Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2185/14.0EAPRT.G1
Relator: AUSENDA GONÇALVES
Descritores: ILÍCITO DE MERA ORDENAÇÃO SOCIAL
IMPUGNAÇÃO
PRAZO
ARTºS 59º 60º 62 E 65-A DO RGCO E AUJ 2/94
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/04/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - O RGCO (regime do Ilícito de Mera Ordenação Social aprovado pelo DL 433/82 de 27/10 e suas actualizações) estabelece para a impugnação da decisão da autoridade administrativa que aplicou a coima o prazo de 20 dias, que se suspende aos sábados, domingos e feriados e se o respectivo termo cair em dia durante o qual não for possível a apresentação do recurso [durante o período normal de funcionamento dos serviços de tal autoridade], transfere-se para o primeiro dia útil seguinte (arts. 59º e 60º).

II - Essa impugnação é apresentada à autoridade administrativa sob cuja alçada está o processo, embora seja dirigida ao juiz a quem incumbirá dela conhecer, se e só depois de ultrapassadas todas as seguintes eventualidades que a tal impedirão: a entidade administrativa pode revogar a decisão de aplicação da coima até ao envio (no prazo de 5 dias) dos autos ao MP, que, na sequência, se entender que a aplicação da coima foi fundada, tornará presentes os autos ao juiz, valendo este acto como acusação (art. 62º), a qual o mesmo Órgão, com o acordo do arguido, ainda pode retirar até à sentença em 1ª instância (art. 65º-A)

III – De tal regime flui, claramente, que o processo inerente ao ilícito de mera ordenação social tem sempre uma fase de natureza estritamente administrativa e pode ter (ou não) outra, bem distinta, com natureza judicial, que só tem lugar – e só se inicia – se e quando o MP entender apresentar os autos ao juiz, momento a partir do qual a respectiva tramitação, então sim, passa a ser disciplinada pelas regras próprias do procedimento judicial, ou seja, em primeira linha, as estatuídas pelo referido RGCO e, em segunda linha, apenas nos casos nele omissos, as subsidiariamente aplicáveis, por força do seu art. 41º.

IV - Mantém plena actualidade e validade a jurisprudência firmada pelo AUJ 2/94 de que «Não tem natureza judicial o prazo mencionado no n.º 3 do artigo 59.º do Decreto-Lei n.º 433/82 …», pelo que tal prazo não se suspende nas férias judiciais nem se transfere para o primeiro dia útil a estas subsequente, interpretação que não viola os princípios do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e o da proporcionalidade e da proibição do excesso, consagrados nos artigos 20.º e 18.º, n.º 2 da CRP, como tem sido reconhecido pelo Tribunal Constitucional, com a atribuição específica de se pronunciar sobre tal matéria.

V - Por conseguinte, não tem cabimento a invocação, para o aludido recurso, de regras aplicáveis aos prazos de natureza judicial, nomeadamente a estipulada pelo art. 297º do CC, relativamente a um acto que não é «praticado em juízo», mas, sim, ainda antes de qualquer procedimento judicial, perante a entidade que emitiu a decisão administrativa que tal acto se destina a impugnar e em cuja actuação não existem férias.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

X - Actividades Hoteleiras Lda. veio interpor recurso do despacho proferido pela Sra. Juíza do Juízo Local de Guimarães, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, rejeitando o recurso de impugnação judicial que apresentara no dia 4-01-2018 da decisão da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) de que a mesma fora notificada no dia 21-11-2017.

Com efeito, a Sra. Juíza considerou extemporânea tal impugnação porque, «segundo o disposto nos art.ºs 59.º e 60.º do RGCO, o prazo para interposição do recurso de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa é de vinte dias, após o seu conhecimento pelo arguido, suspendendo-se tal prazo aos sábados, domingos e feriados, tendo este prazo natureza administrativa e não judicial, não lhe sendo por isso aplicáveis as regras próprias dos prazos judiciais, nomeadamente não se suspende nem interrompe durante as férias judiciais».
*
A arguida formulou na sua motivação as seguintes conclusões:

(…) 2. Dispõe o artigo 59.°, n.° 3 do RGCO que o recurso é apresentado à autoridade administrativa que aplicou a coima, no prazo de 20 dias após o seu conhecimento pelo arguido.
3. De acordo com o disposto no artigo 41.º do RGCO é subsidiariamente aplicável o processo penal e, nos termos do disposto no artigo 103.º n.º 1 do CPP «os actos processuais praticam-se nos dias úteis, às horas de expediente dos serviços de justiça e fora do período de férias judiciais», apenas se exceptuando os casos elencados nas alíneas a) a e) do n.º 2 do artigo 103.º do CPP e os actos considerados urgentes em legislação especial.
4. O recurso de impugnação judicial, não constando do elenco das excepções do n.º 2 do artigo 103.º do CPP;
5. Nem estando previsto em legislação - especial ou outra - a urgência do acto ou a urgência do processo, no âmbito do qual se pratica o acto de impugnação judicial;
6. Então não se pode considerar que a mera interposição de um recurso de impugnação judicial seja um acto urgente, nem tão-pouco se pode aplicar aquela norma (excepcional) analogicamente.
7. Refere ainda a alínea e) do artigo 279° do Código Civil que «à fixação do termo são aplicáveis, em caso de dúvida, as seguintes regras: (...) e) O prazo que termine em domingo ou dia feriado transfere-se para o primeiro dia útil; aos domingos e dias feriados são equiparadas as férias judiciais, se o acto sujeito a prazo tiver de ser praticado em juízo».
8. Pelo que é irrelevante a circunstância das entidades administrativas não gozarem de “férias judiciais”.
9. Pois estas, por via do artigo 279.º, alínea e) do CC, são equiparadas a Sábados, Domingos e feriados e, nessa medida, em tais dias deverá considerar-se suspensa a contagem do prazo, por não serem considerados dias úteis.
10. Nos presentes autos, tendo o termo do prazo caído em período de férias judiciais, este transferiu-se para o primeiro dia útil seguinte ao fim das férias judiciais – 4 de Janeiro de 2018.
12. Salvo o devido respeito, a interpretação do Tribunal a quo - que considera que não se encontra suspenso em férias o recurso de impugnação judicial – não é harmonizável com as garantias processuais e constitucionais do arguido.
13. Aliás, existe com esta interpretação uma violação ao princípio da igualdade, constitucionalmente consagrado, encontrando-se assim aquela também, fatalmente ferida de “não-conformidade-constitucional”.
14. Pelo exposto, o tribunal a quo violou, ainda, os princípios do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e o da proporcionalidade e da proibição do excesso, consagrados nos artigos 20.º e 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que e nos demais de Direito, deve ser dado provimento ao recurso e, em consequência, o despacho que rejeitou o recurso de impugnação judicial revogado.

O recurso foi admitido por despacho proferido a fls. 98.

O Ministério Público, em 1ª Instância, apresentou resposta à motivação, pugnando pela improcedência do recurso, defendendo, em suma, que é de natureza administrativa o prazo de 20 dias para apresentação de recurso judicial de impugnação de decisão, em processo de contra-ordenação, com uma argumentação, que o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto, neste Tribunal, reforçou no douto parecer que emitiu.
Foi cumprido o art. 417º, nº 2, do CPP
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Na medida em que o âmbito dos recursos se delimita pelas respectivas conclusões (art. 412º, nº 1, do CPP), importa apreciar e decidir a questão de saber se, tendo caído em período de férias judiciais, o termo do prazo para a interposição do recurso de impugnação judicial se teria transferido para o primeiro dia útil seguinte ao fim das férias (4-01-2018), por força do disposto nos arts. 41º do RGCO, 103º nº 1 do CPP e 279º, e), do CC.
Para tanto, relevam os factos que se retiram do antecedentemente relatado.
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O essencial da tese da recorrente resume-se à ideia de que praticou atempadamente a pretendida impugnação judicial porque, estando tal acto sujeito ao prazo de 20 dias (contado a partir de 21-11-2017), a este devem ser deduzidos os Sábados, Domingos e feriados e os dias de férias judiciais [22-12-2017 a 3-01-2018], que àqueles se equiparam quando «o acto sujeito a prazo tiver de ser praticado em juízo», como dispõe o citado art. 297º do CC.

Na sustentação de tal equiparação, a recorrente considera irrelevante a circunstância de as entidades administrativas não gozarem de “férias judiciais”, o que, imediatamente, denuncia o vício do seu raciocínio: a recorrente funda a pretensa tempestividade do recurso que deduziu na suposição de se tratar de um acto praticado, não em procedimento administrativo, mas em juízo, ainda que contra uma decisão proferida no âmbito de um processo contra-ordenacional, sendo, pois, de aplicar o disposto no art. 279º, e), do CC, em função do que aquela impugnação poderia ser apresentada no primeiro dia útil após as férias judiciais, ou seja, em 4-01-2018.
Porém, essa suposição não tem fundamento. Vejamos.
O pertinente regime estabelecido pelo designado RGCO (Ilícito de Mera Ordenação Social), aprovado pelo DL 433/82 de 27/10 (e suas actualizações) é, em traços largos, o seguinte:

O recurso para a impugnação da decisão da autoridade administrativa que aplicou a coima é apresentado a esta, no prazo de 20 dias após o seu conhecimento pelo arguido, e esse prazo suspende-se aos sábados, domingos e feriados, bem como, se o respectivo termo cair em dia durante o qual não for possível a apresentação do recurso [durante o período normal de funcionamento dos serviços de tal autoridade], transfere-se para o primeiro dia útil seguinte (arts. 59º e 60º).
Recebido o recurso, a autoridade administrativa deve, no prazo de cinco dias, enviar os autos ao Ministério Público, mas podendo, até esse envio, revogar a decisão de aplicação da coima e, na sequência, o Ministério Público, se entender que a aplicação da coima foi fundada, tornará presentes os autos ao juiz, valendo este acto como acusação (art. 62º), que o mesmo Órgão, com o acordo do arguido, ainda pode retirar até à sentença em 1ª instância (art. 65º-A).
Realmente, a impugnação é apresentada à autoridade administrativa sob cuja alçada está o processo, embora seja dirigida ao juiz a quem incumbirá dela conhecer, se e só depois de ultrapassadas todas as salientadas eventualidades que a tal impedirão.
Resta assinalar que o art. 41º do diploma determina que, sempre que o contrário dele não resulte, são subsidiariamente aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal.
É certo que, como se advertiu no acórdão da RL de 30-05-2011 (1), «Quando se lida com o direito de mera ordenação social, designadamente com o normativo que define o regime geral das contra-ordenações, existe uma irreprimível tendência para se buscar fora dele (sobretudo no processo penal e no processo civil) soluções para problemas que facilmente encontram nele resposta adequada».

E assim acontece com a proposta que a recorrente apresenta para a questão que ora nos ocupa. Contudo, como logo se constata do expendido, o exibido complexo normativo regula exaustivamente os termos que a solução da questão suscitada impõe, sem lacunas que instem a intervenção do direito subsidiariamente aplicável, pelo que é espúria a evocação do art. 41º de tal diploma para justificar a aplicação de normas de âmbito criminal e civil.

Desse conjunto de normas, conjugado com as que disciplinam, no demais, o ilícito de mera ordenação social, flui, claramente, que o processo a este inerente tem sempre uma fase de natureza estritamente administrativa e pode ter (ou não) outra, bem distinta, com natureza judicial. Porém, esta segunda fase só tem lugar – e só se inicia – se e quando o Ministério Público entender apresentar os autos ao juiz, momento a partir do qual a respectiva tramitação, então sim, passa a ser disciplinada pelas regras próprias do inerente procedimento judicial, ou seja, em primeira linha, as estatuídas pelo RGCO e, em segunda linha, apenas nos casos nele omissos, as subsidiariamente aplicáveis, por força do seu citado art. 41º.

Foi o que esta Relação já explicou, lapidarmente, no acórdão de 5-03-2012 (2):

«(…) O processo por contra-ordenação tem duas fases bem distintas. A primeira tem natureza administrativa e a segunda judicial.
O recurso de impugnação judicial é apresentado à autoridade administrativa que aplicou a coima (art. 59 nº 3 Dec.-Lei 433/82). A apresentação não implica, necessariamente, que se passe à fase judicial, pois a entidade administrativa pode revogar a sua decisão de aplicar a coima – art. 62 nº 2 do RGCO. Isto é harmonioso com o facto de ainda não existir um processo judicial, mas um processo de natureza administrativa.

Por outro lado, recebida a impugnação, à entidade administrativa, se não revogar a decisão de aplicação da coima, apenas compete enviar os autos ao MP (art. 62 nº 1), não cabendo nas suas atribuições decidir sobre se a impugnação foi apresentada em tempo.
(…) O legislador teve em atenção as diversas estrutura e natureza das duas fases do processo, elegendo para cada uma delas, em separado, o direito subsidiário aplicável, sem esquecer mesmo o direito tributário distinto de cada uma delas (v. art. 93 do Dec.-Lei 433/82). A fase administrativa do processo de contra-ordenação é tributária do próprio processo administrativo, tendo o prazo de impugnação judicial natureza substantiva e não processual.
A interposição do recurso de impugnação da decisão que aplicou uma coima integra-se, ainda, na fase administrativa do processo de contra-ordenação. Que é assim, demonstra-o ainda o art. 62 nº 1 do DL 433/82.
(…) Ou seja, o feito só é introduzido em juízo quando o MP apresenta os autos ao juiz. Aliás, o MP, se entender que a aplicação da coima foi infundada, tem a faculdade de não apresentar os autos, já que pode retirar a acusação até à sentença em primeira instância – art. 65-A do Dec.-Lei 433/82.
Ora, não sendo a impugnação da decisão administrativa um acto judicial, não lhe é aplicável o regime dos nºs 5 e 6 do art. 145 do CPC, que apenas dizem respeito à prática de actos desta natureza.».

Neste ponto, não pode olvidar-se que o Tribunal Constitucional decidiu «não considerar inconstitucional, designadamente por violação do nº 1 do artigo 20º da Constituição, o disposto nos artigos 59º nº 3 e 60º, nºs 1 e 2 do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, na interpretação de que, terminando em férias judiciais o prazo para a interposição do recurso neles previsto, o mesmo não se transfere para o primeiro dia útil após o termos destas» (3). E, sobretudo, que esse juízo de conformidade constitucional da interpretação do artigo 60º, nº 2º, do RGCO segundo a qual o prazo em questão não se suspende durante o período de férias judiciais nem se transfere para o primeiro dia útil subsequente, foi assim fundamentado:

«situando-se o acto a praticar ainda no âmbito da fase administrativa do processo contra-ordenacional, visando impugnar um acto administrativo, tendo o recurso de ser obrigatoriamente apresentado perante a autoridade administrativa que aplicou a coima (art. 59º, nº 3, do Dec. Lei nº 433/82, de 27 de Outubro) e funcionando normalmente os seus serviços administrativos durante o período de férias judiciais, não se vê em que é que a interpretação normativa que foi adoptada na decisão recorrida (…) pode restringir desproporcionadamente o direito de acesso aos tribunais constitucionalmente garantido».

Essa é a orientação jurisprudencial que se encontra consolidada desde o AUJ do STJ nº 2/94 de 10-03-1994 (DR, I-A, nº 106, de 7-05-1994): «Não tem natureza judicial o prazo mencionado no n.º 3 do artigo 59.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, com a alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 356/89, de 17 de Outubro». Já nesse aresto se esclarecia «que só será prazo judicial o prazo a que está sujeito qualquer acto a praticar dentro do processo e não fora dele» (…) «o prazo concedido para a prática de certo acto em juízo», sendo que «o recurso a que alude o artigo 59.º, n.ºs 1 e 3, do Decreto-Lei n.º 433/82 não é apresentado em juízo, mas perante a autoridade administrativa».

Como insistentemente tem sido vincado pelo Supremo Tribunal, a justiça tem implícita a ideia de proporção, de adequação e de relativa previsibilidade, sendo a afirmação destes vectores premente e necessária, já que conduzem em linha recta à efectiva concretização da segurança na aplicação do direito e do princípio da igualdade, consagrado no art. 13º da Constituição: o julgador situa-se dentro da margem de liberdade de interpretação da lei que lhe é consentida pela independência constitucionalmente garantida (art. 203º da CRP), mas também não é menos certo que o deve fazer de modo que se «não revele colidente com os critérios jurisprudenciais que, numa perspectiva actualística, generalizadamente vêm sendo adoptados, em termos de poder pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade» (4), devendo, para tanto, ter-se em consideração «todos os casos que mereçam tratamento análogo», exigência colocada pelo art. 8º nº 3 do CC (5).

Ora, a jurisprudência firmada pelo AUJ 2/94 mantém plena actualidade e validade porque com ela não buliu a redação posteriormente introduzida pelo DL 244/95 (de 19/09) ao referenciado art. 60º, nº 1, como elucidou o STJ, no seu acórdão de 3-11-2010 (6), arredando, terminantemente, a justificação para algumas dúvidas até aí residualmente manifestadas em algumas decisões dos tribunais (7). Esse esclarecimento do Supremo obteve o sumário cujos segmentos mais relevantes se transcrevem (com destaque da nossa responsabilidade):

«III - O AUJ 2/94 fixou doutrina no sentido de que o prazo indicado no n.º 3 do art. 59.º do RGCO não tem natureza judicial. (…).
IV - Ao fixar o entendimento de que o prazo do art. 59.º, n.º 3, do RGCO não era um prazo judicial, o AUJ 2/94 veio estabelecer que a tal prazo não se aplicava o disposto no n.º 3 do art. 144.º do CPC, na redacção que então vigorava, e que, consequentemente, o prazo corria continuamente. Da mesma forma, e decorrendo da natureza não judicial do prazo, não seriam aplicáveis ao mesmo prazo as restantes regras atinentes aos prazos judiciais, como os arts. 104.º, n.º 1, e 107.º, n.º 5, do CPP.
V - O DL 244/95 veio modificar supervenientemente o quadro legislativo. Mas fê-lo apenas em dois aspectos: ampliando o prazo de 8 para 20 dias; e determinando a suspensão do prazo nos sábados, domingos e feriados, mas já não nas férias judiciais. Quer dizer: o DL 244/95 não veio expressamente alterar a natureza do prazo de recurso das decisões administrativas que aplicam coimas, nem sequer estabelecer um regime de contagem idêntico ao dos prazos judiciais, hipótese em que se poderia argumentar a favor de uma tácita intenção de modificar a sua natureza. O que o DL 244/95 fez, ao estabelecer que o prazo se suspende nos sábados, domingos e feriados, foi fazer coincidir o regime de contagem desse prazo com o dos prazos administrativos em geral, previsto no art. 72.º, n.º 1, al. b), do CPA, e em contraste com o modo de contagem dos prazos judiciais, que eram suspensos nos sábados, domingos, feriados e nas férias judiciais.
VI - Ou seja: o DL 244/95 não converteu, expressa ou tacitamente, o prazo previsto no art. 59.º, n.º 3, num prazo judicial. Pelo contrário, acentuou a sua natureza administrativa.
VII - Com a reforma introduzida no CPC pelo DL 329-A/95, de 12-12, os prazos judiciais passaram a ser contínuos, suspendendo-se, porém, durante as férias judiciais (art. 144.º, n.º 1), regra que é aplicável ao processo penal, por força do n.º 1 do art. 104.º do CPP. Contudo, essa modificação legislativa não se repercutiu no prazo para impugnação das decisões administrativas em matéria de aplicação de coimas, que se mantém idêntico: suspende-se (apenas) nos sábados, domingos e feriados, mas não em férias, pois na administração pública não existem férias.
VIII - É certo que o DL 244/95 em alguma medida contradiz o AUJ 2/94: na parte em que estabelece a suspensão do prazo nos sábados, domingos e feriados, quando da doutrina do Acórdão resultava que o prazo corria continuamente. Quanto a essa parte, não pode haver dúvidas de que a doutrina do Acórdão caducou. Mas apenas nessa parte, e já não quanto à não suspensão nas férias judiciais. E o mesmo se dirá do que se refere a outras regras dos prazos judiciais, como o disposto no art. 107.º, n.ºs 5 e 6, do CPP (este último número aditado pela Lei 59/98, de 25-08).
IX - Tendo a decisão recorrida “infringido” o AUJ 2/94 com fundamento em caducidade do mesmo, e não em desactualização da jurisprudência fixada, duvidoso será que tenha de haver pronúncia sobre essa matéria. Porém, na medida em que da letra do n.º 3 do art. 446.º do CPP pode resultar o entendimento de que tal pronúncia é obrigatória, e também porque os recorridos fazem esse pedido subsidiariamente, aliás em conexão com a invocação de inconstitucionalidade da doutrina do AUJ 2/94, por violação dos arts. 20.º, n.º 1, e 32.º, n.º 10, da CRP, dir-se-á o que segue sobre essa questão.
X - O direito de defesa em processo contra-ordenacional, que inclui o direito de audiência e o direito de recurso da condenação administrativa para um tribunal, está suficientemente salvaguardado nos arts. 59.º e ss. do RGCO, em cumprimento do disposto no n.º 10 do art. 32.º da CRP. A aproximação do direito contra-ordenacional ao direito penal, que é real, não impõe uma coincidência dos regimes processuais de ambos os ilícitos, dada a diferente natureza dos interesses em causa. É, pois, materialmente justificável uma diversa expressão dos direitos dos arguidos, naturalmente mais intensa no processo penal.
XI - Não se mostra, pois, ultrapassada nem contrária à CRP a doutrina do AUJ 2/94. Concluindo: este Acórdão não caducou em toda a sua extensão, mantendo-se em vigor quando dispõe que o prazo previsto no n.º 3 do art. 59.º do RGCO não é um prazo judicial, daí derivando nomeadamente a inaplicabilidade àquele prazo da regra do n.º 6 do art. 107.º do CPP.»

O próprio Tribunal de Conflitos, embora pronunciando-se apenas sobre a questão da distribuição da competência entre os tribunais comuns e os da jurisdição administrativa e fiscal – como lhe é inerente –, tem afirmado, uniformemente, que «A fase judicial do processo de contra-ordenação não se inicia com a interposição do recurso de impugnação da decisão administrativa que aplica a coima, mas com a apresentação pelo Ministério Público dos autos ao juiz, caso em que aquela decisão se converte em acusação» (8).

No sentido de que o prazo referido não é um prazo judicial também se pronuncia a doutrina (9) e é esse, igualmente, o entendimento massivamente expresso pelas Relações, o que facilmente se compreende, atendendo às razões acima aduzidas. É o que se extrai da seguinte indicação (exemplificativa) de acórdãos (para além dos já referidos):

- RP de 15-11-2017 (723/17.5Y2VNG.P1-Luís Coimbra): O prazo de 20 dias a que se refere o art.º 59 3 RGCO, não é um prazo judicial e não se suspende nas férias judiciais.
- RC de 18-10-2017 (2219/17.6T8CBR.C1-Brízida Martins): Prazo esse que, tal como sucede no regime geral das contra-ordenações [artigo 60.º do RGCO], não reveste natureza judicial, uma vez que respeita a um acto que se inscreve ainda no âmbito administrativo e é, portanto, prévio à fase processual que o mesmo tem por fim desencadear.
- RC de 18-10-2017 (2219/17.6T8CBR.C1-Helena Bolieiro): (…) Prazo esse que, tal como sucede no regime geral das contra-ordenações [artigo 60.º do RGCO], não reveste natureza judicial, uma vez que respeita a um acto que se inscreve ainda no âmbito administrativo e é, portanto, prévio à fase processual que o mesmo tem por fim desencadear.
- RC de 24-05-2017 (255/16.9 T8SCD.C1-Brízida Martins): Recebido o recurso de impugnação, a autoridade administrativa envia os autos, não ao tribunal competente, mas ao Ministério Público, que decidirá do destino a dar-lhes. Se o Ministério Público fizer os autos presentes ao juiz, com esse acto, a decisão da autoridade recorrida converte-se em acusação e, é com este acto que se inicia a fase judicial do processo de contra-ordenação. O recurso de impugnação da decisão da autoridade administrativa ainda faz parte da fase administrativa do processo. Assim, está-se perante um prazo administrativo, não se contando o dia da notificação e suspendendo-se aos sábados, domingos e feriados. Só pode ser considerado como prazo judicial o que se destina à prática de um ato no âmbito de um processo judicial, ou seja, de uma ação que já se encontre em juízo. Não tem aqui aplicação o regime contemplado no artigo 139.º, n.º 5, do novo Código de Processo Civil.
- RP de 8-03-2017 (3534/16.1T8STS.P1-Maria Luísa Arantes): O prazo para a impugnação da decisão de autoridade administrativa apenas se suspende aos sábados, domingos e feriados e não em férias judiciais, pois que na administração pública não existem férias “judiciais”.
- RP de 26-10-2016 (10407/16.6T8PRT.P1-Ermelinda Carneiro): O prazo estabelecido no nº 3 do art. 59º do RGCC não tem natureza judicial.
- RE de 6-01-2015 (10/14.0T8LAG.E1-Renato Barroso): O prazo previsto no nº3 do Artº 59 do D.L. 433/82, de 27/10, não tem natureza judicial, devendo ser considerado de natureza administrativa, pelo que não lhe são aplicáveis as regras privativas dos prazos judiciais, quer no que respeita à sua suspensão em período de férias judiciais, quer quanto à possibilidade de prática extemporânea do acto mediante o pagamento de multa processual.
- RE de 3-12-2015 (2436/14.0TBPTM.E1-Clemente Lima): O prazo previsto no artigo 59º, nº 3, do RGCO (D.L. nº 433/82, de 27/10), não tem natureza judicial, devendo ser considerado de natureza administrativa, pelo que não lhe são aplicáveis as regras privativas dos prazos judiciais, nomeadamente no que respeita à sua suspensão em período de férias judiciais
- RG de 30-11-2015 (3/14.8T8CBT.G1-Dolores Sousa, também in CJ, 5º/299): Ao prazo de 20 dias previsto no artigo 59º, n.º3 do RGCO para a interposição de recurso de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa não é aplicável o disposto no artigo 279. al. e) do C.C. (…) não é um prazo judicial, corre em férias e apenas se suspende aos sábados, domingos e feriados
- RL de 10-12-2013 (5111/13.0T3SNT.L1-5-Vieira Lamim): Encontrando-se no regime geral das contra-ordenações uma norma especial que prevê o modo de contagem do prazo para recurso de impugnação da decisão administrativa, não faz sentido chamar à colação o art.41 desse regime e aplicar subsidiariamente as normas do processo criminal e, por via destas, as do processo civil.
- RE de 12-07-2012 (179/10.3TBORQ.E1-Martinho Cardoso): O prazo de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa não é um prazo judicial, sendo-lhe, por conseguinte, inaplicáveis as regras do processo civil e do processo penal. (…)”
- RC de 30-05-2012 (44/12.0T2ILH.C1-Maria José Nogueira): O prazo mencionado no n.º 3, do artigo 59º, do D.L. n.º 433/82, de 27/10, não tem natureza judicial, mas sim natureza administrativa, pelo que este prazo não se suspende nem interrompe durante as férias judiciais.(…) Terminando em férias judiciais, tal prazo não se transfere para o primeiro dia útil após o termo destas.

Por outro lado, essa consensual interpretação, que aqui assumimos, não viola os «princípios do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e o da proporcionalidade e da proibição do excesso, consagrados nos artigos 20.º e 18.º, n.º 2 da Constituição», como tem sido reconhecido pelo Tribunal com a atribuição específica de se pronunciar sobre tal matéria.

Por conseguinte, não tem cabimento a invocação feita pela recorrente de regras aplicáveis aos prazos de natureza judicial, nomeadamente a estipulada pelo citado art. 297º do CC, relativamente a um acto que não é «praticado em juízo», mas, sim, ainda antes de qualquer procedimento judicial, perante a entidade que emitiu a decisão administrativa que tal acto se destina a impugnar e em cuja actuação não existem férias.
Improcede, pois, o recurso.
*
Decisão:

Pelo exposto, julgando-se o recurso improcedente, mantém-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, para o que se fixa a taxa em 4 UC’s.
Guimarães, 4/06/2018

Ausenda Gonçalves
Fátima Furtado

1 P. 301/09.2TFLSB.L1-5 - Neto Moura.
2 Proferido no p. 3211/11.0TBVCT.G1 e relatado pelo actual Exmo. Presidente desta Secção, Desembargador Fernando Monterroso.
3 Acórdão 473/01, de 24-10-2001, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20010473.html, cuja interpretação veio a ser reiterada no ac. 395/02, de 2-10-2002 (http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20020395.html).
4 Ac. do STJ de 21/1/2016 (1021/11.3TBABT.E1.S1 - Cons. Lopes do Rego).
5 «Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito».
6 P. 103/10.3TYLSB.L1-A.S1 - Cons. Maia Costa.
7 E, por consequência, retirando acuidade à alusão feita pela recorrente aos dois (únicos) acórdãos dissonantes de 2ª instância (aliás, redigidos pelo mesmo Relator). E, como incisivamente observou o acórdão da RP de 8-03-2017, infra anotado, também é descabida a evocação das decisões jurisprudenciais provindas do STA por se reportarem a impugnações judiciais de actos «da administração fiscal, em que é aplicável o art. 20.º do CPPT [“1 - Os prazos do procedimento tributário e de impugnação judicial contam-se nos termos do artigo 279.º do Código Civil. 2 - Os prazos para a prática de actos no processo judicial contam-se nos termos do Código de Processo Civil.”], que remete expressamente para o C.Civil., nomeadamente, para ao art.279º do C.Civil, no que respeita a contagem dos prazos do procedimento tributário e de impugnação judicial. Assim, a argumentação expendida em tais acórdãos não pode ser transporta para o caso presente».
8 Acórdão do passado dia 12-04-2018 (p. 071/17 - Cons. Teresa de Sousa), no sentido de outros igualmente publicitados in www.dgsi.pt.
9 Cf. Simas Santos e Lopes de Sousa (Contra-ordenações, Anotações ao Regime Geral, 6.ª ed., 2011, Áreas Editora, p. 473), Pinto de Albuquerque (Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, 2011, pp. 246-247) e Oliveira Mendes e Santos Cabral (Notas ao Regime Geral das Contraordenações e Coimas, Almedina, p. 164), afirmando estes: «O prazo delimitado no presente normativo não é um prazo judicial pois que se reporta a um momento em que não existe uma fase judicial. Aliás, tal fase pode nem sequer iniciar-se caso a entidade administrativa revogue a decisão até ao momento em que deveria enviar o processo para tribunal. Não sendo um prazo judicial são inaplicáveis as regras do Código de Processo Civil, nomeadamente artigos 144º e 145º» [actuais artigos 139º e 140º].