Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
122/15.3T8VRM.G1
Relator: JORGE TEIXEIRA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO FACULTATIVO
SEGURO OBRIGATÓRIO
PRIVAÇÃO DO USO DE VEÍCULO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/30/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I- A convicção do julgador, firmada no princípio da livre apreciação da prova, só pode ser modificada pelo Tribunal de recurso quando fundamentada em provas ilegais ou proibidas ou contra a força probatória plena de certos meios de prova, ou então, quando afronte, de forma manifesta, as regras da experiência comum.

II- No seguro facultativo de coisas prevalece o regime convencionado, pelo que, não estando cobertos os danos pela privação do uso da viatura, não será contratualmente devida qualquer compensação, declinando assim a convocação supletiva do regime do seguro de responsabilidade civil obrigatório, sob pena de se transmutar o seguro facultativo em seguro obrigatório, fazendo tábua rasa do disposto no artigo 128º do RJCS, que limita a prestação devida pelo segurador ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.

I – RELATÓRIO.

Recorrentes: AA. E BB.

Recorridos: BB e AA.

Tribunal Judicial de Vieira do Minho – Instância Local, Secção de Competência Genérica, J1.

BB, contribuinte n.XXXX, residente no concelho de Vieira do Minho, intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, destinada à efectivação de responsabilidade contratual, contra AA, pessoa colectiva n.xxxxx, com sede em Lisboa, pedindo, no essencial, a condenação da ré a pagar-lhe a quantia total de €15.025,00 (quinze mil e vinte cinco euros), discriminada da seguinte forma: €10.165,00 (dez mil cento e sessenta cinco euros), relativa à diferença entre o valor do capital seguro do veículo automóvel com a matrícula AU e a franquia de €535,00 (quinhentos trinta cinco euros); €4.860,00 (quatro mil oitocentos e sessenta euros) pela privação do uso do veículo, acrescida do montante que durante a pendência da acção se vier a vencer - acrescida de juros, à taxa legal, até efectivo e integral pagamento - e ainda a condenação da ré a pagar os custos com o parqueamento do veículo sinistrado até efectivo e integral ressarcimento dos valores peticionados.

Para o efeito, alegou em síntese que é proprietário do veículo automóvel ligeiro de passageiros, da marca Renault, modelo Mégane Scénic, com a matrícula AU, e, nessa qualidade, celebrou com a ré, o contrato de seguro, ao qual corresponde a apólice n.º4101411002902, sob a designação de Autovip, com cobertura de choque, colisão e capotamento até €10.700,00, com uma franquia de €535,00.

Sucede que, no decurso da vigência de tal contrato, mais precisamente no dia 29/12/2014, pelas 04:30horas, na estrada nacional 304, sentido Tabuaças/Caniçada, na freguesia de Tabuaças, concelho de Vieira do Minho, o autor conduzia o seu veículo, quando perdeu o controlo do mesmo e embateu numa árvore que se encontrava na berma da estrada, no lado direito do sentido de marcha, sofrendo danos materiais na parte frontal.

Uma vez que o sinistro em questão se encontra totalmente coberto pelo contrato de seguro acima descriminado, o autor participou o acidente à ré, que procedeu à peritagem do veículo, à avaliação dos custos da reparação, concluindo pela sua perda total. No entanto, por carta de 02/02/2015, a ré comunicou ao autor que não podia dar seguimento à regularização do sinistro, referindo que os danos reclamados não se coadunam com o sinistro.

Reclamou da posição assumida pela ré, solicitando a regularização do sinistro e a assunção de responsabilidade, contudo aquela reiterou a sua posição de não assunção da responsabilidade.

Em consequência da conduta da ré, o autor continua privado do uso do seu veículo, que, devido aos danos sofridos, ficou e se mantém imobilizado, além de que se encontra impossibilitado de adquirir um outro para o substituir. Toda esta situação tem vindo a causar transtornos e prejuízos ao autor, que utilizava o referido veículo durante a semana, para a sua deslocação para o local de trabalho e seus afazeres pessoais, assim como aos fins de semana para a família.

Essa privação do uso do veículo causou e causa grandes perturbações e incómodos no modus vivendi e lides diárias do autor, sofrendo um prejuízo diário decorrente da impossibilidade de uso do seu veículo, na quantia de €30,00 (trinta euros). Ao que acresce o valor dos custos diários com o aparcamento do veículo.

Devidamente citada, a ré AA contestou, impugnando, por desconhecimento, a verificação do embate e a sua dinâmica veiculadas na petição inicial, referindo que tem sérias reservas quanto à dinâmica da colisão alegada, uma vez que não encontra sustentação nos dados recolhidos através das perícias técnicas efectuadas ao veículo nem no suposto local do embate.

Por outro lado, o veículo com a matrícula AU foi transportado para as instalações da oficina Confiauto – Indústria e Comércio de Automóveis, com sede em Braga, ostentando uma multiplicidade de danos ao nível da frente e no volante, sem que os airbags tenham disparado, que se ignora se foram consequência directa e necessária do embate descrito.

Acresce que, atentas as condições contratuais da apólice, ao valor venal do veículo e deduzido o valor dos salvados, cumpre deduzir a franquia de 5%.

Para além disso, referiu ainda que está em causa um contrato de seguro facultativo em que não está prevista a cobertura de quaisquer danos de privação do uso do veículo nem de parqueamento, razão pela qual os danos peticionados a esse título não são devidos.

Terminou, assim, concluindo pela improcedência da presente acção, com as legais consequências.

Prosseguindo os autos os seus trâmites, foi dispensada a audiência prévia e proferido despacho saneador, nos termos do qual se fixou o valor da causa em €15.025,00 (quinze mil e vinte cinco euros), se saneou os autos, se fixou o objecto do litígio e os temas da prova, se determinou o prosseguimento da lide para instrução e julgamento, se programou e designou data para a realização da audiência final (ref.ª142469347).

Realizado o julgamento, foi proferida sentença em que, respondendo à matéria de facto controvertida, se decidiu nos seguintes termos:

- Julgar parcialmente procedente a presente acção e, em consequência:

a) Declarar que entre o autor BB e a ré AA foi celebrado um contrato de seguro de danos próprios, com cobertura, designadamente, de choque, colisão e capotamento, relativo ao veículo automóvel com a matrícula AU, titulado pela apólice 4101411002902, com o valor de capital seguro de €10.700,00, e franquia de 5% sobre o capital seguro, mínimo de €250,00.

b) Condenar a ré AA a pagar ao autor BB a quantia de €9.165,00 (nove mil cento e sessenta cinco euros), correspondente à indemnização pela perda do veículo com a matrícula AU, acrescida de juros de mora, à taxa supletiva legal, vencidos desde a citação e vincendos até efectivo pagamento.

c) Absolver a ré AA do demais peticionado.

Inconformados com tal decisão, dela interpuseram recurso o Réu, e o Autor, sendo o deste último subordinado, e de cujas alegações extraíram as seguintes conclusões:

- Recurso interposto pela Ré, AA..

1. Os presentes autos fundam-se na responsabilidade civil contratual emergente de acidente de viação.
2. Alegando ter ocorrido um acidente de viação com o veículo seguro na ora R/Recorrente, e do qual resultaram danos no mesmo, veio o A./Recorrido, ao abrigo da cobertura facultativa contratada (choque, colisão e capotamento), peticionar a condenação da Seguradora R., e para o que ora releva, no pagamento da indemnização atinente ao valor da perda total do veículo.
3. Em face da matéria de facto considerada provada, o douto Tribunal “a quo” proferiu a douta decisão ora posta em crise, de acordo com a qual julgou a acção parcialmente procedente.
4. Ora, salvo o devido respeito por diversa opinião, não pode a Seguradora Apelante concordar com a apreciação da prova levada a cabo, discordando, consequentemente dos fundamentos que suportam a douta decisão prolatada, quanto à matéria de facto e quanto à solução de direito.

DA REAPRECIAÇÃO DA PROVA:

PROVA TESTEMUNHAL E PROVA DOCUMENTAL:

5. Face ao acervo probatório carreado aos presentes autos, jamais poderia ser considerada demonstrada a factualidade vertida nos arts. 3º e 4 º dos factos provados.
6. Na verdade, e sempre com o máximo respeito, não se consegue conceber que tenha o Meritíssimo Tribunal “a quo” considerada provada a ocorrência do evento, e dada como provada a respectiva dinâmica alegada pelo A/ recorrido, desde logo quandoo nenhuma das testemunhas inquiridas presenciou o evento e nenhuma das testemunhas mostra conhecimento directo dos factos atinentes à dinâmica do evento.
7. Ademais, da conjugação dos meios probatórios produzidos, nomeadamente, testemunhais (especialmente das testemunhas CC e DD) e documentais (nomeadamente, da ficha de diagnóstico do veículo de fls...), impunha-se decisão diversa daquela que veio a ser proferida e que, presentemente, se impugna.
8. Os concretos meios probatórios cujo reexame se solicita a este Venerando Tribunal da Relação, e que impunham decisão diversa da proferida são os que se passam a elencar:
· Depoimentos testemunhais de CC (depoimento produzido em audiência de julgamento de 17/03/2016, gravado no ficheiro áudio 20160317124110_4948065_2870590,) e de DD (depoimento produzido em audiência de julgamento de 11/04/2016, gravado no ficheiro áudio 20160411094315_4948065_2870590), cujos concretos trechos e minutos se acham especificados no corpo das presentes alegações
· Prova documental : ficha de diagnóstico do veículo de fls...
9. Do acervo probatório produzido nos presentes autos, atenta a sua escassez, jamais seria possível considerar provada a dinâmica do evento – como aliás bem considerou o Meritíssimo Tribunal “a quo”.
10. Contudo, entendemos que não seria sequer possível dar como provado que o veículo embateu na árvore e que foi desse embate que resultaram os danos.
11. A matéria ínsita nos artigos 3º e 4º do elenco da factualidade considerada provada deveria ter sido considerada provada nos termos que se passam a expor:
· Art. 3º - No dia 29/12/2014, pelas 04.30 horas, o veículo com a matrícula AU estava embatido contra uma árvore, situada na berma do lado direito, da estrada nacional 304, no sentido Tabuaças/Caniçada, na freguesia de Vieira do Minho.
· Art. 4º - O veículo com a matrícula AU ficou danificado na parte frontal e impossibilitado de circular pelos seus próprios meios, mantendo-se imobilizado.
12. Ao consignar diverso entendimento, o Meritíssimo Tribunal “a quo” incorreu em erro de julgamento.
13. O que se deixa expressamente alegado, para todos os devidos efeitos.

II - DO DIREITO:

14. A propugnada alteração da decisão sobre a matéria de facto implicaria, como consequência directa e necessária, e salvo o devido respeito por diverso entendimento, a improcedência da presente acção.
15. Não se logrou demonstrar que o evento ocorreu tal como foi participado e que teve carácter acidental e, bem assim, que os danos que o veículo apresenta foram causados pelo acidente participado e em causa nos presentes autos.
16. Provou-se, pois, a existência de danos no veículo sem se ter logrado evidenciar a forma e as circunstâncias em que tais danos se terão produzido.
17. As consequências dessa falta de demonstração em sede do contrato de seguro celebrado entre as partes, na medida em que se trata de contrato de seguro que, entre o demais, contempla a cobertura de “choque, colisão ou capotamento” só podem redundar na improcedência da acção.
18. Não tendo sido feita prova inequívoca e bastante de que o sinistro participado ocorreu e ocorreu da forma participada, a presente acção encontra-se votada ao insucesso.
19. Ao contemplar diverso entendimento, o Meritíssimo Tribunal “a quo” incorreu em violação do disposto nos arts. 342º do Cód. Civil e 516º do Cód. Proc. Civil, entre outros, motivo pelo qual a douta decisão ora posta em crise se mostra, assim, inquinada, devendo, pois, ser revogada na íntegra.

Recurso subordinado interposto pelo Autor BB.

1. A douta decisão recorrida absolveu a Recorrida Subordinada AA do pedido de ser a mesma condenada (…) a pagar ao Autor a indemnização pelo tempo de privação do uso do veículo no valor de €4.860,00. Acrescida, ainda, da que durante a pendência da acção vier a vencer-se com providência referida nos artigos 41 e 42º supra.”

2. Servindo o presente recurso para sindicar essa decisão, e, ainda, para impugnar o julgamento da matéria de facto, defendendo-se, com base na prova testemunhal produzida, e o alegado pelo Recorrente Subordinado na sua P.I que deve ser aditado ao elenco dos factos provados que: em consequência da imobilização do veículo, o Autor e Agregado familiar sofreram perturbações e incómodos nas lides diárias.

3. Atente-se aos depoimentos das testemunhas EE, FF e GG, gravados digitalmente, no sistema "H@bilus Media Studio", na parte que ao presente recurso importará, com início no minuto 07:28 e termo em 09:42, com início no minuto 03:01 e termo em 05:05, com início no minuto 03:29 e termo em 05:53, respectivamente, conforme Acta da sessão da audiência de discussão e julgamento de 17/03/2016.

4. Depoimentos considerados pelo Tribunal a quo, como isentos e credíveis, sendo consentâneos ao afirmarem que o Autor apenas tinha aquele veículo à data do sinistro, usado no seu dia a dia para satisfazer as suas necessidades e do seu agregado familiar, tendo que passar a usar boleias e pedir carros emprestados a essas testemunhas.

5. O que demonstra, de forma inequívoca, a existência de perturbações e incómodos nas suas lides diárias, atento ao uso que dava à viatura imobilizada e de que se encontram privados em consequência do sinistro.

6. DO DIREITO: Da absolvição da Ré no pagamento indemnização por privação do uso do veículo peticionada pelo Autor, ora Recorrente subordinado: considerou o Tribunal a quo, em suma, que tratando-se o caso sub judice de responsabilidade contratual, decorrente do accionamento da responsabilidade facultativa contratada ao abrigo da apólice de seguro (Choque, Colisão ou Capotamento), e, que não contemplando tal apólice contratada qualquer cobertura de indemnização por dano na privação do uso do veículo, não tem o Autor, ora Recorrente subordinado direito a tal indemnização. Para além de que, uma vez que a obrigação decorrente do contrato de seguro celebrado entre as partes, é pecuniária e não de uma obrigação de indemnização, só terá o Autor/Recorrente Subordinado direito a juros moratórios.

7. Salvo devido respeito, não pode o Recorrente Subordinado concordar com douto entendimento.

8. Resulta da factualidade provada, o acidente em apreço ocorreu no dia 29 de Dezembro de 2014, acidente que o Autor/Recorrente Subordinado participou à Ré/Recorrida Subordinada, tendo esta última efectuado a peritagem.

9. Tendo, posteriormente, por carta datada de 02/02/2015, comunicado ao Autor/Recorrente Subordinado que o considerava em situação de perda total, tendo enviado uma segunda missiva, com a mesma data, a informar que não ia proceder à “regularização do sinistro” pelo facto de os seus serviços técnicos terem concluído que “os danos reclamados não se coadunam com o sinistro participado”.

10. Foi esta, apenas, a justificação apresentada pela Ré/Recorrida Subordinada para a não regularização do sinistro.

11. Resulta, igualmente, da factualidade provada, que o Autor/Recorrente Subordinado necessitava da viatura para se fazerem transportar para o trabalho, para as suas deslocações do seu quotidiano e para o seu agregado familiar, como transportar os filhos à escola, o filho ao futebol, para praticar actividades desportivas, para ir ao médico e outros exames clínicos, para ir às compras ao supermercado, assim como era usado aos fins de semana para a família (vide factos provados 10 e 11).

12. O Autor/Recorrente Subordinado e o seu agregado familiar, pelo menos desde a data do acidente (29/12/2014) até pelo menos Junho de 2015, não dispunham de outro veículo.

13. O atraso da Ré/Recorrida Subordinada no pagamento da indemnização correspondente ao valor segurado do veículo, ao contrário do que sustenta a decisão recorrida, não pode ser afastada unicamente porque a apólice contratada não contemplava o dano pela privação do uso, ou considerar-se ressarcido apenas com o pagamento dos respectivos juros moratórios.

14. Estamos perante um dano autónomo resultante do incumprimento contratual, pelo que a Ré/Recorrida Subordinada terá que responder pelos danos causados, de acordo com o disposto no artigo 804º nº. 1 do Código Civil.

15. Em consequência da perda total do veículo, o Autor/Recorrente Subordinado e o seu agregado familiar ficaram impedidos, durante pelo menos 06 meses, de usar e fruir aquela viatura para os fins supra indicados e dados como provados.

16. Esta privação do uso do veículo decorre do incumprimento do dever contratualmente assumido pela Ré/Recorrida Subordinada de pagar uma indemnização em caso de sinistro ocorrido com o veículo segurado, obrigação que não cumpriu.

17. Pelo que, quem venha a incorrer em responsabilidade contratual, por esta via, deve indemnizar o dano positivo que resultou para a contraparte, nos termos do disposto nos artigos 562º, 566º, 762º nº. 2, 798º nº. 1 e 801º nº. 2, todos do Código Civil.

18. Não obstante Apesar de não ter sido dado como provado a verificação de um concreto prejuízo monetário quantificado, não se encontra vedada a possibilidade de atribuição de uma indemnização, com recurso à equidade, para privação do uso de um veículo,

19. Pois como tem vindo a ser entendido na doutrina e na jurisprudência, esta situação configura um dano que é só por si indemnizável (por dano patrimonial ou até na vertente de dano não patrimonial), que a larga maioria da doutrina e da jurisprudência admite mesmo no âmbito da responsabilidade contratual – Cfr. Vaz Serra, in Reparação do Dano Não Patrimonial, Bol. 83, pág. 104 e Responsabilidade Contratual e Responsabilidade Extracontratual, Bol. 85, pág. 115 e seg.; Galvão Teles, Direito das Obrigações, 6ª edição, revista e actualizada, Coimbra Editora, pág. 383 e Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização, pág. 31, nota 77; - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24/01/2012, disponível em www.dgsi.pt, a título de exemplo, respeitante aos incómodos e transtornos causados pela não disponibilidade do veículo, os quais merecem a tutela do direito nos termos do disposto no artigo 496º nº. 1 do Código Civil.

20. Mister será dizer que, a possibilidade de utilização de um veículo, o facto deter o veículo disponível para dele se socorrer sempre que for necessário, faz parte do que “vulgarmente se chama qualidade de vida” e constitui uma das manifestações do direito de propriedade, pelo que a privação do seu uso e fruição constitui uma restrição a tal direito, a qual, quando ilícita e culposa, se enquadra na previsão geral do artigo 483º do Código Civil. – vide Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 04/06/98, C.J., tomo 3, pág. 123.

21. Efectivamente, com tal privação “o veículo deixa de proporcionar ao lesado proveito consequente da sua utilização”, o que constitui dano tutelado pelo direito, designadamente quando “a vida pessoal, familiar ou profissional deste justificam ou mesmo exigem” que tenha “ao seu dispor um veículo”. – Vide Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 02/05/2002, disponível em www.dgsi.pt, vejam-se, ainda, os Acórdãos da Relação do Porto de 17/06/77, B.M.J. 271, pág. 281, e do Tribunal da Relação de Évora de 26/03/80, C.J., tomo 2, pág. 96; e de 02/07/98, C.J., tomo 4, pág. 255.

22. Salvo melhor opinião, apesar de estarmos perante uma situação equiparável a perda total do veículo, a verdade é que o direito de indemnização pela privação do uso se mantém, desde logo, a falta de viabilidade da reparação não retiram ao lesado o prejuízo que sofreu pela privação do uso, pelo menos até à data em que recebe da seguradora a indemnização correspondente (ou, como in casu, à data em que adquire um outro veículo) – neste sentido, entre muito outros, acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 05/02/2004, C.J, Tomo I, pág. 179, do Tribunal da Relação de Guimarães de 11/11/2009, disponível em www.dgsi.pt. É que a perda do veículo implica um dano concomitante que é o da privação do uso do veículo e de todas as utilidades que este poderia proporcionar.

23. E o dano imediatamente ressarcível é precisamente a indisponibilidade do bem, qualquer que fosse a actividade (lucrativa, benemérita ou de simples lazer) a que o veículo estava afecto, pelo que deve, per si, ser indemnizado com recurso a critérios de equidade (nos termos do artigo 566º nº. 3 do Código Civil), tendo em conta a mera indisponibilidade do bem, mesmo quando se trate de veículo em relação ao qual inexista prova de qualquer utilização lucrativa – vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 26/11/2002, C.J., Tomo V, pág. 19.

24. Assim, consideramos que estamos perante um veículo automóvel, entendemos adequada e proporcional a este título a quantia diária de €30,00, a qual é devida até à data d pagamento da indemnização, ou então, até à data da aquisição por parte do Autor/Recorrente Subordinado de um veículo – que perfaz os peticionados €4.860,00.

25. Sufragando-se o douto entendimento proferido, em situação idêntica, pelo Tribunal da Relação de Guimarães, de 20/10/2016, disponível em ww.dgsi.pt, “I – No âmbito de um seguro de responsabilidade civil automóvel, com cobertura facultativa de danos próprios, a seguradora, mesmo na ausência de convenção expressa, pode ser responsabilizada pelo dano da privação do uso se, no cumprimento da sua obrigação, não proceder segundo os ditames da boa-fé, nos termos do artigo 762º do Código Civil.”, que confirmou a condenação decidida em sede de 1ª Instância no pagamento de indemnização pela privação de uso do veículo.

26. Termos em que, e por tudo o vindo a expor, entende o Recorrente Subordinado, dever ser a Ré/Recorrente subordinada condenada no pagamento da indemnização por privação do veículo satisfeito, nos termos peticionados.

27. Ao não tê-lo feito, violou a sentença, na parte em que se recorre, os artigos 562º, 566º, 762º nº2, 798º nº1 e 801º nº2, entre outros do Código Civil.

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Os Apelados apresentaram contra-alegações concluindo pela reciproca improcedência dos respectivos recursos.

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Colhidos os vistos, cumpre decidir.

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II – Delimitação do objecto do recurso.

Sendo certo que, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso, o objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formuladas, podem ser enunciadas as seguintes questões a decidir:

- Apreciar a decisão da matéria de facto, apurando se ela deve ou não ser alterada.

- Apreciar se, na hipótese de alteração da matéria de facto tida como demonstrada, deverá ser alterada a decisão recorrida.

- Analisar da existência de responsabilidade contratual da seguradora quanto à privação do uso do veículo.

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III – FUNDAMENTAÇÃO.

Fundamentação de facto.

A decisão recorrida considerou provada e não provada a seguinte matéria de facto:

- Factos provados.

1. Encontra registado a favor do autor BB o certificado de matrícula n.º13335617 5, de 11/03/2014, do veículo automóvel da marca Renault, modelo JM – Megane Scenic, ligeiro de passageiros, com a matrícula AU, a gasóleo (artigos 1º da petição inicial e 18º da contestação)cf. documento de fls.14, que aqui se dá por integralmente reproduzida.
2. Por acordo escrito celebrado entre o autor e a ré, com início em 07/03/2014 e duração até 07/03/2015, válido e em vigor à data do embate infra descrito, o autor transferiu para a ré AA a responsabilidade por danos causados a terceiros com a circulação do veículo de matrícula AU, com cobertura de danos próprios, entre outros, decorrentes de choque, colisão e capotamento, com o limite de capital e valor seguro do veículo de €10.700,00, com a franquia de 5% sobre o capital seguro, mínimo de €250,00, furto, roubo ou furto de uso, com o limite de capital de €10.700,00, incêndio, raio ou explosão, com o limite de capital de €10.700,00, riscos catastróficos, com o limite de capital de €10.700,00, actos maliciosos, com o limite de capital de €10.700,00, com franquia de €125,00, escrito esse titulado pela apólice n.º4101411002902 (artigos 2º, 3º, 9º da petição inicial, 6º, 16º e 19º da contestação) cf. documentos de fls.15-18, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
3. No dia 29/12/2014, pelas 04:30 horas, o veículo com a matrícula AU embateu numa árvore, situada na berma do lado direito, da estrada nacional 304, no sentido Tabuaças/Caniçada, na freguesia de Caniçada, concelho de Vieira do Minho (artigos 5º e 6º [parciais] da petição inicial).
4. Em consequência directa, necessária e adequada do embate, o veículo com a matrícula AU ficou danificado na parte frontal e impossibilitado de circular pelos seus próprios meios, mantendo-se imobilizado (artigos 7º e 17º [parcial] da petição inicial).
5. O autor participou à ré o embate referido em 3 (artigo 8º da petição inicial).
6. Em consequência, a ré procedeu à peritagem do veículo com a matrícula AU e orçada a reparação dos danos no valor estimado de €11.430,17, concluiu pela sua perda total, «por o valor da reparação ser superior a 70% do valor venal do veículo à data do acidente» (artigo 10º da petição inicial).
7. Por carta datada de 02/02/2015, a ré comunicou ao autor, o seguinte: «(…) Relativamente ao sinistro em epígrafe e face aos elementos carreados ao processo, foi concluído que os danos reclamados não se coadunam com o sinistro participado.

Face ao exposto, e embora lamentando, não pode este segurador dar seguimento à regularização do sinistro (…)» (artigo 11º da petição inicial) - cf. documento de fls.22, que aqui se dá por integralmente reproduzido.

8. Como resposta, em 18/02/2015, o autor, através do seu mandatário, remeteu carta registada, com A/R, à ré, entre o mais, com o seguinte teor: «(…), sirvo-me da presente a informar que o n/constituinte não se conforma com tal decisão. A verdade é que é manifestamente visível que o acidente se deveu a factos não imputáveis ao n/constituinte. Aliás, não se vislumbra da v/comunicação qualquer tipo de prova ou indício que demonstre o contrário ou que leve a concluir a desresponsabilização de V. Exas. no ressarcimento dos prejuízos.

Destarte, atento o facto do mesmo ser tomador de um seguro de danos próprios, vulgo seguro contra todos os riscos, junto da v/seguradora, é forçoso concluir que o n/constituinte terá de ser ressarcido pelos danos provenientes do acidente, o que ora expressamente se invoca. (…)» (artigo 12º da petição inicial) - cf. documentos de fls.23-25, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.

9. Em resposta, por email de 23/02/2015, a ré reiterou o teor da comunicação mencionada em 7 (artigo 13º da petição inicial).
10. O veículo com a matrícula AU era utilizado, exclusivamente, pelo autor, durante a semana, para a sua deslocação para o local de trabalho e seus afazeres pessoais, como para transportar os seus filhos à escola, o filho ao futebol, para praticar actividades desportivas, para ir ao médico e outros exames clínicos, para ir às compras de supermercado (artigos 19º e 24º da petição inicial).
11. (…) assim como o usava aos fins-de-semana para a família (artigo 19º da petição inicial).
12. Nas circunstâncias de tempo referidas em 3, o veículo AU encontrava-se com a inspecção periódica obrigatória válida (artigo 31º da petição inicial).
13. Nos termos das Condições Especiais/Responsabilidade Civil Facultativa do acordo escrito referido em 2 consta que «Para efeitos desta cobertura considera-se CHOQUE: o embate do veículo contra qualquer corpo fixo ou embate sofrido pelo veículo imobilizado, causado por outro veículo ou qualquer outro corpo em movimento; COLISÃO: o embate entre o veículo em movimento e qualquer corpo em movimento; CAPOTAMENTO: o acidente em que o veículo perca a sua posição normal e que não resulte de choque ou colisão(…)» (artigo 17º da contestação) - cf. artigo 2º das Condições Especiais/02 -Choque, Colisão ou Capotamento do documento de fls.151-221, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
14. O local acima referido em 3 constitui uma recta, com inclinação descendente, no sentido Cerdeirinhas/Rio Caldo, ladeada apenas de campos agrícolas (artigos 28º e 31º da contestação).
15. (…) com pavimento asfalto, boa visibilidade e a velocidade permitida é de 90km/h (artigos 29º e 30º da contestação).
16. No período nocturno, o tráfego naquele local é reduzido (artigo 32º da contestação).
17. Após o embate referido em 3, o veículo AU foi transportado para as instalações da oficina Confiauto – Indústria e Comércio de Automóveis, sita em Braga (artigo 34º da contestação).
18. Nas circunstâncias de tempo descritas em 3, o veículo AU contava com aproximadamente 200.000 km (artigo 39º da contestação).
19. Os salvados do veículo AU têm um valor aproximado de €1.000,00 (artigo 43º da contestação).

Factos Não Provados

a) O embate mencionado em 3 dos “factos provados” deu-se quando o autor conduzia o referido veículo e perdeu o controlo do mesmo (artigo 6º [parcial] da petição inicial).
b) O autor não dispõe de meios financeiros para adquirir outro veículo para substituir o veículo com a matrícula AU (artigo 17º [parcial] da petição inicial).
c) As tarefas mencionadas em 10 dos “factos provados” passaram a ser desempenhadas pelos pais e sogros do autor, que têm auxiliado o agregado familiar deste (artigo 26º da petição inicial).
d) O autor para se apresentar diariamente no seu local de trabalho teve de recorrer a terceiros para o transportarem (artigo 27º da petição inicial).
e) Como consequência, o autor passou a ser uma pessoa mais isolada (artigo 29º da petição inicial).
f) O custo diário do aluguer de um veículo com características semelhantes ao veículo AU situa-se no montante de €30,00 (artigo 41º da petição inicial).
g) O autor suporta custos diários com o parqueamento do veículo AU (artigo 43º da petição inicial).

Fundamentação de direito.

A- Recurso principal.

Cumpre antes de mais apreciar a impugnação da matéria de facto pretendida pela Apelante, pois sem a fixação definitiva dos factos provados e não provados não é possível extrair as pertinentes consequências à luz do direito.

Ora, como resulta do disposto nos artigos 640 e 662º do C.P.C., o recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto deve não só identificar os pontos de facto que considera incorrectamente como também especificar concreta e individualizadamente o sentido da resposta diversa que, em seu entender, a prova produzida permite relativamente a cada um dos factos impugnados.

A impugnação da matéria de facto traduz-se no meio de sindicar a decisão que sobre ela proferiu a primeira instância.

Pretende-se que a Relação reaprecie e repondere os elementos probatórios produzidos nos autos, averiguando se a decisão da primeira instância relativa aos pontos de facto impugnados se mostra conforme às regras e princípios do direito probatório, impondo-se se proceda à apreciação não só da valia intrínseca de cada um dos elementos probatórios, da sua consistência e coerência, à luz das regras da normalidade e da experiência da vida, mas também da sua valia extrínseca, ou seja, da sua consistência e compatibilidade com os demais elementos.

Os poderes do Tribunal da Relação de alteração da decisão de 1ª instância sobre a matéria de facto deverá restringir-se aos casos de flagrante desadequação entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, não podendo confundir-se com um novo julgamento, destinando-se essencialmente à sanação de manifestos erros de julgamento, de falhas mais ou menos evidentes na apreciação da prova“,(1) sendo entendimento dominante na jurisprudência que a convicção do julgador, firmada no princípio da livre apreciação da prova (artº 655º do CPC), só pode ser modificada pelo Tribunal de recurso quando fundamentada em provas ilegais ou proibidas ou contra a força probatória plena de certos meios de prova, ou então, quando afronte, de forma manifesta, as regras da experiência comum.(2)

Como é consabido, os meios probatórios têm por função a demonstração da realidade dos factos, sendo que, através da sua produção não se pretende criar no espírito do julgador uma certeza absoluta da realidade dos factos, o que, obviamente implica que a realização da justiça se tenha de bastar com um grau de probabilidade bastante, em face das circunstâncias do caso, das regras da experiência da comum e dos conhecimentos obtidos pela ciência.

Mas, como é óbvio, e convirá realçar, a liberdade na apreciação da prova não equivale a uma apreciação arbitrária das provas produzidas, uma vez que o inerente dever de fundamentação do resultado alcançado impedirá a possibilidade de julgamentos despóticos.

Na avaliação da prova testemunhal a fonte do conhecimento dos factos narrados pela testemunha é um elemento da maior importância para o julgador aferir da credibilidade do relato.

Como refere Alberto dos Reis, “Tem a maior importância esta exigência da lei, porque a razão da ciência é um elemento de grande valor para a apreciação da força probatória do depoimento…Desceu a lei a estas minúcias, porque uma vez destruída ou abalada a razão da ciência, o depoimento perde o valor ou fica notavelmente enfraquecido; e para a parte contrária poder atacar a razão da ciência e o tribunal poder avaliar até que ponto é exacta a razão invocada, muito interessa saber as condições e circunstâncias especiais de que a testemunha se socorre para justificar o seu conhecimento”.(3)

À luz de tudo o exposto importa agora sindicar a decisão da matéria de facto, averiguando, se as respostas impugnadas foram proferidas de acordo com as regras e princípios do direito probatório.

Ora, como resulta do supra exposto, os Apelantes impugnam a materialidade fixada na decisão recorrida alegando como fundamento em que o Tribunal recorrido deu como tendo logrado adesão de prova os factos a seguir referidos, os quais, contudo, em seu entender, em respeito pela integridade da prova produzida nos autos, deveriam ter sido considerados como não provados.

Esses factos são os seguintes:

3- No dia 29/12/2014, pelas 04:30 horas, o veículo com a matrícula AU embateu numa árvore, situada na berma do lado direito, da estrada nacional 304, no sentido Tabuaças/Caniçada, na freguesia de Caniçada, concelho de Vieira do Minho (artigos 5º e 6º [parciais] da petição inicial).

4- Em consequência directa, necessária e adequada do embate, o veículo com a matrícula AU ficou danificado na parte frontal e impossibilitado de circular pelos seus próprios meios, mantendo-se imobilizado (artigos 7º e 17º [parcial] da petição inicial).

A Recorrente alicerça sua pretensa convicção positiva sobre tais factos nos depoimentos das testemunhas CC e DD, bem como na ficha de diagnóstico do veículo junta aos autos, sendo que, desse acervo probatório produzido nos presentes autos, atenta a sua escassez, não seria possível considerar provada a dinâmica do evento ou sequer dar como provado que o veículo embateu na árvore e que foi desse embate que resultaram os danos, devendo, no entanto, tal factualidade ser considerada provada nos seguintes termos:

3º - No dia 29/12/2014, pelas 04.30 horas, o veículo com a matrícula AU estava embatido contra uma árvore, situada na berma do lado direito, da estrada nacional 304, no sentido Tabuaças/Caniçada, na freguesia de Vieira do Minho.

4º - O veículo com a matrícula AU ficou danificado na parte frontal e impossibilitado de circular pelos seus próprios meios, mantendo-se imobilizado.

A propósito da materialidade tida por demonstrada e não provada e, designadamente, objecto de impugnação refere-se na motivação da decisão recorrida o seguinte:

“(…)

A convicção do Tribunal no que concerne à matéria de facto provada resultou da apreciação crítica e conjugada da documentação junta aos autos com a prova produzida em audiência final.

Baseou ainda a sua convicção numa apreciação livre da prova testemunhal, tal qual a mesma se produziu em sede de audiência de discussão e julgamento, nos termos dos artigos 396º do Código Civil e 607º, n.º5, do Código de Processo Civil.

(…)

Para a prova da verificação do embate, circunstâncias de tempo e lugar em que ocorreu, veículo interveniente, características do local, démarches desencadeadas pelo autor e os danos sofridos pelo veículo com a matrícula AU – factos provados n.ºs3 a 5, 14 a 16 -, o Tribunal teve em consideração a participação de fls.19-20, os registos fotográficos de fls. 54-64 e 74 – que evidenciam as características do local e os estragos do veículo -, o boletim de perda total de fls.65 e a ficha de diagnóstico de fls.139-144, em conjugação com os depoimentos de EE, primo do autor, HH, conhecido do autor que circulou, no local do embate, nas referidas circunstâncias, CC, perito que procedeu à averiguação extrajudicial do embate, e DD, perito avaliador de sinistros automóveis, que procedeu à averiguação extrajudicial do embate em questão, e com as regras do normal acontecer e da experiência comum.

Na verdade, EE, depondo de modo simples e humilde, afiançou que, numa noite em data próxima da passagem de ano de 2014, entre as 04:00horas/05:00horas, o autor telefonou-lhe a pedir para ir buscá-lo, pois tinha tido um acidente, na estrada de São Bento. Deslocou-se ao local e aí chegado viu o veículo do autor embatido numa árvore, do lado direito, no sentido descendente, encontrando-se com a parte da frente danificada. Esperaram pela assistência em viagem, dado que o veículo não circulava pelos seus próprios meios. Enquanto esperaram pelo reboque, passaram no local três/quatro veículos, sendo que alguns condutores perguntaram se precisavam de auxílio.

Reforçando o teor deste depoimento, HH, depondo com espontaneidade e imparcialidade, desde logo dada a inexistência de qualquer laço ou ligação ao autor, asseverou que, no Inverno de 2014, cerca das 05:00 horas, quando seguia no sentido Cerdeirinhas/Rio Caldo, viu um veículo da marca Renault, modelo Scenic, de cor cinza claro, embatido contra uma árvore, pela parte frontal. Junto ao veículo encontrava-se o autor e a testemunha GG. Afirmou ainda que, no sentido descendente, a estrada tem uma ligeira curva à direita, seguida de uma recta com cerca de 200 metros e outra curva à esquerda, no final da recta, sendo reduzida a iluminação pública no local. A árvore embatida situa aproximadamente no meio da curva. No local existem mais árvores e algumas construções metálicas, sendo que a afluência de trânsito, no período nocturno, é moderada. Nessa noite fazia muito frio e estrada estava gelo. O veículo estava danificado na parte frontal, essencialmente do lado esquerdo. Confrontado com o registo fotográfico de fls.74 disse retractar o veículo sinistrado, na posição em que o viu.

Tais depoimentos coadunam-se, por um lado, com os registos fotográficos de fls.54-58 [1.ª imagem], que ilustram as características do local e da árvore e, por outro, com a reportagem fotográfica de fls.58 [2.ªimagem]-64, que evidencia, com clareza, os estragos com que ficou o veículo AU.

Por seu turno, aqueles registos [juntos pela ré] são conciliáveis com o registo fotográfico de fls.74 [junto pelo autor], que representa, numa perspectiva lateral, o veículo AU embatido na sobredita árvore e os danos por este sofridos na sequência desse embate.

Da ponderação deste conjunto de meios de prova, podemos concluir com um juízo de probabilidade prevalecente, que, nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, o veículo AU embateu numa árvore, situada do lado direito, da estrada nacional 304, no sentido Tabuaças/Caniçada, ficando danificado na parte frontal e impossibilitado de circular pelos seus próprios, uma vez que, os estragos que o veículo ostenta, de per si, são compatíveis não só com a natureza de um choque frontal em árvore mas também com a posição em que o veículo ficou imobilizado, melhor retractada na fotografia de fls.74 e corroborada pelos testemunhos de GG e, sobretudo, de HH.

Se dúvidas existissem desta evidência, o que não é nosso caso, o relato objectivo, simples e escorreito produzido pela testemunha HH, que foi merecedor de especial credibilidade dada a manifesta falta de interesse no desfecho da presente causa, é esclarecedor dessa realidade, posto que, nas referidas circunstâncias, passou no local e viu o veículo do autor (que estava no local acompanhado pela testemunha GG) embatido contra uma árvore, apresentando danos na parte frontal, sobretudo do lado esquerdo, pois era o ângulo que se apresentava no seu campo de visão.

No entanto, os elementos probatórios produzidos nos autos, ainda que analisados à luz das regras do normal acontecer e da dinâmica automóvel, já não permitem inferir, através de um processo lógico-dedutivo, idêntico raciocínio quanto à dinâmica fenomológica do embate militada pelo autor.

Introdutoriamente adiantamos que a dinâmica do embate veiculada pelo autor não se revelou consentânea com os depoimentos realizados em audiência final nem com os elementos documentais que constituem os autos. Desde logo porque, nenhuma das testemunhas ouvidas presenciou o embate propriamente dito, não possuindo, desse modo, conhecimento directo ou ocular nesse particular, para além de que as anomalias/incongruências detectadas no veículo e apontadas com precisão pelas testemunhas CC e DD, respectivamente perito averiguador e perito avaliador, criaram no nosso espírito uma dúvida suficientemente razoável no que respeita à concreta dinâmica em que se produziu o embate, a qual não foi possível esclarecer minimamente através do escrutínio da restante prova produzida.

Com efeito, CC, perito averiguador, que procedeu à averiguação extrajudicial do embate em discussão, após descrever o local como uma recta, com cerca de 150/200metros, de inclinação descendente, que se inicia após uma curva à direita e termina numa curva à esquerda, e esclarecer que a velocidade permitida no local é de 90km/h, mencionou que o veículo apresenta danos acentuados, que não são coincidentes com a descrição do embate participado, já que, por um lado, os airbags e os pré-tensores dos cintos de segurança não têm indícios de terem sido accionados, contudo, instado para o efeito, disse desconhecer se aqueles estavam em plenas condições de funcionamento; por outro, o vidro da porta do lado do condutor estava totalmente aberto e bloqueado, o que revela que quando se deu o embate este estava aberto. Acrescentou ainda que as razões apontadas pelo autor para circular, em sentido de marcha contrário ao da sua residência, naquelas circunstâncias – saiu de casa para andar de carro até ao Gerês - não são plausíveis.

Por seu lado, DD, perito avaliador, sustentou que o veículo apresenta uma deformação acentuada, ocorrida sem o accionamento dos airbags, sendo que a sua experiência profissional diz-lhe que na produção daquele tipo de danos obrigatoriamente teriam sidos accionados os airbags. Além disso, e embora afiançasse que os estragos que o veículo apresenta são compatíveis com um choque à velocidade de 30/40km/hora, da leitura da centralina conclui que o veículo não embateu com o motor ligado, pois nesta não existe qualquer informação de ter existido o embate; os pré-tensores do cinto também não foram accionados, o que significa que não lhe chegou essa informação; o volante estava com deformação de baixo para cima – na horizontal -, o que, por regra, não acontece em caso de embate; e o vidro da porta do lado do condutor estava aberto (não partido) e bloqueado, o que significa que quando se deu o embate este estava aberto. Confrontado com a ficha de diagnóstico de fls.139-144, esclareceu que o teor desta é coincidente com a centralina a que teve acesso, explicitando que a sigla “CO” significa “circuito aberto”, ou seja, que não chega corrente ao circuito, porque, por exemplo, o motor do veículo estava desligado ou estando ligado, por mau contacto ou fio cortado, a corrente não chega, porém estas anomalias constam obrigatoriamente do calculador.

Assim, cotejados os depoimentos acabados de sintetizar - que se apresentaram coincidentes entre si e quando analisados à luz da ficha de diagnóstico de fls.139-144 -, com as características da via, o facto de, no período nocturno, o local em que se verificou o embate apresentar tráfego reduzido, as concretas circunstâncias temporais, o desconhecimento de motivo razoável e justificado para o autor circular, àquela hora, naquela estrada nacional, em sentido contrário ao da sua residência, e na ausência de prova testemunhal ocular relativa ao modo como se deu o embate, permanece a dúvida sobre a dinâmica do embate propriamente dita. Pelo que, restando ao Tribunal a dúvida e sendo a dúvida inultrapassável através do princípio da livre apreciação da prova, pelo que, não sendo alcançada a convicção acerca da realidade desses factos, o Tribunal não pode dá-los como provados, decidindo antes contra a parte a quem aproveitam (artigos 342.º, n.º 2, do Código Civil e 414.º do Código de Processo Civil), assim se explicando a materialidade dada como não provada na alínea a) dos “factos não provados”.

De todo o modo, para que não haja precipitações na apreciação da prova, cumpre referir que a dúvida que se alojou no nosso espírito não foi suficientemente esclarecida pelo parecer técnico junto a fls.227-230, visto que, no mesmo somente são apontados potenciais factores/causas dos erros constantes da ficha de diagnóstico de fls.139-144, sem que, no entanto, no essencial seja extraída uma conclusão precisa sobre a causa-origem dos erros.

Do que se deixa dito, e sem esquecer que todo o acidente de viação constitui, em si mesmo, um fenómeno ímpar, sempre diferente no seu conjunto, em relação a outros, quer pelo condicionalismo de que se reveste, quer pelas consequências a que dá origem, convencemos apenas de que, nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, o sobredito veículo embateu numa árvore, tendo esse embate ocorrido numa dinâmica conjectural que não se logrou apurar, dado que, por um lado, o autor não logrou apresentar qualquer prova sobre o seu processo dinâmico e, por outro, a ré também não logrou produzir prova cabal e consistente (nem sequer o alegou de modo concreto e preciso) de que aquele foi produzido, pelo autor, de forma intencional.

(…)

Atento o preceituado no art. 662º, nº 2, al. b), do C.P.C., e considerando que constam no processo e disponíveis a esta Relação todos os elementos probatórios em que o tribunal de 1ª instância se fundou para responder à matéria de facto em causa (mostram-se juntos aos autos os elementos documentais e foram gravados os depoimentos prestados em audiência), tem esta Relação de proceder à sua valoração e ponderação, respondendo aos factos acima referidos.

A análise crítica das provas produzidas e especificação dos fundamentos decisivos para a formação da convicção (art. 607º, nº 4 do C.P.C.) não se resume ao mero elencar descritivo das provas produzidas em audiência e bem assim à simples declaração daquelas que mereceram acolhimento, em detrimento das outras.

Analisar criticamente os elementos probatórios significa apreciá-los e valorizá-los, seja um por um, intrinsecamente, seja conjugadamente, relacionando-os reversivamente (testando a compatibilidade entre uns e outros), tudo isto à luz das regras da normalidade, da experiência da vida e dos ensinamentos da ciência.

O juiz aprecia livremente as provas, decidindo segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (art. 607º, nº 5 do CPC).

Nesta actividade não está o tribunal submetido a critérios ou regras pré-estabelecidas (salvo quando a lei exige, para prova do facto, certo meio de prova – p. ex., documento ou confissão), devendo considerá-las a todas, apreciá-las em conjunto, fazer a sua análise crítica, tendo em conta as regras da ciência, da lógica e da experiência comum a todo o homem médio, e, por fim, especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção adquirida (art. 607º, nº 4 do CPC), assim permitindo que se ‘possa controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado’(4) e exercer um controle externo e geral do fundamento de facto da decisão.

Na decisão sobre a matéria de facto deve ser observado o dever de fundamentação das decisões judiciais que afectem os interessados, impondo o dever de obediência à lei (designadamente o art. 605º, nº 1 do C.P.C.) um esforço na racionalização do processo de formação da convicção.

O cumprimento destes deveres não se basta com a seriedade na forma como os tribunais decidem a matéria de facto; é necessário que o desempenho sério da actividade jurisdicional transpareça inequivocamente da forma pela qual se exprimam as decisões(5).

A motivação ou justificação da decisão sobre a matéria de facto, enquanto elemento verdadeiramente estruturante da legitimidade (e de legitimação) da decisão mais não significa do que a explicação da convicção do juiz.

Esta (convicção do julgador) não se traduz em qualquer convicção subjectiva, numa mera opção ‘voluntarista’ por uma versão ou outra dos factos discutidos na lide (uma convicção emotiva e puramente subjectiva, fundada na sinceridade do julgador), mas antes numa convicção objectivável e motivável, fruto de processo que só se completa e alcança por via racionalizável, pois que fundada nas regras comuns da lógica, da experiência, do bom senso e, quando for o caso, dos ensinamentos da ciência.

A explicação da convicção do julgador destina-se não só a obter o convencimento das partes como a permitir que a análise crítica dos elementos probatórios produzidos no processo seja sindicada, também de forma racionalmente fundada, pelas partes e pelo tribunal superior.

A fundamentação da decisão cumpre uma ‘função endoprocessual, que visa essencialmente impor ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica e habilitar as partes, em caso de recurso, a exprimir, em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente, e uma função extraprocessual que garanta o controlo externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica’(6).

As provas, di-lo o art. 342º do C.C., têm por função a demonstração da realidade dos factos.

Porém, através delas não se busca criar no espírito do julgador a certeza absoluta da realidade dos “factos” – “se a prova em juízo de um facto reclamasse a certeza absoluta da verificação do facto, a actividade jurisdicional saldar-se-ia por uma constante e intolerável denegação de justiça”(7), o que implica que tem a justiça de bastar-se com um grau de probabilidade bastante, face às circunstâncias do caso, às regras da experiência da vida e aos ensinamentos da ciência.

A prova como demonstração efectiva (segundo a convicção do juiz) da realidade de um facto “não é certeza lógica mas tão-só um alto grau de probabilidade suficiente para as necessidades práticas da vida (certeza histórico-empírica)”(8).

Assim e concluindo, tem-se, vindo a entender deverem ser especificados os fundamentos decisivos para a convicção do julgador sobre a prova (ou falta de prova) dos factos, mencionando-se incumbir ao juiz o dever de indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade aquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado, sendo certo que tal exigência de motivação não se destina a ‘obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão, já que através dessa fundamentação, o juiz deve passar de convencido a convincente”.

E porque a prova como demonstração efectiva - segundo a convicção do juiz - da realidade de um facto “não é certeza lógica mas tão-só um alto grau de probabilidade suficiente para as necessidades práticas da vida - certeza histórico-empírica” -, é necessário fazer uma análise crítica dos elementos probatórios produzidos nos autos, isto é, apreciá-los e valorizá-los de forma conjugada, relacionando-os reversivamente (testando a compatibilidade entre uns e outros), tudo isto à luz das regras da normalidade, da experiência da vida e dos ensinamentos da ciência.

E é á luz do que se acaba de expender que importa agora sindicar a decisão da matéria de facto, averiguando se as respostas impugnadas foram proferidas de acordo com as regras e princípios do direito probatório e com o que os meios de prova produzidos nos autos, impõem concluir.

Certo que, como alega a Recorrente e na própria decisão recorrida se reconhece, nenhuma das testemunhas inquiridas presenciou o evento e, consequentemente, nenhuma das testemunhas mostra conhecimento directo dos factos atinentes à dinâmica do evento, sendo essa a principal razão porque não foi considerada demonstrada essa mesma dinâmica

No entanto, sobre os factos objecto de impugnação recaíram depoimentos das supra aludidas testemunhas, que se revelaram consistentes e credíveis no seu conteúdo, designadamente as seguintes:

- EE, que declarou numa noite em data próxima da passagem de ano de 2014, entre as 04:00horas/05:00horas, o autor telefonou-lhe a pedir para ir buscá-lo, pois tinha tido um acidente, na estrada de São Bento, e tendo-se ele deslocado ao local aí observou que o veículo do autor havia embatido numa árvore, do lado direito, no sentido descendente, encontrando-se com a parte da frente danificada.

- HH, asseverou que, no Inverno de 2014, cerca das 05:00 horas, quando seguia no sentido Cerdeirinhas/Rio Caldo, viu um veículo da marca Renault, modelo Scenic, de cor cinza claro, embatido contra uma árvore, pela parte frontal. Junto ao veículo encontrava-se o autor e a testemunha GG.

Como se refere na motivação da decisão recorrida, tais depoimentos coadunam-se, por um lado, com os registos fotográficos de fls.54-58 [1.ª imagem], que ilustram as características do local e da árvore e, por outro, com a reportagem fotográfica de fls.58 [2.ªimagem], que evidencia, com clareza, os estragos com que ficou o veículo AU, sendo que, aqueles registos [juntos pela ré] são conciliáveis com o registo fotográfico de fls.74 [junto pelo autor], que representa, numa perspectiva lateral, o veículo AU embatido na sobredita árvore e os danos por este sofridos na sequência desse embate.

E do correlacionamento destes meios probatórios, de intrínseca credibilidade e consistência, nada havendo que os descredibilize, também a nós se nos afigura como legitimo concluir com um juízo de probabilidade prevalecente, que, nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, o veículo AU embateu numa árvore, situada do lado direito, da estrada nacional 304, no sentido Tabuaças/Caniçada, ficando danificado na parte frontal e impossibilitado de circular pelos seus próprios, uma vez que, os estragos que o veículo ostenta, de per si, são compatíveis não só com a natureza de um choque frontal em árvore mas também com a posição em que o veículo ficou imobilizado.

E isto pese embora nenhuma dessas testemunhas ter um conhecimento directo ou presencial do embate do veículo.

Na verdade, como escreve Nikisch, “o Tribunal na formação da sua convicção da existência de uma circunstância de facto relevante para a decisão, pode valer-se também da experiência da vida, da qual resulte que um determinado acontecimento ou estado é a consequência típica de um evento anterior. Deste modo, pode-se muitas vezes, com segurança suficiente, concluir da causa para o efeito como também do efeito para a causa e, antes de tudo, ainda a conexão causal entre dois acontecimentos...”.(9)

E acrescenta o mesmo autor “na execução da sua função no processo, o tribunal é, em larga medida, levado a aplicar as regras gerais da experiência. Tais regras são o resultado da geral experiência da vida ou de um especial conhecimento no campo científico ou artístico, técnico ou económico, e são adquiridas, por isso, em parte mediante a observação do mundo exterior e da conduta humana, em parte mediante investigação ou exercício científico de uma profissão ou indústria. O juiz precisa delas, quer para a fixação de factos, quer para a aplicação da lei aos factos fixados. Na primeira direcção desempenham as regras de experiência, antes de tudo, um papel na apreciação da prova e na conclusão dos indícios para factos discutidos, na segunda direcção quando da aplicação de conceitos jurídicos valorativos “.

Assim, com base em ocorrências conhecidas ou tidas por provadas (base da presunção), o tribunal pode dar como provado, fundado nos ensinamentos da experiência, o facto presumido (desconhecido).

Isto considerado, temos que as duas testemunhas supra referidas estiveram no local da ocorrência do embate logo após a sua verificação e confirmaram os danos sofrido pelo veículo, os quais foram corroborados pela prova documental junta aos autos.

A sustentar a sua impugnação alega a Recorrente que dos depoimentos prestados João Francisco e Luís Miguel Rocha e da informação de diagnóstico decorre que para que os airbags não tivessem sido activados e para que a centralina não tivesse detectado a verificação do impacto/choque, o veículo estaria desligado o que em seu entender leva a concluir que sinistro não terá ocorrido.

Ora, em nosso entender, a própria motivação da decisão recorrida responde a esta questão.

Com efeito, aí se refere que a testemunha CC mencionou que o veículo apresenta danos acentuados, que não são coincidentes com a descrição do embate participado, já que, por um lado, os airbags e os pré-tensores dos cintos de segurança não têm indícios de terem sido accionados, sendo que, também a testemunha DD, sustentou que o veículo apresenta uma deformação acentuada, ocorrida sem o accionamento dos airbags, sendo que a sua experiência profissional diz-lhe que na produção daquele tipo de danos obrigatoriamente teriam sidos accionados os airbags.

E mais declarou que da leitura da centralina conclui que o veículo não embateu com o motor ligado, pois nesta não existe qualquer informação de ter existido o embate, já que os pré-tensores do cinto também não foram accionados, o que significa que não lhe chegou essa informação, o volante estava com deformação de baixo para cima – na horizontal -, o que, por regra, não acontece em caso de embate e o vidro da porta do lado do condutor estava aberto (não partido) e bloqueado, o que significa que quando se deu o embate este estava aberto.

Todavia, confrontado com a ficha de diagnóstico de fls.139-144, esclareceu que o teor desta é coincidente com a centralina a que teve acesso, explicitando que a sigla “CO” significa “circuito aberto”, ou seja, que não chega corrente ao circuito, porque, por exemplo, o motor do veículo estava desligado ou estando ligado, por mau contacto ou fio cortado, a corrente não chega, porém estas anomalias constam obrigatoriamente do calculador.

E assim sendo, destes depoimentos de modo algum resulta que o embate se não tenha verificado e logo, e por decorrência, que fique afectada a consistência da prova produzida corroboradora da sua verificação.

Improcede, assim, a presente apelação.

- Recurso subordinado.

Vem o Recorrente impugnar a o julgamento da matéria de facto, alegando como fundamento que, com base na prova testemunhal produzida, deve ser aditado ao elenco dos factos provados o seguinte facto:

“Em consequência da imobilização do veículo, o Autor e Agregado familiar sofreram perturbações e incómodos nas lides diárias”.

Mais alega que em consequência da perda total do veículo, o Autor/Recorrente Subordinado e o seu agregado familiar ficaram impedidos, durante pelo menos 06 meses, de usar e fruir aquela viatura para os fins supra indicados e dados como provados.

Esta privação do uso do veículo decorre do incumprimento do dever contratualmente assumido pela Ré/Recorrida Subordinada de pagar uma indemnização em caso de sinistro ocorrido com o veículo segurado, obrigação que não cumpriu, pelo que, quem venha a incorrer em responsabilidade contratual, por esta via, deve indemnizar o dano positivo que resultou para a contraparte, nos termos do disposto nos artigos 562º, 566º, 762º nº. 2, 798º nº. 1 e 801º nº. 2, todos do Código Civil.

E assim sendo, entende o Recorrente dever ser a Ré/Recorrente subordinada condenada no pagamento da indemnização por privação do veículo satisfeito, nos termos peticionados, sendo que, ao não tê-lo feito, violou a sentença, na parte em que se recorre, os artigos 562º, 566º, 762º nº2, 798º nº1 e 801º nº2, entre outros do Código Civil.

Ora, salvo o devido respeito nos termos em que foi decidida na decisão recorrida, a questão que se colocado, antes de poder ser analisada em termos da existência de um substrato factual que possa alicerçar i direito indemnizatório que se pretende fazer valer, terá de ser analisada do ponto de vista jurídico como verdadeira questão de direito em que se subsume.

Na verdade, a propósito de tal dano aí se refere o seguinte:

Pretende ainda o autor a condenação da ré no pagamento da quantia diária de €30,00, correspondente ao prejuízo sofrido em virtude da imobilização da viatura, desde a data em que se deu o embate até ao momento em que proceda ao efectivo e integral ressarcimento dos prejuízos e, bem assim, no pagamento dos custos com o parqueamento do veículo acidentado.

Está, assim, em causa, fundamentalmente, saber se o autor tem o direito a haver da ré alguma quantia monetária para o compensar pela privação do uso da sua viatura de matrícula AU.

Cremos, salvo melhor opinião, que esta tese do autor não merece acolhimento.

Não restam quaisquer dúvidas que, no contrato de seguro celebrado, o autor não contratou com a ré a cobertura de indemnização pela privação do uso de veículo e, como tal, não previa qualquer prestação monetária destinada a compensar os danos que ora estão em causa. O que previa, tão só era a reparação dos danos emergentes “de choque, colisão ou capotamento”, até ao montante acordado de 10.700,00€, deduzida a franquia de 5% do capital seguro.

A indemnização de tal dano só era devida se contratada pela cobertura – o que não é o caso -, e sempre seriam clausulados, nesse âmbito, o capital diário seguro e o período de indemnização.

Terá então o autor direito a haver da ré alguma quantia monetária para o compensar pela privação do uso da sua viatura de matrícula AU, em virtude do incumprimento da obrigação a que se vinculou contratualmente?

Como já se expandiu, não existe, na verdade, no contrato em apreço, uma obrigação de indemnizar em sentido próprio, isto é, de reparar um dano reconstituindo a situação que existiria se o mesmo não tivesse ocorrido (artigo 562º do Código Civil). O que existe é, tão só, uma obrigação de entrega de uma prestação em dinheiro, que visa proporcionar ao credor o valor que as respectivas espécies possuam como tais. Ou seja, uma obrigação pecuniária (artigo 550º do Código Civil). O simples facto de estarmos perante um contrato de seguro em que, no acto da celebração, o valor dessa prestação ainda não se encontra concretamente determinado, não afecta aquela qualificação. Bem pelo contrário: faz parte da caracterização de tal prestação, pois que, nos termos do disposto no artigo 128º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, que já referenciámos, a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro.

É, pois, inequívoco que estamos perante uma obrigação pecuniária e não diante de uma obrigação de indemnização.

Ora, nos termos do artigo 806º, n.º1 do Código Civil, na obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora; juros que são os legais salvo se antes da mora for devido um juro mais elevado ou as partes houverem estipulado um juro moratório diferente do legal (nº.2), o que não sucedeu na situação em apreço.

Só na responsabilidade civil por factos ilícitos (extracontratual) ou baseada no risco o credor pode exigir do devedor uma indemnização superior à fixada no regime primeiramente citado, alegando que a mora lhe causou no caso concreto prejuízo mais elevado (nº3). Mas, não sendo esse o caso, uma vez que estamos no domínio da responsabilidade contratual, a regra a aplicar é a que começámos por enunciar.

De modo que, nunca o autor poderia ser indemnizado pela ré em função do dano que lhe adveio com a privação do uso do seu veículo em causa.

É verdade que este entendimento não é pacífico na jurisprudência. Há quem defenda que deve ser atribuída uma indemnização pela privação do uso do veículo sinistrado mesmo nos casos em que não foi contratada a cobertura facultativa de privação desse uso, considerando tal indemnização devida por violação de um dever acessório de conduta quando a seguradora demorou mais do que o razoável para o apuramento da indemnização devida e para o seu pagamento(10).

Mas, como se sublinhou no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10/10/2013(11), a referida interpretação atribui uma indemnização para além do valor contratado e confere (…) um tratamento igual a duas situações desiguais: a dos segurados que convencionaram a cobertura adicional da privação do uso e os que não a contrataram, sendo que os primeiro até estão adstritos a limites contratuais diários.

De modo que também não se vislumbram razões jurídicas bastantes para, no caso em apreço, seguir tal entendimento. O que significa que não assiste ao autor o direito de haver da ré qualquer quantia monetária para o compensar pela privação do uso da sua viatura de matrícula AU”.

E a tudo quanto foi dito na decisão recorrida apenas reforçaremos que estipulando o artigo 130º/ 2 e 3 do RJCS que, no seguro de coisas, o segurador apenas responde pelos lucros cessantes resultantes do sinistro se assim for convencionado, aplica-se à privação do uso do bem, sendo que, esta norma que delimita com linear clareza que, nos seguros facultativos de coisas, vale o regime convencionado, declinando assim a convocação supletiva do regime do seguro de responsabilidade civil obrigatório a que apela o recorrente.

Na verdade, e como supra se referiu, a procedência da pretensão do recorrente transmutaria o seguro facultativo em seguro obrigatório, fazendo tábua rasa do já citado artigo 128º do RJCS, que limita a prestação devida pelo segurador ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro.

Assim, como se refere no acórdão da Relação do Porto, de 7/02/2017, valendo no seguro facultativo de coisas o regime convencionado e não estando cobertos os danos pela privação do uso da viatura, não é contratualmente devida a correspondente compensação, podendo ainda ler-se no Acórdão da mesma Relação, de 13/06/2013, que não havendo convenção das partes em contrário, a seguradora não suporta os danos causados com a privação do bem ou com os lucros cessantes decorrentes do sinistro, pelo que, não há qualquer censura a dirigir à sentença impugnada, uma vez que o seguro facultativo em causa não cobre esse dano. (12)

IV- DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedentes ambas as apelações, principal e subordinada, e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Custas pelos Recorrentes do Recurso principal e subordinado, respectivamente.

Guimarães, 30/ 03/ 2017.

Processado em computador. Revisto – artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil.

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Jorge Alberto Martins Teixeira

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José Fernando Cardoso Amaral.

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Helena Gomes de Melo.

1. Cfr. Ac. STJ, de 14/3/2006, in CJ, XIV, I, pg. 130; Ac. STJ, de 19/6/2007,www.dgsi.pt; Ac. TRL, de 9/2/2005, www.pgdlisboa.pt.
2. Cfr. Ac. do STJ de 10.5.07 Proc. 06B1868, in www.dgsi.pt.
3. Cfr. A. dos Reis, “Código de Processo Civil anotado”, vol. IV, pág. 422, da ed. de 1951.
4. Cfr. M. Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, p. 348.
5. Cfr. Abrantes Geraldes, obra citada, p. 254.
6. Cfr. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, II Vol. (2ª edição revista e ampliada), p. 253 (citando a opinião de Michelle Taruffo).
7. A. Varela, RLJ, Ano 116, p. 339.
8. Cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 191.
9. Cfr. Nikisch, citado por Vaz Serra, Direito Probatório Material, B.M.J. n.º 110, nota 29, pag. 79 e 80.
10. Neste sentido ver acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25/01/2011, proc. n.º3322/07.6TJVNF.P1, disponível em www.dgsi.pt
11. Processo n.º598/12.0TBVCT.G1, disponível em www.dgsi.pt
12. Cfr. Acórdão da Relação do Porto, de 7/02/2017 e de 13/06/2013, proferidos nos processos nºs 842/14.0TJPRT.P1 e 4438/11.0TBVNG.P1, repectivamente, in www.dgsi.pt.