ré proceda ao pagamento da quantia de € 3.440,00 (três mil quatrocentos e quarenta euros), a liquidar em execução de sentença.

Ora bem.

Vejamos o que se provou.

Sabemos que o acidente ocorreu no dia 18.7.2014.
No dia 24.7.2014, a Autora participou o acidente à Ré, indicando que o veículo ficou em estado de perda total. Como já vimos a ré declinou a responsabilidade pelo pagamento de qualquer indemnização.
A ré acabou por efectuar peritagem à viatura em Agosto de 2015, tendo comunicado à Autora por carta de 13.08.2015, que a reparação era desaconselhável, configurando uma situação de perda total.
Desde a data do acidente, e em virtude deste, ficou a Autora privada do uso da sua viatura.
A Ré nunca forneceu à Autora qualquer viatura de substituição.
A viatura MH era usada diariamente para o transporte de pessoal e materiais pela Autora no exercício da sua actividade de construção civil.,
O aluguer de uma viatura semelhante à MH custaria valor diário não concretamente apurado.

Ora, damos aqui por reproduzidas as citações jurisprudenciais constantes da sentença recorrida, e que justificam a existência da indemnização pelo dano decorrente da paralisação do veículo.

Concretamente, da análise da jurisprudência nacional, e partindo do princípio aceite da ressarcibilidade deste dano, resultam as seguintes soluções (1):

a) considerar que a privação do uso é susceptível de acarretar dano de natureza não patrimonial, devendo a compensação ser inserida no respectivo quadro normativo, quer no que respeita à ressarcibilidade, quer no que concerne à quantificação (acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26.3.1980, in CJ,II,96 e acórdão do STJ de 23.1.2001 – www.cidadevirtual.pt/stj/jurisp);
b) exigência da efectiva prova da existência de prejuízos de ordem patrimonial, negando-se o direito de indemnização face à simples prova da não utilização do bem (acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17.10.1984 in CJ,IV,246, e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.12.1993 in BMJ,432,384).
c) reconhecimento do direito de indemnização com fundamento na simples privação do uso normal do bem, com recurso à equidade (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.5.1996, in BMJ, 457,325 e CJ-STJ,II,61).

Esta última é, supomos, a tese claramente maioritária, suportada mais recentemente por vasta jurisprudência; a título meramente exemplificativo, vejam-se os acórdãos do TRC de 8/4/2014 (Relator - Fonte Ramos) e 6/3/2012 (Relator – Alberto Ruço), do TRL de 20/12/2017 (Relatora – Ondina Alves), e Acórdão do STJ de 5/7/2018 (Relator - Abrantes Geraldes).
Neste último Acórdão pode ler-se o seguinte: “quanto à ressarcibilidade do dano da privação do uso dir-se-á, em primeiro lugar, que a jurisprudência que a recorrente cita em sentido contrário (de 2008) à que foi adoptada pelas instâncias foi larga e consistentemente ultrapassada por jurisprudência posterior, designadamente da emanada deste Supremo, que passou a reconhecer, sem qualquer espécie de hesitação, o direito de indemnização relativamente a situações, como a dos autos, em que o veículo é usado habitualmente para deslocações, sem necessidade de o lesado alegar e provar que a falta do veículo sinistrado foi causa de despesas acrescidas. Outra tese ainda mais benévola para o lesado é defensável e encontra também na jurisprudência bastas adesões no sentido de fazer corresponder à privação do uso uma indemnização autónoma, independentemente da prova de uma utilização quotidiana do veículo, ainda que com recurso à equidade e ponderação das precisas circunstâncias que rodeiam cada situação. Essa é a tese que o ora relator defendeu na monografia citada pela recorrente (Temas da Responsabilidade Civil, vol. I, Indemnização do Dano da Privação do Uso), a qual é compartilhada por diversos autores também citados pela recorrente e com adesão de um largo sector da jurisprudência”.
Assim, sem necessidade de mais argumentação, vamos seguir aqui esta interpretação defendida pelo Conselheiro Abrantes Geraldes, na obra citada.
A ideia é, em síntese, de, na falta de elementos concretos e detalhados sobre o prejuízo causado, o valor da indemnização dever ser fixado com recurso à equidade tendo por base algumas informações de carácter patrimonial (2).
E vamos reter aqui que, como escreve o mesmo autor, “naturalmente, é inatingível a determinação com rigor matemático (“até ao cêntimo”) do valor dos prejuízos. Nem tal se pede ao Tribunal quando, nestes e noutros casos, tem de se pronunciar no sentido de qualificar e quantificar as indemnizações. Num domínio em que a imperfeição cognitiva é a regra, em que o poder de adivinhação inexiste, em que a formulação de juízos recai sobre humanos, enfim, em que o rigor aritmético próprio das ciências exactas nem sequer se impõe, basta que o Tribunal se oriente através dos traços largos conferidos pela figura da equidade, ponderando as circunstâncias que o processo ou as regras da experiência revelem” (3).
Gostaríamos de reforçar esta ideia, de que o recurso à equidade para encontrar o valor justo não só não é ilegal, como é a melhor solução, se não mesmo a única solução, pois não se vislumbra outra mais rigorosa, a não ser em casos excepcionais em que se consiga apurar até à casa decimal qual o prejuízo sofrido.
O que é que estamos a tentar encontrar ?
A resposta é simples: buscamos o prejuízo que o lesado sofreu com a paralisação do seu veículo.
Só que não é possível chegar a um valor rigoroso nessa busca, porque a história alternativa é uma pura ficção. Determinar com rigor o prejuízo sofrido pelo lesado, implicaria saber exactamente que utilizações ele teria dado ao veículo, quantas vezes, em que circunstâncias, que despesas teria tido por causa disso, com combustíveis e outros imponderáveis vários, etc.
E, recorrendo conscientemente a um truísmo, tal é uma pura impossibilidade física. A história seguiu uma via alternativa e jamais voltará para trás. Nunca saberemos exactamente, com rigor ao cêntimo, qual o uso que teria sido dado a esse veículo se o mesmo não tivesse ficado paralisado.
Donde, os Tribunais podem e devem julgar com recurso à equidade.
E os Tribunais, nos países que como Portugal se inserem na família da “Civil Law Tradition” têm, cada vez mais, embora com cobertura legal e Constitucional, de ter a coragem de decidir certos aspectos dos litígios mediante juízos de equidade, deixando ficar para trás o fardo imposto pelo positivismo obcecado e desconfiado que tem as suas raízes históricas na revolução francesa, e que tem vindo gradualmente a perder influência de década para década.
Foi o que fez a sentença recorrida. E bem.
“Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”, dispõe o art. 566º,3 CC.
Aceitando assim como inevitável no caso o recurso à equidade, vejamos então se o juízo equitativo feito pela sentença recorrida enferma de algum erro.
A orientação jurisprudencial que seguimos torna dispensável a alegação e prova de danos concretos decorrentes da mencionada paralisação.
Tendo presentes estas breves noções, o caminho seguido pela sentença recorrida não é merecedor de reparos.
A solução adoptada (e com maioritário apoio jurisprudencial) é aquela que considera que a própria privação de uso é, ela própria, um dano que fundamenta uma indemnização autónoma, não sendo exigível que o lesado demonstre ter sofrido danos concretos e recorrendo-se à equidade para a fixação do montante da indemnização, nos termos do artigo 566º,3 CC (neste sentido, na doutrina, Abrantes Geraldes em “Indemnização do Dano de Privação de Uso”, Almedina, páginas 30 e seguintes e Meneses Leitão em “Direito das Obrigações”, Volume I, 10ª edição, página 303).

Ora, no presente caso, como já vimos, desde a data do acidente a Autora ficou privada do uso da sua viatura, a qual era usada diariamente para o transporte de pessoal e materiais pela Autora no exercício da sua actividade de construção civil, donde decorre que está demonstrado que a Autora sofreu um dano real e concreto, pois, não fora o acidente e continuaria a usá-la, pelo que tem direito a uma “indemnização por privação do uso”.
Conforme acórdão do TRP de 05-02-2004 (in CJ-I-179), citado pela sentença recorrida, em caso de perda total, em que não é possível a reconstituição natural, terá ser entregue uma indemnização ou restituição por equivalente, traduzida na entrega de uma quantia em dinheiro que corresponda ao montante dos danos.
Esta indemnização abrange também a privação do uso do veículo e de todas as utilidades que este poderia proporcionar. A privação de uso, que no caso normal de reconstituição natural, ocorrerá até ao momento em que esta se efective, com a entrega ao lesado do veículo reparado; no caso da restituição por equivalente, a privação verificar-se-á também objectivamente e deve entender-se que subsiste até ao momento em que ao lesado seja satisfeita a indemnização correspondente. É a solução óbvia, justa e prudente.
Existe jurisprudência, citada na sentença recorrida, que vai no sentido de, verificando-se a inviabilidade económica da reparação de veículo automóvel (situação de «perda total»), o direito do proprietário deixa de ter por objecto o veículo (sua reparação e veículo de substituição ou indemnização pela privação do uso), passando a ter por objecto a indemnização em dinheiro; e o atraso no pagamento desta é indemnizado pelos juros de mora”.
Mas, salvo o devido respeito, não podemos seguir a mesma, pois encerra em si um formalismo extremo que leva a não fazer a justiça do caso concreto. É que, quer nos casos de perda total, quer nos casos em que a reconstituição natural é possível, o acto ilícito levou a que o lesado ficasse sem poder utilizar o seu veículo durante um determinado período de tempo. Fora do mundo abstracto dos conceitos técnico-jurídicos foi isto que sucedeu. Donde, no mundo real, que é o que interessa, o lesado A ficou sem poder usar o seu veículo B, durante o tempo que medeia entre o acidente e, ou ser-lhe entregue o seu veículo reparado, ou ser-lhe entregue um veículo de substituição, ou ser-lhe entregue a indemnização a que tem direito no caso de perda total.
Toda e qualquer teoria jurídica que se construa sobre a obrigação de indemnização nestes casos não apaga, não pode apagar, este facto do mundo real: o lesado deixou de poder usufruir do seu veículo, que ficou totalmente destruído, mas, não fora o evento que o destruiu, continuaria a utilizá-lo regularmente. A partir daqui, a teoria da diferença faz o resto (art. 566º,2 CC).

Chegando à forma de calcular a indemnização, mais uma vez temos de dizer que a sentença recorrida andou bem: “a atribuição da indemnização pela privação do uso é calculada mediante a ponderação da reconstituição que existiria se não se tivesse verificado o evento, nos termos do artigo 562.º do Código Civil, e com recurso à equidade, nos termos do artigo 566.º, n.º 3, do mesmo Código (cf., por todos, referido acórdão do STJ de 05-07-2018). No presente caso, considerando que a Autora se encontra privada do uso da viatura, desde a data do acidente (18-07-2014), que, antes deste, a viatura tinha o valor de € 7.000,00, reclamando a Autora, para inteiro ressarcimento desse valor apenas a quantia de € 4.300,00 (porque, entretanto, vendeu os salvados, cujo valor estava avaliado em € 2.700,00) e que a Autora usava a viatura diariamente para o transporte de pessoal e materiais no exercício da sua actividade de construção civil, afigura-se-nos equitativa a indemnização de € 15.000,00 (quinze mil euros), apurada até à data da prolação da presente sentença, pelo que, estando a Ré constituída na obrigação de indemnizar na proporção de 80%, deverá pagar à Autora a quantia de € 12 000, 00 (doze mil euros), além do valor indemnizatório da perda do veículo, ou seja, (80% x € 4 300, 00 =) € 3.440,00 (três mil quatrocentos e quarenta euros). Porque o dano da privação do uso só cessará quando a Autora receber a indemnização de € 3.440,00, a Ré está ainda constituída na obrigação de indemnizar o dano da privação do uso que evoluirá até ao momento em que ocorra o recebimento daquela quantia”.

No essencial, estamos de acordo com o decidido no Acórdão do TRL de 11 de Dezembro de 2019 (Carlos Castelo Branco), no qual se faz uma extensíssima recolha de jurisprudência e doutrina sobre o tema, para o qual remetemos.
Mais concretamente, aí se cita o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27-02-2014 (Processo 889/11.8 TBSSB.L1-6, relator CARLOS MARINHO), no qual se concluiu que: “o dano pela privação de uso de veículo é indemnizável no caso de perda total do mesmo, tal como acontece quando há lugar à reparação. A simples privação do uso do veículo automóvel é suficiente para fundar o direito a indemnizar, pois trata-se de um dano autónomo com valor pecuniário, que priva o respectivo titular da disponibilização do mesmo, não sendo assim necessária a prova de quaisquer outros factos (nomeadamente a ocorrência de danos concretos ou o destino dado habitualmente ao veículo) e sendo, nesse caso, o montante indemnizatório fixado com recurso à equidade”.

Deixámos para o final a argumentação da recorrente ré que assenta nos dois factos que foram aditados: a fim de colmatar as carências decorrentes da privação do uso do MH, o gerente da Construções W, Lda pôs ao serviço desta, de forma gratuita, um veículo de sua propriedade, sempre que era necessário, e uma ou duas vezes por semana. E que seis meses após a data do acidente, a autora Construções W, Lda adquiriu outro veículo automóvel, igual ao MH e com as mesmas características deste.
Aqui, quase que podíamos dar como reproduzida a resposta da recorrida nas suas contra-alegações: “mal seria, se o responsável pela obrigação de indemnizar pudesse invocar, para se furtar àquela sua responsabilidade, que o lesado já tinha reparado o dano às suas custas ou o tinha diminuído à custa de favores, ao lesado, de terceiro. Será irrelevante se o lesado às suas custas substitui o bem ou não, bem como também será indiferente para apurar o dano causado com a privação de uso indemnizável, se porventura houve um terceiro que emprestou uma viatura para resolver temporariamente ou não a falta da viatura perdida”.
Com efeito, a recorrente parece defender o entendimento que se o lesado, nesta ou em qualquer outra situação, procurar pelos seus meios minorar o dano que lhe foi causado pelo acto ilícito e culposo de terceiro, enquanto espera pelo resultado da acção judicial, fica excluída ou reduzida proporcionalmente a responsabilidade civil do autor do facto lesivo.
Não só não vislumbramos qualquer base legal para tal entendimento, como o mesmo seria um gravíssimo incentivo para o devedor da indemnização não cumprir.
Pelo contrário, a obrigação de indemnização, que nasce no momento em que se verifica o facto ilícito, culposo e danoso, só se extingue por uma das formas previstas na lei: sendo a principal o cumprimento da obrigação, outras se lhe juntam, como a dação em cumprimento, a consignação em depósito, a compensação, a novação, a remissão, a confusão, e, noutro patamar, a prescrição.
É óbvio que nenhum destes institutos operou aqui. Mesmo no caso da remissão (art. 863º CC), o que sucede é que é o próprio credor que, com a aquiescência embora do devedor, renuncia ao poder de exigir a prestação devida, afastando definitivamente da sua esfera jurídica os instrumentos de tutela do seu interesse, que a lei lhe conferia.
A situação dos autos nada tem a ver com qualquer destas causas de extinção das obrigações (sobre cada uma das figuras, remetemos para as definições do Professor Antunes Varela, in Das Obrigações em geral, vol. II, 7ª edição).
O que a recorrente pretende é que, sem qualquer acto da sua parte, a obrigação seja reduzida ou mesmo extinta, através da acção do próprio lesado ou de terceiro, o qual, registe-se, não manifestou nem directa nem indirectamente a intenção de perdoar a dívida à recorrente. Não lhe assiste qualquer razão.
Por outro lado, não esquecer que sempre que alguém esteja obrigado a reparar um dano, diz o artigo 562º, “deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”. A aplicação desta regra afasta liminarmente da equação qualquer actuação do próprio lesado ou de terceiro destinada a minorar os danos.
Se pretendêssemos olhar para a interpretação da recorrente como um raciocínio jurídico aceitável, então teríamos de o aplicar generalizadamente, e aceitar casos como este: imaginemos que alguém é atropelado em cima de uma passadeira e fica caído no chão, enquanto o condutor se afasta a alta velocidade; entretanto o lesado consegue telefonar a pedir uma ambulância e é levado ao Hospital e tratado. Seguindo esta lógica que não aceitamos, o lesante, ou a sua seguradora, poderiam vir contestar a obrigação de indemnizar dizendo que ele na data actual já está curado, logo não havia mais danos a ressarcir. E não cremos que esta defesa tivesse acolhimento em qualquer Tribunal digno desse nome.
Se quisermos olhar a questão do ponto de vista do nexo de causalidade, ou seja, saber se a actuação do lesado ou de terceiro veio quebrar o nexo de causalidade adequada entre o facto lesivo e dano, basta-nos citar as palavras de Antunes Varela, ob. cit, vol. I, fls. 893, quando escreve: “se o dono da viatura danificada tiver de alugar um táxi para realizar as deslocações de que necessita durante a reparação daquela, a privação do uso do veículo e as despesas com a sua substituição não deixarão de constituir um efeito adequado do facto imputado ao responsável”.
Em conclusão, as actuações que ficaram provadas por parte do lesado e de terceiro, após o acidente, não interferem em nada na existência e dimensão da obrigação de indemnizar a cargo da ré recorrente.

Veja-se, aliás, o que se escreve no Acórdão do TRL supra citado:

Paralisado que se encontra o veículo, aguardando reparação, a ré deveria satisfazer o dano inerente.
Mas, estará o dano indemnizável excluído pelo facto de também se ter apurado que o autor tem um outro veículo, que passou a utilizar para substituir o sinistrado?
Ora, parece-nos que, “quando a privação do uso recaia sobre um veículo automóvel, danificado num acidente de viação, bastará que resulte dos autos que o seu proprietário o usaria normalmente para que possa exigir-se do lesante uma indemnização a esse título, sem necessidade de provar directa e concretamente prejuízos efectivos” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 08-04-2014, relator Fonte Ramos).
Na realidade, a privação do uso de um veículo automóvel, desde que resulte provado que era efectivamente utilizado, constitui só por si, um dano patrimonial indemnizável, devendo recorrer-se à equidade, nos termos do disposto no art. 566º,3 do CC para fixar o valor da respectiva indemnização (assim, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28-05-2013, relator Avelino Gonçalves e, em igual sentido, o Acórdão do mesmo Tribunal de 22-01-2013, relator Luís Cravo).

Relevante é também o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06-02-2018 (Processo 189/16.7T8CDN.C1; - Relator FALCÃO DE MAGALHÃES):
I -Na reparação do dano consistente na privação do uso do veículo por parte do lesado, em consequência de um sinistro rodoviário, podem equacionar-se duas distintas situações:
-uma delas em que se apura a concreta existência de despesas feitas pelo lesado em consequência dessa privação, como será por exemplo o caso mais comum em que o lesado se socorre do aluguer de veículo de substituição, contratando esse aluguer junto de empresas do ramo;
-uma outra situação em que não se apuram gastos alguns mas apenas que o lesado utilizava o veículo nas suas deslocações habituais (para fins profissionais ou de lazer) e que não lhe foi facultada pelo lesante viatura de substituição, tendo o mesmo ficado, por isso, impedido de fazer essas deslocações ou tendo o mesmo continuado a fazê-las socorrendo-se para o efeito de veículos de terceiros familiares e amigos que, a título de favor, lhe cederam por empréstimo tais veículos.
II. Na primeira das apontadas situações, o lesado tem direito à reparação integral dos gastos/custos que teve por via da dita privação.
III. Na segunda, a medida da indemnização terá que ser encontrada com recurso à equidade, pois que deve concluir-se pela existência de um dano que se traduziu na impossibilidade do lesado o utilizar nas suas deslocações diárias, profissionais e de lazer, havendo que encontrar em termos quantitativos um valor que se mostre adequado a indemnizar o lesado pela paralisação diária de um veículo que satisfaz as suas necessidades básicas diárias.
V. Concluindo-se pelo dano e não sendo possível quantificá-lo em valores certos face aos factos provados, o tribunal deverá recorrer à equidade para fixar a indemnização, nos termos previstos no artigo 566º, n. 3, do Código Civil”.
Este é o raciocínio correcto e a correcta interpretação da lei. Que a sentença recorrida seguiu.
Donde, a total improcedência do recurso da ré.

Recurso subordinado:

Em sede de recurso subordinado, vem a autora Construções W, Lda dizer que a indemnização por privação de uso de viatura é devida sem necessidade de qualquer prova de prejuízo dai decorrente, como vem sendo entendido pelos nossos tribunais, pois o simples impedimento, ao dono do bem, do exercício dos direitos inerentes à propriedade, isto é, de usar fruir e dispor do bem é gerador dessa responsabilidade de indemnizar.
Até aqui nada que a sentença recorrida não diga também.

Depois, a recorrente recorda que usava diariamente a viatura para o transporte de pessoal e materiais no exercício da sua actividade de construção civil - art. 47º factos provados - e está privada do seu uso desde a data do acidente ou seja 18/06/2014. E entende que deverá ser fixado o valor de € 40,00/dia para indemnização pela privação de uso da viatura, desde a data do acidente até ao pagamento efectivo da indemnização pela perda total da viatura.
Aqui já temos de levantar uma objecção. É que embora a recorrente entenda que deverá ser fixado o valor de € 40,00/dia para indemnização pela privação de uso da viatura, desde a data do acidente até ao pagamento efectivo da indemnização pela perda total da viatura, apenas se provou que o aluguer de uma viatura semelhante à MH custaria valor diário não concretamente apurado.
A sentença recorrida entendeu que estava demonstrado que a Autora sofreu um concreto e efectivo dano, pois que usava a viatura, diariamente, para o transporte de pessoal e materiais pela Autora no exercício da sua actividade de construção civil e, pois, normalmente, continuaria a usá-la, caso não tivesse sofrido a sua perda, pelo que tem direito a uma “indemnização por privação do uso”. Essa privação começou no momento do acidente, e perdurará até ao momento em que ao lesado seja satisfeita a indemnização correspondente. O cálculo foi feito mediante a ponderação da reconstituição que existiria se não se tivesse verificado o evento, nos termos do artigo 562º CC, e com recurso à equidade, nos termos do artigo 566º,3 do mesmo Código (acórdão do STJ de 05-07-2018 referido).
Em concreto, a autora esteve privada do uso da viatura desde 18-07-2014, e até à data da prolação da sentença o Tribunal recorrido entendeu equitativa a indemnização de € 15.000,00 (quinze mil euros), pagando a ré apenas 80% desse valor, ou seja, € 12.000,00.
Mais entendeu a sentença que o dano da privação do uso só cessará quando a Autora receber a indemnização de € 3.440,00, pelo que a Ré está ainda constituída na obrigação de indemnizar o dano da privação do uso que evoluirá até ao momento em que ocorra o recebimento daquela quantia, não sendo possível prever quando tal venha a acontecer.
Consequentemente, adaptando ao caso a jurisprudência do STJ (cf. acórdão de 28-10-2010, in sítio da net do IGFEJ), a sentença recorrida considerou que não tinha condições para recorrer à equidade, atenta a indefinição temporal referida, devendo antes proferir condenação genérica, ao abrigo do preceituado no nº 2 do artigo 661º CPC, por não haver elementos factuais suficientemente consistentes para quantificar a indemnização devida, sem prejuízo de se manter a condenação da Ré na parte líquida do pedido.

Assim, não assiste razão à autora quando quer que se fixe o valor de € 40,00/dia para indemnização pela privação de uso da viatura, pois tal valor não emergiu provado nestes autos.

Em síntese final, a sentença recorrida, excepto no aditamento dos supra referidos factos, inócuos para a decisão, não merece censura.

V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar os recursos totalmente improcedentes e por isso confirmar na íntegra a sentença recorrida.

Custas pelos recorrentes (art. 527º,1,2 CPC).
Data: 28/1/2021

Relator (Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto (Alcides Rodrigues)
2º Adjunto (Joaquim Boavida)


1. Seguiremos de perto a obra já citada de Abrantes Geraldes.
2. Destaque nosso.
3. Abrantes Geraldes, ob. cit., fls. 71.