Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
301/14.0T8VCT-A. G1
Relator: ANTÓNIO JOSÉ BARROCA PENHA
Descritores: CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO
CONTRATO DE FACTORING
LIVRANÇA
JUROS DE MORA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/24/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (do relator)

I- De um modo geral, o “contrato de abertura de crédito” é aquele pelo qual o Banco – creditante – se obriga a colocar à disposição do cliente – creditado – uma determinada quantia pecuniária por tempo determinado ou não, ficando o último obrigado ao reembolso das somas utilizadas e ao pagamento dos respetivos juros e comissões.

II- A abertura de crédito pode ser simples ou em conta-corrente: no primeiro caso, o crédito disponibilizado pode ser utilizado de uma só vez; no segundo, o cliente pode sacar diversas vezes sobre o montante do crédito disponibilizado, solvendo as parcelas de que não necessite, numa conta corrente com o Banco.

III- Por outro lado a abertura de crédito pode ser caucionada/garantida ou a descoberto, conforme o cumprimento da obrigação do creditado seja ou não assegurado por garantias reais, v.g., hipoteca, ou pessoais, v.g., livranças. A garantia – caso tenha sido acordada – é, muitas vezes, de ordem pessoal; na prática bancária portuguesa em que as aberturas de crédito operam a favor de sociedades, recorre-se, regra geral, a livranças subscritas pela própria sociedade e avalizadas pelos sócios. É aquilo que, na gíria bancária, se denomina por “conta corrente caucionada”.

IV- No âmbito de “operações financeiras repetidas ou renováveis”, como é o caso de abertura de crédito em conta corrente, estabelece-se uma “relação clientela” entre o Banco e o cliente, relação essa que se apresenta como uma relação obrigacional complexa e duradoura, assente na estreita confiança pessoal entre as partes (uberrima fides), que pode originar, mesmo no silêncio do contrato, a responsabilidade contratual da instituição financeira imprudente ou não diligente, se não cumprir, entre outros, em consonância com os ditames da boa fé (art. 762º, n.º 2, do C. Civil), os deveres de informação ou de proteção dos legítimos interesses do cliente.

V- O “contrato de factoring” consiste na transferência dos créditos a curto prazo do seu titular (cedente; aderente ao factor) para um factor (cessionário), derivados da venda de produtos ou prestação de serviços a terceiros (devedores cedidos).

VI- Neste âmbito, importa ainda distinguir entre factoring “próprio” e factoring “impróprio”: no primeiro, o factor assume o risco de insolvência ou de não cumprimento por parte do devedor; no factoring impróprio, o factor não assume esse risco, pelo que terá o cliente de reembolsar o factor em caso de não pagamento pelo devedor, o que implica que no factoring impróprio a função del credere fica excluída.

VII- Em execução fundada em livrança emitida e não paga em Portugal, é aplicável, quanto à indemnização pela mora, a taxa de juros civis emergente do disposto no art. 4º do D.L. n.º 262/83, de 16.06, em conjugação com o disposto no art. 559º, n.º 1, do C. Civil, e na Portaria n.º 291/2003, de 08.04 (atualmente de 4% ao ano) e não a taxa de juros prevista na Lei Uniforme, de 6%, por esta última ter sido afastada do nosso ordenamento jurídico.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

Por apenso aos autos de execução para pagamento de quantia certa proposta pela exequente (…) contra os executados (…) e (…) vieram estes últimos deduzir embargos de executado, pedindo a final, que se julgue procedente a exceção dilatória da inexigibilidade da quantia exequenda, absolvendo-se os executados da instância e a execução extinta; ou, caso assim não se entenda, que se julgue procedentes as exceções perentórias deduzidas, absolvendo-se os executados do pedido e a execução extinta.

Para o efeito, alegam, em suma, que:

· A livrança não foi apresentada a pagamento dentro do prazo prescrito nem nos dois dias úteis seguintes.
· A livrança não foi apresentada a pagamento aos embargantes na data de vencimento do título de crédito (06/12/2013).
· A exequente não comunicou aos ora embargantes a data de vencimento do título de crédito preenchido por esta e do contrato de mútuo.
· Os executados apenas tomaram conhecimento do preenchimento da livrança e de todos os seus elementos e da data de vencimento do contrato de mútuo com a citação para a execução.
· A exequente não realizou atos de cobrança das alegadas obrigações cartulares, pelo que a sociedade comercial subscritora e os executados não incumpriram definitivamente as obrigações ora exigidas.
Face ao exposto, concluem dizendo que a quantia exequenda lhes é inexigível.
· Por outro lado, referem os embargantes que a responsabilidade executiva a exigir dos executados se circunscreve à obrigação cambiária proveniente da subscrição da livrança ora em execução e dela está arredada qualquer outro compromisso assumido fora deste título de crédito, designadamente não lhe pode ser oposto na execução o pacto resultante do convénio expresso no contrato.
· A taxa de juro de 6% não foi acordada no contrato de abertura de crédito em conta-corrente, uma vez que esta cláusula está de fora da relação cartular configurada na livrança que se executa.
· Assim, os juros de mora que podem ser exigidos aos obrigados cambiários são apenas os estatuídos no art. 4º do DL n.º 262/83, de 18 de Junho.
· Os embargantes alegam ainda que a cessão de créditos consagrada no contrato de abertura de conta-corrente não tinha função garantística no sentido estrito; era a forma de cumprimento da obrigação, isto é, o modo de pagamento do capital e dos juros ao abrigo do contrato de abertura de conta corrente.
· Referem os embargantes que nada é demonstrado nos autos que a X ainda não tenha recebido ou que não venha a receber as quantias para pagamento das facturas que titulam os créditos objecto do contrato de factoring e que as não tenha entregue à exequente no âmbito da cessão de créditos consagrada no contrato de abertura de crédito em conta corrente.
· Acrescentam os executados que a exequente não actuou contra a X e, por isso, não pode, sem pelo menos tentar cobrar desta, exigir o pagamento aos ora executados. Feita a cessão a favor da exequente, só ela pode pedir o pagamento.
· Concluem os embargantes dizendo que a exequente não pode exigir deles o cumprimento enquanto não procurar obter satisfação mediante o crédito cedido e sem demonstrar que a X não recebeu e que não vai receber as quantias para pagamento das faturas que titulam os créditos objeto do contrato de factoring e não as entregou à exequente no âmbito da cessão de créditos consagrada no contrato de abertura de crédito em conta-corrente.
· Os embargantes alegam ainda a existência de abuso de direito. A normalidade impõe que, em caso de incumprimento contratual da sociedade comercial Y funcionasse, em 1ª linha, a cessão de créditos sobre a X.
· A exequente, ao agir contra os avalistas, age com má fé, já que tem na sua disponibilidade a garantia de cessão do crédito da sociedade Y sobre a X, a título de dação pro solvendo.
· Invocando a relação subjacente e as reclamações de créditos, os embargantes dizem ainda que a Y e eles próprios nada devem à exequente porque esta nada pagou à X.
· A coberto do dever de comunicação e de informação, os embargantes alegam que não receberam cópia dos contratos na data da celebração dos mesmos e que não lhes foi informado o teor das cláusulas contratuais gerais apostas nos mesmos.
· Relativamente à declaração de vontade, os embargantes afirmam que acharam que a livrança era uma formalidade interna da exequente e que a única garantia que seria dada à execução para cumprimento das obrigações do contrato de abertura de crédito em conta-corrente seria a cessão de crédito da sociedade Y sobre a X, a título de dação pro solvendo.
· Finalmente, os embargantes impugnam o valor em dívida à exequente, bem como a letra e assinatura.

A exequente apresentou contestação, concluindo pela improcedência da presente oposição por embargos.

Em suma, veio invocar que:

· Um dos títulos que fundamenta a propositura da presente execução é uma livrança, apenas se exigindo que demonstre o vencimento, a exigibilidade e a liquidez da obrigação exequenda.
· A (…) alega que não logrou proceder à cobrança da totalidade das facturas em causa, apesar de ter agido judicialmente nesse sentido.
· O contrato em causa configura um contrato de factoring impróprio, o que significa que o cessionário não assumiu os riscos da insolvência ou do não cumprimento por parte do terceiro devedor.
· Como a Caixa não logrou recuperar o valor em dívida, não lhe restou outra alternativa senão a do acionamento das garantias concedidas, nomeadamente, o preenchimento da livrança-caução.
· A livrança foi preenchida a 06.12.2013 tendo-lhe sido aposta tal data de vencimento, pelo montante em dívida a essa data. Nessa data, a (…) interpelou os embargantes para o pagamento da dívida mediante cartas endereçadas para a morada onde residem (o que os executados aceitam a fls. 355 verso).
· Relativamente aos juros, a (…) entende que é de aceitar a exigência da taxa de 6%.
· Defende a (…) que os contratos em questão foram especificamente negociados e que, previamente à assinatura dos mesmos, foi facultado um exemplar do contrato.
· Contudo, entende a mesma que nunca poderiam os avalistas opor à exequente a eventual ausência de cumprimento dos alegados deveres de comunicação e informação.

Foi proferido despacho saneador, nos termos do qual relegou-se para momento posterior o conhecimento das exceções invocadas.
Procedeu-se à fixação do objeto do litígio, selecionando-se, de seguida, os temas de prova (cfr. fls. 366 a 368).
Após produção de prova pericial de exame à letra e assinatura dos executados no título exequendo (cfr. relatório pericial de fls. 383 a 398), procedeu-se à realização da audiência de julgamento.

Na sequência, por sentença de 13 de Julho de 2018, veio a julgar-se totalmente improcedentes, por não provados, os presentes embargos de executado, absolvendo-se a exequente (…) do pedido.

Inconformados com o assim decidido, vieram os embargantes (…) e (…) interpor recurso de apelação, nele formulando as seguintes

CONCLUSÕES

I- SOBRE A MATÉRIA DE FACTO

DA ALTERAÇÃO DA DECISÃO – ART.º 662.º CPC

1. O Tribunal a quo deu como provada a matéria de facto descrita no itens 28), 31), 41), 42), 43), 44) e 45) supra enunciados no ponto “FACTOS PROVADOS DA SENTENÇA”, mas, salvo o devido respeito por entendimento contrário, devê-la-ia ter dado por “provada”, com redação diversa da acima citada, e
2. “por provada” a discorrida nos itens 6) a 7) do ponto “FACTOS NÃO PROVADOS DA SENTENÇA” acima transcritos.
3. O facto 28) resulta do teor dos documentos juntos a fls. 288, 297, 339 e 344 dos autos.
4. O facto 31) resulta do documento de fls. 32 dos autos de execução.
5. Os factos 41), 42) e 43) resultam do depoimento da testemunha (…).
6. Os factos 44) e 45) resultam dos depoimentos das testemunhas (…).
7. A) No que diz respeito ao item 28), 31), 41), 42), 43), 44) e 45) do ponto “FACTOS PROVADOS DA SENTENÇA”, confronte-se as declarações prestadas pelo embargante (…) no dia 21.05.2018 e gravado no CD n.º 1, através do sistema integrado de gravação digital (H@bilus Media Studio), desde o n.º 10:12:03 a 10:50:00, rotação 00:19:23 a 00:21:10.
8. As declarações prestadas pela testemunha (…) no dia 21.05.20168 e gravado no CD n.º 1, através do sistema integrado de gravação digital (H@bilus Media Studio), desde o n.º 10:50:00 a 11:06:07, rotação 00:03:23 a 00:05:00.
9. As declarações prestadas pela testemunha (…) no dia 21.05.2018 e gravado no CD n.º 1, através do sistema integrado de gravação digital (H@bilus Media Studio), desde o n.º 11:06:58 a 11:37:03, rotações 00:00:36 a 00:02:17 e 00:20:15 a 00:30:04.
10. As declarações prestadas pela testemunha (…) no dia 21.05.2018 e gravado no CD n.º 1, através do sistema integrado de gravação digital (H@bilus Media Studio), desde o n.º 11:37:52 a 11:54:02, rotação 00:00:30 a 00:00:50.
11. As declarações prestadas pela testemunha (…) no dia 21.05.2018 e gravado no CD n.º 1, através do sistema integrado de gravação digital (H@bilus Media Studio), desde o n.º 11:54:02 a 12:29:36, rotação 00:02:01 a 00:07:00.
12. A audiência de julgamento e as declarações prestadas pelas testemunhas centraram-se apenas no que diz respeito ao contrato de abertura de crédito em conta – corrente (em função de créditos a ceder à (…) - Instituição Financeira de Crédito, S.A.1) com o n.º ….
13. Na verdade, nenhuma das testemunhas nas declarações que prestaram se referiram ao contrato de mútuo (linha de crédito ... Investe IV – Caixa), com o n.º ....
14. Por via disso, nada foi provado em relação ao contrato de mútuo (linha de crédito ... Investe IV – Caixa), com o n.º ....
15. Isto posto, as declarações dos embargantes, ora recorrentes, merecem credibilidade, uma vez que foram estes que estiveram intervieram pessoalmente e estiveram presentes no momento da outorga dos referidos documentos escritos e têm conhecimento direto como tudo foi processado.
16. Os únicos intervenientes diretos e que têm conhecimento pessoal e presencial na negociação e processo de contratação que prestaram declarações na audiência final foi o embargante, ora recorrente, e a testemunha (…).
17. Descreveu o embargante os concretos termos e condições contratuais que foram negociados com a exequente, designadamente, com o funcionário da mesma, (…)
18. A embargante descreveu que se deslocou à agência bancária para obter informações e esclarecimentos junto da testemunha (…), que foi recebida por este num ambiente hostil e que foi pressionada pelo mesmo a assinar os contratos, caso contrário não seriam celebrados com a sociedade comercial (…) os contratos de abertura de crédito em conta – corrente (em função de créditos a ceder à X) e de factoring n.º 100001731.
19. No que concerne às testemunhas (…) e (…) apenas tiveram intervenção presencial e pessoal no momento da conferência de assinaturas dos avalistas outorga dos documentos escritos e não tinham intervenção e conhecimento directo como tudo foi processado e negociado,
20. sendo que no dia em que os avalistas foram assinar o contrato de abertura de crédito em conta– corrente (em função de créditos a ceder à X) foram recebidos previamente pela testemunha (…).
21. Não demonstraram ter conhecimento direto, pessoal e presencial se, anteriormente, ao momento da outorga do contrato foi suscitado qualquer esclarecimento sobre o conteúdo e/ou alcance das cláusulas do contrato à testemunha (…).
22. Estas testemunhas referiram-se sempre ao procedimento regra da instituição bancária, manifestando não possuir qualquer conhecimento concreto e direto do caso em apreço.
23. No que tange ao contrato de abertura de crédito em conta – corrente (em função de créditos a ceder à X), a testemunha (…) descreveu os termos e condições que foram negociados,
24. designadamente, no que concerne os planos de limites e a taxa de juro,
25. tendo sido submetido a apreciação da exequente o pedido e apresentadas as condições desta para a aprovação do mesmo.
26. Do teor e conteúdo da informação junta aos autos pelo Exmo. Senhor Administrador de Insolvência no dia 19.11.2015, a fls…, nomeado no âmbito dos autos de insolvência n.º 3257/11.8TBVCT que correm seus termos pelo 3.º Juízo Local Cível de Viana do Castelo do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo,
27. resulta que, no que respeita à probabilidade de pagamentos, dado o valor do património que já foi alienado e que ainda resta alienar,
28. é muito provável que venham a ser pagos parte dos créditos da X relativos às faturas que titulam os créditos objeto do contrato de factoring n.º 100001731. (Cfr. informação junta aos autos pelo Administrador de Insolvência no dia 19.11.2015, a fls…)
29. Segundo informações do Exmo. Senhor Administrador de Insolvência dos dias 18.11.2015 e 24.02.2017, de fls…, nomeado nos autos que correm seus termos sob o n.º 1147/11.3TBVCT, pelo 3.º Juízo Local Cível de Viana do Castelo do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo,
30. foram reconhecidos à exequente os créditos ora peticionados nos presentes autos de execução,
31. tendo sido já efetuado um rateio parcial no valor de € 460.000,00, tendo a Recorrida recebido a quantia de € 14.237,48. (Cfr. informações junta aos autos pelo Administrador de Insolvência nos dias 18.11.2015 e 24.02.2017, de fls.…)
32. E, por isso, verifica-se que existe erro de julgamento do Tribunal a quo.
33. Pelo que, a matéria de facto discorrida nos itens 28), 31), 41), 42), 43), 44) e 45) do ponto “FACTOS PROVADOS DA SENTENÇA”, o Tribunal a quo devê-la-ia ter dado “por provada”, com a redação que supra se descreveu na alegação de recurso.
34. B) No que tange à matéria de facto discorrida aos itens 6) a 7) do ponto “FACTOS NÃO PROVADOS DA SENTENÇA”, o Tribunal a quo devê-la-ia ter dado “por provada”.
35. Confronte-se as declarações prestadas pela testemunha (…) no dia 21.05.2018 e gravado no CD n.º 1, através do sistema integrado de gravação digital (H@bilus Media Studio), desde o n.º 11:54:02 a 12:29:36, rotação 00:19:55 a 00:23:15.
36. A testemunha (…) descreveu que foi a exequente que exigiu e impôs à Y a cedência do crédito da Y sobre a X, para segurança do financiamento solicitado e a prestação de aval dos embargantes para que a taxa de juro fosse mais reduzida, sendo que já constava esta condição previamente à contratação.
37. Face ao expendido, as concretas especificações de prova trazidas à colação pelos ora recorrentes têm virtualidade para impor decisão diversa da recorrida.
38. Destarte, ao dar como provados estes pontos da matéria de facto – 28), 31), 41), 42), 43), 44) e 45) – e não provado – 6) e 7) - violou o tribunal a quo o disposto no art.º 607.º n.os 4 e 5 CPC.

II- DO DIREITO

A) DOS JUROS LEGAIS

39. A relação jurídica cambiária é a que decorre da livrança e a relação jurídica subjacente é a constituída pelo negócio jurídico de base, que serve de fundamento à outra, isto é, in casu, o contrato de contrato de abertura de crédito em conta – corrente (em função de créditos a ceder à X). (Doc. n.º 1 junto aos autos com os embargos de executado deduzidos no dia 27.11.2014)
40. A taxa de juro de 6% não foi acordada no contrato de abertura de crédito em conta – corrente (em função de créditos a ceder à X), uma vez que esta cláusula está inexoravelmente de fora da relação cartular configurada na livrança que se executa, não é susceptível de se impor na presente execução. (Vide, neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proc. n.º 186/07-2, de 22.02.2007)
41. Nas letras e livranças emitidas e pagas em Portugal é aplicável, em cada momento, aos juros moratórios a taxa (4% - Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril), que decorre do disposto no art.º 4.º do DL n.º 262/83, de 16 de junho, e não a prevista nos n.os 2 dos art.os 48.º e 49 da LULL, conforme é unânime a jurisprudência. (Vide, neste sentido, supra transcritos, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proc. n.º 2047/14.0TBGMR-A. G1, de 08.10.2015; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proc. n.º 38720/06.3YYLSB-A.L1-2, de 08.05.2014; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proc. n.º 8273/2007.6, de 18.10.2007; Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proc. n.º 645/06-1, do 26.04.2006).
42. Destarte, o Tribunal a quo ao entender que a exequente tem legitimidade para peticionar juros calculados à taxa anual de 6% mesmo a partir da entrada em vigor da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, violou o disposto no art.º 4.º do Decreto-Lei 262/83, de 16 de Junho, e na Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.

B) DO CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO EM CONTA-CORRENTE E DO ABUSO DE DIREITO

43. No exercício da sua actividade, a exequente celebrou, no dia 18 de Dezembro de 2009, com a sociedade comercial (…) um contrato de abertura de crédito em conta corrente n.º … (em função de créditos a ceder à(…)). (Docs. n.os 1 e 2 junto aos autos com os embargos de executado deduzidos no dia 27.11.201.
44. No âmbito da atividade por si exercida, a … celebrou com a sociedade comercial … o contrato de factoring n.º…, tendo por objecto a aquisição por aquela, por cessão, de créditos comerciais a curto prazo, derivados da venda de mercadorias ou prestação de serviços por essa sociedade comercial (…) a terceiros. (Doc. n.º 2 junto aos autos com os embargos de executado deduzidos no dia 27.11.2014)
45. A sociedade comercial … aceitou ceder à exequente o seu crédito sobre a … relativo ao pagamento das facturas dos seus devedores cujos créditos viessem a ser a esta cedidos, no âmbito do contrato de factoring n.º …, referido no n.º 1 da cláusula 7.ª do contrato de abertura de crédito em conta corrente n.º …. (Cfr. item 21.1 al. a) da cláusula n.º 21, sob epígrafe “GARANTIAS:” do doc. n.º 1 e doc. n.º 2 ambos juntos aos autos com os embargos de executado deduzidos no dia 27.11.2014)
46. A cessão mencionada no contrato de abertura de crédito em conta corrente n…. tinha natureza pro solvendo destinando-se o montante dos créditos cedidos ao pagamento de toda e qualquer quantia de que a sociedade comercial … fosse devedora por força do contrato de abertura de crédito em conta corrente n.º …. (Cfr. item 21.1 al. b) da cláusula n.º 21, sob epígrafe “GARANTIAS:” do doc. n.º 1 junto aos autos com os embargos de executado deduzidos no dia 27.11.2014).
47. A exequente aceitou conceder à sociedade comercial … o financiamento supra mencionado nas condições estipuladas no contrato de abertura de crédito em conta corrente n.º … (Art.º 837.º in fine CC) (Cfr. considerando 3. do doc. n.º 1 junto aos autos com os embargos de executado deduzidos no dia 27.11.2014)
48. No que concerne ao contrato de abertura de crédito em conta – corrente n.º …, a exequente ficou garantida com aval e com cessão de créditos da sociedade comercial … sobre a …. (Cfr. ponto 21.1 e 21.2 da cláusula n.º 21, sob epígrafe “GARANTIAS:” do doc n.º 1 junto aos autos com os embargos de executado deduzidos no dia 27.11.2014)
49. As quantias relativas ao crédito da sociedade comercial … sobre a … seriam entregues por esta última (…) logo que efetuada a cobrança das faturas cujos créditos tenham sido cedidos por aquela primeira àquela segunda. (Cfr. item 21.1 al. c) da cláusula n.º 21, sob epígrafe “GARANTIAS:” do doc. n.º 1 junto aos autos com os embargos de executado deduzidos no dia 27.11.2014)
50. A …, que tinha conhecimento da cessão feita pela sociedade comercial … à exequente do crédito relativo ao preço dos créditos cedidos pela mesma no âmbito do contrato de factoring n.º …, ao abrigo do contrato de abertura de conta-corrente n.º …,
51. Pagaria à … o valor dos créditos que lhe foram cedidos por esta (…) e entregaria à exequente todas as quantias recebidas para pagamento das faturas que titulam os créditos objecto do mencionado contrato de factoring, no prazo de 48 horas após boa cobrança dos mesmos. (Cfr. cláusula 8.ª das Condições Gerais do doc. n.º 2 junto aos autos com os embargos de executado deduzidos no dia 27.11.2014)
52. A cessão de créditos em garantia consagrada no contrato de abertura de conta-corrente n.º … não consistiu num negócio em que a sociedade comercial … apenas cedia à exequente um crédito que possuía sobre a … (terceiro).
53. Com efeito, a cessão de créditos plasmada no contrato de abertura de conta-corrente n.º … resultou de um acordo de dação em cumprimento celebrado entre a devedora sociedade comercial … (cedente) e a credora exequente (cessionária), a título de dação pro solvendo. (Cfr. item 21.1 al. b) da cláusula n.º 21, sob epígrafe “GARANTIAS:” do doc. n.º 1 junto aos autos com os embargos de executado deduzidos no dia 27.11.2014) (Art.º 840.º CC)
54. As quantias relativas ao crédito cedido pela … à exequente seriam entregues pela devedora … a esta (embargada), por cheque ou outro meio de pagamento a acordar entre ambas, logo que efectuada a cobrança das facturas cujos créditos tenham sido cedidos pela … à …. (Cfr. item 21.1 al. c) da cláusula n.º 21, sob epígrafe “GARANTIAS:” do doc. n.º 1 junto aos autos com os embargos de executado deduzidos no dia 27.11.2014)
55. Os pagamentos a que a … ficava obrigada pelo contrato de abertura de crédito em conta corrente n.º … seria efectuados nos termos e condições previstas no ponto 21, sob epígrafe “GARANTIAS:”, do referido contrato. (Cfr. item 13.1 da cláusula n.º 13, sob epígrafe “FORMA DOS PAGAMENTOS:” do doc. n.º 1 junto aos autos com os embargos de executado deduzidos no dia 27.11.2014)
56. Daí que o capital que estivesse em dívida na conta corrente seria reembolsado nas datas e à medida dos pagamentos que a … efectuasse ao abrigo do n.º 1. da cláusula 21.ª do contrato de abertura de crédito em conta corrente n.º …. (Cfr. cláusula 10.ª, sob epígrafe “PAGAMENTO DOS JUROS E DO CAPITAL:” do doc n.º 1 junto aos autos com os embargos de executado deduzidos no dia 27.11.2014)
57. E, por isso, a cessão de créditos consagrada no contrato de abertura de conta-corrente n.º … não tinha apenas a função garantística no sentido estrito conforme nele vem descrito. (Cfr. cláusula n.º 13, sob epígrafe “FORMA DOS PAGAMENTOS:” e cláusula n.º 21, sob epígrafe “GARANTIAS:” do doc. n.º 1 junto aos autos com os embargos de executado deduzidos no dia 27.11.2014)
58. Com efeito, era, portanto, per si, a forma de cumprimento da obrigação, i. e., o modo de pagamento do capital e dos juros ao abrigo do contrato de abertura de conta-corrente n.º … (Cfr. cláusula 10.ª, sob epígrafe “PAGAMENTO DOS JUROS E DO CAPITAL:” do doc n.º 1 junto aos autos com os embargos de executado deduzidos no dia 27.11.2014)
59. Mais: é frequente a cessão de crédito que determinada sociedade comercial aderente ao factoring detém sobre o factor para a entidade bancária que lhe concedeu financiamento, para apoio à sua tesouraria, a titulo de conta de abertura de crédito em conta-corrente,
60. com a inerente ideia para todos os intervenientes contratuais, de que, em caso de incumprimento contratual, tudo fica solucionado com o recurso à realidade garantística, ora descrita (cessão de créditos).
61. Legitimamente, os avalistas pensaram que, em tal caso, não seriam chamados a pagar, uma vez que, a instituição bancária ficou garantida com os créditos cedidos sobre um terceiro (…).
62. Por isso, a normalidade comportamental aponta, claramente, para que, em caso de incumprimento contratual da sociedade comercial …, “funcionasse”, em primeira linha, a cessão de créditos sobre a ….
63. No normal das expectativas, o crédito sobre a … seria sempre accionado e cobriria o que era devido, ficando os demais obrigados, ora executados, libertos.
64. O valor da cedência de créditos do contrato de factoring n.º … era de € 500.000,00. (Cfr. doc. n.º 2 junto aos autos com os embargos de executado deduzidos no dia 27.11.2014)
65. O contrato de abertura de crédito em conta – corrente n.º … tinha o valor máximo de € 300.000,00. (Cfr. doc. n.º 1 junto aos autos com os embargos de executado deduzidos no dia 27.11.2014)
66. O contrato de factoring n.º … tinha € 200.000,00 a mais em relação ao contrato de abertura de crédito.
67. O que permitia assegurar e garantir o pagamento de qualquer montante que estivesse em dívida à ordem do contrato de abertura de crédito em conta – corrente n.º ….
68. Não havia caminho indirecto de ressarcimento, nem riscos daí derivados, uma vez que a forma de cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de abertura de crédito em conta – corrente n.º … - modo de pagamento do capital e dos juros em dívida -,
69. era através dos pagamentos que a … viesse a efectuar, ao abrigo do disposto na clausula 21.ª do referido contrato. (Cfr. cláusula 10.ª, sob epígrafe “PAGAMENTO DOS JUROS E DO CAPITAL:”, e cláusula n.º 13, sob epígrafe “FORMA DOS PAGAMENTOS:” do doc n.º 1 junto aos autos com os embargos de executado deduzidos no dia 27.11.2014)
70. Dispondo a exequente da garantia (cessão de créditos) constante do contrato de abertura de crédito em conta – corrente n.º …, menos ainda se justifica – sempre atento o princípio da boa fé consignado no art.º 762.º n.º 2 CC – que venha junto dos avalistas para obter a satisfação do seu crédito.
71. A exequente, única que pode accionar o crédito cedido, porque, uma vez feita a cessão em seu favor, passou a ser credora de duas prestações e a ter garantia sobre dois patrimónios (o do seu devedor (…) e o do devedor do seu devedor (…), não actuou contra a ….
72. Resultou como provado que, segundo informação do Exmo. Senhor Administrador de Insolvência do dia 19.11.2015, nomeado no âmbito dos autos de insolvência n.º 3257/11.8TBVCT supra referidos, no que respeita à probabilidade de pagamentos, dado o valor do património que já foi alienado e que ainda resta alienar,
73. é muito provável que venham a ser pagos parte dos créditos da … relativos às facturas que titulam os créditos objecto do contrato de factoring n….. (Cfr. informação junta aos autos pelo Administrador de Insolvência no dia 19.11.2015, a fls…)
74. Segundo informações do Exmo. Senhor Administrador de Insolvência dos dias 18.11.2015 e 24.02.2017, nomeado nos autos que correm seus termos sob o n.º 1147/11.3TBVCT, pelo 3.º Juízo Local Cível de Viana do Castelo do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo,
75. foram reconhecidos à exequente os créditos ora peticionados nos presentes autos de execução,
76. tendo sido já efectuado um rateio parcial no valor de € 460.000,00, tendo a Recorrida recebido a quantia de € 14.237,48. (Cfr. informações junta aos autos pelo Administrador de Insolvência nos dias 18.11.2015 e 24.02.2017, a fls…)
77. Não ficou demonstrado nos presentes autos que a … quando receber nos autos de insolvência supra referidos não vá entregar à exequente as quantias que neles obtiver no âmbito da cessão de créditos consagrada no contrato de abertura de crédito em conta-corrente n.º
78. E, por isso, atenta a enorme probabilidade de a … vir a receber o pagamento dos montantes relativos às facturas que titulam os créditos objecto do contrato de factoring n.º … no âmbito dos autos de insolvência supra referidos,
79. certamente que assim que o receba aquela vai entregar aquelas quantias à exequente no âmbito da cessão de créditos consagrada no contrato de abertura de crédito em conta-corrente n.º ….
80. Mais: a exequente não actuou contra a … e atenta a forma de pagamento e a hierarquia de garantias existentes supra descritas, não pode, sem pelo menos tentar cobrar desta, exigir a exequente o pagamento dos ora executados,
81. atenta a cessão de créditos a favor da exequente, só ela pode pedir o respectivo pagamento. (Cfr. cláusula 10.ª, sob epígrafe “PAGAMENTO DOS JUROS E DO CAPITAL:”, cláusula n.º 13, sob epígrafe “FORMA DOS PAGAMENTOS:” e cláusula n.º 21, sob epígrafe “GARANTIAS:” do doc n.º 1 junto aos autos com os embargos de executado deduzidos no dia 27.11.2014)
82. A exequente já recebeu a quantia de € 14.237,48 nos autos de insolvência da … e nada indica que esta não venha a obter outros montantes para pagamento dos contratos em apreço nos presentes autos.
83. Primeiramente tinha, portanto, que ir junto da … procurar obter aquilo a que tinha direito.
84. E se não o fez, deixa a porta aberta, sem qualquer explicação, da razão porquê.
85. Só malograda esta intenção, poderia executar os avalistas.
86. A exequente ao exigir dos avalistas o seu crédito, age com má fé, uma vez que, tem na sua disponibilidade a garantia de cessão do crédito da sociedade comercial … sobre a …, a título de dação pro solvendo. (Art.º 334.º CC)
87. Com efeito, com a cessão de créditos a exequente passou a ser credora de duas prestações e a ter garantia sobre dois patrimónios (o do seu devedor (…) e o do devedor do seu devedor (…).
88. No sentido de tudo o que ora se expendeu, sufragam os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça nos proc. n.º 3220/07.3TBGDM-A.P1.S1, de 26.06.2014, e no proc. n.º 3220/07.3TBGDMB. P1.S1, de 25.11.2014, que supra se transcreveram na alegação de recurso.
89. Destarte, o Tribunal a quo ao não considerar que a exequente não pode exigir aos executados o cumprimento enquanto i) não procurar obter satisfação mediante o crédito cedido, através de venda, de cobrança ou de realização do direito prestado e
90. ii) não demonstrar que a … não recebeu, que não vai receber as quantias para pagamento das faturas que titulam os créditos objeto do contrato de factoring n.º 100001731 e não as entregou à exequente no âmbito da cessão de créditos consagrada no contrato de abertura de crédito em conta-corrente n.º ...., violou o disposto nos art.os 334.º, 762.º n.º 2 e 840.º CC.

C) DA RELAÇÃO SUBJACENTE E DAS RECLAMAÇÕES DE CRÉDITOS

91. No dia 22 de Dezembro de 2011, a … apresentou a sua reclamação de créditos junto do Exmo. Senhor Administrador de Insolvência no âmbito do proc. n.º 3257/11.8TBVCT, que correu seus termos pelo 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, em que foi declarada insolvente a sociedade comercial …. (Cfr. doc. n.º 1 do doc. n.º 5 junto aos autos com os embargos de executado deduzidos no dia 27.11.2014)
92. A … apresentou reclamação de créditos junto do Exmo. Senhor Administrador de Insolvência no âmbito dos autos de insolvência da … acima mencionados (proc. n.º 3257/11.8TBVCT - AMS). (Doc. n.º 6 junto aos autos com os embargos de executado deduzidos no dia 27.11.2014)
93. A reclamação de créditos da … corresponde ao mesmo contrato de factoring n.º … e às mesmas facturas mencionadas na reclamação da sociedade comercial … nos autos de insolvência supra referidos (proc. n.º 3257/11.8TBVCT - AMS).
94. A exequente reclamou nos autos de insolvência da … (proc. n.º 1147/11.3TBVCT) essa quantia, a qual lhe foi reconhecida, no âmbito do contrato de abertura de crédito em conta-corrente n.º …. (Cfr. docs. n.os 3 e 4 – reclamação de créditos e lista de credores reconhecidos - do doc. n.º 5 junto aos autos com os embargos de executado deduzidos no dia 27.11.2014)
95. Assim, uma vez que o valor referente ao contrato de factoring acabou por ser pago à … pela exequente mediante a utilização da conta corrente n.º …,
96. o crédito reclamado pela … nos autos de insolvência acima referidos (proc. n.º 3257/11.8TBVCT - …), no valor de €178.339,67, deveria ter-lhe sido reconhecido sem condição.
97. Acontece, porém, que o crédito que a … reclamou nos autos de insolvência supra referidos (proc. n.º 3257/11.8TBVCT - AMS), no valor de €183.862,90, relativo ao contrato de factoring n.º …, foi-lhe reconhecido sem condição para os devidos efeitos legais e
98. os (créditos) que a … tinha sobre a … e que haviam sido cedidos à … através do contrato de factoring n.º … foram-lhe reconhecidos e classificados nos mesmos autos de insolvência como créditos sob condição suspensiva para a hipótese de esta vir a ter que pagar junto de qualquer uma das referidas instituições bancárias o referido valor, ou qualquer outro que lhe fosse exigido, na sequência do incumprimento do contrato de factoring por parte da …. (Doc. n.º 7 e 8 junto aos autos com os embargos de executado deduzidos no dia 27.11.2014)
99. Por outro lado, apesar da cessão à exequente dos créditos que a … detinha sobre a … consagrada no contrato de abertura de crédito em conta-corrente n.º ...,
100. a exequente não reclamou os créditos junto do Exmo. Senhor Administrador de Insolvência, no âmbito dos autos de insolvência acima mencionados (proc. n.º 3257/11.8TBVCT - …), (Cfr. ponto 21.1 al. a) da cláusula 21 do doc. n.º 1 junto aos autos com os embargos de executado deduzidos no dia 27.11.2014).
101. Significa isto que, ao ter sido reconhecido o crédito à … nos autos de insolvência acima mencionados (…) é porque foi esta (… - cessionária) que pagou à … os referidos créditos e não a exequente a esta (…).
102. Do que resulta que, face ao reconhecimento do crédito da … no processo de insolvência n.º 3257/11.8TBVCT da …, não podia ter sido a exequente a pagar à … os créditos (€147.693,14) que esta lhe cedeu, através utilização do crédito proveniente do contrato de abertura de crédito em conta-corrente n.º …
103. A … não cedeu e não recebeu o mesmo crédito duas vezes e de duas instituições bancárias e, por isso, apenas uma das instituições bancárias é que poderia ter pago o crédito cedido à ….
104. A exequente e a … celebraram dois contratos com a … com o mesmo objectivo de financiamento.
105. Isto é, por um lado, através do contrato de factoring n.º …, a … cobrou comissões de factoring e,
106. por outro, a exequente cobrou juros pela utilização da conta-corrente,
107. sendo que ambos os contratos tinham o mesmo objectivo de financiamento que era antecipar o pagamento das facturas dos clientes/devedores da …, Município de … e ….
108. Daí que, atento o reconhecimento do crédito da … nos autos de insolvência acima mencionados (proc. n.º 3257/11.8TBVCT – …), a … e os ora executados nada devam à exequente, por esta afinal nada ter pago à …, mas sim a … àquela (…).

D) DO DEVER DE COMUNICAÇÃO E DE INFORMAÇÃO

109. Perscrutada a sentença proferida pelo Tribunal a quo e face à alteração da matéria de facto dada como provada nos termos supra expendidos, verifica-se que não foi dado como provado que:

1) a exequente cumpriu o seu dever de comunicação, de modo adequado e com a antecedência necessária, para que os executados/avalistas/fiadores tivessem conhecimento completo do teor e conteúdo das cláusulas, da sua importância, extensão e complexidade;
2) a exequente deu aos outorgantes, ora recorrentes, cópia dos contratos nas datas de celebração dos mesmos;
3) a exequente informou e comunicou aos recorrentes o teor, conteúdo e contornos das cláusulas contratuais gerais apostas nos contratos;
4) apesar de tal lhe ter sido solicitado, nas datas de celebração dos contratos e já após a citação dos presentes autos de execução, a exequente entregou aos embargantes cópia dos alegados contratos sub judice;
5) os executados/avalistas/fiadores negociaram com a exequente as cláusulas dos contratos mencionados, como tinham consciência das obrigações clausuladas constantes dos contratos que assinavam;
6) a exequente comunicou, informou e esclareceu, a posição contratual dos fiadores e avalistas e a contracção de obrigações pessoais e cambiárias, antes e aquando da celebração dos contratos mencionados.
110. A resposta dada pelo Tribunal a quo sobre a matéria de facto relativa ao dever de comunicação e informação devia ter sido dada tendo por base os factos alegados pela embargada e pela positiva e não pela negativa, atento o ónus de prova consagrado nos art.°s 5.º n.º 3 do DL n.º 446/85, de 25 de Outubro, e 342.º CC. (Neste sentido, Barros, José Manuel de Araújo, Cláusulas Contratuais Gerais, DL n.º 446/85 – Anotado, Recolha Jurisprudencial, página 64 e 65, Wolters Kluwer Portugal, Coimbra Editora, 1ª Edição, 2010)
111. No que diz respeito ao aval prestado no contrato de abertura de crédito em conta – corrente (em função de créditos a ceder à X), com o n.º ,
112. atento que nos encontramos no âmbito das relações imediatas, dado que os avalistas, ora recorrentes, subscreveram o pacto de preenchimento da livrança em branco e nele intervieram, aqueles estão habilitados a opor ao beneficiário da livrança, que não entrou em circulação, o preenchimento abusivo ou sem autorização do título dado à execução. (Vide, entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 09.04.2013 e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.10.2013 supra transcrito na alegação de recurso)
113. Analisado o pacto de preenchimento da livrança em branco constante da cláusula n.º 24 do contrato de abertura de crédito em conta – corrente (em função de créditos a ceder à …), com o n.º e tendo presente a factualidade que resultou provada,
114. temos que, ao arrepio do propugnado pela exequente, verificamos que o mesmo contém no seu teor um conjunto de cláusulas gerais, padronizadas, não individualizadas, que se destinam à generalidade dos consumidores, sendo integradas em todos os contratos (pactos de preenchimento de livranças e abertura de crédito em conta-corrente associadas) da mesma natureza sem qualquer negociação entre a recorrida e os "consumidores”.
115. A exequente não logrou provar que as ditas cláusulas gerais, inseridas no pacto de preenchimento em análise, resultaram de negociação individualizada entre a própria e os embargantes, ou seja, estes limitaram-se a subscrever o pacto e, automaticamente, ficaram vinculados ao clausulado geral imposto.
116. Não suscita qualquer controvérsia o enquadramento do pacto de preenchimento concernente à livrança exequenda, subscrito pela exequente e pelos embargantes, ao regime das cláusulas contratuais gerais (DL n.º 446/85, de 25 de Outubro). (Vide, neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.10.2007)
117. O pacto de preenchimento assinado pelas partes, concernente à livrança exequenda, assume natureza de contrato de adesão, pois contém cláusulas contratuais gerais elaboradas sem prévia negociação individual, que os embargantes, enquanto destinatários, se limitaram a subscrever e aceitar, motivo pelo qual está o mesmo está sujeito ao regime do DL n.º 446/85, de 25 de Outubro.
118. A exequente não provou os factos alegados comprovativos do efetivo cumprimento dos deveres de comunicação e informação enumerados nos art.°s 5.° e 6.° do DL n.º 446/85, de 25 de Outubro, sendo certo que tal prova lhe competia, de acordo com o art.º 5 n.º 3 deste diploma legal.
119. A exequente não logrou provar que comunicou aos embargantes o conteúdo integral das cláusulas/parágrafos inseridas no pacto de preenchimento da livrança exequenda e nos contratos em apreço nos autos, e, bem assim, que lhe explicou o respetivo teor, tendo os executados aceite, integralmente e sem reservas, o plasmado em tais cláusulas e pacto.
120. A exequente não provou que lhes foi informado e comunicado o teor, conteúdo e contornos das cláusulas contratuais gerais apostas nos mesmos, entre outras, designadamente, das cláusulas 8.ª (A., B., C., D.) a 27.ª do contrato de mútuo n.º … e das cláusulas 7.ª a 27.ª do contrato de abertura de crédito em conta-corrente n.º ….
121. A exequente não comunicou, informou e esclareceu, a posição contratual dos fiadores e avalistas e a contracção de obrigações pessoais e cambiárias, antes e aquando da celebração dos contratos subjudice.
122. Isto é, que estes eram outrossim principais pagadores e responsáveis solidários pelo pagamento de quaisquer outros montantes para além do capital que estivesse, eventualmente, em incumprimento, devido por falta de pagamento dos contratos em apreço, designadamente, a título de juros, remuneratórios ou moratórios, comissões, despesas ou quaisquer outros encargos.
123. Por conseguinte, não tendo sido cumprido pela exequente o ónus de comunicação adequada e efetiva do teor das cláusulas/parágrafos insertas no pacto de preenchimento da livrança exequenda e nos contratos subjudice, e, concomitantemente, o dever de informação, há que extrair as devidas consequências legais daí emergentes.
124. Nesse conspecto, não tendo sido comunicada e informado aos embargantes, ora recorrentes, as cláusulas/parágrafos do contrato de abertura de crédito em conta – corrente com o n.º … e respectivo pacto de preenchimento da livrança exequenda e
125. do contrato de mútuo (linha de crédito ... Investe IV – Caixa), com o n.º …,
126. devem ter-se as mesmas por excluídas do pacto e dos contratos, em obediência do prescrito no art.º 8. °, als. a) e b) do DL n. °446/85, de 25 de Outubro, atento que confrontam e violam o disposto nos art.°s 5.º e 6.º referido diploma,
127. os quais se tornam nulos por esvaziados de objeto e teor,
128. ocorrendo, por isso, uma indeterminação insuprível de aspectos essenciais dos contratos em apreço. (Art.°s 9.º n.º 2 DL n.º 446/85, de 25 de Outubro, a contrario, e 280.º CC)
129. Destarte, existe pacto de preenchimento com cláusulas inválidas e, por isso, dele excluídas e inexiste qualquer autorização de preenchimento da livrança, pelo que a exequente não dispõe de títulos executivos válidos. (Art.º 10.º n.os 5 e 6 CPC)
130. Com efeito, inexistindo qualquer autorização para preenchimento por parte dos executados, a livrança exequenda não pode, quanto a eles, produzir quaisquer efeitos, como decorre do art.º 10. °, a contrario, LULL, aplicável ex. vi do art.º 77. ° do mesmo diploma legal. (Art.º 10.º n.os 5 e 6 CPC)
131. Neste sentido, sufraga o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proc. n.° 3532/10.9YYFRTA.
PI, de 10.10.2011, supra transcrito na alegação de recurso.

Caso assim se não entenda, sempre se dirá em abono da verdade que,

132. Era fundamental apurar se a exequente comunicou e informou os embargantes nomeadamente sobre o significado i) das cláusulas n.os 5 “MONTANTE:” (valor da conta corrente), 8 “TAXA DE JURO:” (valor da taxa de juro contratual), 16 “MORA” (valores que podem ser cobrados em caso de mora) e 24 “LIVRANÇA EM BRANCO” (valor das responsabilidades decorrentes do empréstimo, a titulo de capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e encargos fiscais) do contrato n.º …, com base nas quais foi preenchida a livrança, título executivo da presente execução, e
133. ii) das cláusulas n.os 5 “MONTANTE:” (valor emprestado), 8 “TAXA DE JURO CONTRATUAL:” (valor da taxa de juro contratual), 16 “DESPESAS:” (valor das despesas, judiciais e extrajudiciais, ou 21 encargos), 17 “MORA:” (valores que podem ser cobrados em caso de mora), 21B “OUTRAS GARANTIAS – FIANÇA:”, als. a) e b) (constituição de fiadores solidários e principal pagador de todas e quaisquer quantias - renúncia ao benefício da excussão prévia; renúncia ao benefício do prazo estipulado no art.º 762.º CC e ao exercício das exceções previstas no art.º 642.º CC) do contrato n.º ….
134. Os documentos em causa contêm vinte e sete cláusulas, pré-elaboradas e impressas, numa letra de reduzido tamanho, “texto corrido” e sem espaços entre os parágrafos, com conceitos jurídicos complexos e referências de disposições legais, que não são facilmente compreensíveis pela generalidade dos cidadãos.
135. O que tudo junto, emprestam-lhe uma densidade técnica bastante complexa para quem não seja versado em direito contratual.
136. O reduzido tamanho da letra e o “texto corrido” exige manifestamente do aderente um esforço acrescido de concentração e análise do conteúdo das referidas cláusulas e um conhecimento adequado e minimamente esclarecido sobre o significado técnico-jurídico dos conceitos utilizados.
137. Nos presentes autos, a existência de um clausulado, redigido em letra de tamanho reduzido e de difícil compreensão para o cidadão, não jurista,
138. sendo que o do contrato de abertura de crédito em conta – corrente (em função de créditos a ceder à …), com o n.º …, articulado com o contrato de factoring n.º …, até para um jurista se revela complexa a sua interpretação,
139. uma vez que contém um número significativo de conceitos jurídicos complexos e disposições legais precisamente nos segmentos das cessões de créditos e nas partes destinadas a regular as consequências do incumprimento,
140. podemos concluir que não obedeceu ao princípio da transparência, e, por essa razão, era manifestamente insuficiente, para efeitos de comunicação e esclarecimento, a mera entrega de uma cópia para os embargantes lerem e assinarem posteriormente.
141. Se, por um lado, essa obrigação é de meios e não de resultado, isso não significa, por outro lado, que o predisponente se encontra dispensado de assegurar que o aderente se inteire, de forma completa e adequada, sobre a responsabilidade que está a assumir.
142. A intensidade deste dever de informação e de esclarecimento depende naturalmente das especificidades e das circunstâncias do caso concreto, nas quais se inclui o perfil do contraente/aderente.
143. A mera entrega de uma cópia para os embargantes lerem e assinar posteriormente não era suficiente, para este efeito, atendendo ao propósito de ser concedido empréstimo e abertura de crédito em conta – corrente. (Neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proc. n.º 645/06.5TVLSB, de 19.03.2009)
144. Impunha-se, assim, esclarecer devidamente os embargantes sobre a fisionomia ou traços essenciais de um contrato de factoring com recurso, denominado também como contrato de factoring impróprio, e de um contrato de mútuo da linha de crédito ... Investe IV – Caixa,
145. comparando-o com as demais modalidades de factoring sem recurso, designado também por contrato de factoring próprio, ou de concessão de crédito.
146. Esse esclarecimento não foi prestado nem os embargantes foram informados sobre as cláusulas constantes dos contratos em causa, pré-elaboradas e impressas numa letra de tamanho reduzido, com utilização de conceitos jurídicos em matérias relevantes como são as garantias e as consequências, de natureza indemnizatória, no caso de incumprimento e de rescisão contratual.
147. Todas as cláusulas vertidas nos contratos denominados de contratos de abertura de crédito em conta – corrente (em função de créditos a ceder à …), com o n.º e de mútuo (linha de crédito ... Investe IV – Caixa), com o n.º ,
148. não vinculam a … nem os embargantes, que intervieram nesse contrato, apondo a sua assinatura, sendo que o embargante na dupla qualidade de representante legal e de avalista.
149. A exclusão das cláusulas dos contratos subjudice em virtude de não ter sido cumprido o disposto no art.º 5.º n.os 1 e 2 e 6.º do DL n.º 446/85, de 25 de Outubro, determina que a quantia monetária, inscrita na livrança, deixou de ter suporte contratual e, por via disso, apenas subsistem as cláusulas inseridas nos contratos, respeitantes aos planos de limites, montante e taxa de juro. (Art.º 9.º do DL n.º 446/85, de 25 de Outubro)
150. Os embargantes invocaram o preenchimento abusivo da livrança por entenderem que só estavam vinculados ao cumprimento de uma obrigação que abrangesse o capital que estivesse, eventualmente, em incumprimento e
151. que não eram outrossim principais pagadores e responsáveis solidários pelo pagamento de quaisquer outros montantes, designadamente, a título de juros, remuneratórios ou moratórios, comissões, despesas ou quaisquer outros encargos que estivessem, eventualmente, em incumprimento, para além do capital, devidos por falta de pagamento dos contratos subjudice.
152. A invalidade do pacto de preenchimento e das cláusulas respeitantes às consequências do incumprimento consignadas nas cláusulas do designado contrato de abertura de crédito em conta– corrente (em função de créditos a ceder à …), com o n.º , não é extensível ao acordo (tácito), no qual intervieram os embargantes, sendo que o embargante na sua dupla qualidade de legal representante da … e avalista,
153. consubstanciado na entrega do título/livrança pela subscritora para posterior preenchimento, a cargo da exequente, em conformidade com as obrigações estritamente assumidas pelas partes, as quais, no caso concreto, se resumiam ao pagamento do capital que estivesse, eventualmente, em incumprimento.
154. Face ao exposto, o preenchimento abusivo da livrança em quantia superior à devida, decorrente do cálculo efectuado pela exequente com base nas cláusulas inválidas, por ter sido contrário àquele acordo tácito, e ser oponível à exequente, no âmbito das relações imediatas, determina, em princípio, a redução da quantia exequenda. (Art.º 10.º ex. vi 77.º da LULL)
155. Assim, à luz da lei processual civil, no que diz respeito ao contrato n.º … a reconfiguração da pretensão cambiária de modo a contê-la dentro dos limites excedidos e a redução parcial da execução para o capital que se encontrava em incumprimento (€ 147.693,14).
156. No sentido de tudo o que ora se deixou expendido, sustenta o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proc. n.º 1510/12.2TBFAF-A. G1, de 09.06.2016, que supra se deixou transcrito.
157. No que concerne ao contrato n.º …, da matéria de facto dada como provada não resulta que a exequente tenha entregue uma cópia do contrato de mútuo (linha de crédito ... Investe IV – Caixa) e que tenha, efetivamente, informado os embargantes de forma adequada, do alcance e sentido da cláusula 21B.
158. Por via disso, parece quanto a nós que o teor da cláusula 21B não se pode manter relativamente aos embargantes, por força do disposto no art.º 8.º als. a) do DL n.º 446/85, de 25 de Outubro, devendo ser excluído da economia contratual.
159. No entanto, caso assim se não entenda, e se reconheça que a ideia de fiança e fiador está, desde há muito, no domínio do senso comum e que os embargantes compareceram nas instalações da exequente, assinaram o contrato de mútuo em causa e, por isso sabiam ao que iam,
160. também nos parece, por assim ser justo, na hipótese de a fiança se manter, deve esta valer nos termos gerais, ou seja, naqueles que prevê o CC nos art.°s 627.º e seguintes, especialmente, no do art.º 627.º n.º 2 CC, sendo a obrigação dos embargantes acessórias relativamente à da obrigada principal.
161. Com efeito, caso se considere que os recorrentes não ignorassem que estavam a constituir-se fiadores de um empréstimo bancário, o mesmo já não se pode dizer das expressões «FIADORES solidários e principais pagadores de todas e quaisquer quantias (…)» e
162. «Os FIADORES renunciam ao benefício do prazo estipulado no art.º 762.º do Código Civil e ao exercício das excepções previstas no art.º 642.º do mesmo Código»,
163. que têm carácter técnico-jurídico, não sendo facilmente apreensível a não juristas, muito menos por pessoas que apenas possuem a 2.ª classe de escolaridade, como seja o embargante. (Vide, neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09.07.2015)
164. Pelo exposto, sem prejuízo do que supra se expendeu, caso se entenda que seria desproporcionado e contrário à boa fé excluir a cláusula relativa à fiança do contrato na sua totalidade,
165. quando apenas o segmento relativo ao benefício da excussão prévia estava fora da compreensão exigível aos recorrentes, deve considerar-se excluído o segmento «FIADORES solidários e principais pagadores de todas e quaisquer quantias (…)» , ao abrigo do disposto no artigo 8.º, alínea a), do DL n.º 446/85, de 25 de Outubro.
166. Significa isto que a fiança se deve manter, nos termos gerais do art.º 627.º n.º 2 CC, mantendo a característica da acessoriedade. (Vide, neste sentido, Acórdãos da Relação do Porto, proc. n.º 4570/08.7TBVNG-A. P2, de 14.06.2016, e de 18.03.2014)
167. Destarte, o Tribunal a quo, ao não entender que se deviam considerar por excluídas todas as cláusulas constantes dos contratos que confrontem e violem o disposto nos art.°s 5.º e 6.º do regime legal das Cláusulas Contratuais Gerais e que existindo pacto de preenchimento com cláusulas inválidas e, por isso, dele excluídas, inexiste qualquer autorização de preenchimento da livrança, não dispondo a exequente de título executivo válido; ou,
168. que a pretensão cambiária deveria ser reconfigurada de modo a contê-la dentro dos limites excedidos e ser reduzida parcialmente a execução para o capital que se encontrava em incumprimento (€147.693,14) e que se deveria ter excluído o segmento «FIADORES solidários e principais pagadores de todas e quaisquer quantias(…)» , violou o disposto nos art.°s 280º, 627.º n.º 2, 640.º al. a) CC, 1.º, 2.º, 5.º, 6.º, 8.º, als. a) e b) e 9.º do DL n.º 446/85, de 25 de Outubro, 10.º, 17.º, 30.º, 32.º 75.º e 77.º da LULL e 10.º n.os 5 e 6 CPC.

Finalizam, pugnando pela revogação da sentença recorrida, que deverá ser substituída por outra, julgando procedentes os embargos de executado deduzidos e absolvendo-se os embargantes do pedido.
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A embargada (…) apresentou contra-alegações, tendo concluído pela improcedência do recurso de apelação em causa.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DO OBJETO DO RECURSO:

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635º, n.º 4, 637º, n.º 2 e 639º, nºs 1 e 2, do C. P. Civil), não podendo o Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, n.º 2, in fine, ambos do C. P. Civil).

No seguimento desta orientação, cumpre fixar o objeto do presente recurso.

Neste âmbito, as questões decidendas traduzem-se nas seguintes:

- Saber se cumpre proceder à alteração da factualidade dada como provada e não provada pelo tribunal a quo nos moldes preconizados pelos recorrentes.
- Na sequência, saber se deverá ser realizada outra nova interpretação e aplicação do Direito à nova factualidade apurada, devendo ser alterada a decisão de mérito proferida.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Factos Provados

O tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:

1) No exercício da sua atividade, a exequente celebrou, no dia 18 de Dezembro de 2009, com a sociedade comercial (…) um contrato de abertura de crédito em conta corrente n.º … (em função de créditos a ceder à …).
2) O crédito seria disponibilizado, após pedido escrito da sociedade comercial … e aprovação da exequente, a efetuar, a exclusivo critério desta, em função dos créditos cedidos à …, no âmbito do contrato de factoring e uma vez confirmada a cessão pela exequente.
3) O capital em dívida na conta corrente seria reembolsado nas datas e à medida dos pagamentos que a … fosse efetuando.
4) No âmbito da atividade por si exercida, a … celebrou com a sociedade comercial … o contrato de factoring n.º …, tendo por objeto a aquisição por aquela, por cessão, de créditos comerciais a curto prazo, derivados da venda de mercadorias ou prestação de serviços por essa sociedade comercial (…) a terceiros.
5) A sociedade comercial … aceitou ceder à exequente o seu crédito sobre a … relativo ao pagamento das faturas dos seus devedores cujos créditos viessem a ser a esta cedidos, no âmbito do contrato de factoring n.º ….
6) Os devedores eram o Município de (…) e a sociedade comercial “...”
7) As quantias relativas ao crédito da sociedade comercial … sobre a … seriam entregues por esta última (…) logo que efetuada a cobrança das faturas cujos créditos tenham sido cedidos por aquela primeira àquela segunda.
8) No que concerne ao contrato de abertura de crédito em conta-corrente nº …, a exequente ficou garantida com aval e com cessão de créditos da sociedade comercial … sobre a ….
9) A sociedade comercial … foi declarada insolvente, por sentença proferida no dia 13.04.2011, nos autos de processo de insolvência que correu seus termos, sob o n.º (…), pelo 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de (…).
10) A exequente reclamou nos autos de insolvência da … a quantia de € 147.693,14, a qual foi reconhecida, no âmbito do contrato de abertura de crédito em conta-corrente n.º ….
11) Um dos títulos executivos que fundamenta a propositura da presente execução contra os embargantes é uma livrança.
12) No dia 30 de Dezembro de 2009, a (…) celebrou com a sociedade “….” e com os aqui embargantes, na qualidade de avalistas, um Contrato de Abertura de Crédito em Conta-Corrente (em função de créditos a ceder à CAIXA … LEASING E FACTORING, S.A.), até ao montante máximo de € 300.000,00 (trezentos mil euros), a que corresponde a operação PT (…).
13) Nessa mesma data e para titular e assegurar o pagamento de todas as responsabilidades decorrentes do mencionado contrato, foi entregue à (…) uma livrança com montante e vencimento em branco, subscrita pela sociedade mutuária e avalizada por (…) e (…)
14) Cujo pacto de preenchimento integrava o próprio contrato de abertura de crédito em conta corrente.
15) O embargante apôs a sua assinatura no contrato de abertura de crédito em conta corrente supra mencionado e na livrança que o caucionava, quer na qualidade de representante legal da sociedade mutuária, quer a título pessoal.
16) A embargante apôs a sua assinatura quer no mencionado contrato, quer na livrança que o caucionava, a título pessoal, na qualidade de avalista.
17) O que fizeram de forma livre e consciente.
18) Na presença de dois funcionários da (…).
19) Cientes de que a prestação desses avais foi determinante na decisão da (…) em contratar nos termos e nas circunstâncias em que o fez.
20) E que a prestação dos avais foi condição sine qua non para a concretização da operação de crédito.
21) Por força do mencionado contrato de abertura de crédito em conta corrente, a (…) disponibilizou para utilização pela sociedade mutuária a quantia de € 147.693,14 (cento e quarenta e sete mil seiscentos e noventa e três euros e catorze cêntimos).
22) O que fez mediante crédito lançado na conta de depósitos à ordem nº …, titulada pela sociedade mutuária, que utilizou a referida quantia em seu proveito próprio.
23) Quantia que se encontra em dívida a título de capital e a que acrescem juros.
24) Os valores foram disponibilizados após pedido do cliente e em função dos créditos cedidos à … no âmbito do contrato de factoring mencionado nos autos.
25) O montante global ainda em dívida a título de capital acha-se através da soma das seguintes utilizações, respeitantes às faturas que se discriminam abaixo:
a) € 94.349,39 (noventa e quatro mil trezentos e quarenta e nove euros e trinta e nove cêntimos), correspondentes a 90% do valor da factura n.º 1326, em que figura como cliente a sociedade “….”, datada 30 de Janeiro de 2010;
b) € 9.819,79 (nove mil oitocentos e dezanove euros e setenta e nove cêntimos), correspondentes a 90% do valor da factura n.º 1330, em que figura como cliente aquela mesma sociedade, datada de 30 de Janeiro de 2010;
c) € 10.715,34 (dez mil setecentos e quinze euros e trinta e quatro cêntimos), correspondentes a 90% do valor da factura n.º 1375, em que figura como cliente aquela mesma sociedade, datada de 31 de Maio de 2010;
d) € 45.250,06 (quarenta e cinco mil duzentos e cinquenta euros e seis cêntimos), correspondentes a 90% do valor da factura n.º 1376, em que figura como cliente aquela mesma sociedade, datada de 31 de Maio de 2010.
26) Por conta da apresentação das faturas mencionadas em a) e b), a Caixa ... creditou na conta da sociedade mutuária, a 24.02.2010, a quantia global de € 104.169,18 (cento e quatro mil cento e sessenta e nove euros e dezoito cêntimos).
27) Por conta da apresentação das faturas mencionadas em c) e d) a Caixa ... creditou na conta da sociedade mutuária, a 18.06.2010, a quantia global de € 20.518,69 (vinte mil quinhentos e dezoito euros e sessenta e nove cêntimos) e a quantia de € 35.602,82 (trinta e cinco mil seiscentos e dois euros e oitenta e dois cêntimos) a 22.09.2010.
28) A … não logrou proceder à cobrança da totalidade das referidas faturas, pese embora tenha agido judicialmente no intuito de alcançar tal fito.
29) Motivo pelo qual não foi entregue à … quantia suficiente para a liquidação dos valores supra mencionados.
30) Com a declaração de insolvência da sociedade mutuária “.” venceram-se todas as suas dívidas, tendo ficado até contratualmente estipulado que “A Caixa poderá considerar antecipadamente vencida toda a dívida e exigir o seu imediato pagamento no caso de insolvência da CLIENTE e/ou dos AVALISTAS (…)”.
31) Uma vez que não logrou recuperar o valor em dívida, quer no âmbito da supra-referida insolvência, quer por via da … (que não logrou cobrar a dívida titulada pelas faturas supra discriminadas) a … procedeu ao acionamento das garantias concedidas, designadamente, através do preenchimento da livrança-caução, nos termos do pacto de preenchimento assinado pelos aqui embargantes.
32) A referida livrança foi preenchida a 06.12.2013, tendo-lhe sido aposta tal data de vencimento, pelo montante em dívida a essa mesma data, de acordo com os seguintes cálculos: € 147.693,14 correspondentes a capital, € 63.028,34 respeitantes a juros de mora calculados à taxa contratual, € 476,78 de comissões e € 1.061,30 respeitantes a despesas.
33) Nessa mesma data, a … interpelou os aqui embargantes para o pagamento da dívida mediante missivas endereçadas para a morada onde estes residiam.
34) Missivas, essas, que foram pelos mesmos recebidas.
35) No dia 13 de Janeiro de 2010, a … celebrou, ainda, com a sociedade “….” e com os aqui embargantes, na qualidade de fiadores, um Contrato de Mútuo (linha de crédito ... IV – Caixa), no montante de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), correspondente à operação PT(…).
36) A quantia mutuada foi disponibilizada pela exequente, para utilização da sociedade mutuária, no dia 26.01.2010, mediante crédito lançado na conta de depósitos à ordem já mencionada.
37) Nos termos do referido contrato de mútuo a sociedade mutuária obrigou-se à amortização do montante mutuado mediante o pagamento de prestações trimestrais constantes, de capital e juros, vencendo-se a primeira no correspondente dia do trimestre seguinte ao da perfeição do contrato e as seguintes em igual dia dos trimestres seguintes.
38) A última prestação integralmente paga pela sociedade mutuária corresponde à prestação n.º 5, vencida em 12.ABR.2011.
39) Desde então, nenhum outro pagamento foi efetuado (exceção feita ao montante entregue pela … por força da garantia prestada).
40) De tal circunstância, foram os aqui embargantes informados, mediante missivas dirigidas pela … para a morada onde residem, a 13.04.2011.
41) Os contratos em questão nos autos foram especificamente negociados.
42) Tendo a sociedade mutuária, representada pelo aqui embargante, negociado com a …, não só a contratação dessas operações, mas também os seus específicos termos e condições contratuais.
43) Previamente à assinatura dos mencionados contratos por parte dos respetivos avalistas/fiadores, foi facultada – através do aqui embargante – um exemplar do contrato de mútuo a contratar.
44) Os avalistas/fiadores compareceram na agência da exequente em Viana do Castelo, onde outorgaram, na presença de dois funcionários da Caixa ..., os contratos em causa.
45) Os outorgantes não solicitaram qualquer esclarecimento sobre o conteúdo e/ou alcance de quaisquer das cláusulas insertas nos contratos.
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Factos não provados

No que se refere aos factos não provados, o tribunal a quo fez constar que:

Não resultaram provados quaisquer outros factos com interesse para a justa decisão da causa. Nomeadamente, não resultou provado:

1) A livrança, título executivo dos presentes autos, não foi apresentada a pagamento aos ora embargantes, na data de vencimento do título de crédito.
2) A exequente não comunicou aos ora embargantes a data de vencimento do título de crédito preenchido por esta e do contrato de mútuo, com o n.º ….
3) Os executados apenas tomaram conhecimento do preenchimento da livrança e de todos os seus elementos e da data de vencimento do contrato de mútuo nº …, com a citação da presente execução.
4) A exequente não realizou atos de cobrança (interpelação) das alegadas obrigações cartulares, na sede social da sociedade comercial subscritora, como não interpelou o representante legal, nessa qualidade, no seu domicílio e os ora executados na sua residência para pagamento da quantia alegadamente em dívida.
5) Uma vez feita a cessão de créditos a favor da exequente, só ela pode pedir o respetivo pagamento.
6) Pese embora esteja consagrado nos considerandos do contrato supra-mencionado que foi a sociedade comercial … que propôs à exequente a cedência do seu crédito sobre a …, para segurança do financiamento solicitado, acontece, porém, que não corresponde à verdade o que nele dito vem.
7) Esta garantia foi condição imposta pela exequente, tendo-a a si mesmo como cessionária da cessão de créditos da sociedade comercial … sobre a ….
8) Os avalistas pensaram que em caso de incumprimento contratual não seriam chamados a pagar, uma vez que a instituição bancária ficou garantida com os créditos cedidos sobre um terceiro (…).
9) O crédito sobre a … seria sempre acionado e cobriria o que era devido, ficando os demais obrigados, ora executados, libertos.
10) A exequente ao exigir dos avalistas o seu crédito age com má fé.
11) O representante legal da sociedade comercial … acreditou, por assim lhe ter sido dito pela exequente, que a conta-corrente apenas seria accionada em caso de incumprimento pela … das suas obrigações perante a …, no âmbito do contrato de factoring n.º ….
12) O representante legal da … e a … acreditaram sempre que quem pagou a esta o valor dos seus créditos foi a … no âmbito do contrato de factoring Nº …
13) O representante legal da … pensou que a ora exequente apenas seria chamada para disponibilizar qualquer quantia caso a … não efetuasse o pagamento à ….
14) A exequente não cumpriu o seu dever de comunicação, de modo adequado e com a antecedência necessária, para que os executados/avalistas/fiadores tivessem conhecimento completo do teor e conteúdo das cláusulas, da sua importância, extensão e complexidade.
15) Não foi dada aos outorgantes, ora embargantes, em vez alguma, a cópia dos contratos nas datas de celebração dos mesmos, como não lhes foi informado e comunicado o teor, conteúdo e contornos das cláusulas contratuais gerais apostas nos mesmos.
16) Apesar de tal lhe ter sido solicitado, nas datas de celebração dos contratos e já após a citação dos presentes autos de execução, a exequente não entregou aos embargantes cópia dos alegados contratos sub judice.
17) Os executados/avalistas/fiadores não negociaram com a exequente as cláusulas dos contratos mencionados, como não tinham consciência das obrigações clausuladas constantes dos contratos que assinavam.
18) A exequente não comunicou, informou e esclareceu, a posição contratual dos fiadores e avalistas e a contração de obrigações pessoais e cambiárias, antes e aquando da celebração dos contratos mencionados.
19) Os executados/avalistas/fiadores acreditaram, por assim lhes ter sido dito pela exequente, que a única garantia que seria dada à execução para cumprimento integral e tempestivo de todas as obrigações do contrato de abertura de crédito em conta-corrente n.º … seria a cessão de crédito da sociedade comercial … sobre a ….
20) A livrança subscrita seria apenas uma mera formalidade interna da exequente, por excesso de garantismo, porquanto, em caso de eventual incumprimento contratual pela subscritora, o título de crédito em apreço não seria dado à execução, por ser mais que suficiente para pagamento das obrigações contraídas a cessão de crédito da sociedade comercial … sobre a ….
21) Não era vontade da sociedade comercial subscrever a livrança e dos avalistas dar o aval para pagamento de qualquer quantia, eventualmente, em incumprimento, devida por falta de pagamento do contrato de abertura de crédito em conta-corrente n.º ….
22) Os ora embargantes não devem, na presente data, à exequente, a quantia peticionada, seja a que título for.
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IV) FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A) Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

A primeira questão que importa dirimir, em função das conclusões do recurso apresentadas, refere-se à impugnação da decisão sobre a matéria de facto constante da decisão recorrida.

Ora, a possibilidade de reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, está, como é consabido, subordinada à observância de determinados ónus que a lei adjetiva impõe ao recorrente.

Na verdade, a apontada garantia nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida na audiência final, impondo-se, por isso, ao recorrente, no respeito dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa-fé processuais, que proceda à delimitação com, toda a precisão, dos concretos pontos da decisão que pretende questionar, os meios de prova, disponibilizados pelo processo ou pelo registo ou gravação nele realizada, que imponham, sobre aqueles pontos, distinta decisão, e a decisão que, no ver do recorrente, deve ser encontrada para os pontos de facto objeto da impugnação. (1)

Neste sentido, preceitua, sob a epígrafe «Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto», dispõe o n.º 1 do art. 640º do C. P. Civil, que “ Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Por seu turno, ainda, em conformidade com o n.º 2 do mesmo normativo, sempre que “(…) os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.” (sublinhado nosso).

Deve, assim, o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, para além de delimitar com precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, motivar ainda o seu recurso através da indicação das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, determinam decisão diversa da que foi proferida sobre a matéria de facto.

Os aspetos fundamentais que o recorrente deve assegurar neste particular prendem-se com a definição clara do objeto da impugnação (clara enunciação dos pontos de facto em causa); com a seriedade da impugnação (meios de prova indicados ou meios de prova oralmente produzidos que são explicitados) e com a assunção clara do resultado pretendido (indicação da decisão da matéria de facto diversa da decisão recorrida).

Porém, importa que não se sobrevalorizem os requisitos formais a um ponto que seja violado o princípio da proporcionalidade e seja denegada a reapreciação da decisão da matéria de facto com a invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara na letra ou no espírito do legislador.

Assim, como salienta Abrantes Geraldes (2), o Supremo Tribunal de Justiça “vem batalhando precisamente no sentido de evitar os efeitos de um excessivo formalismo que ainda marca alguns acórdãos das Relações, promovendo que o esforço que é aplicável na justificação de soluções que exponenciam aspectos de natureza meramente formal sem suficiente tradução na letra da lei, nem no espírito do sistema, seja canalizado para a efectiva apreciação das impugnações de matéria de facto”. (3)

Por outro lado, na fase da admissão formal do recurso de apelação em que é impugnada a decisão da matéria de facto, importa que se estabeleça uma clara separação entre os requisitos formais e os ligados ao mérito ou demérito da pretensão que será avaliado em momento posterior.

Deste modo, havendo “sérios motivos para a rejeição do recurso sobre a matéria de facto (maxime quando o recorrente se insurja genericamente contra a decisão, sem indicação dos pontos de facto, quando não indique de forma clara nem os pontos de facto impugnados, nem os meios de prova em que criticamente se baseia ou quando nem sequer tome posição clara sobre a resposta alternativa pretendida) tal efeito apenas se repercutirá nos segmentos afectados, não colidindo com a admissibilidade do recurso quanto aos demais aspectos. (4)

Tendo, assim, presente este enquadramento legal, cumpre decidir.

No caso em apreço, os recorrentes cumprindo, no essencial, os apontados requisitos formais, pretendem a alteração da factualidade dada como assente e não assente, de modo que a factualidade aludida nos nºs 28), 31), 41), 42), 43), 44) e 45) dos factos dados como provados passe a ter a redação que é proposta pelos recorrentes.

Por seu turno, entendem igualmente os recorrentes que os factos não provados sob os nºs 6 e 7, deverão antes ser incluídos na factualidade dada como provada

Aos recorrentes defendem, no essencial, que deverá ser dado especial relevo ao teor das declarações de parte dos recorrentes, em conjugação com o depoimento da testemunha (…), os quais têm conhecimento direto e presencial com todo o processo negocial que esteve na base da outorga dos contratos em causa, contrariamente ao que sucede com as testemunhas (..) e (…), as quais apenas intervenção presencial e pessoal no momento da conferência de assinaturas dos avalistas.

Os recorrentes realçam ainda o teor da informação prestada pelo Sr. Administrador de Insolvência a 18.11.2015 e a 24.02.2017, nomeado nos autos de insolvência referidos, o qual deu conta que é muito provável que venham a ser pagos parte dos créditos da … relativos às faturas que titulam os créditos objeto do identificado contrato de factoring, sendo certo já foi efetuado um rateio parcial no valor de € 460.000,00, tendo a … recebido a quantia de € 14.237,48.

Tendo presente, assim, a fundamentação convocada pelo tribunal recorrido e a impugnação deduzida pelos recorrentes, importa saber se, procedendo este tribunal superior à reanálise dos meios probatórios convocados, a sua própria e autónoma convicção é coincidente ou não com a convicção evidenciada, em sede de fundamentação, pelo tribunal recorrido e, por inerência, se se impõe uma decisão de facto diversa da proferida por este último, nos concretos pontos de facto postos em crise.

Com efeito, em sede de reapreciação da prova gravada no âmbito do recurso da decisão sobre a matéria de facto, haverá que ter em consideração, como sublinha Abrantes Geraldes (5), que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa sua reapreciação tem ele autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia.

Assim, competirá ao Tribunal da Relação reapreciar de forma crítica as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, sujeito às mesmas regras de direito probatório a que se encontrava sujeito o tribunal recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que tenham sido produzidos nos autos, incluindo, naturalmente, os que tenham servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.

De facto, o acesso direto do Tribunal da Relação à gravação integral do julgamento antes efetuado, terá de permitir-lhe, na formação da sua própria e autónoma convicção, sustentada numa análise crítica da prova, para além da apreciação dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente, a ponderação e a reanálise de todos os meios probatórios produzidos, sujeitos às mesmas regras de direito probatório material a que se encontra sujeito o tribunal de 1ª instância, enquanto forma, por um lado, de atenuar a inevitável quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, e, por outro, ainda, de evitar julgamentos descontextualizados ou parciais, submetidos apenas à leitura dos meios probatórios convocados pelo recorrente.
Pretende-se, pois, uma visão global, integrada e contextualizada de todos os meios probatórios produzidos, como garantia de uma decisão de facto o mais próxima possível da realidade, sem que tal implique a procura de uma verdade ou de uma certeza naturalística ou absoluta, que é, por princípio, insuscetível de ser alcançada.
Por outro lado, ainda, no que se refere à reapreciação da prova, em particular quando se trata de reapreciar a força probatória dos depoimentos/declarações prestados pelas partes ou por testemunhas ou, ainda, a reapreciação da prova pericial, é de recordar que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da livre apreciação da prova (6), princípio que expressamente se consagra no art. 607º, n.º 5, do C. P. Civil. (7)

De facto, ao contrário do que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, sem pré-fixação legal do mérito de tal julgamento, mas sempre sendo de exigir que esse mérito decorra de uma apreciação crítica e integrada de todo o acervo probatório produzido, ou seja, de uma ponderação da prova produzida à luz das regras da experiência humana, da lógica e, se for esse o caso, das regras da ciência convocáveis ao caso, ponderação essa que deverá ficar plasmada na fundamentação do decidido (art. 607º, n.º 4, do C. P. Civil).

Como refere Miguel Teixeira de Sousa (8), a propósito do sistema de prova livre, o que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique “os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado. A exigência de motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão.”
Nesta perspetiva, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da lógica, da ciência ou da experiência, à partida, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção.
Todavia, face aos atuais poderes da Relação ao nível da reapreciação da decisão de facto, daí não decorre que não possa e não deva o tribunal ad quem analisar, também ele, criticamente, e sujeito às mesmas regras da experiência, da lógica e da ciência, a prova produzida, formando ele próprio, uma nova e autónoma convicção, caso em que, constatando, que ela não é coincidente com a convicção formada pelo Sr. Juiz da 1ª instância, deverá efetuar as correções na matéria de facto que aquela sua convicção lhe imponha.
Quando um Tribunal de 2ª instância, ao reapreciar a prova, valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção, a que também está sujeito, conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, deve proceder à modificação da decisão, afirmando os reconhecidos poderes que lhe foram atribuídos enquanto tribunal de instância que garante um segundo grau de jurisdição.
Deste modo, quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos ou estando em causa a análise de meios prova reduzidos a escrito e constantes do processo, deve o mesmo considerar os meios de prova indicados pela partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido, seja no sentido de decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão no sentido restritivo ou explicativo. (9)
Importa, porém, não esquecer que se mantêm-se em vigor os princípios de imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, pelo que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.

Assim, “em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância, em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte”. (10)

Feitas estas considerações prévias, cumpre-nos, pois, conhecer da factualidade impugnada pelos recorrentes.

No que se refere aos factos provados impugnados, o tribunal a quo deu como provado a seguinte factualidade:

28) A … não logrou proceder à cobrança da totalidade das referidas faturas, pese embora tenha agido judicialmente no intuito de alcançar tal fito.
31) Uma vez que não logrou recuperar o valor em dívida, quer no âmbito da supra-referida insolvência, quer por via da … (que não logrou cobrar a dívida titulada pelas faturas supra discriminadas) a … procedeu ao acionamento das garantias concedidas, designadamente, através do preenchimento da livrança-caução, nos termos do pacto de preenchimento assinado pelos aqui embargantes.
41) Os contratos em questão nos autos foram especificamente negociados.
42) Tendo a sociedade mutuária, representada pelo aqui embargante, negociado com a …, não só a contratação dessas operações, mas também os seus específicos termos e condições contratuais.
43) Previamente à assinatura dos mencionados contratos por parte dos respetivos avalistas/fiadores, foi facultada – através do aqui embargante – um exemplar do contrato de mútuo a contratar.
44) Os avalistas/fiadores compareceram na agência da exequente em Viana do Castelo, onde outorgaram, na presença de dois funcionários da …, os contratos em causa.
45) Os outorgantes não solicitaram qualquer esclarecimento sobre o conteúdo e/ou alcance de quaisquer das cláusulas insertas nos contratos.

Neste particular, os recorrentes pretendem que seja alterada esta decisão incidente sobre a matéria de facto apurada, atribuindo-se aos referidos pontos de facto provados impugnados a seguinte redação:

28) A … ainda não logrou proceder à cobrança da totalidade das referidas facturas, pese embora tenha agido judicialmente no intuito de alcançar tal fito, sendo que é muito provável que venham a ser pagas parte das mesmas no âmbito dos autos de insolvência n.º (…) que correm seus termos pelo 3.º Juízo Local Cível de (…) do Tribunal Judicial da Comarca de (…);
31) Uma vez que ainda não logrou recuperar o valor em dívida, quer no âmbito da supra-referida insolvência (pese embora tenha entretanto recebido, por via do rateio parcial realizado nos autos referidos no ponto 9)), a quantia de € 14.237,48, existindo ainda a probabilidade de vir a receber mais quantias no mencionado processo de insolvência), quer por via da … (que não logrou cobrar a dívida titulada pelas facturas supra discriminadas, sendo que é muito provável que venham a ser pagas parte das mesmas nos autos referidos no ponto 28)) a … procedeu ao accionamento das garantias concedidas, designadamente, através do preenchimento da livrança-caução, nos termos do pacto de preenchimento assinado pelos aqui embargantes.
41) O contrato mencionado no ponto 12) foi especificamente negociado no que diz respeito aos planos de limites e taxa de juro.
42) Tendo a sociedade …, representada pelo aqui embargante, negociado com a … a contratação dessa operação nos termos referidos no ponto 41).
43) Previamente à assinatura por parte dos respectivos avalistas do contrato mencionado no ponto 12), foi facultada ao embargante um exemplar do referido contrato.
44) Os avalistas compareceram na agência da exequente em …, onde outorgaram, na presença de dois funcionários da …, o contrato mencionado no ponto 12).
45) A embargante solicitou esclarecimentos sobre o conteúdo e/ou alcance das cláusulas insertas nos contratos ao funcionário ….

Por seu turno, a sentença recorrida deu como não provado sob os pontos infra discriminados que:

6) Pese embora esteja consagrado nos considerandos do contrato supra-mencionado que foi a sociedade comercial … que propôs à exequente a cedência do seu crédito sobre a …, para segurança do financiamento solicitado, acontece, porém, que não corresponde à verdade o que nele dito vem.
7) Esta garantia foi condição imposta pela exequente, tendo-a a si mesmo como cessionária da cessão de créditos da sociedade comercial … sobre a ….

Os recorrentes discordam, porém, de tal decisão, entendendo antes que a mesma factualidade deverá ser dada como provada.

Analisada a prova produzida, em especial os depoimentos dos embargantes e das apontadas testemunhas referidas, neste particular, pelos recorrentes, assim como toda a prova documental junta, em especial o teor das informações acima aludidas prestadas pelo AI no identificado processo de insolvência, e da mesma não foi possível, de facto, concluir, com a necessária segurança, pela existência de um erro de apreciação relativamente aos referidos pontos de facto ora impugnados.

Desde logo, cumpre dizer que, conforme resulta da matéria de facto apurada, a livrança em causa tem, como data de vencimento, o dia 06.12.2013; sendo que, as informações prestadas pelo AI respetivo em Novembro de 2015, Fevereiro, Agosto e Setembro de 2016, vão no sentido de que os créditos reclamados pela … e pela … ainda não haviam sido pagos a qualquer uma destas credoras, por via dos contratos celebrados (cfr. docs. de fls. 288, 297, 339, 344, 351, 353 e 364 verso).
Outrossim, se é certo que resulta da informação prestada pelo AI a 24.02.2017, que coube à … o valor de € 14.237,48, no rateio efetuado na insolvência da …, não sabemos se o mesmo valor serviu para pagamento parcial da quantia exequenda ou se refere a qualquer outro crédito reclamado pela …, tanto mais que o mesmo AI faz alusão a créditos comuns e a crédito sob condição.
Não obstante, a pretendida modificação factual dos pontos 28) e 31) quanto ao alegado pagamento parcial e hipotético pagamento de valores reclamados pela … não assume relevância para decisão factual em presença, considerando a data de vencimento da livrança exequenda, podendo, quando muito, representar futuramente, no decurso processo executivo, valores a ter em conta para efeito do pagamento parcial da quantia exequenda.

No que se refere à factualidade dada como assente sob os pontos 41) a 45) dos factos assentes, os recorrentes pretendem a sua modificabilidade, chamando à colação em especial as declarações de parte dos embargantes e depoimentos das testemunhas (…).
No que se refere às declarações de parte dos embargantes cumpre desde já salientar que, sufragamos aqui o entendimento maioritário da doutrina e da jurisprudência, segundo o qual o depoimento de parte e as declarações de parte em que não exista confissão, embora fiquem sujeitas à livre apreciação do julgador (art. 466º, n.º 3, do C. P. Civil), nunca servem, por si só, para fundamentar que se dê como provada a tese factual sustentada pelo declarante em sede de depoimento de parte ou declarações de parte em benefício próprio, tendo antes de ser corroboradas por outros elementos de prova. (11)
Não obstante exista uma outra corrente doutrinal e jurisprudencial mais recente, que sustenta que o depoimento e as declarações de parte, sem valor confessório, podem valer à luz do princípio da livre convicção do tribunal, em benefício do próprio declarante, ainda que desacompanhados de outros elementos de prova que as corroborem, tudo dependendo do modo como são prestadas e a maior ou menor dificuldade probatória do facto sobre que versam, repudiando a degradação antecipada do respetivo valor probatório, o seu estigma precoce, relembrando que se está perante uma prova autónoma, consagrada em termos amplos, e não apenas como mero princípio de prova, em relação à qual deverá valer plenamente a livre convicção do juiz (12), os defensores desta corrente não deixam de salientar para a necessidade de serem adotados cuidados acrescidos na valoração favorável deste elemento de prova em benefício do próprio declarante ou depoente, sabendo-se que “… não é material e probatoriamente irrelevante o facto de estarmos a analisar as afirmações de um sujeito processual claramente interessado no objeto em litígio e que terá um discurso, muito provavelmente, pouco objetivo sobre a sua versão dos factos que, inclusivamente, já teve oportunidade para expor no articulado”. (13)
Acontece que, como referido, mesmo segundo esta corrente impõe-se adotar especiais cautelas na valoração deste meio probatório em benefício do próprio depoente ou declarante, nunca podendo o julgador olvidar que as declarações de parte prestadas, no nosso caso pelos embargantes apelantes, são necessária e naturalmente interessadas.
No essencial, resulta das declarações de parte prestadas pelos embargantes (em especial nas passagens indicadas pelos apelantes) que os mesmos assinaram os contratos em questão e prestaram os seus avais sem que lhe tivessem sido dada uma informação mais completa sobre o teor dos mesmos contratos; sendo certo que o embargante aceita que lhe foi facultada cópia do contrato mencionado em 12) ao contrário da embargante que vai ao ponto de afirmar que se viu intimidada e pressionada a assinar os contratos e avais em questão.
Ora, analisada a restante prova produzida, muito em especial o depoimento da testemunha (…), na ocasião gerente da respetiva agência da … onde foram celebrados os contratos e subscritos os avais em análise, resulta que a mesma testemunha logrou explicar pormenorizadamente os contratos em questão e as garantias prestadas pelos embargantes.

Assim, no que se refere ao contrato referido em 12), na medida em que estávamos perante um contrato de factoring com recurso, a … intervinha para adiantar (em 90%) os valores faturados pela empresa … junto dos identificados devedores, os quais, após boa cobrança por parte da … (porque a … não podia cobrar faturas), eram creditados na conta corrente da … e daí a necessidade da “conta corrente caucionada”, pois que os valores eram adiantados pela ….
Esta mesma testemunha confirmou igualmente que os contratos em questão foram devida e previamente negociados pelas partes, sendo certo que os mesmos foram disponibilizados pela …, pelo menos ao embargante (marido da embargante), vários dias antes da assinatura dos mesmos contratos (até porque estes tiveram que ir previamente reconhecer a assinatura do representante legal da empresa …), sendo certo que a embargante esteve presente na … e não teve quaisquer dúvidas antes da assinatura dos contratos (cfr. 32.00 a 34.05 m do seu depoimento gravado, 1ª parte; 41,00 a 45,15 m da 2ª parte do seu depoimento gravado).
Esta situação afigura-se-nos essencial, pois que, uma vez disponibilizados os contratos em presença, dias antes da assinatura dos mesmos, os embargantes tiveram efetiva oportunidade de ler demoradamente todas as cláusulas dos mesmos contratos, solicitando se necessário todas as informações que se lhe afigurassem necessárias, o que não fizeram.
Outrossim, o reconhecimento da assinatura do representante legal da empresa antes da assinatura dos mesmos contratos, permite-nos concluir que os contratos foram antecipadamente dados a conhecer e percecionados pelos embargantes.
A oposição da sua assinatura no local destinado aos “avalistas/fiadores” dos contratos respetivos, também nos inculca a convicção de que os mesmos teriam necessariamente de ser sabedores que a subscrição dos mesmos contratos implicava para eles a prestação de garantias pessoais daí advenientes.
De igual modo, as testemunhas (…) (cfr. 22,00 a 23,40 m e 08.15 a 12,15 m do seus depoimentos gravados, respetivamente) confirmaram que conferiram a assinatura dos embargantes presencialmente no momento da respetiva assinatura (cfr. ainda doc. de fls. 32), o que se afasta do depoimento da embargante que afirma que assinou pressionada o primeiro contrato unicamente na presença da testemunha (…).
Realce-se ainda que quanto à subscrição do contrato referido em 35), a mesma mostra-se devidamente documentada nos autos (cfr. docs. de fls. 317 a 331), sendo certo que, em sede de declarações de parte, nenhum dos embargantes pôs em causa a celebração do mesmo contrato, designadamente por ausência de qualquer tipo de negociação anterior ou desconhecimento do seu clausulado.
Sublinhe-se igualmente que, conforme resulta do teor da cláusula 7. do contrato de abertura de crédito em conta corrente é patente a identificação dos “Devedores” dos quais os créditos a … pretendia a antecipação das respetivas faturas, o que só poderia resultar de prévia informação desta à …, negociando-se ou contratualizando-se em seguida nesse sentido.
Também não foi feita qualquer prova minimamente cabal e coerente no sentido de que houve imposições por parte da exequente, através dos seus funcionários, na celebração dos contratos em causa.

Daqui resulta, em suma, que este tribunal ad quem não possui qualquer elemento idóneo que possa abalar a livre convicção do tribunal recorrido quanto aos fundamentos da decisão sobre a matéria de facto, que se mostra assim inalterável, face à prova produzida.
Improcedem, pois, neste segmento, os fundamentos de recurso dos apelantes.
*
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B) Da nova fundamentação de direito

B.1) Do abuso de direito

Invocam ainda os recorrentes que a exequente, ao exigir dos avalistas o seu crédito, age com má fé e, concomitantemente, em abuso de direito (art. 334º, do C. Civil) uma vez que tem na sua disponibilidade a garantia de cessão do crédito da sociedade … sobre a …, a título de dação pro solvendo.

Mais invocam que, com a cessão de créditos a exequente passou a ser credora de duas prestações e a ter garantia sobre dois patrimónios; ou seja, sobre o património da sua devedora (…), e, em simultâneo, sobre o património da devedora da sua devedora (…).

Concluem, assim, que o tribunal a quo ao não considerar que a exequente não pode exigir aos executados o cumprimento enquanto, por um lado, não procurar obter satisfação mediante o crédito cedido, através de venda, de cobrança ou de realização do direito prestado e, por outro lado, não demonstrar que a … não recebeu ou que não vai receber as quantias para pagamento das faturas que titulam os créditos objeto do contrato de factoring n.º … e não as entregou à exequente, no âmbito da cessão de créditos consagrada no contrato de abertura de crédito em conta corrente n.º …, violou o disposto no art. 334º, 762º, n.º 2 e 840º, do C. Civil.

O abuso do direito – art. 334º, do C. Civil – traduz-se no exercício ilegítimo de um direito, resultando essa ilegitimidade do facto de o seu titular exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Para Manuel de Andrade “há abuso do direito quando o direito, legitimo (razoável) em princípio, é exercido, em determinado caso, de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante; e a consequência é a de o titular do direito ser tratado como se não tivesse tal direito ou a de contra ele se admitir um direito de indemnização baseado em facto ilícito extracontratual”. (14)

Para Vaz Serra, o ato abusivo é, em regra, o exercício de um direito que, intencionalmente, causa danos a outrem, por forma contrária à consciência jurídica dominante na coletividade social. Só excecionalmente se prescindindo da intenção de prejudicar terceiros quando a contraditoriedade àquela consciência, isto é, à boa fé e aos bons costumes, for clamorosa ou quando o direito for exercido para fim diverso daquele para que a lei o concede. (15)

Noutra perspetiva, para Antunes Varela, “para que haja lugar ao abuso de direito, é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito.(16)
Daí que o exercício de um direito só poderá haver-se por abusivo quando exceda manifesta, clamorosa e intoleravelmente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito, ou seja, quando esse direito seja exercido em termos gritantemente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante. (17)
O instituto do abuso de direito visa “obtemperar a situações em que a concreta aplicação de um preceito legal que, na normalidade das situações seria ajustada, numa específica situação da relação jurídica, se revela injusta e fere o sentido de justiça dominante. (18)
Trata-se de uma válvula de segurança, uma das cláusulas gerais com que o legislador pode obtemperar à injustiça chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalecente na comunidade social, à injustiça de proporções intoleráveis para o sentimento jurídico imperante, em que redundaria o exercício de um direito por lei conferido. (19)
No entanto, aceitamos que para a verificação do abuso de direito não se exige que o titular do direito tenha consciência de que o seu procedimento é abusivo; basta que, objetivamente, esses limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito exercido tenham sido exercidos de forma evidente, sendo esta a conceção objetivista do abuso do direito adotada pelo legislador. (20)

Isto não significa, porém, que ao conceito de abuso do direito sejam alheios fatores subjetivos, como por exemplo a intenção com que o titular tenha agido. A consideração destes fatores pode relevar, quer para determinar se houve ofensa da boa fé ou dos bons costumes, quer para decidir se se exorbitou do fim social ou económico do direito. (21)

O abuso de direito tem sido analisado sobretudo nas modalidades de “venire contra factum proprium”, de “inalegabilidades formais”, de “suppressio”, de “tu quoque” e de “desequilíbrio entre exercício do direito e os efeitos dele derivados.” (22)

Da matéria de facto assente resulta, designadamente, que:

1) No exercício da sua atividade, a exequente celebrou, no dia 18 de Dezembro de 2009, com a sociedade comercial … um contrato de abertura de crédito em conta corrente n.º … (em função de créditos a ceder à …).
2) O crédito seria disponibilizado, após pedido escrito da sociedade comercial … e aprovação da exequente, a efetuar, a exclusivo critério desta, em função dos créditos cedidos à …, no âmbito do contrato de factoring e uma vez confirmada a cessão pela exequente.
3) O capital em dívida na conta corrente seria reembolsado nas datas e à medida dos pagamentos que a … fosse efetuando.
4) No âmbito da atividade por si exercida, a … celebrou com a sociedade comercial … o contrato de factoring n.º …, tendo por objeto a aquisição por aquela, por cessão, de créditos comerciais a curto prazo, derivados da venda de mercadorias ou prestação de serviços por essa sociedade comercial (…) a terceiros.
5) A sociedade comercial … aceitou ceder à exequente o seu crédito sobre a … relativo ao pagamento das faturas dos seus devedores cujos créditos viessem a ser a esta cedidos, no âmbito do contrato de factoring n.º….
6) Os devedores eram o (…) e a sociedade comercial “….”
7) As quantias relativas ao crédito da sociedade comercial … sobre a … seriam entregues por esta última (…) logo que efetuada a cobrança das faturas cujos créditos tenham sido cedidos por aquela primeira àquela segunda.
8) No que concerne ao contrato de abertura de crédito em conta -corrente nº … a exequente ficou garantida com aval e com cessão de créditos da sociedade comercial … sobre a …

Temos, pois, como demonstrado que, em 18.12.2009, entre a … e a sociedade … foi celebrado um “um contrato de abertura de crédito em conta corrente n.º … (em função de créditos a ceder à …).

De um modo geral, o contrato de abertura de crédito é aquele pelo qual o Banco – creditante – se obriga a colocar à disposição do cliente – creditado – uma determinada quantia pecuniária por tempo determinado ou não, ficando o último obrigado ao reembolso das somas utilizadas e ao pagamento dos respetivos juros e comissões. (23)
Este mesmo contrato, enquanto instrumento de crédito com grande aplicação prática, serve os interesses de ambas as partes. Por força dele, o cliente/creditado assegura de antemão a disponibilização dos fundos necessários para a sua atividade em condições financeiras e operacionais mais vantajosas do que num empréstimo bancário; por seu lado, o banco/creditante assegura o percebimento de uma remuneração sem risco – a comissão de abertura de crédito ou comissão de reserva – eventualmente acrescida, relativamente aos fundos disponibilizados mas não utilizados pelo cliente, de uma comissão de imobilização, que surge como contrapartida da desvantagem de ter dinheiro tendencialmente imobilizado e não produtivo.
Trata-se, porém, de um contrato socialmente típico, meramente consensual, por oposição ao contrato real quoad constitutionem: ou seja, fica perfeito com o mero acordo entre as partes, sem necessidade de qualquer entrega monetária, ao contrário do que sucede no mútuo clássico. A abertura de crédito conclui-se, assim, com o mero acordo tendente à disponibilização daquele montante, o qual, de resto, poderá nem sequer vir a ser movimentado pelo cliente creditado.
Além disso, e quanto à forma, aplicam-se as regras próprias do mútuo bancário, bastando, pois, a forma de documento escrito, salvo se a abertura de crédito for acompanhada da prestação de garantia sujeita a escritura pública como sucede com a hipoteca. (24)
O contrato de abertura de crédito pode assumir diferentes modalidades, em função de critérios atinentes à utilização do crédito disponibilizado e à existência ou não de garantias a ele associadas.
Assim, a abertura de crédito pode ser simples ou em conta corrente: no primeiro caso, o crédito disponibilizado pode ser utilizado de uma só vez; no segundo, o cliente pode sacar diversas vezes sobre o montante do crédito disponibilizado, solvendo as parcelas de que não necessite, numa conta corrente com o banqueiro.
Por outro lado, ainda, a abertura de crédito pode ser caucionada/garantida ou a descoberto, conforme o cumprimento da obrigação do creditado seja ou não assegurado por garantias reais, v.g., hipoteca, ou pessoais, v.g., livranças. A garantia – caso tenha sido acordada – é, muitas vezes, de ordem pessoal; na prática bancária portuguesa em que as aberturas de crédito operam a favor de sociedades, recorre-se, regra geral, a livranças subscritas pela própria sociedade e avalizadas pelos sócios. É aquilo que, na gíria bancária, se denomina por conta corrente caucionada. (25)
No caso dos autos, estamos perante um contrato de abertura de crédito em conta corrente, pois que, dentro do valor disponibilizado pelo Banco/creditante (aqui exequente …) – até ao valor de capital de € 300.000,00 (cfr. cláusula 5.) –, assistia à cliente/creditada (neste caso à sociedade … o direito de utilização dos fundos, para apoio à tesouraria da mesma cliente, em função dos créditos que tenham sido cedidos à … no âmbito do contrato de factoring celebrado entre a … e a … e uma vez confirmada a cessão pela … (cfr. cláusula 7.1).
Tal contrato de abertura de crédito em conta corrente mostrava-se ainda caucionado ou garantido por uma livrança em branco (livrança dada à execução), subscrita pela mutuária (…) e avalizada, a título pessoal, pelos embargantes recorrentes (cfr. cláusulas 21.2 e 24).
Na sequência, os recorrentes entendem que, em caso de incumprimento contratual por parte da …, tudo ficaria solucionado com o recurso à realidade garantística emergente da dita cessão de créditos, ou seja os embargantes avalistas não seriam chamados a pagar, uma vez que a instituição bancária ficou garantida com os créditos cedidos sobre um terceiro (…).
Nesta medida, porque o aludido contrato de factoring era de € 500.000,00 e o identificado contrato de abertura de crédito em conta-corrente era de € 300.000,00, estava perfeitamente assegurado e garantido o pagamento de qualquer montante que estivesse em dívida à ordem do contrato de abertura de crédito em conta-corrente, pelo que não se justifica que a exequente venha exigir dos embargantes a satisfação do seu crédito.

Porém, resulta manifesto que esta argumentação dos embargantes apelantes não colhe.

Como é bom de ver, o montante referido de € 500.000,00 diz unicamente respeito ao valor mínimo anual de cedência de créditos da … para a … (cfr. ponto 1. das Condições Particulares do aludido contrato factoring n.º …).

Não significa, assim, como se nos afigura óbvio, que a … tivesse em seu poder, por via de tal contrato de factoring, a garantia do pagamento de qualquer montante que estivesse em dívida à ordem do contrato de abertura de crédito em conta corrente, porque de valor inferior ao montante de crédito a conceder através do aludido contrato de abertura de crédito em conta corrente.

Aliás, conforme resulta do disposto no art. 840º, do C. Civil, a cedência dos créditos do devedor a favor do credor, para que este obtenha mais facilmente, por via de tal cessão, a satisfação do seu crédito, apenas extingue a obrigação quando a cedência for satisfeita e na medida respetiva.

O que aconteceu, porém, no caso em análise, é que, por força da dita conta de abertura de crédito em conta corrente (em função de créditos a ceder à …), a … disponibilizou à … o montante global de € 147.693,14, que o utilizou em proveito próprio, após pedido desta e em função dos créditos cedidos à … no âmbito do mencionado contrato de factoring referentes a faturas a cobrar pela … junto da sociedade “….”.

Na medida em que a factor … não logrou obter o pagamento por parte desta sociedade devedora das respetivas faturas, esta também não entregou à … qualquer quantia por conta das correspondentes faturas para pagamento dos valores disponibilizados pela … à … (cfr. factos provados nºs 21) a 29)).

Saliente-se que, conforme o referido contrato de abertura de crédito em conta corrente, a X só entregaria as quantias cedidas pela …, após a cobrança das faturas cujos créditos tenham sido cedidos pela sociedade … à … (cfr. cláusula 21.1 al. c) do mesmo contrato).

Por sua vez, cumpre igualmente tecer algumas considerações sobre as caraterísticas do contrato de factoring celebrado entre a … e a ….

De acordo com o disposto no art. 2º, n.º 1, do D.L. n.º 171/95, de 18.07, “a atividade de factoring ou cessão financeira consiste na aquisição de créditos a curto prazo, derivados da venda de produtos ou da prestação de serviços, nos mercados internos e externos.

Nas palavras de Calvão da Silva (26), “o contrato de factoring consiste na transferência dos créditos a curto prazo do seu titular (cedente; aderente ao factor) para um factor (cessionário), derivados da venda de produtos ou prestação de serviços a terceiros (devedores cedidos). (27)

De um modo geral, apresenta-se como um contrato-quadro que estabelece uma relação contratual duradoura entre as partes, subordinada aos princípios da globalidade e da exclusividade, daí resultando para o factor uma obrigação de aquisição de créditos da outra parte com determinados pressupostos e dentro de limites definidos; para a outra parte, um dever de propor a transmissão de todos ou de uma parte dos seus créditos para o factor. (28)

Como contrapartida da transmissão dos créditos, surgem prestações do factor, que podem ter:

i) função de financiamento: o factor antecipa à empresa cedente os (ou grande parte dos) valores dos créditos, assim a financiando;
ii) função administrativa de prestação de serviços, gestão e cobrança dos créditos: o factor administra e cobra os créditos adquiridos, assim facilitando aos aderentes a correspondente mobilização e alívio da sobrecarga administrativa para o efeito necessária;
iii) função de seguro de crédito: o factor assume o risco dos créditos cedidos, o risco de insolvência do devedor. (29)

No caso da função de financiamento, pode ser estipulada uma antecipação de fundos a realizar pelo próprio factor ou através de uma instituição financeira (art. 8º, n.º 2, do D.L. n.º 171/95, de 18.07).

Nada sendo estipulado, o factor apenas deverá pagar ao aderente os créditos transmitidos na data do seu vencimento, ou na data de um vencimento médio presumido, que seja fixado pelas partes (art. 8º, n.º 1, do D.L. n.º 171/95, de 18.07)

Neste âmbito, importa ainda distinguir entre factoring próprio e factoring impróprio.

No primeiro, o factor assume o risco de insolvência ou de não cumprimento por parte do devedor. No factoring impróprio, o factor não assume esse risco, pelo que terá o cliente de reembolsar o factor em caso de não pagamento pelo devedor, o que implica que no factoring impróprio a função del credere fica excluída. (30)

No âmbito da estrutura do factoring encontram-se cessões de créditos, sendo inteiramente aplicável a disciplina dos arts. 577º e segs. do C. Civil. (31)

Na cessão de créditos, o credor transmite a terceiro, independentemente de consentimento do devedor, a totalidade ou parte do seu crédito (art. 577º do C. Civil).
O crédito transferido fica inalterado, apenas se verificando a substituição do credor originário por um novo.
Daí que o factoring, em sentido próprio, sem recurso (sem regresso), é a regra do nosso direito, porquanto nos termos do art. 587º, n.º 2, do C. Civil, o cedente só garante a solvência do devedor se a tanto expressamente se tiver obrigado.
No factoring impróprio, o factor não assume o risco de insolvência ou de incumprimento por parte do devedor; a aceitação dos créditos, por parte do factor, é realizada com recurso ou com direito de regresso.

Neste caso, refere L. M. Pestana de Vasconcelos (32), as cessões de crédito, tal como são definidas pelos factores, abarcam duas figuras diferentes, conforme tenha ou não sido concedido um adiantamento ao facturizado, tendo, em comum, a circunstância de a contraparte do ente financeiro assumir o risco do inadimplemento do devedor cedido. Deste modo, se o devedor não cumprir na data de vencimento do crédito ou dentro de um prazo extra posteriormente concedido pelo factor, este retransmitirá o crédito ao facturizado e, se lhe tiver atribuído antecipações sobre o valor nominal desse crédito, debitá-las-á, de imediato, na conta corrente do outro contraente.

Ora, no caso em apreço, estamos perante um contrato de factoring impróprio (ou com recurso), tanto quanto é certo que a factor … não assumiu os riscos da insolvência ou do não cumprimento por parte do terceiro devedor (cfr. cláusula 10ª do aludido contrato de factoring).

Nesta medida, se a … não logrou obter boa cobrança das ditas faturas, não vemos com que legitimidade é que a … poderia acionar a … como forma de ressarcimento do seu crédito para com a sociedade ….

Outrossim, como já salientámos atrás, importa ter em presença que a data de vencimento da livrança exequenda é de 06.12.2013, sendo manifesto da factualidade assente que, antes da emissão da mesma livrança, a dívida emergente do saldo negativo da dita conta de abertura de crédito em conta-corrente se mantinha naquela data, não obstante as diversas diligências judiciais por parte da … no sentido de cobrança da totalidade das referidas faturas (cfr. factos provados nºs 28), 29) e 31)).

Nesta medida, não vislumbramos de que modo é que a exequente recorrida estaria obrigada a acionar a … antes de acionar os embargantes avalistas, tanto quanto é certo que a dívida subjacente ao título executivo emerge de crédito concedido à sociedade creditada …, e a … apenas poderia ser obrigada a pagar à exequente, após cobrança das faturas cujos créditos haviam sido cedidos, o que não sucedeu no caso em presença.

Não ocorre, assim, qualquer violação dos ditames da boa fé no âmbito da execução dos contratos em presença (art. 762º, n.º 2, do C. Civil) por parte da exequente ….

Outrossim, a …, enquanto portadora legítima da livrança dada à execução, limita-se a acionar os embargantes, na qualidade de avalistas da livrança exequenda, o que faz ao abrigo de um direito legítimo (art. 17º da LULL, aplicável ex. vi do art. 77º da LULL).

Como já afirmámos, o abuso de direito visa sancionar comportamentos clamorosamente ofensivos da boa fé, do fim económico e social do direito ou dos bons costumes: comportamentos clamorosos no sentido de intoleráveis, inadmissíveis, chocantes do sentido de justiça, que o direito e a ética negocial não podem tolerar.
Pelo que fica dito, afigura-se-nos que tal situação não ocorre no caso em análise.
Conclui-se assim que o exercício do direito levado a cabo pela … na execução principal apensa, não é ilegítimo, de acordo com os critérios estabelecidos no art. 334º, do C. Civil.
Improcede, pois, a apelação igualmente neste particular.
*
B.2) Da relação subjacente e das reclamações de créditos

Os recorrentes vieram igualmente invocar que, face ao reconhecimento do crédito da … no processo de insolvência n.º …, em que é insolvente a sociedade …, não podia ter sido a exequente a pagar à … os créditos (€ 147.693,14) que esta lhe cedeu, através utilização do crédito proveniente do contrato de abertura de crédito em conta-corrente n.º ….
Concluem, pois que a … e os ora executados nada devem à exequente, por esta afinal nada ter pago à …, mas sim a … àquela (…).
Diversamente, os embargantes, com base nos mesmos argumentos, antes haviam concluído no art. 123º da oposição por embargos que deduziram que “a … e os ora executados nada devam à exequente, por esta nada ter pago à …” (sublinhámos)
Não é, porém, esta a conclusão a que chegamos, considerando que temos como suficientemente assente que foi a … (e não a …) quem, em cumprimento do mencionado contrato de abertura de crédito em conta corrente, disponibilizou diretamente à …, a quantia global de € 147.693,14, mediante crédito lançado na conta de depósitos à ordem n.º …, que a mesma … utilizou em proveito próprio, sendo que, tal valor global foi disponibilizado após pedido da cliente … e em função dos créditos cedidos à …, no âmbito do mencionado contrato de factoring. Mais se demonstrou que tal valor ainda se encontra em dívida, pois que a … não logrou cobrar as correspondentes faturas, pese embora tenha agido judicialmente com vista a tal fim (cfr. factos provados nºs 21) a 29))
Claro está que a …, porque era quem competia cobrar as identificadas faturas emitidas pela …, terá todo o direito em reclamar o correspondente crédito (cedido pela …) junto da empresa devedora (pois para tanto já o havia tentado cobrar judicialmente); o que, a ocorrer, permitirá a transferência dos valores recebidos para a creditante …, por conta do débito da creditada …, a ser levado em conta, como é natural, em sede de pagamento, parcial ou total, da quantia exequenda.
Nestes termos, improcede igualmente, neste particular, os fundamentos de recurso dos apelantes.
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B.3) Do dever de comunicação e de informação

Entendem ainda os embargantes que não lhes foi devidamente comunicado e informado por parte da exequente embargada o teor, conteúdo e contornos das cláusulas contratuais gerais apostas nos contratos em presença (pré-elaboradas e impressas numa letra de tamanho reduzido e com utilização de conceitos jurídicos em matérias relevantes), designadamente das cláusulas 8ª (A, B, C e D) a 27º do contrato de mútuo n.º … e das cláusulas 7ª a 27ª do contrato de abertura de crédito em conta corrente n.º ….

Nesta medida, consideram que tais cláusulas devem ter-se por excluídas do pacto e dos contratos, de acordo com o prescrito no art. 8º, als. a) e b) do D.L. n.º 446/85, de 25.10 (, atento que confrontam e violam o disposto nos arts. 5º e 6º do mesmo diploma; o que tornam os contratos em presença porque esvaziados de objeto e teor (art. 9º, n.º 2, do D.L. n.º 446/85, de 25.10, a contrario, e art. 280º, do C. Civil.

Para, logo em seguida, concluírem porque o pacto de preenchimento da livrança exequenda possui cláusulas inválidas, e dele excluídas, inexiste qualquer autorização de preenchimento da livrança e não pode, concomitantemente, a mesma produzir quaisquer efeitos contra os avalistas embargantes (art. 10º, a contrario, da LULL, aplicável ex vi do art. 77º, da LULL, e art. 10º, nºs 5 e 6, do C. P. Civil).

Desde já se adianta que, na medida em que os embargantes subscreveram o mencionado contrato de abertura de crédito em conta corrente, na qualidade de “avalistas” e onde do mesmo consta cláusulas relativas à autorização de preenchimento de uma livrança anexa (cfr. cláusula 24), torna-se imperioso concluir que devem qualificar-se de “imediatas”, as relações entre os avalistas executados e a beneficiária da livrança (tomadora e exequente …), mormente por não haver entre os avalistas e a beneficiária do título a interposição de outras pessoas.

Como tal, como é pacificamente aceite, os avalistas embargantes poderão opor à exequente (…), portadora do título, a exceção de preenchimento abusivo da livrança avalizada.

Vejamos então.

António Meneses Cordeiro (33) afirma que: “um dos deveres por que se concretiza o instituto dito culpa in contrahendo é o de informar. Trata-se mesmo de um dever envolvente: a própria deslealdade analisa-se, afinal, numa falta de informação. O dever de informar in contrahendo assume as mais diversas configurações: tudo depende do contrato em jogo.
(…) À partida, o dever de informação tenderá a abranger tudo quanto, pela natureza da situação considerada, não seja conhecido pela contraparte. Assim ele será tanto mais intenso quanto maior for a complexidade do contrato e da realidade, por ele envolvida.
Em termos descritivos, o dever de informar poderá recair: sobre o objeto do contrato (…); sobre aspetos materiais conexos com esse objeto (….); sobre a problemática jurídica envolvida (…); sobre perspetivas contratuais ou sobre condutas relevantes de terceiros (…); sobre a conduta do próprio obrigado (…).
O dever de informar não é, apenas, conformado pelos elementos objetivos acima enunciados.
(…) A doutrina e a jurisprudência têm vindo a focar o relevo da pessoa da contraparte nessa conformação. Ou seja: o dever de informar é tanto mais intenso e extenso quanto mais inexperiente ou ignorante for a contraparte.

Sendo assim, atuando no campo do direito privado, as instituições bancárias sujeitam-se, em princípio, ao dispositivo dos arts. 227º, n.º 1 e 762º, n.º 2, do C. Civil: devem nas fases pré-contratuais e no cumprimento dos contratos atuar de boa-fé.
Para além deste dever geral de boa-fé existem normas específicas dirigidas à atividade bancária.

O Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF) aprovado pelo D.L. n.º 289/92, de 31.12, contém um título (Título VI) dedicado às regras de conduta das instituições de crédito.

Assim, decorre do disposto no art. 73º do RGICSF que: “As instituições de crédito devem assegurar aos clientes, em todas as atividades que exerçam, elevados níveis de competência técnica, dotando a sua organização empresarial com os meios materiais e humanos necessários para realizar condições apropriadas de qualidade e eficiência”.

O art. 74º do RGICSF estabelece que: “Nas relações com os clientes, os administradores e os empregados das instituições de crédito devem proceder com diligência, neutralidade, lealdade e discrição e respeito consciencioso dos interesses que lhes estão confiados”.

E o art. 75º do mesmo diploma legal, estabelece que “os membros dos órgãos de administração das instituições de crédito, bem como as pessoas que neles exerçam cargos de direcção, gerência, chefia ou similares, devem proceder nas suas funções com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, de acordo com o princípio da repartição de riscos e da segurança das aplicações e tendo em conta o interesse dos depositantes, dos investidores e dos demais credores e de todos os clientes em geral”.

Por outro lado, seguindo de perto a opinião de Calvão da Silva (34), no âmbito de “operações financeiras repetidas ou renováveis”, como é o nosso caso de abertura de crédito em conta corrente, estabelece-se uma “relação clientela” entre o Banco e o cliente, relação essa que se apresenta como uma relação obrigacional complexa e duradoura, assente na estreita confiança pessoal entre as partes (uberrima fides), que pode originar, mesmo no silêncio do contrato, a responsabilidade contratual da instituição financeira imprudente ou não diligente, se não cumprir, entre outros, em consonância com os ditames da boa fé (art. 762º, n.º 2, do C. Civil), os deveres de informação ou de proteção dos legítimos interesses do cliente.

Na concordância com tal posição doutrinária, vem igualmente sendo defendido pela jurisprudência do STJ que esta especial relação obrigacional complexa, de confiança mútua dominada pelo intuitus personae, impõe à instituição financeira padrões profissionais e éticos elevados, traduzidos em deveres de proteção dos legítimos interesses do cliente, em consonância com os ditames da boa fé (cfr. arts. 227º, n.º 1 e 762º, n.º 2, do C. Civil; e arts. 73º e segs. do RGICSF), mormente, deveres de diligência e cuidado, deveres de alerta, aviso, advertência e prevenção para certos riscos e sua repartição, deveres de informação, deveres de descrição, sigilo ou segredo profissional, cuja inobservância ou violação poderá pôr em causa a uberrima fides do cliente e o intuitus personae da relação e originar a responsabilidade da instituição financeira imprudente ou não diligente. (35)

Por seu turno, nos termos do disposto nos arts. 5º e 6º do D.L. n.º 446/85, de 25.10, as cláusulas contratuais gerais devem ser integralmente comunicadas aos aderentes que se limitem a subscrevê-las ou a aceitá-las, recaindo sobre o proponente o ónus da prova da comunicação adequada e efetiva e informá-los dos aspetos nelas compreendidos; sendo que se têm por excluídas do contrato as cláusulas que não tenham sido adequadamente comunicadas aos aderentes (art. 8º do mesmo diploma legal).

Tal como é salientado na jurisprudência, entre outros pelo Ac. STJ de 13.09.2016 (36), o cumprimento destes deveres deverá ser “assumido na fase de negociação e feito com antecedência necessária ao conhecimento completo e efetivo do aderente, tendo em conta as circunstâncias (objectivas e subjectivas) presentes na negociação e na conclusão do contrato – a importância deste, a extensão e a complexidade (maior ou menor) das cláusulas e o nível de instrução ou conhecimento daquele –, para que o mesmo, usando da diligência própria do cidadão médio ou comum, as possa analisar e, assim, aceder ao seu conhecimento completo e efetivo, para além de poder pedir algum esclarecimento ou sugerir qualquer alteração.

Não obstante, o mesmo aresto salienta que importará igualmente ter em atenção que “as exigências especiais da promoção do efetivo conhecimento das cláusulas contratuais gerais e da sua precedente comunicação, que oneram o predisponente, têm como contrapartida, também por imposição do princípio da boa-fé, o aludido dever de diligência média por banda do aderente e destinatário da informação – com intensidade e grau dependentes da importância do contrato, da extensão e da complexidade (maior ou menor) das cláusulas e do nível de instrução ou conhecimento daquele –, de quem se espera um comportamento leal e correto, nomeadamente pedindo esclarecimentos, depois de materializado que seja o seu efetivo conhecimento e informação sobre o conteúdo de tais cláusulas.(37)

Aqui chegados, importa desde já considerar que resulta da factualidade dada como assente que os contratos em causa foram especificamente negociados, tendo a sociedade mutuária (…), representada pelo aqui embargante, negociado com a …, não só a contratação dessas operações, mas também os seus específicos termos e condições contratuais (cfr. factos provados nºs 41) e 42))

Mais se demonstrou que, previamente à assinatura dos mencionados contratos por parte dos respetivos avalistas/fiadores, foi facultada – através do aqui embargante – um exemplar do contrato de mútuo a contratar; sendo certo que os outorgantes (ora embargantes apelantes) não solicitaram qualquer esclarecimento sobre o conteúdo e/ou alcance de quaisquer das cláusulas insertas nos contratos (cfr. factos provados nºs 43) e 45)).
Destarte, forço é concluir que a exequente logrou demonstrar, tal como se lhe impunha (art. 5º, n.º 3 do D.L. n.º 446/85, de 25.10), que cumpriu os apontados deveres de comunicação e informação.
Destarte, cumpre julgar igualmente improcedente, esta pretensão recursiva dos embargantes apelantes.
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B.4) Dos juros de mora devidos sobre o valor titulado na livrança exequenda

Por último, os recorrentes embargantes defendem que a exequente/embargada apenas detém legitimidade para peticionar juros de mora vencidos sobre o montante titulado na livrança à taxa anual de 4% e não de 6%.

Invocam, em suma, que nas letras e livranças emitidas em Portugal é aplicável, em cada momento, os juros moratórios à taxa que decorre do disposto no art. 4º do D.L. n.º 262/83, de 16.06 (atualmente de 4%, por via da Portaria n.º 291/2003, de 08.04), e não a de 6% prevista nos nºs 2 dos arts. 48º e 49º da LULL.

Adiante-se, desde já, que sufragamos igualmente esta posição dos embargantes, a qual, aliás, é maioritariamente defendida na doutrina e na jurisprudência.

Neste particular, salientamos designadamente o Ac. RL de 08.05.2014 (38), de acordo com o qual podemos ler designadamente que:

De acordo com o art. 4.º do DL n.º 262/83, de 16 de junho, o portador de letras, livranças ou cheques, quando o respetivo pagamento estiver em mora, pode exigir que a indemnização correspondente a esta consista nos juros legais.

Através desta norma, o portador de um título cambiário emitido e pagável em Portugal deixou de estar sujeito, quanto ao pedido de indemnização pela mora, à taxa de 6 %, prevista no art. 48.º, n.º 2, da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças (LULL), para então passar a poder exigir os juros legais.

Nessa altura, recorde-se, vigorava a Portaria n.º 581/83, de 18 de maio, que fixara a taxa anual dos juros legais em 23 %, numa diferença abissal quando confrontada com a referida taxa de 6 %, consequência do forte fenómeno inflacionista, e que retirava muita da utilidade compensatória da indemnização pela mora nos títulos cambiários (J. SIMÕES PATRÍCIO, As Novas Taxas de Juro do Código Civil, BMJ n.º 305, pág. 13).

Entretanto, a taxa dos juros legais foi sendo, sucessivamente, atualizada, estando atualmente estabelecida em 4 %, por efeito da Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril.

É hoje pacífico, especialmente depois da prolação do assento (equiparado a acórdão de uniformização de jurisprudência) do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de julho de 1992, que nas letras e livranças emitidas e pagas em Portugal é aplicável, em cada momento, aos juros moratórios a taxa que decorre do disposto no artigo 4.º do DL n.º 262/83, de 16 de junho, e não a prevista nos n.º s 2 dos artigos 48.º e 49 da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças (BMJ n.º 419, pág. 75).

É, assim, patente que, no âmbito dos títulos de créditos, como as livranças, existe uma taxa específica para os juros de mora. A especificidade resulta da circunstância de se tratar de títulos de créditos, sendo irrelevante, para o efeito, a natureza jurídica que possa assistir ao credor desses mesmos títulos de créditos. Por isso, independentemente da pessoa do credor, a taxa aplicável aos juros de mora nos títulos de crédito é a que resulta do disposto no art. 4.º do DL n.º 262/83, de 16 de junho.

A lei foi esclarecedora ao referir-se, expressamente, aos “juros legais”, não podendo esta expressão senão remeter para o disposto no art. 559.º, n.º 1, do Código Civil (CC), onde estão compreendidos os juros legais, com a sua fixação a ser concretizada através de portaria governamental (ABEL DELGADO, Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, 7.ª edição, 1996, pág. 275 e segs., e P. PAIS DE VASCONCELOS, Direito Comercial – Títulos de Créditos, 1990, pág. 138 a 140).

Se, porventura, o legislador tivesse pretendido determinar uma taxa de juros diversa, nomeadamente a aplicação dos juros comerciais, nos termos do art. 102.º, § 3.º, do Código Comercial (CCom), também alterado pelo DL n.º 262/83, tê-lo-ia declarado no texto da lei. Tal não sucedeu, sendo certo ainda que não existe na letra da lei um mínimo de correspondência verbal com semelhante intenção, ainda que imperfeitamente expresso.

Afirmar que inexistem razões para diferenciar a taxa de juros dos créditos titulados por letras, livranças e cheques dos créditos das empresas comerciais, como alegou a Agravante, é o mesmo que dizer que a taxa de juros fixada quer pelo art. 48.º da LULL, quer pelo art. 4.º do DL n.º 262/83, não fez qualquer sentido normativo e, por isso, não podemos sufragar tal alegação, nomeadamente pela consideração das regras da interpretação consagradas no art. 9.º do CC.
(…)
A jurisprudência sobre esta matéria específica tem sido escassa, possivelmente por esta questão ter sido considerada resolvida, designadamente pela doutrina do “assento” do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de julho de 1992.

Realce-se que, já antes, a mesma Relação de Lisboa, por acórdão de 18.10.2007 (39), havia pugnado pela mesma posição, podendo ler-se do seu sumário que:

I. A taxa de juros aplicável aos títulos de crédito é a taxa geral dos juros civis, actualmente de 4%, e não a taxa de juros prevista na Lei Uniforme, de 6%, por esta última ter sido afastada do nosso ordenamento jurídico.
II. O Assento 4/92, de 13 de Julho de 1992, estabeleceu o entendimento de que "nas letras e livranças, emitidas e pagáveis em Portugal, é aplicável, em cada momento, aos juros moratórios a taxa que decorre do disposto no artigo 4º do Decreto-Lei 262/83, de 16 de Junho e não a prevista nos nºs. 2 dos artigos 48º e 49º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças".
III. Com este Assento acabou-se com qualquer discussão, séria e razoável, sobre o tema, mas que agora se tenta retomar pelo facto de a taxa de juros legais ter baixado para 4%, ficando aquém dos 6%, previstos na Lei Uniforme.
IV. Mas sem razão, porque o Assento, terá hoje de ser havido, pelo menos, como boa doutrina sobre o regime introduzido pelo artigo 4º do Decreto-Lei 262/83, de 16 de Junho, e a interpretação oportuna que o douto aresto fez da lei foi de que, para futuro, a taxa de juros aplicável aos títulos de crédito seria a taxa geral dos juros civis e jamais a taxa de juros da Lei Uniforme.
V. Apesar de, na data em que foi proferido o Assento em análise, já a taxa dos juros legais estar em manifesta queda, tendo baixado de 23% para 15%, e, como era conjecturável, essa propensão tenderia a manter-se, como, de resto, se veio a verificar, nenhuma ressalva foi feita para a hipótese, previsível, de a taxa de juros legais baixar para nível inferior à taxa de 6% da LULL.
VI. Nem era razoável que se fizesse, não só porque estava firmado o entendimento de que a taxa da Lei Uniforme havia deixado de vigorar (por caducidade ou revogação tácita), como também porque as mesmas razões que conduziram à instituição do regime introduzido pelo artigo 4º do Decreto-Lei 262/83, serem de aplicar na situação actual em que a taxa de juros legais passou de 7% para 4%, para baixo da taxa da Lei Uniforme, ou seja, razões de justiça e de igualdade de tratamento em relação a todos os juros de natureza civil.
VII. Em todo o caso, as verdadeiras razões que conduziram a que portador da letra ou livrança não fosse discriminado negativamente com uma taxa de juros inferior à dos juros civis legais, ou seja, razões de justiça e de igualdade, são as mesmas que justificam que o mesmo portador da letra não deva agora ser discriminado positivamente com o direito a uma taxa de juros superior à dos juros legais.” (40)

Por conseguinte, à livrança exequenda, emitida e não paga em Portugal, é aplicável, quanto à indemnização pela mora, a taxa de juros emergente do disposto no art. 4º do D.L. n.º 262/83, de 16.06, em conjugação com o disposto no art. 559º, n.º 1, do C. Civil, e na Portaria n.º 291/2003, de 08.04; pelo que, considerando a data de vencimento da mesma livrança (06.12.2013), a taxa de juros, pela mora do seu pagamento, é de 4% ao ano.

Termos em que se conclui pela procedência, neste segmento, da pretensão recursiva dos embargantes, sendo de julgar improcedente todos os demais fundamentos de recurso dos apelantes.
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V. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação em presença, decretando-se que, sobre o valor titulado na livrança exequenda, acrescem juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano, desde a data de vencimento da mesma e até efetivo e integral pagamento.
No mais, confirma-se a sentença recorrida.

Custas pelos apelantes e apelada em ambas as instâncias na proporção do respetivo decaimento (art. 527º, nºs 1 e 2, do C. P. Civil).
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Guimarães, 24.04.2019
Este acórdão contem a assinatura digital de:

Relator: António José Saúde Barroca Penha.
1º Adjunto: Desembargadora Eugénia Marinho da Cunha.
2º Adjunto: Desembargador José Manuel Alves Flores.



1. Por todos, neste sentido, Ac. STJ de 01.10.2015, proc. n.º 6626/09.0TVLSB.L1.S1, relatora Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, acessível em www.dgsi.pt.
2. Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª Edição, pág. 164.
3. Cfr. ainda diversos Acs. do STJ, aludidos na ob. citada, págs. 161 a 165.
4. Abrantes Geraldes, ob. citada, págs. 165-166.
5. Ob. citada, págs. 274 e 277.
6. Segundo Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. IV, pág. 569, prova livre “quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais pré-estabelecidos, isto é, ditados pela lei.”
7. O princípio da livre apreciação dos meios probatórios resulta, ainda, em sede de direito probatório material, no que se refere à prova por declarações de parte (não confessórias), à prova testemunhal, à prova por inspeção e à prova pericial, do estipulado nos arts. 361º, 389º, 391º e 396º, todos do C. Civil.
8. Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pág. 348.
9. Vide, neste sentido, por todos, Acs. do STJ de 03.11.2009, proc. n.º 3931/03.2TVPRT.S1, relator Moreira Alves; e Ac. do STJ de 01.07.2010, proc. n.º 4740/04.7TBVFX-A.L1.S1, relator Bettencourt de Faria, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
10. Cfr. Ana Luísa Geraldes, Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol. I, pág. 609.
11. Neste sentido, cfr. Ac. RP. de 15.09.2014, proc. n.º 216/11.4TUBRG.P1, relator António José Ramos, acessível em www.dgsi.pt, onde se lê que: “As declarações de parte (art. 466º, do novo CPC) - que divergem do depoimento de parte –, devem ser atendidas e valoradas com algum cuidado. As mesmas, como meio probatório, não podem olvidar que são declarações interessadas, parciais, e não isentas, em quem as produz tem um manifesto interesse na ação. Seria de todo insensato que, sem mais, nomeadamente sem o auxílio de outros meios probatórios, sejam documentais ou testemunhais, o tribunal desse como provados os factos pela própria parte alegados e por ela, tão só, admitidos”. No mesmo sentido, vide Ac. RP de 17.12.2014, proc. n.º 2952/12.9TBVCD.P1, relator Pedro Martins; e Ac. RC de 23.06.2015, proc. n.º 1534/09.7TBFIG.C1, relator Henrique Antunes, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
12. Elizabeth Fernandez, Nemo Debet Essse Testis in Propria Causa? Sobre a (in) Coerência do Sistema Processual a Este Propósito, Julgar Especial, Prova Difícil, 2014, págs. 22 a 37; e Ac. STJ de 05.05.2015, proc. n.º 607/06.2TBPMS.C1.S1, relator Gabriel Catarino; Ac. RE de 12.03.2015, proc. n.º 1/12.6TBPTM.E1, relator Mata Ribeiro; Ac. RG de 02.05.2016, proc. n.º 2745/15.1T8VNF-A.G1, relator António Figueiredo Almeida; e Ac, RL. de 26.04.2017, proc. n.º 18591/15.0T8SNT.L1-7, relator Luís Filipe Pires de Sousa, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
13. Carolina Henriques Martins, in Declarações de Parte, Universidade de Coimbra, 2015, pág. 58.
14. Teoria Geral das Obrigações, Almedina, 3ª edição, págs. 63-64.
15. Abuso de Direito, BMJ n.º 85, pág. 253.
16. Das Obrigações em Geral, Vol. I, Almedina, 5ª edição, pág. 499.
17. Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição, pág. 299.
18. Cfr. Ac. STJ. de 15.01.2013, proc. n.º 600/06.5TCGMR.G1.S1, relator Fonseca Ramos, in www.dgsi.pt.
19. Manuel de Andrade, ob. citada, pág. 63.
20. Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 298.
21. Neste sentido, cfr. Antunes Varela, ob. cit. pág. 499.
22. Cfr. desenvolvimentos doutrinais e jurisprudenciais realizados por António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, V, Parte Geral, Exercício Jurídico, Almedina, 2ª edição, 2015, págs. 295 a 381.
23. Vide, neste sentido J. Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, pág. 501; Ac. STJ de 13.12.2000, CJ, Ano VIII, Tomo III, págs. 174-175; Ac. RP de 29.05.2015, proc. n.º 549/13.5TBGDM-A.P1, relator Manuel Domingos Fernandes; Ac. RP de 27.06.2018, proc. n.º 4368/15.6T8LOU-A.P1, relator Jorge Seabra, os dois últimos disponíveis em www.dgsi.pt.
24. Neste sentido, cfr. António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, Almedina, 3ª edição, pág. 541; e Calvão da Silva, Direito Bancário, Almedina, 2001, págs. 365-366.
25. Neste particular, vide António Menezes Cordeiro, ob. citada, pág. 542
26. Ob. citada, págs. 429-430.
27. Neste particular, cfr., por todos Ac. RP de 18.06.2007, proc. n.º 0731482, relator Pinto de Almeida, acessível em www.dgsi.pt.
28. Cfr., neste sentido, Luís Teles de Menezes Leitão, Cessão de Créditos, Almedina, 2005, págs. 515-516; António Menezes Cordeiro, ob. citada, pág. 585;.
29. Vide Calvão da Silva, ob. citada, pág. 430; Luís Teles de Menezes Leitão, ob. cit., págs. 518-519.
30. Cfr. António Menezes Cordeiro, ob. cit., pág. 588; Luís Teles de Menezes Leitão, ob. cit., pág. 512.
31. Vide Luís Miguel Pestana de Vasconcelos, Dos Contratos de Cessão Financeira (Factoring), Stvdia Ivridica, 43, Coimbra Editora, págs. 272 e segs.; Luís Teles de Menezes Leitão, ob. cit., pág. 522; Calvão da Silva, ob. cit. pág. 432.
32. Ob. cit., págs. 333-334.
33. Ob. cit., págs. 358-359.
34. Ob. cit., págs. 334 a 336.
35. Neste sentido, cfr. por todos, Ac. STJ de 18.12.2008, proc. n.º 08B2688, relator Santos Bernardino; e Ac. STJ de 16.09.2014, proc. n.º 333/09.0TVLSB.L2.S1, relator Paulo Sá, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
36. Proc. n.º 1262/14.1T8VCT-B.G1.S1, relator Alexandre Reis, acessível em www.dgsi.pt.
37. Neste sentido, cfr. igualmente Ac. RG de 20.09.2018, proc. n.º 4089/16.2T8VCT-A.G1, relator José Flores (aqui 2º Juiz Desembargador Adjunto), acessível em www.dgsi.pt
38. Proc. n.º 38720/06.3YYLSB-A.L1-2, relator Olindo Geraldes, acessível em www.dgsi.pt.
39. Proc. n.º 8273/2007-6, relator Pereira Rodrigues, acessível em www.dgsi.pt.
40. No mesmo sentido, cfr. por todos, Ac. RG de 26.04.2006, proc. n.º 645/06-1, relatora Rosa Tching; Ac. RG de 08.10.2015, proc. n.º 2047/14.0TBGMR-A.G1, relator José Amaral; Ac. RP de 29.05.2006, proc. n.º 0652688, relator Fonseca Ramos; Ac. RP 27.06.2018, proc. n.º 4368/15.6T8LOU-A.P1, relator Jorge Seabra; e Ac. RC de 15.03.2011, proc. n.º 611/09.9T2AGD.C1, relator Falcão de Magalhães, todos disponíveis em www.dgsi.