Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
157/20.4IDBRG.G1
Relator: JÚLIO PINTO
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
GERENTE DE DIREITO
GERENTE DE FACTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/26/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I – A chamada gerência de facto de uma sociedade comercial consiste no efectivo exercício das funções que lhe são inerentes e que passam, nomeadamente, pelas relações com os fornecedores, com os clientes, com as instituições de crédito e com os trabalhadores, tudo em nome, no interesse e em representação dessa sociedade.
II – A mera inscrição no registo como gerente não constitui base factual bastante para se concluir pelo exercício dessa gerência, sendo necessário apurar que actos de gerência foram praticados durante o período a que se reporta a matéria delituosa.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO:

Nos presentes autos de processo comum, com o NUIPC nº 157/20.4IDBRG, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Criminal de Braga – J1, com intervenção do tribunal singular, foram submetidos a julgamento os arguidos:

“- X – Comércio de Artigos Sanitários, Lda.”, sociedade comercial por quotas, com o NIPC ………, com sede na Rua …, e aqui representada pela sua sócia e gerente, e também arguida, T. M.;
- T. M., casada, administrativa, nascida a -.01.1988, filha de J. M. e de M. C., natural da freguesia de ..., concelho de Braga e residente na Rua …, União das Freguesias de …, … e …;
- A. E., casado, empresário, nascido a -.01.1984, filho de J. M. e de M. C., natural da freguesia de ..., concelho de Braga e residente na Rua …, Braga; e
- J. M., casado, metalúrgico, nascido a -.12.1965, filho de J. F. e de C. M., natural da freguesia de ..., concelho de Braga e residente na Rua ..., Braga;
Que estavam pronunciados pela prática, em coautoria, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos artigos 7.º e 105.º, n.º 1 e 4 do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001 de 5 de Junho.
*
Após realização do julgamento, veio a ser proferida sentença com o dispositivo seguinte: (Transcrição)
“(…)
« DECISÃO:
Nestes termos, decide-se:
a) CONDENAR a arguida X – Comércio de Artigos Sanitários, Lda. pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos artigos 7.º e 105.º, n.º 1 e 4 do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001 de 5 de Junho, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa à razão diária de € 7,00 (sete euros), num total de € 1.260,00 (mil, duzentos e sessenta euros);
b) CONDENAR o arguido A. E. pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artº 105.º, n.º 1 e 4 do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001 de 5 de Junho, na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa à razão diária de € 6,00 (seis) euros, num total de € 840,00 (oitocentos e quarenta euros).
c) Absolver os arguidos T. M. e J. M. dos crimes pelos quais vieram pronunciados;»
(…)”
*
Inconformado com o decidido relativamente à absolvição da arguida T. M., o Ministério Público, interpôs recurso, concluindo: (Transcrição)

“EM CONCLUSÃO:

A) A sentença recorrida padece dos vícios de contradição insanável da fundamentação e erro notório na apreciação da prova a que alude o artigo 410 n.º 2 do Código de Processo Penal;
B) Na situação dos autos é patente a existência dos invocados vícios, retirando-se sem qualquer dificuldade da sentença recorrida a existência de várias contradições insanáveis designadamente na fundamentação da matéria de facto dada como provada e não provada, máxime quando escreve o seguinte:
C) “No que toca à pessoa que assumia a responsabilidade e tomava as decisões pela empresa, esta testemunha esclareceu que apenas obteve a informação do que lhe foi comunicado pelo contabilista R. V. e por uma outra cliente da sociedade. Relatou, então, que o contabilista da empresa no momento da prática dos factos lhe declarou ter sido contratado pelo arguido A. E. para essas funções de contabilidade e que era este que lhe dava todas as instruções atinentes a assuntos contabilísticos. Esta versão, por sua vez, foi corroborada pela própria testemunha R. V. em sede de audiência de julgamento, confirmando que apenas entrou em contacto com a arguida T. M. muito esporadicamente e no contexto da outorga da documentação relativa à sociedade, enquanto sua representante estatutária.”
D) “No que toca aos factos dados como não provados, o tribunal atendeu às declarações prestadas pela testemunha R. V. que declarou ter falado com a arguida T. M. sobre os assuntos da sociedade mas que era raro e esporádico contactar com ela a esse respeito, apenas se recordando da intervenção desta para assinar documentação. Face a este esclarecimento, o tribunal ficou com dúvidas de que a arguida T. M. tomasse a efetiva direção dos destinos da empresa ou que intervinha como sua representante de facto, para além da representação que assumia por ser sócia gerente da sociedade arguida. Por isso, atento o princípio do in dúbio pro reo, os factos pelos quais veio pronunciada consideraram-se como não provados.”
E) Ora, como pode simultaneamente considerar-se que a arguida T. M. enquanto representante estatutária e única responsável por ela no plano jurídico (por ser a única sócia gerente), assinava documentos dessa sociedade, mas que não exercia a sua gerência de facto?
F) Como se pode considerar que o contabilista certificado de uma sociedade falou e tratou com a arguida T. M., ainda que esporadicamente, de assuntos relativos a essa sociedade e ao mesmo tempo ficar-se com dúvidas que esta exercia de facto a gerência daquela?
G) Como pode dar-se como provado que a sociedade laborava normalmente no segundo trimestre de 2019, vendendo produtos e prestando serviços, que a sociedade entregou a declaração periódica de IVA relativamente ao mencionado trimestre e, simultaneamente, que a sua única sócia-gerente nunca exerceu, de facto, a gerência de tal sociedade?
H) Como pode a sociedade funcionar normalmente sem o exercício da gerência pela sua única sócia-gerente?
I) Não podia o Tribunal, de forma razoável, ter ficado com dúvidas relativamente ao facto da arguida T. M. exercer a gerência, quando se refere na sentença que a mesma, sendo a única responsável no plano jurídico pela sociedade, assinava documentos relativamente àquela e tratava com o contabilista certificado, ainda que esporadicamente, de assuntos respeitantes à dita sociedade.
J) Com efeito, tais atos configuram atos próprios de gestão da referida sociedade com os quais a arguida T. M. representava e vinculava a sociedade arguida X.
K) Com base na fundamentação esgrimida pelo Tribunal, deveria ter sido dado como provado, ao invés do que foi efetuado, que a arguida T. M. exerceu a gerência da sociedade arguida, enquanto sua sócia gerente, juntamente como o arguido A. E..
L) No caso em apreço, como supra se referiu, a arguida assinava documentos da sociedade quando interpelada pelo contabilista certificado da mesma e tratava com este, ainda que esporadicamente, de assuntos respeitantes àquela. Ora, tal é revelador do exercício de cargo de gerência, pelo que andou mal o Tribunal ao considerar que a mesma não exercia a gerência da sociedade.
M) Na verdade, o julgador é livre, ao apreciar as provas, no entanto, tal apreciação está vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum.
N) Tal liberdade de decidir tem de se pautar pelo bom senso e a experiência da vida, temperados pela capacidade crítica de distanciamento e ponderação, aparecendo limitada pelo dever de perseguir a verdade material, devendo por isso ser sempre, em concreto, reconduzível a critérios objetivos e suscetível de motivação e controlo – cfr. art. 374° n° 2 do Código de Processo Penal.
O) O art. 127° do Código de Processo Penal patenteia um limite à discricionariedade do julgador: as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.
P) Ora, como já se referiu, a sentença recorrida violou as regras da experiência, decidindo contrariamente às mesmas ao decidir que alguém, único gerente de uma sociedade, que trata de assuntos respeitantes à mesma com o seu contabilista certificado e assina documentos desta, vinculando-a juridicamente, não exerce atos próprios de gerência e gere efetivamente a referida sociedade.
Q) Do exposto se conclui que a forma como nos surgem equacionadas as matérias supra referidas na sentença recorrida constituem um atropelo às regras da lógica e da experiência, consubstanciando diversas situações subsumíveis ao disposto na al. b) do nº.2 do art. 410º. CPP.
R) Estas omissões e imprecisões, entre outras, na fundamentação que vimos de patentear são relevantes e manifestam, além do mais, também um exame crítico deficiente da prova e como tal acarreta uma insuficiência de fundamentação – cfr. art.º 374.º do Código de processo Penal.
S) Na sentença em apreço não se lançou mão das regras da experiência comum e da “normalidade das coisas”, pois se tal o fizesse a decisão redundaria em condenação da arguida T. M..
T) Atendendo à prova produzida em audiência de julgamento, a decisão sempre seria de condenação da arguida T. M. pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal.
U) Mostra-se incorretamente julgado o segmento factual inserto na alínea A do ponto II.2 da matéria de facto não provada respeitantes à autoria dos factos descritos, mais precisamente na identificação como autor dos mesmos a arguida T. M., que deveria ter resultado como provada.
V) As provas que impõem decisão diversa da recorrida quanto à matéria de facto impugnada consistem nas declarações prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento pelas testemunhas A. F. e R. V., bem como a certidão permanente da sociedade arguida, constante de fls. 200 a 201.
W) Com efeito, quando inquirida a testemunha A. F. (o depoimento consta gravado no dia 03/11/2021, através do sistema integrado de gravação digital (10:30:21 às 10:52:58) disponível na aplicação informática em uso neste tribunal), referiu que “a nível formal consta como gerente de direito a Senhora T. M.”, que “gerente de direito era só a senhora T. M.”, tendo chegado aos outros arguidos através das informações que lhe foram prestadas, em inquirições, quer pelo contabilista certificado, quer por uma cliente (14.50 a 16.50; 20:20 a 20:30 da gravação).
X) Por seu turno, inquirido referiu R. V. (o depoimento consta gravado no dia 10/11/2021, através do sistema integrado de gravação digital (09:49:02 às 10:09:18) disponível na aplicação informática em uso neste tribunal), contabilista certificado, referiu que “foi contratado pelo A. E.”: “era a pessoa que fazia a ligação connosco”; “também chegou a falar com a gerente da empresa, a Senhora T. M.”, chegou a falar com a Dona T. M. por questões da empresa, que era a gerente, e até para assinar o contrato (02.28 a 03.08 da gravação). Referiu também que questões relativas à contabilidade era a colaboradora que falava, ora com a T. M., ora com o A. E., o que fosse preciso (3.10 a 03.39 da gravação).
Y) Questões de decisão sobre a empresa, sobre trabalhadores, contratos, eram faladas com a empresa em si, era mais fácil falar com o A. E. que lhe transmitia a decisão. Houve situações em que era a T. M. que lhe transmitia (03.10 a 04.45 da gravação). Questões da empresa eram faladas com os dois, normalmente, com o A. E. por uma questão de facilidade. Quando deixaram de lhe pagar a avença e rescindiu o contrato, falou quer com o A. E., quer com a T. M. (04.45 a 05.51 da gravação).
Z) Assim sendo, face a tudo o que vem de se expor, entende-se que, com base nos elementos de prova produzidos em sede de audiência de discussão e julgamento, o Tribunal a quo deveria ter julgado provado que desde a sua constituição a gerência da sociedade arguida foi exercida pela sua socia gerente e também arguida T. M. e também pelo arguido A. E., enquanto seu gerente e representante de facto.
AA) Não obstante as declarações prestadas pelo contabilista certificado que referiu que as decisões relativas à empresa eram tratas quer pela arguida T. M. quer pelo arguido A. E., que foi contratado por ambos e que eram também ambos que tomavam as decisões relativas à empresa, o Mm. Juiz a quo fez tábua rasa de tais declarações, apenas dando relevância parcialmente às mesmas e no que respeita à autoria dos factos por parte do arguido A. E..
BB) Não se compreende, tal opção, porquanto não existia qualquer elemento de prova que afastasse a autoria dos factos por parte da arguida T. M. que não prestou declarações, nem apresentou contestação, nunca, em momento algum, se tendo referido que a mesma não exercia o cargo de gerência que lhe pertencia por direito, como resulta da certidão da matrícula da sociedade arguida junta aos autos.
CC) De toda a prova produzida em sede de audiência e julgamento, dúvidas não restam que se encontram preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivos do crime de abuso de confiança perpetrado pela arguida T. M..
DD) Nesta conformidade, deverá a presente sentença, caso não seja declarada nula, ser substituída por outra que condene a arguida T. M., entre o mais, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, por violação do disposto nos artigos 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, 105.º, n.º 1 e 4 do RGIT e 127.º, 368.º, 374.º, n.º 2, 375.º todos do Código de Processo Penal.

Termos em que deve ser dado provimento ao recurso interposto.
Este o entendimento que perfilhamos.
Vªs Exªs, porém, farão a costumada justiça.»
*
A arguida T. M. respondeu ao recurso, concluindo: (Transcrição)

“(…)
«CONCLUSÕES:
1- Não assiste qualquer razão ao MP no recurso que veio interpor, já que, não se vislumbram, na douta sentença recorrida, os vícios invocados pelo MP;
2- A douta sentença proferida configura-se como legal, correta e conforme às normas legais aplicáveis, em consonância com a matéria fáctica dada como provada, nada havendo a apontar quanto à valoração dos factos, sua fundamentação e apreciação, não sustentando qualquer crítica ou reparo;
3- Nada existe a reparar quanto aos atos de gestão praticados pela arguida T. M., pois, tais atos, não configuram atos de gestão da sociedade e, muito menos, vinculativos da arguida T. M. àquela sociedade;
4- Para que se verifique a gerência de facto é indispensável que o gerente use os poderes que lhe foram confiados, que seja um órgão atuante da sociedade, de forma continuada, não podendo o exercício de funções ser atestado pela prática de quaisquer atos isolados;
5- A simples qualidade de gerente de direito, desacompanhada de outros elementos – negociação, pagamentos, atuação perante clientes e fornecedores no interesse e representação da sociedade – não permite extrair a conclusão de que a arguida T. M. exerceu de facto as funções de gerente, nem que haja praticado atos em representação da sociedade;
6- O preenchimento do tipo legal do crime pelo qual a arguida T. M. vem acusada, pressupõe a conduta de quem tem o domínio e a capacidade efetiva de administração da sociedade comercial e só pode ser responsabilizado criminalmente quem, na ocasião em que não foi entregue a prestação tributária retida ou deduzida, reunia os poderes de facto necessários para optar pelo incumprimento da obrigação tributária;
7- Não é suficiente a designação de alguém no cargo de gerente, nem a sua inscrição, nessa qualidade, no registo comercial, para se concluir que as funções inerentes foram de facto, exercidas;
8- Não se pode concluir que a arguida T. M. tenha desempenhado de facto as funções de gerente, visto que não se demonstrou a prática de atos típicos e normais inerentes ao exercício do cargo;
9- Não vislumbramos a alegada insuficiência de fundamentação na douta sentença recorrida;
10- Não vislumbramos as alegadas omissões e imprecisões na fundamentação da douta sentença recorrida ou sequer um exame crítico deficiente da prova;
11- Não consideramos a existência de qualquer violação das regras da experiência por parte do Tribunal recorrido ou sequer o desrespeito e violação do artigo 127.º do CPP;
12- As declarações da testemunha, R. V., em sede de julgamento, conjugadas com a restante prova testemunhal e com o princípio da livre apreciação da prova não permitiriam fundamentar qualquer juízo de prova positivo quanto à autoria dos factos pela arguida T. M.;
13- Assim, o Tribunal recorrido ficou com dúvidas de que a arguida T. M. tomasse a efetiva direção dos destinos da empresa e, atento o princípio do “in dubio pro reo”, os factos pelos quais veio pronunciada consideraram-se como não provados;
14- O princípio “in dúbio pro reo” é uma emanação do princípio da presunção de inocência e surge como uma resposta ao problema da incerteza em processo penal, impondo a absolvição do acusado quando a produção de prova não permita resolver a dúvida inicial que está na base do processo; se, a final, persiste uma dúvida razoável e insanável acerca da culpabilidade ou dos concretos contornos da atuação do acusado, esse non liquet na questão da prova tem de ser resolvido a seu favor, sob pena de preterição do disposto no artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa;
15- Não existe, por conseguinte, qualquer “atropelo às regras da lógica e da experiência” e que consubstanciem os vícios do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, já que, não estamos perante uma notória, flagrante e efetiva desconformidade formal e material que resulte da simples leitura da decisão;
16- Da douta sentença recorrida, de forma alguma resulta a evidência e a ocorrência de um tal vício, sendo manifesto que a matéria de facto apurada em audiência de julgamento é manifestamente suficiente para a decisão de direito tomada nos autos;
17- E, da fundamentação da decisão de facto consta a indicação elucidativa das provas que serviram para formar a convicção do tribunal recorrido;
18- Não existem, de igual forma, os apontados erros no julgamento da matéria de facto, não tendo havido qualquer facto incorretamente julgado, sendo de todo manifesto que o tribunal recorrido fez uma apreciação correta e legal da prova, no quadro do princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127.º do CPP, sendo que procurou atingir a verdade material, agindo com bom senso e sentido da responsabilidade, tendo apreciado tal prova dentro dos parâmetros legais, em termos de um “livre convencimento lógico e motivado” e que “não se confunde com apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova, de todo em todo imotivável”, como pretende defender o MP;
19- Em face de toda a prova (ou falta dela) apurada, inexiste qualquer erro notório na apreciação e na valoração da prova, sendo a matéria de facto de mais que manifesta suficiência para a decisão tomada pelo Tribunal recorrido;
20- Atendendo à factualidade dada por verificada, é de todo incontornável não nos merecer a douta sentença qualquer crítica ou reparo, inexistindo qualquer violação dos princípios e normas invocados pela Recorrente;
22- Assim, bem andou o Tribunal recorrido ao decidir como decidiu, devendo, o Recurso interposto pelo MP, necessariamente improceder.

NESTES TERMOS e nos melhores de direito que doutamente serão supridos, requer a Vossa(s) Ex.cia(s) se dignem manter e confirmar a douta sentença recorrida, atenta a inexistência de qualquer reparo ou crítica de que a mesma mereça, com o que se fará INTEIRA JUSTIÇA.»
*
Nesta Relação o Exmo. Senhor procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso interposto pelo arguido, concluindo nos seguintes termos: (Transcrição).

“(…)

«2. DO MÉRITO DO RECURSO:
Considera a recorrente que a constatação da recorrida ser única gerente nominal de forma incontornável a mesma tinha que assegurar atos referentes à gerência de facto da sociedade coarguida.
Mais se refere na motivação de recurso a existência de contradição insanável não podendo o tribunal recorrido referir “No que toca à pessoa que assumia a responsabilidade e tomava as decisões pela empresa, esta testemunha esclareceu que apenas obteve a informação do que lhe foi comunicado pelo contabilista R. V. e por uma outra cliente da sociedade. Relatou, então, que o contabilista da empresa no momento da prática dos factos lhe declarou ter sido contratado pelo arguido A. E. para essas funções de contabilidade e que era este que lhe dava todas as instruções atinentes a assuntos contabilísticos. Esta versão, por sua vez, foi corroborada pela própria testemunha R. V. em sede de audiência de julgamento, confirmando que apenas entrou em contacto com a arguida T. M. muito esporadicamente e no contexto da outorga da documentação relativa à sociedade, enquanto sua representante estatutária
(…)
No que toca aos factos dados como não provados, o tribunal atendeu às declarações prestadas pela testemunha R. V. que declarou ter falado com a arguida T. M. sobre os assuntos da sociedade mas que era raro e esporádico contactar com ela a esse respeito, apenas se recordando da intervenção desta para assinar documentação. Face a este esclarecimento, o tribunal ficou com dúvidas de que a arguida T. M. tomasse a efetiva direção dos destinos da empresa ou que intervinha como sua representante de facto, para além da representação que assumia por ser sócia gerente da sociedade arguida. Por isso, atento o princípio do in dubio pro reo, os factos pelos quais veio pronunciada consideraram-se como não provados.”
Invocando estes excerto entende o Ministério Público/recorrente que sendo a recorrida a única gerente de direito, ela teria também de deter a gerência der facto, sob pena de a sociedade não poder laborar, considerando que o facto de assinar documentos, ainda que esporadicamente, quando interpelada pelo contabilista, este facto de per si é revelador do exercício de cargo da gerência de facto.
Mais se refere na motivação de recurso que o tribunal recorrido violou as regras da experiência, ao decidir que alguém, único gerente de uma sociedade, que trata de assuntos respeitantes à mesma com o seu contabilista certificado e assina documentos desta, vinculando-a juridicamente, não exerce atos próprios de gerência e gere efetivamente a referida sociedade.
Desde já se adianta que da leitura da matéria de facto provada e não provada bem como da fundamentação da decisão não se vislumbra os apontados vícios, tendo a recorrente se limitado a indicar os pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados, dados como provados, não trazendo à colação concretas especificações de prova suscetíveis de imporem decisão diversa da recorrida. É que a lei exige provas que «impõem» e não que «permitiriam» solução diversa, pois haverá casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução.
A recorrente limita-se a divergir do modo como o tribunal recorrido valorou a prova produzida na audiência de julgamento, pretendendo impor a sua própria convicção e atacar a decisão da matéria de facto, fazendo a sua própria análise crítica da prova, para concluir que matéria de facto dada como provada deveria ter sido considerada não provada, levando, deste modo, à sua absolvição.
Porém, é ao julgador que compete apreciar da credibilidade dos depoimentos e demais prova produzida, em obediência ao disposto no artigo 127º do Código de Processo Penal, sendo que contra a livre convicção do julgador, desde que não colida com provas proibidas ou com as regras da experiência, de nada vale a convicção de terceiros, designadamente a do recorrente, neste caso concreto.
Sendo certo que, “a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica” – Maia Gonçalves, CPP, 16ª ed., anotação ao artigo127º.
Ora, no caso vertente, os depoimentos das testemunhas não permite com um mínimo de segurança legalmente exigível afirmar que a recorrida T. M., para além de ser gerente nominal ou de direito também o era de facto.
Impõe-se chamar à colação o acórdão do STA (Pleno) 28 Fev. 2007, Recurso 1132/06, www.dgsi.pt, onde se doutrinou que prova da gerência de direito não permite presumir, nem legal nem judicialmente, a gerência de facto.
Exarou-se no dito aresto: “provada que seja a gerência de direito, continua a caber-lhe (à Fazenda Pública) provar que à designação correspondeu o efectivo exercício da função, posto que a lei se não basta, para responsabilizar o gerente, com a mera designação, desacompanhada de qualquer concretização.
Este efectivo exercício pode o juiz inferi-lo do conjunto da prova, usando as regras da experiência, fazendo juízos de probabilidade, etc. Mas não pode retirá-lo, mecanicamente, do facto de o revertido ter sido designado gerente, na falta de presunção legar. E mais se consignou do acórdão em referência: “se a Fazenda Pública produzir prova sobre a gerência e o revertido lograr provar factos que suscitem dúvida sobre o facto, este deve dar-se por não provado. Mas a regra não se aplica se a Fazenda não produzir qualquer prova”.
A responsabilização criminal da recorrida pressupõe que a mesma detivesse o efetivo exercício das funções inerentes à gerência da sociedade no período em questão, e que passam, nomeadamente, pelas relações com os fornecedores, com os clientes, com as instituições de crédito e com os trabalhadores, tudo em nome, no interesse e em representação da sociedade.
Para que se verifique a gerência de facto é indispensável que o gerente use, efetivamente, dos respetivos poderes, que seja um órgão atuante da sociedade, tomando as deliberações consentidas pelo facto, administrando e representando a empresa, realizando negócios e exteriorizando a vontade social Perante terceiros - nestes termos, Rúben Anjos de Carvalho - Francisco Rodrigues Pardal, Código de Processo das Contribuições e Impostos, Anotado e Comentado, 2 Edição, Coimbra, 1969, pág. 139.
Ora, no caso vertente, conforme resulta do depoimento das testemunhas inquiridas a intervenção da recorrida T. M. nos destino da sociedade de que era gerente nominal reconduziam-se a assinar duas notificações e, esporadicamente, assinar documentos que lhe eram apresentados para o efeito pelo contabilista, a testemunha R. V.
Todas as testemunhas inquiridas designadamente a inspetora tributária, A. F., o referido contabilista R. V., e a gerente de uma sociedade cliente da sociedade arguida, M. L., de forma unânime referem que era com o arguido A. E. que tratavam dos assuntos da sociedade. e que era este que assumia a responsabilidade e tomava as decisões que se imponham.
Ora, a circunstância de a recorrida ser gerente nominal, ainda que a única, não permite concluir que tinha responsabilidades nos destinos da sociedade, máxime na não entrega nos cofres do Estado do IVA faturado e liquidado no segundo trimestre de 2019 (factos provados no pontos 4,5 e 6).
Com efeito, e para além do registo da Conservatória da sociedade nenhuma prova consta dos autos que a arguido tomasse decisões relativas ao destino da sociedade, sendo que a simples aposição pontual da sua assinatura quando instado por quem tinha efetiva responsabilidade nos destinos da sociedade não permite responsabiliza-la criminalmente
III-Conclusão
Nesta medida e não tendo sido recolhido elementos probatórios bastantes de que a recorrida T. M. desempenhou funções de gestão e tinha responsabilidades nos desígnios da sociedade arguida no período em questão, afigura-se-nos que bem andou o tribunal recorrida ao absolve-la do crime que lhe era imputado, sendo nosso parecer que o recurso deverá ser declarado improcedente.»
*
Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.
*
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO:

É do seguinte teor a decisão proferida: (Transcrição)
“(…)
II.1. Factos provados:

Da prova produzida em sede de audiência de julgamento foram provados os seguintes factos com relevo para a boa decisão da causa:
1. A sociedade arguida é uma sociedade comercial, constituída em 14.11.2017, com o objeto social de atividade de comércio, importação e exportação de materiais para a construção civil, artigos sanitários e de iluminação, indústria de fundição de metais (CAE principal: ...., CAE Secundário (1): ....), estando enquadrada, para efeitos de IVA, pelo menos, até 16.08.2019, no regime de periodicidade trimestral, tendo como competente o Serviço de Finanças de Braga – 2.
2. Desde a sua constituição, a gerência da sociedade arguida foi exercida pelo arguido A. E., enquanto seu gerente e representante de facto.
3. No âmbito dessas suas funções, estava o arguido A. E., em representação da sociedade arguida, obrigado a proceder ao envio das declarações periódicas de IVA e a fazer a entrega das correspondentes prestações tributárias, cujo valor era apurado pela diferença entre o montante liquidado e o montante suportado nas transações comerciais efetuadas no exercício da respetiva atividade.
4. No segundo trimestre de 2019, a sociedade arguida realizou, no âmbito da sua atividade e sempre representada pelo arguido A. E., vendas de produtos e prestações de serviços, as quais consubstanciaram operações tributáveis e nas quais foi liquidando o IVA aos seus clientes.
5. Naquele período, o IVA liquidado efetivamente recebido até ao termo do prazo da entrega da declaração periódica foi de € 16.653,56 (dezasseis mil, seiscentos e cinquenta e três euros e cinquenta e seis cêntimos), ascendendo o IVA dedutível a € 7.537,73 (sete mil, quinhentos e trinta e sete euros e setenta e três cêntimos), pelo que não foi entregue ao Estado o IVA no montante de € 9.115,83 (nove mil, cento e quinze euros e oitenta e três cêntimos).
6. No entanto, apesar de, em representação da sociedade arguida, ter enviado, em 12.08.2019, a declaração periódica de IVA referente ao citado período temporal, conforme estava obrigado, o arguido A. E. não procedeu à entrega do referido montante nem no prazo legalmente estipulado e que atingiu o seu limite em 16.08.2019, nem nos 90 dias seguintes ao termo do mesmo.
7. Acresce ainda que nenhum dos arguidos procedeu ao pagamento do montante de € 9.115,83 nos 30 dias após terem sido notificados pessoalmente nos termos e para os efeitos do artigo 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT, sendo que à data das referidas notificações já se encontrava pago imposto no montante de € 4.950,17.
8. O arguido A. E. foi pessoalmente notificado nos termos do ponto anterior no dia 03-09-2020, assim como a sociedade arguida, na pessoa da sua legal representante T. M., no dia 19-06-2020.
9. Atualmente já se encontra pago o montante de € 6.243,75 a título de IVA e respetivos juros de mora.
10. Ao agir do modo descrito, concretamente ao omitir a entrega aos competentes serviços da administração fiscal, nos prazos legalmente estipulados, do montante referido em 5, tinha o arguido A. E. a consciência de que lhe competia providenciar, em nome e em representação da sociedade arguida, pelo cumprimento desta obrigação legal.
11. Pelo que, de modo igualmente consciente e deliberado e com o propósito concretizado de alcançar para a sua representada, um indevido e ilegítimo benefício patrimonial, não permitiu tal arguido o devido, atempado e integral recebimento das referidas quantias pelos competentes serviços da administração fiscal, dando consequentemente origem a uma diminuição das respetivas receitas, em prejuízo da Direcção-Geral dos Impostos e do Estado Português, em valor equivalente.
12. Ao agir da forma supra descrita, fê-lo o arguido A. E. em representação da sociedade arguida.
13. Além disso, o arguido atuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Mais se provou que:
14. A sociedade arguida tem o capital social de € 5.000,00.
15. A arguida T. M. vive com o marido, é administrativa e aufere o salário mínimo nacional;
16. Tem como despesas mensais estimadas do agregado familiar o montante de € 400,00 de empréstimo bancário e, ainda, o montante estimado de € 100,00 para luz, água e gás.
17. O arguido A. E. vive com a esposa e dois filhos menores de idade;
18. É técnico de fundição, aufere o salário mínimo nacional, estando a esposa empregada e auferindo o salário mínimo nacional.
19. Tem despesas de empréstimos ao banco, que não está a cumprir, e tem despesas mensais de luz, água e gás estimadas no montante de € 150,00.
20. O arguido J. M. vive com a esposa, é metalúrgico e aufere o salário mínimo nacional;
21. Tem despesas mensais estimadas de € 200,00 de renda e € 100,00 para luz, água e gás.
22. Do certificado do registo criminal dos arguidos X – Comércio de Artigos Sanitários, Lda., T. M. e J. M. não constam registos de quaisquer condenações.
23. Do certificado do registo criminal do arguido A. E. consta registo das seguintes condenações:
i. Por sentença proferida no dia 28-05-2019, transitada em julgado em 27-06-2019, o arguido foi condenado pela prática de um crime de emissão de cheque sem previsão, p. e p. pelo art. 11.º, n.º 1, al. a), do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de dezembro, praticado em 10-11-2017, tendo-lhe sido aplicada a pena de 160 dias de multa, à razão diária de € 6,00, perfazendo um total de € 960,00, extinta pelo seu cumprimento;
ii. Por sentença proferida no dia 30-09-2019, transitada em julgado em 30-10-2019, o arguido foi condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art. 105.º, n.º 1, do RGIT, praticado em 15-12-2017, tendo-lhe sido aplicada a pena de 160 dias de multa, à razão diária de € 5,00, perfazendo um total de € 800,00, extinta pelo seu cumprimento.
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II.2. Factos não provados:

Discutida a causa, e com relevância para os autos, ficaram por provar os seguintes factos:
A. Desde a sua constituição, a gerência da sociedade arguida foi exercida pela sua sócia gerente e também arguida T. M. e pelo arguido J. M., enquanto seus gerentes e representantes de facto.
B. Além do mencionado em 11., o arguido A. E. tinha o propósito concretizado de alcançar para si um indevido e ilegítimo benefício patrimonial.
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II.3. Motivação da matéria de facto:

Como dispõe o art. 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, na elaboração da sentença o tribunal deverá conter a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. A apreciação da prova obedece aos parâmetros dos artigos 124.º e ss. do Código de Processo Penal, nomeadamente quanto à valoração dos meios probatórios produzidos nos autos.
Considerando o caso concreto, a convicção do Tribunal foi adquirida com base na apreciação conjugada e crítica da prova produzida nos autos, sob o signo das regras processuais que se aplicam à sua valoração e consideradas regras da experiência comum e os juízos de normalidade, tendo sido ponderados e valorados os seguintes elementos de prova:
 Declarações prestadas em sede de audiência de julgamento pelas testemunhas A. F., R. V. e M. L., e ainda pelos arguidos quanto às suas condições socioeconómicas;
 Declaração periódica de IVA e informação fiscal de fls. 36 a 40;
 Documentos contabilísticos de fls. 48 a 127, 179 e 180;
 Informação do Sistema de Execuções Fiscais, de fls. 181 a 191;
 Notificações pessoais, de fls. 132, 133, 166 e 169;
 Certidão permanente da sociedade arguida, de fls. 200 e 201;
 CRC dos arguidos de fls. 344-349.
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Compete esclarecer, em primeiro lugar, que o tribunal teve em consideração os elementos probatórios que constituem prova plena nos presentes autos, nomeadamente os certificados dos registos criminais dos arguidos e certidão permanente da sociedade arguida.
Quanto às condições socioeconómicas dos arguidos, o tribunal atendeu às declarações prestadas pelos mesmos em sede de audiência de discussão e julgamento.
No mais, os factos dados como provados tiveram na sua base a conjugação dos elementos documentais supra descritos e as declarações prestadas pelas testemunhas arroladas.
A testemunha A. F., inspetora tributária, declarou que conduziu a investigação relativa à falta do imposto em causa, e que nesse âmbito apurou que a sociedade arguida entregou a declaração periódica relativa ao 2.º trimestre do ano de 2019 cujo imposto apurado era de € 12.442,67 (o que é corroborado pelo teor de fls. 36). Esclareceu, no entanto, que ao consultar os registos das transações comerciais realizadas e respetivos pagamentos apenas foi recebido pela sociedade até ao termo do prazo de entrega da declaração periódica o montante total de € 16.653,56 correspondente a IVA. E que o valor dedutível do imposto era de € 7.537,73, resultando num total de imposto a entregar à Autoridade Tributária para efeitos criminais de € 9.115,83 (o que é corroborado pelo teor de fls. 48 a 127, 179 e 180, os quais dão conta da relação de faturas emitidas e que foram efetivamente liquidadas com o respetivo IVA naquele trimestre).
Mais confirmou que no dia 02-11-2021 consultou os registos da autoridade tributária e constatou já ter sido pago um total de € 6.243,75 a título de IVA, acrescido dos respetivos juros e custas.
O seu depoimento, coerente e sustentado, associado à sua razão de ciência e desinteresse no desfecho da causa, permitiu ao tribunal confiar na veracidade das suas declarações.
No que toca à pessoa que assumia a responsabilidade e tomava as decisões pela empresa, esta testemunha esclareceu que apenas obteve a informação do que lhe foi comunicado pelo contabilista R. V. e por uma outra cliente da sociedade. Relatou, então, que o contabilista da empresa no momento da prática dos factos lhe declarou ter sido contratado pelo arguido A. E. para essas funções de contabilidade e que era este que lhe dava todas as instruções atinentes a assuntos contabilísticos.
Esta versão, por sua vez, foi corroborada pela própria testemunha R. V. em sede de audiência de julgamento, confirmando que apenas entrou em contacto com a arguida T. M. muito esporadicamente e no contexto da outorga da documentação relativa à sociedade, enquanto sua representante estatutária.
Esta testemunha não concretizou os concretos tipos de assuntos que eram tratados com A. E., afigurando-se um tanto comprometida em falar com detalhe quanto aos assuntos discutidos entre ambos. Mas foi perentória em afirmar que era com o arguido A. E. que falava sempre telefonicamente e que tudo o que era “papelada” ou assuntos menores de contabilidade era entregue aos colaboradores do gabinete de contabilidade, não passando por si. Assim, se a mera troca de documentação estava entregue aos colaboradores, por maioria de razão os assuntos que ambos discutiam telefonicamente eram de maior importância e diziam já respeito à vida económica da própria sociedade, como é natural e corresponde às regras da experiência comum, não tendo o tribunal qualquer dúvida de que o arguido A. E. agiu como decisor principal nessas questões e as comunicava àquela testemunha.
As notificações de fls. 133 e 166 e assinadas pessoalmente pelo arguido A. E. e pela arguida T. M., na qualidade de legal representante da sociedade arguida, por sua vez, confirmam o valor de IVA que estava em dívida no momento daquelas interpelações e que tais ofícios chegaram ao conhecimento dos sobreditos arguidos.
As circunstâncias do facto, apreciadas de acordo com as regras da lógica e as máximas da experiência comum, permitem concluir que o arguido teve completo conhecimento das circunstâncias, agindo com vontade de omitir aquele pagamento à Autoridade Tributária em prol do interesse da sociedade arguida por si representada.
No que toca aos factos dados como não provados, o tribunal atendeu às declarações prestadas pela testemunha R. V. que declarou ter falado com a arguida T. M. sobre os assuntos da sociedade mas que era raro e esporádico contactar com ela a esse respeito, apenas se recordando da intervenção desta para assinar documentação. Face a este esclarecimento, o tribunal ficou com dúvidas de que a arguida T. M. tomasse a efetiva direção dos destinos da empresa ou que intervinha como sua representante de facto, para além da representação que assumia por ser sócia gerente da sociedade arguida. Por isso, atento o princípio do in dubio pro reo, os factos pelos quais veio pronunciada consideraram-se como não provados.
Já a testemunha M. L., gerente de uma sociedade cliente da sociedade arguida, revelou parco conhecimento sobre quem era o responsável pela sociedade ou sobre o seu modo de funcionamento. Esclareceu, a este respeito, que sempre pensou que o gerente da mesma era o arguido J. M., dado ser ele que sempre lhe foi entregar as encomendas pedidas; no entanto, não esclareceu minimamente porque é que assim o considerava, dado que ele apenas agia perante ela como funcionário de entregas, estribando-se a sua convicção no que o marido e filho dela lhe relatavam e que, por se tratar de depoimento indireto quanto ao que ouviu dizer destes, não pôde ser tido em consideração pelo tribunal – art. 129.º do Código de Processo Penal. Por isso, não havendo prova de que o arguido J. M. agisse na qualidade de representante ou gerente de facto, os factos pelos quais veio pronunciado foram dados como não provados.
No mais, não foi produzida qualquer prova que permita afirmar que o arguido A. E. tenha agido com o intuito de enriquecimento pessoal ou que tivesse retirados vantagens pessoais com a prática dos factos.»
(…)”
*
A. APRECIAÇÃO DO RECURSO:

Conforme jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da apreciação de todas as matérias que sejam de conhecimento oficioso.

No caso presente, as questões colocadas no recurso interposto pelo Ministério Público são as seguintes:
- Nulidade, por ausência de fundamentação;
- Vícios da decisão, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; erro notório na apreciação da prova;
- Erro de julgamento, com violação dos princípios da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo.
*

1ª Questão

- Nulidades da sentença nos termos dos artigos 374º, n.º 2 e 379º, n.º 1, al. a) e c) do CPP.

Comecemos pela nulidade prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 379º do CPP, invocada pelo recorrente, falta de fundamentação e exame crítico da prova.
Em suma, entende o recorrente que a sentença recorrida é nula nos termos dos artigos 374º, n.º 2 e 379º, n.º 1, al. a) do CPP porquanto esta não reflete de forma suficiente o percurso lógico seguido pelo julgador, faltando, designadamente, a apreciação e a valoração da prova produzida.
Nos termos do artigo 374º, n.º 2 do CPP a fundamentação da sentença deve conter, sob pena de nulidade cominada pelo artigo 379º, n.º 1, al. a) do mesmo diploma legal, além da enumeração dos factos provados e não provados, uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
A exigência de uma fundamentação adequada e suficiente da sentença tem uma dupla finalidade: a legitimação externa da decisão, pela possibilidade da sua compreensão pelos destinatários e comunidade em geral; a controlabilidade da decisão em sede de recurso.
O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção. (Cfr., entre outros, o Ac. STJ de 21-03-2007, in dgsi.pt.)
O rigor e a suficiência do exame crítico, exigidos pelo artigo 374º, n.º2 do CPP, têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico que lhe serviu de suporte, não se impondo uma explanação total em que se descreva todo o caminho tomado pelo juiz para decidir, ou seja, todo o raciocínio lógico seguido, não sendo necessária uma referência discriminada a cada facto provado e não provado, mas antes o que se impõe é uma exposição, que pode ser sucinta, das provas que serviram para fundar a decisão e a indicação dos elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido. (Cfr. os Acs. STJ de 21-03-2007, 26-03-2008, proc. 07P4833, 08-02-2007 proc. 07P028, disponíveis em www.dgsi.pt.)
Percorrendo a sentença recorrida, verificamos, nomeadamente em relação à motivação de facto, a parte colocada em crise pelo recurso, que dela consta a explanação do raciocínio lógico em que o tribunal a quo baseou a decisão de facto, onde se inclui a enunciação e análise das provas que determinaram e contribuíram para a formação da convicção do tribunal sobre a matéria provada e não provada.
Com efeito, o Tribunal recorrido, como se pode constatar da transcrição da motivação de facto acima exposta, não só enumerou os meios de prova produzidos, como também fez a apreciação crítica dos mesmos, designadamente em relação à prova testemunhal e por declarações, apontando a credibilidade, ou falta de credibilidade, dos depoimentos e declarações, explicando e conjugando a prova produzida com as regras da experiência e com o normal suceder das coisas da vida de um modo em que é perfeitamente percetível o caminho percorrido para a formação a sua convicção quanto aos factos provados e não provados.
Resumindo, a motivação de facto constante da sentença reflete de modo claro, completo e lógico o juízo probatório, contendo a indicação e a análise crítica da prova relevante para a formação da convicção do tribunal relativamente aos factos provados e não provados, com explicação detalhada da apreciação dos meios de prova e discriminação das razões que justificaram a decisão, com apelo às regras da do normal suceder das coisas e da experiência comum.
A sentença recorrida respeitou, pois, a imposição legal de fundamentação, não só de direito como de facto, contendo quanto a esta última a explicitação suficiente do raciocínio lógico que subjaz à decisão de facto, designadamente quanto aos factos respeitantes à atuação dos arguidos, o que faz concluir que a sentença não enferma da invocada nulidade, resultante do disposto nos artigos 374º, n.º 2 e 379º, n.º 1, al. a) do CPP, sendo improcedente nesta parte o recurso.
*
2ª Questão

-Impugnação da matéria de facto, vícios da decisão, violação dos princípios in dubio pro reo e da livre apreciação da prova.

Como é sabido a matéria de facto pode ser sindicada de dois modos. Um mais restrito, a chamada «revista alargada», que abrange os vícios previstos no artigo 410º, nº2, do CPP. Outro, a chamada impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º, nºs 3, 4 e 6, do CPP.
Vejamos, pois, o primeiro modo de sindicância da matéria de facto.
De acordo com o artigo 410º, n.º 2 do CPP, mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova.
O vício que estiver em causa, tal como resulta da norma, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos estranhos à decisão.
Atentemos então em cada dos vícios do artigo 410º, n.º 2 do CPP.
- A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Este vício, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP, consiste numa carência de factos que suportem uma decisão de direito dentro do quadro das soluções plausíveis da causa, conduzindo à impossibilidade de ser proferida uma decisão segura de direito, sobre a mesma. O tribunal não dá nem como provado nem como não provado algum facto necessário para justificar a posição tomada.
Este vício não se confunde com a insuficiência da prova para a decisão de facto proferida, em que se afirma que teriam sido dados como provados factos sem prova para tal.
- A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.
Este vício, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), do CPP, consiste na incompatibilidade, insuscetível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Existirá contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão quando, por exemplo, um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
- Erro notório na apreciação da prova.
Este vício, previsto no artigo. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, ocorre quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Existe erro notório na apreciação da prova quando o tribunal a valoriza contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, dando como provado o que não pode ter acontecido e aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de pela simples leitura da decisão não passar o erro despercebido ao cidadão comum. O erro notório na apreciação da prova terá de constar do teor da própria decisão de facto, não da motivação dessa decisão, ou da fundamentação de direito.
*
Passemos agora ao campo da impugnação alargada da matéria de facto.

Nos termos do artigo 428.º, n.º 1 do Código Processo Penal, as Relações conhecem de facto e de direito e de acordo com o artigo 431.º “Sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada:

a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada, nos termos do n.º 3, do artigo 412.º; ou c) Se tiver havido renovação da prova.”

Por outro lado, dispõe o artigo 412.º, n.º 3 que “Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.”.

E, no seu n.º 4 que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”
Posto isto, cabe referir que o reexame da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento, mas apenas sindicar aquele que foi efetuado, despistando e sanando os eventuais erros procedimentais ou decisórios cometidos e que tenham sido devidamente suscitados em recurso (Ac. STJ de 16.06.2005).
Assim, deve concluir-se que o recurso sobre a matéria de facto não pressupõe a reapreciação pelo tribunal de recurso de todos os elementos de prova que foram produzidos e que serviram de fundamento à sentença recorrida, mas apenas e tão-só a reapreciação da razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo, a incidir sobre os pontos de factos impugnados e com base nas provas indicadas pelo recorrente – Ac. do STJ de 10.01.2007.
Por outro lado, o nosso Código de Processo Penal consagra no artigo 127.º o princípio da livre apreciação da prova. De acordo com este princípio, o tribunal é livre na formação da sua convicção, mas encontra-se vinculado às regras da experiência e da lógica comum, bem como às provas que estão subtraídas a essa livre convicção, sendo esta motivada, e estando ainda o tribunal sujeito aos princípios do processo penal, como o da legalidade das provas e in dubio pro reo.
Este princípio in dubio pro reo, emanação da injunção constitucional da presunção da inocência do arguido, na vertente de prova (artigo 32.º, n.º 2 Constituição), constitui um limite do princípio da livre apreciação da prova na medida em que impõe nos casos de dúvida fundada sobre os factos que o Tribunal decida a favor do arguido.
Postas estas considerações, cabe concluir que assim e para além da violação das provas subtraídas à livre apreciação do julgador, ou da violação dos referidos princípios, o juízo decisório da matéria de facto só é suscetível de ser alterado, em sede de recurso, quando a racionalidade do julgamento da matéria de facto corresponda, de um modo objetivo, a um juízo desrazoável ou mesmo arbitrário da apreciação da prova produzida.

Analisemos.
No presente recurso é apontada a existência de vícios decisórios na sentença recorrida, concretamente de contradição insanável da fundamentação e erro notório na apreciação da prova.
No que concerne ao vício da contradição insanável da fundamentação, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Penal, lendo a totalidade dos factos não encontramos factos inconciliavelmente contraditórios entre si, ou entre os provados e os não provados, como também não encontramos qualquer contradição entre a fundamentação da convicção e a matéria de facto provada e não provada, como ainda entre a fundamentação de direito e a decisão.
Devidamente lida a decisão recorrida, a mesma mostra-se compreensível e clara, pelo que não vislumbramos a existência de contradição insanável da fundamentação da matéria de facto.
Como referimos supra, essa contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão verificar-se-á quando, por exemplo, um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Nada disto se retira do texto da decisão sob escrutínio.
Assim, no caso dos autos, do texto da decisão recorrida não resulta o vício da previsão do art. 410.º, 2, alínea b), do Código de Processo Penal, o que aqui se declara.

Relativamente ao vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c) do Código de Processo Penal, verifica-se o mesmo quando o tribunal pondera a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao juiz dotado da cultura e experiência que se supõe existir em quem exerce a função de julgar.
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia pela simples leitura da decisão e que consiste basicamente em decidir-se contra o que se provou ou não provou, ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido, resultando tal incongruência de uma apreciação manifestamente desadequada e/ou baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.

No caso presente a motivação do recurso não aponta erro no raciocínio lógico desenvolvido pelo tribunal ou afronta das regras da normalidade e da experiência comum na formação da convicção sobre a factualidade provada, mas antes expressa a discordância do recorrente sobre a valoração da prova, nomeadamente quanto ao facto de se não ter valorizado a prova produzida no sentido de considerar que a arguida T. M. também teve uma participação direta na prática dos factos ilícitos apurados, tendo o tribunal recorrido desatendido ao que consta da certidão permanente da sociedade, da qual consta esta coarguida como única titular da empresa, bem como à apreciação e ponderação conferida aos depoimentos das testemunhas A. V. e R. V., que, na sua interpretação, colocam aquela T. M. na gestão de facto da empresa juntamente com o seu irmão, e daí retira que não poderia ter deixado de participar nos factos.
Das motivações e conclusões do recurso apresentado constata-se que o recorrente acaba por se limitar a questionar a ponderação da prova feita no tribunal recorrido, sem que se nos afigure existir uma verdadeira concretização do suposto erro notório/inequívoco que tenha sido cometido nessa apreciação e que esteja patente no texto do acórdão recorrido.
Deste modo, o recurso não descreve em que consiste especificadamente o erro notório, não se constatando uma discriminação, com referência à motivação de facto, da violação pelo tribunal a quo de concretas regras da experiência comum ou a infração de critérios legalmente impostos na apreciação da prova, ou ainda a formulação de juízo ilógico, que sejam patentes no texto da decisão recorrida e tenham sido determinantes da decisão sobre a matéria de facto.
Não é minimamente suficiente para atingir tal desiderato alegar que aquelas testemunhas A. V. e R. V., na qualidade de, respetivamente, Inspetora Tributária que teve o inquérito sob sua responsabilidade e o ex-técnico oficial de contas da empresa arguida, afirmaram: “a nível formal consta como gerente de direito a Senhora T. M.”, que “gerente de direito era só a senhora T. M.”, ou “foi contratado pelo A. E.”, “era a pessoa que fazia a ligação connosco”; “também chegou a falar com a gerente da empresa, a Senhora T. M.”, chegou a falar com a Dona T. M. por questões da empresa, que era a gerente, e até para assinar o contrato” e que “questões relativas à contabilidade era a colaboradora que falava, ora com a T. M., ora com o A. E., o que fosse preciso”,
Naturalmente que destas afirmações não resulta uma prova minimamente concludente sobre a participação efetiva da coarguida T. M. na gestão da empresa, antes pelo contrário, mostra-se de toda a legitimidade retirar dessa prova que a sua participação na vida daquela se limitava a dar configuração jurídica, formal, à gerência da mesma, figurando no pacto social nessa qualidade, bem como aos atos que, por via dessa posição juridicamente relevante, exigiam a sua presença, como assinatura de contratos ou outros atos formais, que exigissem a assinatura do titular com capacidade para vincular essa sociedade.
Na verdade, nestes autos estamos limitados a saber quem efetivamente exercia a sua gerência e, em consequência, partilhava das decisões de gestão, incluindo da retenção de valores relativos a IVA, como se questiona nos autos.

O tribunal recorrido fundamentou de forma proficiente a sua decisão de facto:
No mais, os factos dados como provados tiveram na sua base a conjugação dos elementos documentais supra descritos e as declarações prestadas pelas testemunhas arroladas.
A testemunha A. F., inspetora tributária, declarou que conduziu a investigação relativa à falta do imposto em causa, e que nesse âmbito(…) No que toca à pessoa que assumia a responsabilidade e tomava as decisões pela empresa, esta testemunha esclareceu que apenas obteve a informação do que lhe foi comunicado pelo contabilista R. V. e por uma outra cliente da sociedade. Relatou, então, que o contabilista da empresa no momento da prática dos factos lhe declarou ter sido contratado pelo arguido A. E. para essas funções de contabilidade e que era este que lhe dava todas as instruções atinentes a assuntos contabilísticos.
Esta versão, por sua vez, foi corroborada pela própria testemunha R. V. em sede de audiência de julgamento, confirmando que apenas entrou em contacto com a arguida T. M. muito esporadicamente e no contexto da outorga da documentação relativa à sociedade, enquanto sua representante estatutária.
Esta testemunha não concretizou os concretos tipos de assuntos que eram tratados com A. E., afigurando-se um tanto comprometida em falar com detalhe quanto aos assuntos discutidos entre ambos. Mas foi perentória em afirmar que era com o arguido A. E. que falava sempre telefonicamente e que tudo o que era “papelada” ou assuntos menores de contabilidade era entregue aos colaboradores do gabinete de contabilidade, não passando por si. Assim, se a mera troca de documentação estava entregue aos colaboradores, por maioria de razão os assuntos que ambos discutiam telefonicamente eram de maior importância e diziam já respeito à vida económica da própria sociedade, como é natural e corresponde às regras da experiência comum, não tendo o tribunal qualquer dúvida de que o arguido A. E. agiu como decisor principal nessas questões e as comunicava àquela testemunha. (…)
No que toca aos factos dados como não provados, o tribunal atendeu às declarações prestadas pela testemunha R. V. que declarou ter falado com a arguida T. M. sobre os assuntos da sociedade mas que era raro e esporádico contactar com ela a esse respeito, apenas se recordando da intervenção desta para assinar documentação. Face a este esclarecimento, o tribunal ficou com dúvidas de que a arguida T. M. tomasse a efetiva direção dos destinos da empresa ou que intervinha como sua representante de facto, para além da representação que assumia por ser sócia gerente da sociedade arguida. Por isso, atento o princípio do in dubio pro reo, os factos pelos quais veio pronunciada consideraram-se como não provados.
Já a testemunha M. L., gerente de uma sociedade cliente da sociedade arguida, revelou parco conhecimento sobre quem era o responsável pela sociedade ou sobre o seu modo de funcionamento. Esclareceu, a este respeito, que sempre pensou que o gerente da mesma era o arguido J. M., dado ser ele que sempre lhe foi entregar as encomendas pedidas; no entanto, não esclareceu minimamente porque é que assim o considerava, dado que ele apenas agia perante ela como funcionário de entregas, estribando-se a sua convicção no que o marido e filho dela lhe relatavam e que, por se tratar de depoimento indireto quanto ao que ouviu dizer destes, não pôde ser tido em consideração pelo tribunal – art. 129.º do Código de Processo Penal. Por isso, não havendo prova de que o arguido J. M. agisse na qualidade de representante ou gerente de facto, os factos pelos quais veio pronunciado foram dados como não provados.
No mais, não foi produzida qualquer prova que permita afirmar que o arguido A. E. tenha agido com o intuito de enriquecimento pessoal ou que tivesse retirados vantagens pessoais com a prática dos factos.»
Como linearmente se extrai, no caso em apreço, não se constata pela simples leitura do teor da decisão recorrida o vício (formal) que o recorrente lhe pretenderia assacar, pois, para além de os factos considerados provados sustentarem cabalmente a decisão tomada, também não são contraditórios em si mesmos ou com aqueles que foram dados como não provados ou com a fundamentação que sobre eles incidiu, assim como não se vislumbra que a apreciação dos meios de prova tivesse afrontado qualquer princípio jurídico ou as regras da experiência comum.
Efetivamente o recorrente alega que a T. M. também participava da gestão de facto da empresa coarguida, mas o tribunal entendeu apenas haver prova bastante ser o arguido A. E. o único gerente efetivo da sociedade arguida, sendo este apontado por todos como a pessoa que assumia essa posição, designadamente na prática dos factos que lhe foram imputados. Porém, no que concerne aos factos relativos à comparticipação da coarguida sua irmã no exercício desse cargo, nomeadamente que o fizesse juntamente com ele, nenhum dos depoimentos testemunhais apresentados confere dados concretos, específicos, dos quais se possa concluir, com alguma dose de certeza, que tal se verificava, nem encontramos prova indireta que o permita inferir.
A responsabilidade é atribuída em função do exercício efetivo do cargo de gerente e reportada ao período do respetivo exercício. Ou seja, a gerência de facto, real e efetiva, constitui requisito da responsabilidade dos gerentes, não bastando, portanto, a mera titularidade do cargo, ou o que se designa por gerência nominal ou de direito.
«A chamada gerência de facto de uma sociedade comercial consistirá no efetivo exercício das funções que lhe são inerentes e que passam, nomeadamente, pelas relações com os fornecedores, com os clientes, com as instituições de crédito e com os trabalhadores, tudo em nome, no interesse e em representação dessa sociedade. Para que se verifique a gerência de facto é indispensável que o gerente use, efetivamente, dos respetivos poderes, que seja um órgão atuante da sociedade, tomando as deliberações consentidas pelo facto, administrando e representando a empresa, realizando negócios e exteriorizando a vontade social perante terceiros» - nestes termos, Rúben Anjos de Carvalho - Francisco Rodrigues Pardal, “Código de Processo das Contribuições e Impostos, Anotado e Comentado”, 2ª Edição, Coimbra, 1969, pág. 139, cit. no acórdão deste TCAN, de 18/11/2010, proferido no proc.º00286/07.0BEBRG.
Não constituindo a mera nomeação (ou inscrição no registo) como gerente base factual bastante para se concluir pelo exercício da gerência, importa verificar que atos de gerência se retiram da matéria factual assente como praticados pela coarguida dentro do período de tempo em que, embora inscrita como gerente da sociedade, terá praticado atos de gestão que tiveram lugar em período concomitante com aquele a que se reporta a matéria delituosa.
É, pois, com base na matéria factual vertida que importaria entrar na apreciação do alegado erro de julgamento, pois é disso que se trata, imputado à sentença recorrida.
Com vimos, resultou provado que.
A sociedade arguida é uma sociedade comercial, constituída em 14.11.2017, com o objeto social de atividade de comércio, importação e exportação de materiais para a construção civil, artigos sanitários e de iluminação, indústria de fundição de metais (CAE principal: ...., CAE Secundário (1): ....), estando enquadrada, para efeitos de IVA, pelo menos, até 16.08.2019, no regime de periodicidade trimestral, tendo como competente o Serviço de Finanças de Braga – 2.
2. Desde a sua constituição, a gerência da sociedade arguida foi exercida pelo arguido A. E., enquanto seu gerente e representante de facto.

II.2. Factos não provados:

A. Desde a sua constituição, a gerência da sociedade arguida foi exercida pela sua sócia gerente e também arguida T. M. e pelo arguido J. M., enquanto seus gerentes e representantes de facto.(…)”
Ou seja, no período reportado aos factos em causa nos autos, não resultou provado que T. M. exerceu a dita gerência de facto da sociedade coarguida, praticando atos que são inerentes a essas funções, nomeadamente, através de relações com os trabalhadores, contratação de funcionários, contactando fornecedores, enfim, praticando atos efetivos de gestão em nome, no interesse e em representação da sociedade coarguida. E não restam dúvidas que da prova apurada não é possível extrair circunstancialismo factual que conduza a uma resposta positiva, minimamente convincente, de que as coisas assim se passavam.
Em suma, neste e nos demais aspetos versados no recurso, o que está verdadeira e unicamente em causa é que o recorrente, não se conforma com a circunstância de o tribunal de 1ª instância ter acolhido uma versão dos factos que com a qual discorda sobre a matéria de facto, aí fazendo radicar os aludidos vícios que aponta à decisão recorrida e que, no caso ora em análise, expressamente apoda, de erro notório na apreciação da prova.
Assim, a arguição desse vício decisório carece de fundamento. E, para além de tudo o já exposto, também não vislumbramos que o outro dos previstos no nº 2 do art. 410º, do CPP, o da al. a), resulte do texto da decisão sob escrutínio.

Na verdade, e como já acima se foi referindo, o inconformismo do recorrente quanto à decisão da matéria de facto deve ser apreciado em sede de impugnação ampla, sujeita à disciplina do artigo 412.º, n.ºs 2 e 3, do Código Processo Penal.
Ora, analisada a alegação recursiva verifica-se que esta apenas exprime a divergência do recorrente relativamente à avaliação da prova efetivada pelo tribunal a quo.
Assim, a motivação do recurso, identificando especificamente o facto que pretende impugnar, mas não especifica quanto a esse facto a prova concreta que impõe decisão diversa da tomada pelo tribunal a quo.
Na realidade, o recorrente limita-se a valorar os depoimentos das testemunhas inquiridas, cujo registo indica. E, com base em considerandos que resultam da sua visão pessoal sobre essa prova, sustenta que o facto não provado relativo à participação da T. M. na gestão da empresa não tem sustento na prova testemunhal sobre esta matéria de facto, entendendo que esses meios probatórios conduzem à conclusão contrária.
Refere que os depoimentos das testemunhas A. V. e R. V., acima indicadas, permitem perceber qual era o papel da T. M. na sociedade arguida, extraindo dessa prova as conclusões que formula sobre o modo como esta desempenhava funções nessa empresa.
Para sustentar a sua posição o recorrente invoca, pois, essencialmente, os depoimentos dessas duas testemunhas.
Ouvidos os depoimentos, não parece que a prova produzida, tal como já referimos, imponha solução diversa daquela a que o Tribunal recorrido chegou.
Conforme se pode ler da motivação de facto da sentença, o Tribunal deu como provados os factos nessa qualidade supra descritos com base em diversos elementos probatórios, devidamente correlacionados, designadamente, e desde logo, o teor dos documentos juntos aos autos e os depoimentos prestados pelas testemunhas.
Ora, perante a escuta dessa prova, e a análise da demais junta aos autos, devidamente concatenada, não se extraem motivos objetivos que justifiquem a modificação da matéria de facto impugnada e determinem o afastamento do raciocínio lógico desenvolvido pelo tribunal a quo, mas antes se confirmam os fundamentos em que se alicerçou a convicção do tribunal sobre a matéria provada e não provada.
Neste contexto, a alteração da matéria de facto, por via da impugnação ampla, não pode basear-se na virtualidade de formulação de um juízo probatório diverso daquele que subjaz à decisão recorrida, mais exige a lei que a prova indicada pelo recorrente infirme ou invalide a decisão que foi tomada e determine, de modo inequívoco e inabalável, a apreciação proposta pelo impugnante, desiderato não alcançado no caso presente.
Nestes termos, carece de fundamento a pretensão recursiva de modificação da matéria de facto.

Por outro lado, como se extrai de tudo o acima referido, para onde remetemos, não se vislumbra que a decisão recorrida viole o princípio da livre apreciação da prova previsto no artigo 127.º do Código Penal, sendo a decisão sobre a matéria de facto, por isso, inatacável, e o princípio in dubio pro reo mostra-se integralmente respeitado, uma vez que o tribunal, tal como resulta da decisão recorrida, fez um uso correto desse princípio no que concerne à prova, ou antes, à falta dela, quanto à ocorrência dos factos relativos à participação da arguida T. M. na gestão de facto da empresa.
Assim, é totalmente improcedente o recurso do Ministério Público.
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III. DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:
Julgar improcedente o recurso interposto pelo recorrente, e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.

Sem custas, pelo facto do recorrente estar delas isento, , artigo 522º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
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(O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do CPP)

Notifique
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Guimarães, 26 de abril de 2022

Os Juízes Desembargadores
Relator - José Júlio Pinto
Adjunto - Pedro Cunha Lopes
Presidente da Secção – Fernando Chaves