Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
125/11.7TTVRL.G1
Relator: ALDA MARTINS
Descritores: PROCESSO DE ACIDENTE DE TRABALHO
EFICÁCIA DA DECISÃO PENAL ABSOLUTÓRIA
CRIME DE INFRACÇÃO DAS REGRAS DE CONSTRUÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/16/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO DO AUTOR PROCEDENTE
APELAÇÃO DA RÉ EMPREGADORA IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I – Existe sempre uma “presunção de inexistência dos factos” contra quem, nos termos gerais, tem o ónus de os provar.

II – Assim, a decisão penal absolutória só tem algum relevo em posterior acção cível, nos termos do art. 624.º do Código de Processo Civil, se tiver assentado na prova de factos que, na acção cível, tivessem de ser provados pelo réu, caso em que o ónus se inverteria em desfavor do autor, sendo inócua relativamente a factos que, por integrarem o direito do autor, este sempre tinha de provar.

III – Em processo de acidente de trabalho, é irrelevante a decisão penal que absolveu o arguido da prática do crime de infracção das regras de construção, p. e p. pelo art. 277.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, porque, de qualquer modo, é ao sinistrado e ou à seguradora que compete a prova dos factos que fundamentam a responsabilidade agravada do empregador por violação de regras de segurança no trabalho.
Decisão Texto Integral:
1. Relatório

Nos presentes autos de acção especial emergente de acidente de trabalho que F. M., com o patrocínio oficioso do Ministério Público, move a COMPANHIA DE SEGUROS A, S.A. e EMPRESA A - CONSERVAÇÃO DE ESTRADAS, LDA., foi proferida sentença, que terminou com o seguinte dispositivo:
«Tudo visto e ponderado, decide-se, julgar parcialmente procedente, por provada, a presente acção especial emergente de acidente de trabalho, declarando-se que o autor F. M. sofreu um acidente um acidente de trabalho, por via do qual ficou afectado de uma I.P.P. de 18,309%, a partir de 19/03/2011 e, em consequência:

1. - Condena-se a co-ré “EMPRESA A - Conservação de Estradas, Lda.”, a título principal, a pagar ao autor:
a) o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de €2.172,68 (dois mil cento e setenta e dois euros e sessenta e oito cêntimos), nos termos do disposto nos artigos 18º, nº. 4, alínea c), 48º, nº. 3, alínea c) e 75º , nº. 1, da LAT, aprovada pela Lei nº. 98/2009, de 4/09;
b) a quantia de €2.271,81 (dois mil duzentos e setenta e um euros e oitenta e um cêntimos), a título de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária absoluta e parcial, entre o acidente e a alta;
c) a quantia de €300,00 (trezentos euros), a título de transportes e deslocações obrigatórias;
d) juros de mora sobre o capital de remição e indemnização por It,s., à taxa legal, calculados, em relação ao capital de remição, desde o dia seguinte à alta e até à data da efectiva entrega ao sinistrado do correspondente capital de remição e, em relação à indemnização por IT´s, a partir do dia seguinte ao do acidente, nos termos dos arts. 50º, nºs. 1 e 2 da Lei nº 98/2009, de 4/09 e 135º do Código de Processo do Trabalho.
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2- Condena-se a co-ré “Companhia de Seguros A, S.A.”, a título subsidiário, a pagar ao autor:
a) - o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de €1.520,88 (mil quinhentos e vinte euros e oitenta e oito cêntimos), nos termos do disposto nos artigos 48º nº. 3, alínea c) e 75º , nº. 1 e 79, nº. 3, da LAT, aprovada pela Lei nº. 98/2009, de 4/09;
b) a quantia de €300,00 (trezentos euros), a título de transportes e deslocações obrigatórias;
c) juros de mora sobre o capital de remição, à taxa legal, calculados, desde o dia seguinte à alta e até à data da efectiva entrega ao sinistrado do correspondente capital de remição, nos termos dos arts. 50º, nº 2 da Lei nº 98/2009, de 4/09 e 135º do Código de Processo do Trabalho.
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3. Declararam-se as supra pensões obrigatoriamente remíveis – cfr. art. 75º, nº. 1 da Lei nº 98/2009, de 4/09.
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Custas pela co-ré empregadora ou, subsidiariamente, pela co-ré seguradora.
Fixa-se à causa o valor de € 30.720,55. – cfr. art. 120º, nº. 1 do Cod. Proc. Trabalho.
Registe e notifique.
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Transitada, proceda ao cálculo e entrega do Capital de Remição, devendo ter-se em contra as quantias já pagas pela ré/seguradora a título de pensão provisória –cfr. ponto 27 dos factos provados.»
A ré empregadora, inconformada, veio interpor recurso da sentença, formulando conclusões em que:
- sustenta que o tribunal a quo devia ter julgado verificada a excepção do caso julgado, abstendo-se de conhecer da questão da violação de regras de segurança no trabalho pela Recorrente (conclusões 4.ª a 42.ª);
- impugna a decisão da matéria de facto proferida pelo tribunal recorrido na parte em que considerou provada a factualidade constante dos n.ºs 23, 24 e 25 (conclusões 43.ª a 85.ª).
Também o autor veio interpor recurso, formulando conclusões em que sustenta que, sendo a ré seguradora responsável pelas consequências do acidente nos termos do art. 79.º, n.º 3 da LAT, deveria ter sido condenada a título principal e não a título subsidiário.
A seguradora e o sinistrado apresentaram respostas ao recurso da empregadora, pugnando pela sua improcedência.
Não foram apresentadas respostas ao recurso do sinistrado.
Os recursos foram admitidos como apelação, com efeito meramente devolutivo.
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, e colhidos os vistos, cumpre decidir.

2. Objecto do recurso

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, as questões que se colocam a este Tribunal são as seguintes:
1.º - Recurso da ré empregadora:
- verificação da excepção de caso julgado;
- alteração da decisão sobre a matéria de facto.
2.º - Recurso do sinistrado:
- se a responsabilidade da seguradora é a título principal ou subsidiário.

3. Fundamentação de facto

Os factos dados como provados são os seguintes:

1. A co-ré “Empresa A - Conservação de Estradas, Lda.” dedica-se à construção civil e obras públicas.
2. No exercício dessa actividade, contratou o aqui autor para trabalhar sob as suas ordens, direcção e fiscalização, como operador de máquinas, auferindo o salário mensal de € 750,00 x 14 meses + € 5,13 x 242 + € 125,30 de outras remunerações, perfazendo a retribuição anual de € 11.866,76.
3. Cumprindo o horário de 2.ª a 6.ª feira, das 08h00 às 12h00 e das 13h00 às 17h00 horas e para prestar serviço em qualquer lugar onde a ré tivesse obras em execução.
4. No dia 07/07/2010, pelas 17h00 horas, em Valpaços, local onde a co-ré, entidade empregadora, executava uma obra para instalação de saneamento básico, o autor foi vítima de um acidente.
5. Pelos períodos de incapacidade temporária absoluta e parcial o autor foi indemnizado pela co-ré/seguradora no valor de € 5.157,10, não tendo recebido qualquer montante por parte da co-ré/empregadora.
6. O autor despendeu € 300,00, em despesas de transporte com as deslocações obrigatórias ao Tribunal e audiências de julgamento de 11/12/20112, 7/3/2012, 12/10/2016 e exame por Junta Médica de 10/07/2012.
7. A co-ré empregadora havia transferido a sua responsabilidade infortunística para a co-ré seguradora, mediante contrato titulado pela apólice n.º 5809895, pelo salário de € 750,00 x 14 meses + € 5,13 x 242 dias + € 125,30 de outras remunerações, perfazendo a retribuição anual de € 11.866,76.
8. A Autoridade Para as Condições de Trabalho (ACT) levou a cabo processo de inquérito ao acidente dos autos, o qual deu origem ao processo de contra-ordenação n.º …, o qual foi impugnado pela co-ré/empregadora.
9. Por decisão proferida em 20/11/2012 no referido processo de contra-ordenação, que correu termos neste Tribunal sob o n.º 570/11.8TTVRL, já transitada em julgado, foi a aqui co-ré empregadora condenada na coima de € 4.000,00 pela prática da infracção prevista e punida pelos arts. 66.º e 67.º do Regulamento de Segurança no Trabalho e Construção Civil, aprovado pelo Decreto-lei n.º 41821, de 11/08/1958, e art. 15.º da Lei n.º 102/2009, de 10 de Agosto.
10. No processo comum singular n.º 192/10.0GAVLP, que correu termos na Instância Central Local – Secção de Competência Genérica – J1, comarca de Vila Real, por sentença de 27/01/2016, já transitada em julgado, foi o ali arguido P. P. absolvido da prática do crime de infracção das regras de construção, p. e p. pelo art. 277.º, n.º.1, alínea a) do Código Penal, em conjugação com os arts. 22.º do Decreto-Lei n.º 273/2003, de 29 de Outubro, 13.º da Portaria n.º 101/96, de 3 de Abril, 66.º a 72.º e 79.º do Regulamento de Segurança no Trabalho e Construção Civil – Decreto n.º 41821, de 11 de Agosto de 1958, bem como do pedido civil contra si formulado naqueles autos.
11. O acidente em apreço ocorreu quando o autor, que se encontrava no interior de uma vala, colocava anéis (argolas) de betão pré-fabricados e ficou com a mão esquerda entalada entre as argolas.
12. Em consequência desse acidente o autor sofreu traumatismo nos dedos da mão esquerda, esfacelo de D3 e D3 da mão esquerda, com fractura exposta de F1 dos 2.º, 3.º e 4.º dedos.
13. Estes ferimentos resultantes do acidente determinaram, directa e necessariamente, doença com ITA de 08/07/2010 a 03/02/2011, num total de 216 dias, ITP a 30% de 04/02/2011 a 10/03/2011, ou seja, 35 dias, e ITP a 25% de 11/03/2011 a 18/03/2011, ou seja, 8 dias.
14. O autor teve alta clínica em 18/03/2011.
15. Em consequência das lesões sofridas ficou o autor portador de sequelas, traduzidas em rigidez das MF e IF dos 2.º, 3.º e 4.º dedos, equivalente a uma IPP de 18,309%.
16. O autor, na altura do acidente, executava trabalhos para instalação de saneamento básico, tendo a vala aberta uma altura aproximada de 5 metros e uma largura de 3 metros.
17. O autor e outro dos trabalhadores ao serviço da co-ré empregadora encontravam-se dentro dessa vala, para executar as juntas nos anéis (argolas) pré-esforçadas para construção das caixas de saneamento.
18. Dentro da vala o sinistrado estava posicionado entre a caixa e o talude da vala.
19. Um trabalhador da empresa “Empresa X, Lda.”, manobrando uma máquina giratória, continuava a abrir essa mesma vala, colocando as terras lateralmente, enquanto em simultâneo o autor e o seu colega estavam dentro da vala executando as tarefas referidas em 17.
20. A co-ré empregadora permitiu a permanência do autor/sinistrado dentro de um raio da acção da máquina retroescavadora, enquanto esta se encontrava em funcionamento.
21. Como a vala não tinha qualquer entivação, designadamente através da colocação de pranchas ou de travejamento horizontal ou vertical, as terras desprenderam-se e caíram por cima dos trabalhadores, um dos quais o autor, deixando-os soterrados.
22. Na sequência desse desprendimento de terras, o autor ficou as mãos entaladas entre as argolas.
23. A co-ré empregadora não tinha nos seus quadros e no local do acidente qualquer responsável pela segurança dos seus trabalhadores.
24. Não foi elaborado qualquer plano de segurança e saúde que contemplasse o risco de soterramento.
25. A co-ré empregadora não coordenou o controlo da correcta aplicação dos métodos de trabalho, nem por qualquer forma pôs em prática qualquer plano de segurança que contemplasse o risco de soterramento.
26. Antes do início da obra, a ré empregadora deu informação e formação aos seus trabalhadores para este tipo de trabalhos, através da empresa “Empresa X”.
27. A co-ré seguradora encontra-se a pagar ao autor pensão provisória, calculada com base numa IPP de 18,309%, tendo liquidado até 31/10/2016 a quantia de € 8.538,36.

4. Apreciação do recurso

4.1. A Apelante empregadora sustenta que o tribunal a quo devia ter julgado verificada a excepção do caso julgado, abstendo-se de conhecer da questão da violação de regras de segurança no trabalho pela Recorrente (conclusões 4.ª a 42.ª).
A excepção de caso julgado é dilatória, obstando ao conhecimento do mérito da causa (ou de parte dela), e é de conhecimento oficioso, conforme decorre dos arts. 576.º, n.º 2, 577.º, al. i) e 578.º do Código de Processo Civil.
Vejamos, então, se ocorre tal excepção dilatória no caso em apreço.
Nos termos do art. 580.º do mencionado diploma legal, a excepção do caso julgado pressupõe a repetição de uma causa decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, tendo por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.
Acrescenta o art. 581.º que se repete a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, havendo identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico e identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico.
Ora, resulta dos autos que no processo comum singular n.º 192/10.0GAVLP, que correu termos na Instância Central Local – Secção de Competência Genérica – J1, comarca de Vila Real, por sentença de 27/01/2016, já transitada em julgado, foi o ali arguido P. P. absolvido da prática do crime de infracção das regras de construção, p. e p. pelo art. 277.º, n.º.1, alínea a) do Código Penal, em conjugação com os arts. 22.º do Decreto-Lei n.º 273/2003, de 29 de Outubro, 13.º da Portaria n.º 101/96, de 3 de Abril, 66.º a 72.º e 79.º do Regulamento de Segurança no Trabalho e Construção Civil – Decreto n.º 41821, de 11 de Agosto de 1958, bem como do pedido civil contra si formulado naqueles autos.
Tenha-se em conta que o art. 277.º, n.º 1, al. a) do Código Penal dispõe que quem, no âmbito da sua actividade profissional, infringir regras legais, regulamentares ou técnicas que devam ser observadas no planeamento, direcção ou execução de construção, demolição ou instalação, ou na sua modificação ou conservação, e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão de um a oito anos.
Como é bom de ver, em termos singelos, o processo identificado teve por objecto a apreciação da responsabilidade criminal do referido P. P. e ainda da sua responsabilidade civil perante, além do mais, o ora autor F. M., fundadas na alegada violação pelo mesmo de normas reguladoras da sua actividade profissional de engenheiro civil responsável pela obra.
A presente acção, por seu turno, no que interessa e também em termos singelos, tem por objecto a apreciação da responsabilidade agravada pela violação de regras de segurança da ora ré, na qualidade de empregadora, pelas consequências do acidente de trabalho sofrido pelo seu trabalhador e ora autor F. M..
Assim, é por demais evidente que inexiste identidade de sujeitos (numa acção o demandante é um mero lesado – que por coincidência era trabalhador na obra – e o demandado é o engenheiro civil responsável pela obra, na outra acção o demandante é o trabalhador e a demandada é a empregadora), nem identidade de pedidos (numa acção está em causa uma indemnização nos termos gerais da responsabilidade civil, na outra acção estão em causa prestações em dinheiro e ou em espécie nos termos da responsabilidade por acidente de trabalho), nem identidade de causas de pedir (numa acção o pedido emerge da verificação de acto ilícito e culposo praticado no exercício da profissão, na outra acção o pedido emerge da verificação de acidente de trabalho).
Assim, sem necessidade de mais considerações, julga-se improcedente a invocada excepção dilatória do caso julgado.
4.2. A ré empregadora também impugna a decisão da matéria de facto proferida pelo tribunal recorrido na parte em que considerou provada a factualidade constante dos n.ºs 23, 24 e 25 (conclusões 43.ª a 85.ª).
Estabelece o art. 662.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe «Modificabilidade da decisão de facto» no seu n.º 1, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Por sua vez, o art. 640.º, que rege sobre os ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, dispõe do seguinte modo:

1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.
Retornando ao caso dos autos, constata-se que a Apelante pretende que sejam dados como não provados os seguintes factos:
23. A co-ré empregadora não tinha nos seus quadros e no local do acidente qualquer responsável pela segurança dos seus trabalhadores.
24. Não foi elaborado qualquer plano de segurança e saúde que contemplasse o risco de soterramento.
25. A co-ré empregadora não coordenou o controlo da correcta aplicação dos métodos de trabalho, nem por qualquer forma pôs em prática qualquer plano de segurança que contemplasse o risco de soterramento.
Em primeiro lugar, não procede o argumento de que, tendo-se dado como provado sob o n.º 26 que, antes do início da obra, a ré empregadora deu informação e formação aos seus trabalhadores para este tipo de trabalhos, através da “Empresa X”, aqueles factos deveriam ser dados como não provados, sob pena de contradição, uma vez que é manifesto que tal não ocorre. A formação dada aos trabalhadores não dispensava a empregadora de observar os demais deveres em matéria de segurança no trabalho, designadamente os ali aludidos.
Em segundo lugar, são inatendíveis os depoimentos invocados pela Apelante para fundamentar a sua pretensão – de P. P., L. M., A. S., E. M. , A. C. – pois os mesmos não foram devidamente concretizados em termos de indicação das passagens da gravação relevantes.
A Recorrente não procede à análise crítica de cada um dos pontos em apreço, com referência a cada um dos meios de prova invocados, designadamente, não especifica com exactidão as passagens da gravação, e nem sequer de eventual transcrição, em que se funda para sustentar a sua pretensão relativamente a cada um dos factos constantes daqueles pontos, de modo a facultar ao tribunal de recurso a imediação possível na avaliação dos meios de prova especificados, nos segmentos considerados determinantes para imporem decisão diversa sobre cada um dos mesmos.
Improcede, pois, a pretensão da Recorrente com base na reapreciação dos depoimentos prestados, por incumprimento dos ónus legais acima enunciados.
A Apelante fundamenta igualmente a sua pretensão na prova feita no processo-crime acima identificado.
Estabelece o art. 624.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe «Eficácia da decisão penal absolutória», que a decisão penal, transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui, em quaisquer acções de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário (n.º 1), presunção essa que prevalece sobre quaisquer presunções de culpa estabelecidas na lei civil (n.º 2).
Está em causa uma norma que confere valor probatório legal extraprocessual à decisão penal absolutória, como sucede na norma que a precede com a decisão penal condenatória, mas, em ambos os casos, nos estritos termos aí estipulados.
Ora, como referem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre sobre o preceito em apreço(1), “[n]uma primeira leitura (…) dir-se-ia que, tal como acontece com a sentença condenatória (art. 623), a decisão penal absolutória constitui sempre uma presunção legal quanto aos factos que nela tenham sido dados como inexistentes ou não praticados pelo arguido, invertendo o ónus da prova, agora também entre as partes.
Essa leitura seria absurda. Na generalidade dos casos, a prova da inexistência dum facto não altera a distribuição do ónus da prova: não provado o facto em processo penal (…) não se constitui a presunção do art. 623 e o autor da acção civil continua onerado, tal como se não tivesse havido sentença penal, com a prova dos factos constitutivos do seu direito. (…) Pode, porém, a absolvição basear-se na prova de factos impeditivos do efeito dos factos constitutivos que, de outro modo, levariam à condenação. Passa então a caber ao autor da acção civil o ónus de provar o contrário. (…) Não se trata, pois, da presunção da inexistência dum facto (como, com menos rigor, se lê no preceito), mas da presunção da ocorrência do seu contrário. Por outro lado, a previsão do artigo em anotação não é integrada pela absolvição no processo penal por falta de prova dos factos imputados ao arguido, mas pela absolvição pela prova (positiva) de factos de que, na acção civil, ele teria, de outro modo, o ónus.”
Posto isto, e retornando ao caso dos autos, temos que o facto de no processo-crime acima indicado ter sido proferida decisão diversa relativamente aos factos que foram considerados como provados sob os n.ºs 23, 24 e 25 era irrelevante para o desfecho da presente acção, visto que, de qualquer modo, era ao sinistrado e ou à seguradora que cabia o ónus de os provar, como fizeram, não fazendo sentido que existisse uma presunção ilidível da sua inexistência.
Como sublinham os autores citados, existe sempre essa “presunção de inexistência dos factos” contra quem, nos termos gerais, tem o ónus de os provar. Assim, como aqueles realçam, a decisão penal absolutória acima aludida só poderia ter algum relevo se tivesse assentado na prova de factos cuja prova, na presente acção, coubesse à empregadora, caso em que o ónus se inverteria em desfavor do sinistrado e ou seguradora, o que não sucede relativamente a todos os factos ora em questão, que, por integrarem o direito do sinistrado e os requisitos de extinção da obrigação da seguradora, eram estes que tinham de provar, como fizeram.
Em sentido semelhante, veja-se o Acórdão deste Tribunal proferido no processo n.º 330/06.8TTVNF.G1 (Relator Antero Veiga), em que intervieram como adjuntos os ora Relatora e 1.º Adjunto.
Em suma, não se vislumbra hipótese em que, em processo de acidente de trabalho, seja relevante a decisão penal que absolveu o arguido da prática do crime de infracção das regras de construção, p. e p. pelo art. 277.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, porque, de qualquer modo, é ao sinistrado e ou à seguradora que compete a prova dos factos que fundamentam a responsabilidade agravada do empregador por violação de regras de segurança no trabalho.
Desiderato que, como resulta da factualidade provada e respectiva fundamentação, o autor e a seguradora lograram alcançar nos presentes autos, sem que a empregadora tenha de modo legalmente admissível impugnado a respectiva decisão.
Em face do exposto, improcedendo a alteração da matéria de facto provada, que na economia do recurso da ré empregadora era pressuposto necessário de diferente decisão final, improcede tal recurso.
4.3. Cabe então, finalmente, conhecer do recurso do autor, o qual sustenta que, sendo a ré seguradora responsável pelas consequências do acidente nos termos do art. 79.º, n.º 3 da LAT, deveria ter sido condenada a título principal e não a título subsidiário.
Estabelece tal preceito do regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, incluindo a reabilitação e reintegração profissionais, aprovado pela Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, que, verificando-se alguma das situações referidas no artigo 18.º, a seguradora do responsável satisfaz o pagamento das prestações que seriam devidas caso não houvesse actuação culposa, sem prejuízo do direito de regresso.
Posto isto, é manifesto que a responsabilidade da seguradora não é subsidiária, respondendo a título principal perante o sinistrado, sem prejuízo de ter direito de regresso sobre a empregadora.
Procede, pois o recurso do autor.

5. Decisão

Nestes termos, acorda-se em:

a) julgar a apelação do autor procedente, e, em consequência, alterar o ponto 2 do dispositivo da sentença no sentido de condenar a ré seguradora a título principal, sem prejuízo de direito de regresso sobre a ré empregadora;
b) julgar a apelação da ré empregadora improcedente, e, em consequência, confirmar a sentença recorrida quanto ao mais;
c) condenar a ré empregadora nas custas do seu recurso e não fixar custas pelo recurso do autor, atenta a não oposição ao mesmo por parte da seguradora.
Guimarães, 16 de Novembro de 2017

(Alda Martins)
(Eduardo Azevedo)
(Vera Sottomayor)

Sumário (elaborado pela Relatora):

I – Existe sempre uma “presunção de inexistência dos factos” contra quem, nos termos gerais, tem o ónus de os provar.

II – Assim, a decisão penal absolutória só tem algum relevo em posterior acção cível, nos termos do art. 624.º do Código de Processo Civil, se tiver assentado na prova de factos que, na acção cível, tivessem de ser provados pelo réu, caso em que o ónus se inverteria em desfavor do autor, sendo inócua relativamente a factos que, por integrarem o direito do autor, este sempre tinha de provar.

III – Em processo de acidente de trabalho, é irrelevante a decisão penal que absolveu o arguido da prática do crime de infracção das regras de construção, p. e p. pelo art. 277.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, porque, de qualquer modo, é ao sinistrado e ou à seguradora que compete a prova dos factos que fundamentam a responsabilidade agravada do empregador por violação de regras de segurança no trabalho.

(Alda Martins)

1 - Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, Almedina, 3.ª edição, p. 765.