Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2636/12.8TBVCT-A.G1
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: PROVA PERICIAL
SEGUNDA PERÍCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/12/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: a) Se na justificação apresentada para o pedido de uma segunda perícia médico-legal se refere que no relatório pericial não foram sequer equacionados alguns dos códigos da TNI, os quais foram atendidos num relatório médico junto ao processo, não pode dizer-se que a justificação dessa divergência seja impertinente, desnecessária ou irrelevante.
b) Uma tal justificação integra o conceito de “fundadas razões de discordância” (art. 487º nº 1 do CPC) para a realização da segunda perícia.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I - HISTÓRICO DO PROCESSO
1. Em ação que corre termos, instaurada por B. contra C., COMPANHIA DE SEGUROS, SA, FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL, D. e outros, a Autora requereu prova pericial consubstanciada em exame médico-legal.
A perícia foi realizada.
Notificadas as partes do relatório pericial, a Autora requereu segunda perícia, o que a M.mª Juíza indeferiu nos seguintes termos: «A mera discordância do relatório da perícia colegial (na qual participou perito nomeado pela A. e foi realizado em organismo legalmente competente para o efeito) com base em relatório / opinião médico particular não se mostra suficiente para fundamentar uma segunda perícia, motivo por que se indefere à mesma.».

2. Inconformada, vem a Autora apelar para este Tribunal da Relação, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
«1.º - O requerimento apresentado pela Apelante para a realização da 2.ª perícia encontra-se minimamente fundamentado e justificado, em obediência ao disposto no art. 487º, n.º1, do Cod. Proc. Civil;
2.ª – Preenchem os requisitos da sua fundamentação, a alegação da disparidade entre o Relatório Médico junto à P.I., que atribui à Recorrente uma I.P.P. de 37 pontos, e o Relatório Médico ora notificado, que atribui à Recorrente uma I.P.P. de apenas 26 pontos, remetendo os seus fundamentos para o conteúdo de ambos os documentos;
3.º - Tanto mais que a ora Recorrente alegou que continua nesta data a sentir as mesmas sequelas que a afectavam aquando da realização do exame médico cujo Relatório juntou à P.I.;
4.º - Ao indeferir o requerimento para a realização da 2.ª perícia requerida pela Apelante, a M.ma Juiz “a quo” violou a letra e o espírito do art.487º, n.º1, do Código de Processo Civil, tal como contrariou Jurisprudência deste Venerando Tribunal, designadamente o douto acórdão de 20.05.2010, in C.J., 2010, Tomo 3, pag.281, e ainda o douto acórdão de 20.05.2010, in C.J., 2010, Tomo 3, pag.281, bem como no Acórdão de 13.09.2011, proferido no processo n.º 1240/10.0 TBVCT-A.G1, que correu termos na 2ª Secção Cível, desta Relação, o mesmo ocorrendo no douto Acórdão igualmente desta Relação, de 22.06.2010, proferido no processo n.º 1282/06.0TBVCT–A.G1.: acessíveis em www.dgsi.pt
5.º - Deve, por isso, o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que autorize a realização da 2.ª perícia, nos termos requeridos.
Assim decidindo, Senhores Juízes Desembargadores, farão Vossas Excelências a devida JUSTIÇA».

3. Não houve contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO
4. O MÉRITO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art. 639º nº 1, 635º nº 3 e 4, art. 608º nº 2, ex vi do art. 663º nº 2, do Código de Processo Civil (CPC).
QUESTÃO A DECIDIR: deve ser deferida a realização de segunda perícia?

4.1. REALIZAÇÃO DE 2ª PERÍCIA
Dado que o juiz julga secundum allegata et probata, sobre as partes recai o ónus de demonstrar a realidade dos factos que alegaram: art. 341º e 342º do Código Civil (CC).
O direito à prova é um dos corolários do direito à tutela jurisdicional efetiva, de consagração constitucional: art. 20º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
No despacho de admissão dos meios de prova não pode o juiz rejeitar um qualquer dos meios indicados pelas partes, com base na convicção pré-formada da sua relevância/eficácia para prova de determinado facto em concreto.
Porém, já se lhe impõe um escrutínio sobre as regras procedimentais em que a prova deve ser indicada, admitida e realizada.
No que toca à realização de 2ª perícia, prescreve o art. 487º nº 1 do CPC que ela pode ser pedida por qualquer das partes, “no prazo de 10 dias a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado”.
Ou seja, compete apenas à parte que indique as razões da sua discordância quanto ao resultado da primeira perícia.
Em resumo, foi a seguinte a justificação apresentada: o relatório pericial atribuiu à Autora uma IPP de 26%, tendo para tanto atendido a determinados códigos da Tabela Nacional de Incapacidades (TNI); a Autora havia já juntado ao processo um relatório médico, que concluía por uma desvalorização de 37%, no qual se valorizaram outros códigos dessa TNI; a Autora continua a sentir as mesmas sequelas que sentia aquando da realização do relatório médico que juntou.
E, como é entendimento jurisprudencial:
«III. A expressão adverbial "fundadamente", significa precisamente que as razões da dissonância tenham que ser claramente explicitadas, não bastando a apresentação de um simples requerimento de segunda perícia.
IV. Trata-se, no fundo, de substanciar o requerimento com fundamentos sérios, que não uma solicitação de diligência com fins dilatórios ou de mera chicana processual. E isto porque a segunda perícia se destina, muito lógica e naturalmente, a corrigir ou suprir eventuais inexactidões ou deficiências de avaliação dos resultados a que chegou a primeira.» (1)
«II - Saber se os fundamentos e razões invocados têm razão de ser, é assunto que só depois da realização da nova perícia se pode colocar.» (2)
Também a doutrina considera que o que está em causa na segunda perícia é o suprimento de «eventual inexactidão (ou deficiência) das percepções dos peritos ou das conclusões, baseadas nos seus conhecimentos especializados, mas também de obter uma apreciação ou justificação diferente da emitida pelos intervenientes na perícia anterior». (3)
Ora, a justificação apresentada está longe de ser bacoca pois uma leitura atenta dela mostra que no relatório pericial não foram sequer equacionados alguns dos códigos que o foram no relatório médico, pelo que, ou a Autora já se encontra curada dessas sequelas, ou é necessário justificar a divergência.
Sendo o relatório pericial e o relatório médico, ambos sujeitos ao princípio da livre apreciação, é de atentar que a parte não sabe qual o valor probatório que vai ser atribuído a cada um deles (4)
Sendo a “descoberta da verdade” e a “justa composição do litígio” os fins últimos do processo, perante uma situação de dúvida relativamente a uma questão fulcral a esse litígio, o valor da celeridade processual deve ceder e realizarem-se antes os meios probatórios que permitam colmatar todas as dúvidas possíveis.
Por isso, sendo a avaliação médico legal matéria de especial complexidade, e atenta a divergência encontrada, faz todo o sentido a realização de uma segunda perícia que possa contribuir para um melhor esclarecimento da divergência.
Nessa medida, é de considerar que a justificação apresentada integra o conceito de “fundadas razões de discordância” e, pour cause, que a Autora cumpriu o ónus que lhe impunha o art. 487º nº 1 do CPC.
A ser assim, o indeferimento da 2ª perícia (meio de prova) só poderia justificar-se em nome do princípio da economia processual e da proibição da prática de atos inúteis (art. 130º CPC), bem como do dever de gestão processual (art. 6º CPC).
«III - Não cabe ao Tribunal aprofundar o bem (ou mal) fundado da argumentação apresentada, embora já possa indeferir o requerimento com fundamento no carácter impertinente ou dilatório da segunda perícia.» (5)

5. SUMARIANDO (art. 663º nº 7 do CPC)
a) Se na justificação apresentada para o pedido de uma segunda perícia médico-legal se refere que no relatório pericial não foram sequer equacionados alguns dos códigos da TNI, os quais foram atendidos num relatório médico junto ao processo, não pode dizer-se que a justificação dessa divergência seja impertinente, desnecessária ou irrelevante.
b) Uma tal justificação integra o conceito de “fundadas razões de discordância” (art. 487º nº 1 do CPC) para a realização da segunda perícia.

III. DECISÃO
6. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação de Guimarães em julgar procedente a apelação, pelo que se revoga a decisão recorrida, ordenando-se a realização de segunda perícia, nos termos do art. 488º do CPC, com o objetivo de esclarecer se são ou não de atender os códigos da TNI referidos no relatório médico e que não foram atendidos no relatório médico-legal.
Custas pela parte vencida a final.
Guimarães, 12.07.2016

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(Relatora, Isabel Silva)

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(1ª Adjunto, Heitor Gonçalves)

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(2º Adjunto, Amílcar Andrade)
(1) Acórdão do STJ, de 25.11.2004 (processo 04B3648, Relator Ferreira de Almeida), disponível em www.gde.mj.pt, sítio a considerar nos demais arestos citados sem outra menção de origem.
(2) Acórdão da Relação de Guimarães, de 06-02-2014 (processo 2847/05.2TBFAF-A.G1, Relatora Conceição Bucho.
(3) Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 2ª. edição, revista, 1985, Coimbra Editora, pág. 598/599.
(4) A experiência decorrente do exercício das profissões jurídicas diz-nos que, por norma, é atribuído maior valor a um relatório subscrito por 3 peritos do que ao de um, médico, indicado pela parte interessada.
(5) Acórdão da Relação do Porto, de 10-07-2013 (processo 1357/12.6TBMAI-A.P1, Relator Fonte Ramos).