Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3977/05.6TBBCL-A.G1
Relator: MANSO RAÍNHO
Descritores: FGADM
ACTUALIZAÇÃO DA PRESTAÇÃO
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR
SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/25/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I. Suportando o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores uma prestação que foi oportunamente fixada pelo tribunal em montante superior àquele que constituía a obrigação do progenitor faltoso, deve improceder, face ao acórdão uniformizador de jurisprudência nº 5/2015, a pretensão do Ministério Público tendente à simples atualização da prestação daí para diante.
II. Tal atualização representaria um agravamento ou desvio ainda para mais da prestação do Fundo, o que vai contra o espírito do referido acórdão.
III. Embora os acórdãos uniformizadores não sejam vinculativos, o princípio do interesse na unidade interpretativa e aplicativa do direito e o princípio do interesse na estabilidade da jurisprudência recomendam que os tribunais apliquem a jurisprudência uniformizada, mesmo que esta não traduza o entendimento que vinham adotando.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

Por decisão judicial de 24 de outubro de 2005, proferida no processo de regulação do exercício do poder paternal relativo aos menores C… (nascido a 21 de julho de 2001) e S… (nascida a 22 de setembro de 2003), filhos de R… e J…, ficou este obrigado a pagar a cada um dos menores a quantia mensal de €100,00 a título de alimentos.
Não tendo sido cumprida tal obrigação, nem tendo sido possível obter o seu cumprimento coercivo, veio a ser proferida decisão, em 28 de maio de 2009, que impôs ao Estado, através do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, a obrigação de prestação a cada um dos menores da quantia mensal de €150,00 a título de alimentos, obrigação esta que, entretanto, foi sucessivamente renovada por se manterem os pressupostos que a determinaram.
Em 28 de janeiro de 2015 promoveu o Ministério Público que fosse revista e alterada a decisão que vinculou o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores ao pagamento da referida prestação, de forma a ficar fixada uma atualização anual segundo a taxa da inflação (fls. 299).
Tal promoção foi indeferida, com fundamento em estar esgotado “o poder jurisdicional previsto no art. 619º do Código de Processo Civil” (fls. 300).

Inconformado com o assim decidido, apela o Ministério Público.

Da respetiva alegação extrai as seguintes conclusões:

1. – No caso que nos ocupa, quem necessita de alimentos «está no fim da linha», são os «párias» que a egoística decadência de valores e a dura dinâmica económico-social vão criando, são os mais carenciados dos carenciados, são os indefesos que são crianças;
2. – A intervenção do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores depende da existência de uma obrigação de alimentos judicialmente decretada, que não é satisfeita, nem se mostra possível satisfazê-la pela forma prevista no artigo 189.° do Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro, e do facto do alimentado não ter rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional nem beneficiar nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre;
3. – A fixação daquela prestação alimentícia é feita atendendo às actuais condições do menor e do seu agregado familiar, podendo ser diferente da anteriormente fixada;
4. – A criação do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, gerido pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, deveu-se ao elevado número de situações de incumprimento das prestações de alimentos devidos a menores;
5. – O referido Fundo de Garantia não visa substituir definitivamente uma obrigação legal de alimentos devida a menor, antes reveste natureza subsidiária, visto que é seu pressuposto legitimador a não realização coactiva da prestação alimentícia já fixada, através das formas previstas no artigo 189.° da Organização Tutelar de Menores;
6. – Ora os presentes autos e os incidentes deles dependentes – como o presente – têm a natureza de procº de jurisdição voluntária (tal como decorre por força do disposto no Artº150º da Organização Tutelar de Menores natureza esta que há que se entender ser extensível a todos os incidentes umbilicalmente dependentes da causa principal onde se hajam fixado os alimentos ao devedor originário);
7. – Ademais estes processos, onde se Regulam as Responsabilidades Parentais e onde se processam os incidentes de incumprimento da prestação alimentícia e onde (por impossibilidade de se obter a cobrança desta através do mecanismo de incumprimento próprio p. no Artº. 189º da O.T.M.) se processa, como no presente, o incidente, legal e logicamente subsequente, p. no Artº. 1º da Lei 75/98 de 19/XII e no Artº. 3º nº1, do D.L.164/99 de 13 de Maio vigora – por tudo isto ser como dito jurisdição voluntária – o princípio da Equidade;
8. – Chama-se Juízo de Equidade àquele em que o juiz resolve o caso que lhe é posto de acordo com um critério de justiça material, e, embora sem recurso linear a uma norma jurídica pré-estabelecida, dando, no entanto, uma solução que, no momento e segundo as circunstâncias concretas averiguadas se afigura a mais justa…e, não sendo Fonte de Direito é critério de Correcção do Direito.
9. – De tal Equidade como princípio conformador geral dos processos de jurisdição voluntária, provém, como precipitado natural, o princípio da modificabilidade das decisões por parte do Tribunal que as haja proferido mesmo das decisões finais – vigorando aqui o disposto no artº 988.º do Cod.Procº Civil: (Valor das resoluções): «1 — Nos processos de jurisdição voluntária, as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração; dizem -se supervenientes tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores, que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso. 2 — Das resoluções proferidas segundo critérios de conveniência ou oportunidade não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça»
10. – O que, sintomaticamente e como sinal duma reveladora unidade do sistema e da ordem jurídica, tudo entronca no artº 619º do Codº Procº Civil em que se estribou genericamente o indeferimento judicial ora em crise, o qual não atentou, porém, no estabelecido no respectivo nº 2: “Artigo 619.º - Valor da sentença transitada em julgado - 1 — Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º. 2 — Mas se o réu tiver sido condenado a prestar alimentos ou a satisfazer outras prestações dependentes de circunstâncias especiais quanto à sua medida ou à sua duração, pode a sentença ser alterada desde que se modifiquem as circunstâncias que determinaram a condenação.
11. – Fosse pelo disposto no nº2 do artº 619º do Codº Procº Civil fosse pelo disposto no artº988º do mesmo Código, o Tribunal recorrido podia (e devia) ter alterado a decisão inicial que condenou o Fundo de Garantia proferida a 06.07.2007 (cfr.fls.277-281 destes autos) e,
12. –Tê-la alterado «…no que tange ao critério da actualização anual, a fim de indexar a prestação do Fundo ao aumento anual segundo as taxas de inflação (preços ao consumidor) publicadas pelo I.N.E. muito apesar de tal não constar da obrigação do devedor originário, fixada na sentença de fls.29 dos autos principais e fls.12 do Apenso-A (já datada de 25.02.2008)»;
13. – É que essa decisão judicial proferida inicialmente no presente incidente de incumprimento é já datada de 31.10.2008 (cfr.fls. 44-49 destes autos) e, nessa altura, também a prestação alimentícia do devedor originário não se encontrava aumentada por virtude da inexistência de qualquer critério actualizador imprudentemente esquecido, como se disse, na Sentença de fls. fls.29 dos autos principais e fls.12 do Apenso-A que condenou tal obrigado originário e que, por sua vez, é datada de 25.02.2008…
14. – Ora, como dito supra, o Fundo de Garantia é efectivamente um garante e não um substituto das prestações em falta: na verdade atribuiu-se ao Estado, nos casos em que os alimentos judicialmente fixados ao filho menor não podem ser cobrados nos termos dos meios pré-executivos previstos no art. 189.° da O.T.M. a obrigação de garantir o pagamento até ao efectivo cumprimento da obrigação pelo progenitor devedor, ficando o mesmo Estado sub-rogado em todos os direitos dos menores a quem sejam atribuídas as prestações, com vista a ser reembolsado do que pagou (ex vi artigo 5.°, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio)…
15. – Se isto assim é, então não se percebe porque é que a sua obrigação garantística não fica sempre sujeite a uma cláusula actualizadora da prestação alimentar garantida, independentemente de tal haver ou não sido fixado para o devedor originário na Sentença que condenara este último em tais alimentos;
16. – Como se sabe, os factos notórios não carecem de ser alegados:
Artigo 412.º do Codº Procº Civil: «Factos que não carecem de alegação ou de prova - 1 — Não carecem de prova nem de alegação os factos notórios, devendo considerar-se como tais os factos que são do conhecimento geral. 2 — Também não carecem de alegação os factos de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções; quando o tribunal se socorra destes factos, deve fazer juntar ao processo documento que os comprove
17. –No caso, são manifestos e notórios os factos supervenientes que impunham, independentemente de promoção ou requerimento alegatório, que o Tribunal alterasse a decisão condenatória inicial introduzindo-lhe a necessária cláusula actualizadora anual:
18. – Seja o aumento anual (embora actualmente numa taxa inflacionária baixa) do custo de vida, seja o estado depauperado da economia nacional, sejam os números dramáticos do desemprego e das famílias acossadas pela falta dos rendimentos do trabalho, sejam as necessidades crescentes dos menores nas suas várias fases etárias, sejam as estatísticas europeias que dão as crianças (em particular as da Grécia, Portugal e Irlanda) como o sector da população mais duramente atingido pela pobreza;
19. – Assim, atento o tempo decorrido avulta por si própria, e por elementar prudência ponderativa, a necessidade de estabelecer um mecanismo realmente equitativo que acautele uma adequada actualização da prestação alimentícia a que está obrigado o Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores, actualização essa que seja, por um lado, compatível com o referido panorama de pesada crise sócio-económica reinante e, por outra banda, esteja à altura não só do actual nível da inflação e do custo de vida mas também consonante com as reais e sempre crescentes necessidades com a alimentação, vestuário, cuidados de saúde e despesas de educação que o(s) menor(es) aqui abrangido(s) demanda(m) nas fases sucessivas da infância, adolescência e juventude até à maioridade, necessidades essas que são sempre superiores àquelas dos adultos e se não compadecem com estritos calculismos e aritméticas economicistas;
20. – Tal alteração aqui pugnada da decisão judicial proferida inicialmente nestes autos, impõe-se, naturalmente, como resultado de um mandatório Juízo de Equidade que, como se disse supra, é aquele em que o Juiz resolve o caso que lhe é posto de acordo com um critério de justiça material: e não lavando as mãos num errado entendimento do que é o caso julgado em matéria de alimentos a menores;
21. – Pelo exposto, e porque também mais conforme à Equidade, é entendimento do Ministério Público nesta Instância Central de Família e Menores de Barcelos que as prestações a suportar pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores deverão sempre ser acompanhadas da imposição de uma cláusula actualizadora anual [segundo as taxas de inflação (preços ao consumidor) publicadas pelo I.N.E.], devendo ser rejeitada interpretação diversa, como aquela acolhida na Sentença ora em crise,
22. – A qual, violou, directamente, o disposto nos artigos 619º n.º 2, 987º e 988° do Código de Processo Civil, 150º da Organização Tutelar de Menores, 1.° da Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro, 3.° e 5.° do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, 2004.° do Código Civil, e 24°, n.º 1, e 69.°, nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa;
23. – Deverá ser julgado procedente o Recurso em apreço revogando-se parcialmente e substituindo-se a Sentença ora recorrida por outra que – mantendo embora a condenação do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores-F.G.A.D.M. nos termos em que o fez – estabeleça e imponha uma adjuvante cláusula actualizadora anual daquela obrigação pecuniária alimentícia [segundo as taxas de inflação (preços ao consumidor publicadas pelo I.N.E.].

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O Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP contra alegou, concluindo pela improcedência da apelação.
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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir, tendo-se sempre presentes as seguintes coordenadas:
- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;
- Há que conhecer de questões, e não das razões ou fundamentos que às questões subjazam;
- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.

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É questão a conhecer:
- A de saber se é devida ou não a alteração da prestação, mediante a pretendida atualização.

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Plano Factual:

Damos aqui por reproduzidas as incidências fáctico-processuais acima descritas.

Plano Jurídico-conclusivo:

A obrigação que ficou imposta ao Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores para com os menores em causa iniciou-se em outubro de 2009, não tendo sido prevista qualquer atualização do quantum (€150,00 a cada menor) estabelecido.
Decorreram entretanto vários anos, sendo um facto notório (logo, dispensa prova) que o custo de vida aumentou, por via designadamente do omnipresente fenómeno inflacionário.
De outro lado, a intervenção debitória do Fundo insere-se no âmbito da jurisdição cível de menores, é uma decorrência ou manifestação (depende de como se qualificar juridicamente essa intervenção) da obrigação de alimentos, e daqui que seja irrecusável que todo o procedimento judicial que coenvolve o Fundo tem também a natureza de procedimento de jurisdição voluntária. Como assim, aplica-se-lhe o art. 988º do CPC, podendo por isso ser alterada a decisão fixadora da prestação, posto que haja motivos supervenientes que o justifiquem. De resto, a admissibilidade da alteração da prestação do Fundo, ainda que para mais, parece despontar também no art. 4º da Lei nº 75/98 e no nº 2 do art. 9º do DL nº 164/99.
Ainda, em matéria de alimentos, a decisão judicial que os fixa não tem a mesma estabilidade que se atribui normalmente às decisões judiciais, admitindo-se modificações subsequentes, conforme resulta do nº 2 do art. 619º do CPC e do art. 2012º do CC.
Pelo que fica dito, poder-se-á concluir que nada impedia legalmente que o tribunal recorrido desse o devido seguimento à pretensão do Ministério Público (revisão e alteração da obrigação imposta ao Fundo), com fundamento na alteração superveniente das circunstâncias (a desvalorização da prestação), fixando uma cláusula de atualização anual da prestação. Não concordamos, assim, com a fundamentação constante da decisão recorrida, de que estava esgotado o poder jurisdicional.
Contudo, nem por isso o recurso deverá ser provido.
Isto pelo seguinte:
A pretensão do Ministério Público visa o aumento da prestação cujo pagamento foi imposto ao Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores. Prestação esta (€150,00 a cada um dos menores) que foi fixada em montante superior àquele (€100,00 a cada um dos menores) que constituía a obrigação do progenitor faltoso. E se quanto à admissibilidade legal da prestação assim imposta ao Fundo (pagamento de quantia superior àquela a que estava vinculado o devedor originário) nada se poderá agora argumentar ou aduzir contra (a decisão respetiva está coberta pelo caso julgado), já o mesmo não se poderá dizer do agravamento dessa prestação, ou seja, do seu desvio ainda para mais.
Com efeito, em 19 de março de 2015 o Supremo Tribunal de Justiça produziu acórdão uniformizador de jurisprudência (acórdão nº 5/2015, publicado no DR, 1ª série de 4 de maio de 2015), onde firmou jurisprudência no sentido de que a prestação a suportar pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores não pode ser fixada em montante superior ao da prestação de alimentos a que está vinculado o devedor originário. E se assim é, então também não pode ser desviada ainda para mais a prestação que tenha sido anteriormente fixada em montante já de si superior ao da prestação do devedor originário. É apodítico e lógico.
Embora o referido acórdão uniformizador não seja vinculativo, o princípio do interesse na unidade interpretativa e aplicativa do direito (v. a propósito o nº 3 do art. 8º do CC) e o princípio do interesse na estabilidade da jurisprudência recomendam que os tribunais (incluindo o próprio Supremo; v. a propósito Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 4ª ed., pp. 267 e 268) apliquem a jurisprudência uniformizada, mesmo que esta não traduza o entendimento que vinham adotando (e até é o caso: sempre entendemos que nada impedia que o Fundo fosse levado a suportar uma prestação superior àquela a que estava vinculado o devedor originário).
Deste modo, conquanto concordemos com o entendimento do Recorrente, não deverá ser provido o recurso, justamente porque fazê-lo seria ir contra a doutrina firmada no dito acórdão uniformizador.

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Decisão:

Pelo exposto, acordam os juízes nesta Relação em julgar improcedente o recurso, confirmando, embora por razões não coincidentes, a decisão recorrida.

Regime de custas:

Não há lugar a custas.
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Guimarães, 25 de junho de 2015
José Rainho
Carlos Guerra
José Estelita de Mendonça