Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
823/12.8PBGMR.G1
Relator: PAULA ROBERTO
Descritores: REPARAÇÃO DE ACTOS IRREGULARES
FASE DE INQUÉRITO
MINISTÉRIO PÚBLICO
COMPETÊNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/05/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO PROCEDENTE
Sumário: I) O Ministério Público goza de independência e autonomia que não se compadecem com ordens concretas de um juiz no sentido do suprimento de uma determinada irregularidade por parte daquele.
II) Daí que por falta de fundamento legal, não pode o juiz determinar a devolução dos autos ao Ministério Público para sanação de irregularidade concretizada numa notificação ao arguido de uma incorrecta identificação do defensor que lhe foi nomeado.
Decisão Texto Integral: Acordam Relatora – Paula Maria Roberto

Adjunto – Fernando Pina, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:
I – Relatório
O Ministério Público deduziu acusação em processo comum e perante tribunal singular, contra José L. e Joaquim V, imputando-lhes a prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada e, ao segundo, ainda, a prática de um crime de detenção de arma proibida.
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Os autos foram remetidos à distribuição e, após, foi proferido o despacho de fls. 159 e 160, que julgou verificada uma irregularidade processual e determinou a remessa do processo ao Ministério Público, com vista ao seu suprimento, dando-se a competente baixa na distribuição.
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O Ministério Público, notificado desta decisão, veio interpor o presente recurso que concluiu da forma seguinte:

Após remessa dos autos para a fase de instrução, o Tribunal a quo:
- conheceu e declarou a irregularidade do arguido Joaquim V não ter sido notificado da correcta identificação do Defensor que lhe foi nomeado (fls. 136);
- e, em consequência, determinou “a remessa do processo ao Ministério Público, com vista ao seu suprimento (…)”.

Independentemente da perspectiva que se tenha sobre a referida irregularidade e sem prejuízo da soberania do Tribunal a quo em conhecer irregularidades cometidas no inquérito e decidir sobre as respectivas consequências, sindicando dessa forma a actividade do Ministério Público, o Tribunal a quo não poderia ter determinado que a reparação da eventual irregularidade fosse feita em sede de inquérito, pelo Ministério Público, por imposições de ordem legal, constitucional e de racionalidade de meios e de celeridade processual:

- o art.º 123º/2 do Código de Processo Penal impõe que a entidade que toma conhecimento da irregularidade seja a mesma que providencia pela respectiva reparação, ao reunir a prática dos dois actos num único “momento”;

- a remessa dos autos encerra uma ordem muito concreta dirigida ao Ministério Público, para que conforme o inquérito de determinada forma (notificando o arguido da identidade do Defensor que lhe foi nomeado), em violação da autonomia do Ministério Público, consagrada no art.º 219º/2 da Constituição da República Portuguesa;

- e, se o Tribunal a quo, à imagem do que sucede no art.º 336º/2 do Código de Processo Penal, tivesse ordenado a reparação da eventual irregularidade pela respectiva secretaria, esta seria reparada de forma imediata, com grandes benefícios para a celeridade processual e sem provocar o inútil trânsito de processos entre secretarias e Magistrados.
Termos em que se Roga o provimento do recurso e a substituição do despacho recorrido por despacho que ordene à secretaria judicial a realização dos actos que se reputem por necessários para a reparação de eventuais irregularidades conhecidas pelo Tribunal a quo.”
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O arguido José L. apresentou resposta a este recurso nos seguintes termos:
“ -1.º-
O arguido vem manifestar a sua plena concordância com o recurso ora apresentado pelo Ministério Público,
-2.º-
Tal irregularidade, a existir, deveria ter sido suprimida na respectiva secretaria,
-3.º-
Uma vez que, tem de se ter em conta a celeridade processual.”
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A Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu o douto parecer de fls. 190 e segs., no sentido da procedência do recurso.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do C.P.P..
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Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência, cumprindo, agora, apreciar e decidir.
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II – Fundamentação
a) Matéria de facto com interesse:
A constante do relatório supra.
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b) - Discussão
De acordo com a jurisprudência fixada pelo acórdão do plenário das secções do STJ de 19/10/1995 (DR série I-A de 28/1271995) e conforme resulta do n.º 1, do artigo 412.º, do CPP, bem como, entre outros, do acórdão do STJ de 27/05/2010, disponível em www.dgsi.pt, o âmbito do recurso é delimitado pelas suas conclusões, com exceção das questões de conhecimento oficioso (artigo 410.º, do CPP).
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Cumpre, então, apreciar a questão suscitada pelo recorrente, qual seja:
Se o tribunal a quo não pode determinar a remessa dos autos ao Ministério Público com vista à reparação de uma irregularidade cometida na fase de inquérito.
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Como já referimos, o recorrente alega que o tribunal a quo não poderia ter determinado que a reparação da eventual irregularidade fosse feita em sede de inquérito pelo Ministério Público, por imposições de ordem legal, constitucional e de racionalidade de meios e de celeridade processual; o artigo 132.º, n.º 2, do CPP impõe que a entidade que toma conhecimento da irregularidade seja a mesma que providencia pela respetiva reparação; a remessa dos autos e ncerra uma ordem concreta dirigida ao Ministério Público, em violação da utonomia do Ministério Público, consagrada no artigo 219.º, n.º 2, da CRP e se o tribunal a quo tivesse ordenado a reparação da eventual irregularidade pela respetiva secretaria, esta seria reparada de forma imediata, com grandes benefícios para a celeridade processual e sem provocar o inútil trânsito de processos entre secretarias e magistrados.
Consta do despacho recorrido o seguinte:
Questão Prévia:
Compulsados os autos constata-se que a acusação pública proferida pelo Digno Magistrado do Ministério Público, constante de fls. 113 e ss., foi notificada ao arguido Joaquim V, com a indicação da identificação do defensor que lhe havia sido nomeado. – cfr. fls. 131.
Ora, dispõe o art.º 64.º n.º 3 do CPP que se o arguido não tiver advogado constituído nem defensor nomeado, é obrigatória a nomeação de defensor quando contra ele for deduzida a acusação, devendo a identificação do defensor constar do despacho de encerramento do inquérito.
Sucede que o defensor identificado em tal notificação não é o que efectivamente lhe veio a ser nomeado nos autos. Veja-se que a fls. 136 consta a nomeação do ilustre defensor Guilherme A., quando na notificação do despacho de acusação é indicado ao arguido como lhe tendo sido nomeado a ilustre defensora Ana Araújo e Silva.
Acresce que, em momento posterior à notificação do despacho de acusação, não foi enviada ao arguido qualquer outra notificação com a indicação de eventual substituição do defensor.
Por outro lado, estabelece-se no artigo 123º do CPP que qualquer irregularidade do processo determina a invalidade do ato a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio ato ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado (n.º 1); pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do ato praticado (n.º 2).
A omissão e/ou erro da notificação do despacho de acusação ao arguido constitui uma irregularidade, nos termos do disposto no artigo 123º do CPP, susceptível de afectar o valor dos actos praticados em momento subsequente, na medida em poderá privá-lo, designadamente, de deduzir em tempo oportuno requerimento de abertura de instrução ou qualquer outra reacção legal prevista.
Nestes termos, julgo verificada a apontada irregularidade processual e, em consequência, determino a remessa do processo ao Ministério Público, com vista ao seu suprimento, dando-se a competente baixa na distribuição.” fim de citação.
Apreciando:
Antes de mais, cumpre dizer, que não é objeto do presente recurso saber se existiu ou não uma irregularidade aquando da notificação da acusação ao arguido mas tão só se o juiz do julgamento pode determinar ao Ministério Público a prática de um ato que devia ter tido lugar na fase de inquérito.
No CPP estão previstas, além do mais, a fase do inquérito da competência do Ministério Público (artigo 264.º) e a fase do julgamento, presidida pelo juiz (artigo 311.º e segs.).
Por outro lado, o processo criminal tem estrutura acusatória (n.º 5, do artigo 32.º, da CRP) e <<o Ministério Público goza de estatuto próprio e de autonomia, nos termos da lei>> - n.º 2, do artigo 219.º, da CRP.
E, conforme resulta do n.º 2, do artigo 123.º, do CPP <<pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do acto praticado>>.
Extrai-se deste normativo que o tribunal a quo pode oficiosamente ordenar a reparação de uma irregularidade, no momento em que dela tomou conhecimento, ou seja, pode por sua iniciativa ordenar aquela reparação mas através dos seus próprios serviços, da secção judicial.
Na verdade, pese embora a notificação que o tribunal a quo entendeu estar em falta devesse ter sido efetuada com a acusação e, por isso, na fase de inquérito, tendo os autos sido distribuídos para julgamento e, desde logo, por razões de celeridade e de economia processual, tal notificação deve ser feita pela respetiva secção judicial.
Acresce que, a determinação da remessa do processo ao Ministério Púbico constante do despacho recorrido consubstancia uma ordem com vista ao suprimento da irregularidade, ou seja, à notificação em falta, que afronta os princípios do acusatório e da independência e autonomia do Ministério Público.
O Ministério Público goza de independência e autonomia que não se compadecem com ordens concretas de um juiz no sentido do suprimento de uma determinada irregularidade por parte daquele.
Face àquela autonomia, <<não tem fundamento legal qualquer “ordem”, nomeadamente do juiz de instrução, para ser cumprida no âmbito do inquérito por quem não deve obediência institucional nem hierárquica a tal injunção” – (cfr. acórdão do STJ de 27/04/2006, disponível em www.dgsi.pt).
Conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque Comentário do CPP, 4.ª edição, 2011, Universidade Católica Editora, págs. 816 e 817., “contudo, pelos motivos já expostos, atinentes ao princípio da acusação, o juiz de julgamento não pode censurar o modo como tenha sido realizado o inquérito e devolver o processo ao MP (…) para reparar nulidades ou irregularidades praticadas no inquérito (…)”.
Em suma, <<o Juiz (de instrução ou de julgamento) não pode determinar a devolução dos autos ao Ministério Público para que seja sanada a irregularidade concretizada na falta de notificação da acusação ao arguido, visto que tal decisão afronta os princípios do acusatório e da independência e autonomia do Ministério Público>> - acórdão da RL, de 26/02/2013, disponível em www.dgsi.pt.
No mesmo sentido, cfr. os acórdãos da RC, de 23/10/2013; da RL, de 21/11/2013; da RP, de 04/06/2014 e da RG, de 11/01/2016, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Procedem, assim, as conclusões do recorrente.
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Assim sendo, procedendo as conclusões do recorrente, impõe-se a revogação da decisão recorrida em conformidade.
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V – DECISÃO
Nestes termos, sem outras considerações, acorda-se, em conferência, na procedência do recurso, em revogar a decisão recorrida na parte em que determinou a remessa do processo ao Ministério Público, com vista ao suprimento, dando-se a competente baixa na distribuição e que deve ser substituído por outro que ordene aos próprios serviços a reparação da irregularidade julgada verificada. *
Sem custas.
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* Guimarães, 2016/12/05