Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5241/20.1T9BRG.G1
Relator: FÁTIMA FURTADO
Descritores: CRIMES TRIBUTÁRIOS
CRIME DE BURLA TRIBUTÁRIA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
CONDIÇÃO DE PROCEDER AO PAGAMENTO DAS QUANTIAS EM DÍVIDA E ACRÉSCIMOS LEGAIS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/17/2023
Votação: MAIORIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I. A interpretação do artigo 14.º do RGIT tem de ser conjugada com o disposto no artigo 51.º, n.º 2 do Código Penal, no sentido de que nos crimes tributários, assim como sucede relativamente a todos os outros, a subordinação da suspensão da execução da pena ao dever de pagamento só poderá acontecer quando do juízo de prognose realizado resulte existirem condições para o cumprimento dessa condição.
II. Não há correspondência automática entre o montante da quantia em dívida e o montante da quantia a pagar como condição de suspensão da execução da pena de prisão.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.
(Secção Penal)

I. RELATÓRIO

No processo comum singular nº 5241/20.1T9BRG.G1, do Juízo Local Criminal ... - Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., foram submetidos a julgamento os arguidos Associação Cultural e Recreativa de ..., AA e BB, todos com os demais sinais dos autos.

A sentença, proferida e depositada em 07.11.2022 tem o seguinte dispositivo:
«a) Condenar a arguida Associação Cultural e Recreativa de ... pela prática de um crime de burla tributária p. e p. pelos arts 7º e 87º nºs 1 e 3 do RGIT, na pena de 850 (oitocentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €12,00 (doze euros), num total de €10 200,00 (dez mil e duzentos euros).
b) Condenar o arguido AA pela prática de um crime de burla tributária p. e p. pelo artº 87º nºs 1 e 3 do RGIT na pena de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses, suspensão condicionada ao pagamento ao Instituto da Segurança Social, I.P. no prazo de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses subsequentes ao trânsito em julgado da presente sentença, da quantia de €154 798,63 (cento e cinquenta e quatro mil, setecentos e noventa e oito euros e sessenta e três cêntimos), quantia acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, desde a data da atribuição das comparticipações patrimoniais indevidas por parte do ISS e sobre os respectivos montantes até integral pagamento.
c) Absolver a arguida BB da prática de um crime de burla tributária p. e p. pelo artº 87º nºs 1 e 3 do RGIT.
d) Custas pelos arguidos Associação Cultural e Recreativa de ... e AA, fixando-se em 3 UCs a taxa de justiça a pagar por cada um deles.
2. Parte Cível
Julgar o pedido de indemnização civil deduzido pelo Instituto da Segurança Social, I.P. parcialmente procedente e, em consequência:
a) Condenar os demandados Associação Cultural e Recreativa de ... e AA a pagarem solidariamente ao demandante a quantia de €154 798,63 (cento e cinquenta e quatro mil, setecentos e noventa e oito euros e sessenta e três cêntimos), quantia acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, desde a data da notificação para a contestação do pedido de indemnização civil até efectivo e integral pagamento.
b) Absolver a arguida BB do pedido de indemnização civil contra ela deduzido.
c) Custas pelos demandados Associação Cultural e Recreativa de ... e AA.
Após trânsito:
a) Remeta boletins à DSIC.
b) Comunique a presente decisão à Segurança Social (artº 50º/2 RGIT)
c) Extraia certidão do relatório preliminar do ISS de fls 2 a 30, do parecer fundamentado de fls 389 a 412, da acusação de fls 473 a 477, das actas de audiência de julgamento e da presente sentença com nota de trânsito em julgado e, juntamente com cópia da gravação das declarações prestadas pela arguida BB, pela testemunha CC e por DD, remeta a mesma aos Serviços do Ministério Público a fim de ser averiguada a responsabilidade de DD pela prática, em co-autoria, de um crime de burla tributária p. e p. pelo artº 87º nºs 1 e 3 do RGIT.
Proceda-se a depósito (art. 372.º, n.º 5 do Código de Processo Penal).»
*
Inconformados, os arguidos Associação Cultural e Recreativa de ... e AA vieram interpor recurso, apresentando a competente motivação que rematam com as seguintes conclusões:

«1ª Na ausência de confissão do arguido e de prova direta, condenou-se o arguido, com recurso à prova indireta, presumindo-se que sabia e quis defraudar o ISS, quando se deveria ter absolvido, pois provou-se que nada fez seu e por inexistir prova direta ou indireta de conduta dolosa ou em conluio com terceiro, subsistindo dúvida fundada;
2ª Da motivação da matéria de facto (o arguido ao longo de 36 anos presidiu à associação, onde se deslocava frequentemente, e “era um faz tudo”; A associação era de cariz familiar, ao ponto de lhe ter “sucedido” na presidência um filho; A associação tem cariz local e de pequena dimensão e dificuldades financeiras; Por isso o arguido sabia perfeitamente o que se passava e se não pôs cobro à situação é porque a terá iniciado), não se pode presumir e concluir, para além de qualquer dúvida razoável, que o arguido sabia e quis em coautoria e em conluio com terceiro, apropriar-se de comparticipações indevidas do ISS;
3ª Pelo facto do arguido ter estado na presidência da associação, mais de trinta anos, e ser presença assídua na associação, não se pode presumir, para além de qualquer dúvida razoável, que sabia e deu instruções para enviar dados falsos ao ISS, quando tal tarefa era efetuada pelo funcionário administrativo e pela diretora técnica;
4ª Importa, por isso, saber se este facto não anteriormente conhecido nem diretamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido“ cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 07-01-2004 (Proc. 03... - Rel. Cons. Henriques Gaspar -SJ200401070032133);
5ª Como tem vindo repetidamente a afirmar a nossa jurisprudência, a livre apreciação da prova não significa “apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova”, nem apreciação subjetiva do julgador, o que, aliás, está de acordo com a posição defendida, entre outros, por Jorge de Figueiredo Dias e por Germano Marques da Silva;
6ª A apreciação da prova indireta ou indiciária incide sobre factos diversos do tema de prova (sujeita à livre apreciação nos termos do art. 127º do CPP, que deve ser devidamente fundamentada) mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação da qual se infere o facto a provar. Exigindo que apenas se pode extrair o facto probando do facto indiciário quando tal seja corroborado por outros elementos de prova, por forma a que sejam afastadas outras hipóteses igualmente possíveis – cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 3ª ed., II vol., p. 100/101;
7ª O princípio in dubio pro reo situa-se no âmago da livre apreciação da prova, constituindo como que “o fio da navalha” onde se move a missão de julgar. Livre convicção e dúvida razoável limitam-se e completam-se reciprocamente, obedecendo aos mesmos critérios de legalidade da produção e da valoração da prova e da sua apreciação em conformidade com o critério do art. 127º do CPP. Sujeito ainda à mesma exigência de legalidade da prova e da sua apreciação motivada e crítica, da objetividade, racionalidade e razoabilidade dessa apreciação. Significando que “em caso de dúvida razoável, após a produção de prova, tem de actuar em sentido favorável ao arguido” (cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, ed. de 1974, p. 215);
8ª “A dúvida sobre a responsabilidade é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim. Dados, porém, os limites do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece dúvida a final, malgrado todo o esforço para a superar. Em tal situação, o princípio político-jurídico da presunção de inocência imporá a absolvição do acusado já que a condenação significaria a consagração de um ónus de prova a seu cargo, baseado na prévia admissão da sua responsabilidade, ou seja, o princípio contrário ao da presunção de inocência” (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, pág.84);
9ª Os factos dados como provados nos itens 6 a 19, da matéria de facto, no que se refere à coautoria e conluio do arguido, devem ser dados como não provados, e ser incluídos nos factos não provados, por ausência de prova direta ou indireta, levando-se à matéria de facto provada, que o arguido é uma pessoa honesta, honrada e considerada por toda a gente, retirando-se, consequentemente, este facto da matéria de facto não provada;
10ª Os restantes factos provados são insuficientes para a decisão proferida, padecendo esta de contradição insanável de fundamentação, entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova;
11ª O STJ na sua jurisprudência tem vindo a defender (considerando os seus poderes de cognição, definidos no art. 434.º do CPP, após a reforma aprovada pela Lei n.º 94/2021, de 21.12) que, a violação do princípio in dubio pro reo pode ser tratada como erro notório na apreciação da prova (art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP);
12ª A pena aplicada ao arguido é excessiva e desproporcionada e não valorou verdadeiramente todas as circunstâncias relevantes provadas, designadamente, a conduta anterior e posterior aos fatos, ser primário, a sua idade (87 anos) e as suas condições pessoais e a sua situação económica;
13ª A suspensão da pena de prisão, na condição de pagar a quantia de 154.798,63€, de que não se apropriou, nos termos do artigo 14º, nº 1 do RGIT, torna irrealizável a suspensão da pena aplicada, e viola o disposto no artigo 51º, nº 2 do CP;
14ª. O disposto no artigo 14º, nº 1 do RGIT não pode derrogar o regime do artigo 51º, nº 2 do CP;
15ª Provando-se que o arguido não se apropriou de qualquer quantia, o pedido civil contra si deduzido deve soçobrar, e a suspensão da pena de prisão, não deve ser condicionada ao pagamento de qualquer quantia, em obediência ao Ac. Do STJ de Uniformização de Jurisprudência nº 8/2012, D.R., nº 206, Série I, de 24/10/2012, conjugado com o disposto no artigo 51º, nº 2 do CP;
16ª A sentença em crise padece dos vícios elencados o artigo 410 do CPP e fez errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 32, nº 1 da CRP, 97º, nº 5, 127º, 374º, nº 2 do CPP, 14º, 51º, nº 2 do CP, 87º e 14º do RGIT, 483º e segs do CC, e dos princípio in dubio pro reo e da presunção de inocência;
17ª A correta interpretação e aplicação das citadas normas legais, aos factos conhecidos, não permite presumir e concluir, para além de qualquer dúvida razoável, que o arguido sabia e queria enganar o ISS, levando-o a atribuir compensações indevidas à associação, pelo que, o arguido deve ser absolvido civil e criminalmente;
18ª A conduta negligente do arguido, não pode ser sancionada pelo disposto no artigo 87º do RGIT, pois exige-se o dolo;
19ª A pena de multa aplicada à arguida é excessiva e desproporcionada, devendo ser reduzida para 500 dias, no montante diário de 5€;
20ª A decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que absolva o arguido, civil e criminalmente, e condene a arguida na indicada pena de multa, assim se fazendo a habitual JUSTIÇA»
*
O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação de Guimarães com o regime e efeito adequados.

A Senhora Procuradora da República que representou o Ministério Público na 1ª instância respondeu, pugnando pela improcedência do recurso, concluindo da seguinte forma:

«A) Não padece a decisão recorrida de qualquer dos vícios a que alude o artigo 379.º n.º 1 a) e 410 nº2 do Código de Processo Penal.
B) O Tribunal decidiu com respeito aos princípios da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127.º do CPP, e ao princípio do “in dubio pro reo”, consagrado no art.º 32.º n.º 2 da CRP
C) A matéria fáctica dada como assente não merece censura face à prova produzida.
D) Não pode na situação dos autos em que apenas é aplicável pena de prisão, por contrariar lei especial e expressa, a suspensão da execução da pena de prisão pela prática de crime de burla tributária pelo qual o arguido foi condenado ser condicionada ao pagamento de quantia inferior ao da prestação tributária em dívida, por violar lei especial.
E) O juízo de prognose a que alude o AUJ 8/2012 apenas é necessário quando o crime tributário em causa for punível com pena de prisão ou, em alternativa, com pena de multa.
F) A pena achada para a arguida Associação mostra-se graduada de modo legal e sensato.
G) Na fixação do montante diário da pena de multa o Tribunal atendeu à situação económica e financeira da condenada e dos seus encargos;
H) O montante diário da pena de multa deve ser fixado de modo a que se traduza num sacrifício real para a condenada;
I) A arguida tem capacidade para pagar, embora com algum sacrifício, mas sem ser exagerado ou insuportável, a quantia diária de €: 12,00;
J) A taxa diária da multa fixada na sentença é ajustada.»
*
Nesta Relação, a Exma. Senhora Procuradora-Geral adjunta emitiu douto parecer, no sentido do provimento parcial do recurso, com alteração do montante que condiciona a suspensão da execução da pena do arguido para quantia não superior a 10 000,00 €, e improcedência em todas as demais pretensões recursórias.
Foi observado o disposto no artigo 417.º nº 2 do Código Processo Penal, sem resposta.
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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

Conforme é jurisprudência assente o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer. Cf. artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, v.

1. Questões a decidir

A. Impugnação da matéria de facto.
B. Quantum da pena de prisão aplicada ao arguido AA e montante que condiciona a suspensão da sua execução; quantum da pena de multa aplicada à arguida Associação Cultural e Recreativa de ... e respetivo quantitativo diário.
C. Condenação cível do arguido/demandado AA.
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2. Segue-se a enumeração dos factos provados, não provados e respetiva motivação, constantes da sentença recorrida.

«Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:

1. A Associação Cultural e Recreativa de ... é uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS), pessoa colectiva n.º ..., registada no Instituto da Segurança Social sob a inscrição n.º ...11, com sede na Rua ..., na Freguesia ..., em ....
2. Tem como objecto social a actividade de apoio social para pessoas idosas, crianças e pessoas com deficiência.
3. Pelo menos entre Janeiro de 2013 e Agosto de 2019, o arguido AA foi Presidente da Direcção da referida IPSS, competindo-lhe a sua representação, a administração de toda a actividade exercida, a decisão de afectação dos seus recursos financeiros à satisfação das respectivas necessidades, a responsabilidade pelo apuramento do valor das mensalidades de todas as respostas sociais, a responsabilidade pela entrada dos utentes na estrutura residencial para pessoas idosas, pela inscrição de utentes no apoio domiciliário e no centro de dia, pela celebração de contratos de prestação de serviços com utentes, pelas comunicações das listagens de utentes ao ISS e pelo recebimento e afectação dos apoios sociais fornecidos por tal entidade.
4. Por seu turno, no referido período, a arguida BB era Directora Técnica da Associação, competindo-lhe assegurar e promover a colaboração com os serviços sociais, designadamente, com a Segurança Social.
5. No decurso da actividade, a Associação Cultural e Recreativa de ..., em Dezembro de 2006, celebrou acordos de cooperação para serviços de apoio domiciliário, para centro de dia e para lar de idosos com o Centro Distrital da Segurança Social de ..., através dos quais o ISS efectuava o pagamento de verbas sociais, mediante a comunicação dos utentes em cada uma das valências na IPSS.
6. Pese embora fosse do seu conhecimento que as comparticipações da Segurança Social eram pagas em função dos serviços efectivamente prestados nas respectivas valências, decidiu o arguido AA enviar àquele IP listagens onde estavam incluídos utentes que as não tinham frequentado/beneficiado, por forma a fazer falsamente crer que aqueles tinham efectivamente usufruído desses serviços, com o objectivo de conseguir para a instituição, a esse título, quantias que não lhe eram devidas.
7. Cientes disto, entre Janeiro de 2013 e Agosto de 2019, o arguido AA, em representação da Associação Cultural e Recreativa de ..., e terceira pessoa, em comunhão de esforços e intentos, organizaram dados que foram apostos mensalmente nas listagens dos utentes inscritos e frequentadores das respostas sociais de Centro de Dia (CD) e de Apoio Domiciliário (SAD), que foram enviados para o Instituto da Segurança Social, a fim deste efectuar o pagamento do correspectivo apoio social.
8. Sucede que o arguido AA e terceira pessoa fizeram constar das listagens enviadas ao ISS para efeito de comparticipação utentes que, na verdade, não usufruíam do serviço ali mencionado, o que aqueles bem sabiam.

Assim:
9. O arguido AA e terceira pessoa fizeram inscrever o seguinte utente ao mesmo tempo nas respostas sociais de SAD e CD, quando apenas beneficiava da valência do Serviço de Apoio Domiciliário.
NISS UtenteNome UtenteResposta IndevidaPeríodo IndevidoValor Indevido
...42EECentro de Dia201301 a 201404€1 681,48

10. Acresce que o arguido AA e terceira pessoa fizeram inscrever os seguintes utentes para efeitos de comparticipação em valências da Associação Cultural e Recreativa de ..., depois de terem falecido:

NISS UtenteNome UtenteResposta
Indevida
Data
de óbito
Período IndevidoValor
Indevido
...36FFSAD20/02/2013201303 a 201502€5 831,98
...79GGCD04/01/2014201402 a 201403€211,76
TOTAL€6 043,74

11. Bem como fizeram inscrever os seguintes utentes para efeitos de comparticipação na resposta social SAD, quando, nos respectivos períodos, já não frequentavam tal resposta ou frequentavam a resposta social de Centro de Dia.

NISS UtenteNome UtenteResposta Comparticipada IndevidamenteResposta FrequentadaPeríodo indevidoValor Indevido
...08HHSADCentro de dia201307 a 201309€724,11
...36FFSADCentro de dia201301 a 201302€482,74
...23M IISADCentro de dia201412 a 201512€3 201,30
...24JJSADCentro de dia201605 a 201710€4 546,28
...99KKSADNenhuma201406 a 201503€2 445,84
TOTAL€11 400,27

Acresce que:
12. De acordo com os Protocolos de Cooperação celebrados entre o Ministério do Trabalho, Solidariedade Social e Segurança Social e a Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade, o Serviço de Apoio Domiciliário inclui no mínimo dois serviços considerados indispensáveis, a saber, higiene pessoal, higiene habitacional, alimentação, tratamento de roupas, serviço de teleassistência e serviço de animação/socialização.
13. Ora, apesar dos seguintes utentes não usufruírem de dois serviços considerados indispensáveis, não podendo enquadrar-se neste apoio, o arguido AA e terceira pessoa, bem cientes disso, fizeram inscrevê-los para efeitos de comparticipação pelo ISS.

NISS UtenteNome UtenteServiço Prestado Para Efeito de ComparticipaçãoServiços ComunicadosPeríodo indevidoValor Indevido
...19LLAlimentaçãoA;HH;HP; SAS e TR201804 a 201907€4 168,16
...62MMAlimentaçãoAE;A;OUTR e SAS201301 a 201402€5 821,80
...06NNAlimentaçãoA;OUTR; SAS e TR201607 a 201711€4 301,86
...42OOAlimentaçãoAE; A; OUTR
e SAS
201301 a 201402€3 384,00
...75PPAlimentaçãoA; HH; HP e
TR
201801 a 201908€5 210,20
...69QQAlimentaçãoA; OUTR e
SAS
201904 a 201908€1 302,55
...45RRAlimentaçãoAE; A; OUTR e SAS201301 a 201402€3 384,00
...00SSAlimentaçãoA;HH;OUTR e TR201510 a 201608€2 736,66
...91TTAlimentaçãoA; OUTR e SAS201504 a 201908€13 483,06
...29UUAlimentaçãoA;HH;OUTR e TR201312 a 201509€5 384,87
...53VVAlimentaçãoA;HH;OUTR; SAS e TR201711 a 201908€5 720,00
...95WWAlimentaçãoAE; A; OUTR e SAS201301 a 201908€20 044,24
...15XXAlimentaçãoAE; A; OUTR
e SAS
201301 a 201908€20 044,24
...78YYAlimentaçãoAE; A; OUTR
e SAS
201609 a 201711€3 802,54
...04ZZHigiene PessoalHH;HP e
OUTR
201301 a 201404€3 871,56

...23IIAlimentaçãoAE;A;HH;HP, SAS e TR201301 a 201312€2 896,44
...91M. AAAAlimentaçãoA; HP;SAS e
TR
201801 a 201809€2 344,59
...95BBBAlimentaçãoA;HP; OUTR;
SAS e TR
201605 a 201611€1 747,62
...49CCCAlimentaçãoAE; A; OUTR
e SAS
201301 a 201908€20 044,24
...73DDDAlimentaçãoA; HH; HP;
SAS e TR
201711 a 201908€5 720,00
...40EEEAlimentaçãoA e SAS201908€260,51
TOTAL€135 673,14

14. Desta forma, através da prestação de informação falsa ao Instituto da Segurança Social, tal entidade comparticipou indevidamente € 154.798,63 à Associação Cultural e Recreativa de ... a título de apoios sociais, pelos utentes supra mencionados, a que não tinha direito.
15. O arguido AA, na qualidade de legal representante da Associação Cultural e Recreativa de ..., em conluio com terceira pessoa, no período compreendido entre Janeiro de 2013 e Agosto de 2019, recebeu indevidamente o montante de €154.798,63 (cento e cinquenta e quatro mil, setecentos e noventa e oito euros e sessenta e três cêntimos), referentes a comparticipações do ISS por utentes que não estavam a usufruir de serviços a que as mesmas correspondiam.
16. O arguido AA sabia que era sua obrigação comunicar ao Centro Distrital do I.S.S.S. factos verdadeiros e que, ao não o fazer, determinava a administração da Segurança Social a efectuar atribuições patrimoniais indevidas àquela IPSS.
17. O arguido AA agiu livre, deliberada e conscientemente, ciente que a Associação Cultural e Recreativa de ... não tinha direito às comparticipações do ISS supra mencionadas e que, ao actuar do modo supra descrito, obtinha um enriquecimento ilegítimo, prejudicando a Segurança Social em igual montante.
18. O arguido AA, com a sua conduta, quis obter para a IPSS um benefício pecuniário que não lhe era devido, à custa de um engano que provocou à Segurança Social, sabendo que causava prejuízos patrimoniais no valor de €154.798,63 (cento e cinquenta e quatro mil, setecentos e noventa e oito euros e sessenta e três cêntimos), o que conseguiu.
19. Bem sabia o arguido AA que os comportamentos descritos eram e são proibidos e punidos por lei.
20. O arguido AA actuou sempre na qualidade de Presidente da Direcção da Associação Cultural e Recreativa de ..., em seu nome e no interesse colectivo da mesma.

Mais se provou:
21. Em consequência do comportamento dos arguidos Associação Cultural e Recreativa de ... e AA, o Instituto da Segurança Social, I.P teve um prejuízo patrimonial de €154 798,63.
22. Os arguidos Associação Cultural e Recreativa de ..., AA e BB não têm antecedentes criminais.
23. A Associação Cultural e Recreativa de ... tem, actualmente, as suas contas equilibradas.
24. Está a pagar diversos empréstimos.
25. Tem os seguintes utentes nas suas diversas valências: cerca de 56 utentes na Creche; cerca de 30 utentes no Lar; cerca de 15 utentes no Centro de Dia e cerca de 15 a 20 utentes no Serviço de Apoio Domiciliário.
26. A Associação Cultural e Recreativa de ... funciona em instalações próprias.
27. As suas receitas reportam-se exclusivamente aos apoios sociais da Segurança Social, aos pagamentos efectuados pelos utentes e a donativos.
28. O arguido AA foi enfermeiro e exerceu as funções de Presidente da Associação Cultural e Recreativa de ... entre o ano de 1983 e Dezembro de 2019, encontrando-se, actualmente, reformado, auferindo de pensão de reforma pelo menos €1 000,00 mensais.
29. Vive em casa própria, no valor de pelo menos €130 000,00, a qual pertencia-lhe, bem como à sua falecida esposa, não tendo ainda sido realizadas partilhas entre ele e os seus oito filhos.
30. Para além da referida vivenda, é ainda proprietário de mais duas casas antigas, uma no valor de pelo menos €20 000,00 e outra no valor de pelo menos €30 000,00 a €40 000,00, cuja situação jurídica é igual à da vivenda que habita, estando ambas arrendadas, recebendo o arguido AA de rendas €120, 00 mensais e €170,00 mensais.
31. O arguido AA é casado em segundas núpcias, estando a esposa reformada, auferindo de pensão de reforma €400, 00 mensais.
32. A arguida BB encontra-se de baixa médica há 8 meses, auferindo de subsídio de doença €734,00 mensais.
33. É casada.
34. O marido é encarregado de armazém, auferindo mensalmente cerca de €800,00.
35. Tem uma filha de 9 anos de idade, a cargo.
36. Vive em casa própria, encontrando-se a amortizar um empréstimo, pagando €259,00 mensais, a que acrescem €38,00 de seguro de vida e €13,00 de seguro multirriscos.
37. Os membros da Direcção da Associação Cultural e Recreativa de ..., entre os quais o Presidente, não eram remunerados pelas funções que desempenhavam.
38. A arguida BB, embora mantivesse com o arguido AA, Presidente da Direcção da Associação Cultural e Recreativa de ..., uma relação relativamente cordial até 2019, não tinha uma relação próxima com o mesmo, muito menos de amizade, antes uma relação pautada por diversos problemas (em termos de funções que lhe estavam atribuídas e do montante do vencimento inerente a essas mesmas funções), que se foram agudizando ao longo do tempo.
39. Devido a tais problemas, acabou por recorrer à Autoridade para as Condições de Trabalho e inscreveu-se como associada do Sindicato dos Trabalhadores em Funções Públicas e Sociais do Norte, o que fez em 28 de Junho de 2019, tendo sido atendida nos respectivos serviços por várias vezes.
40. À data dos factos, a Associação Cultural e Recreativa de ... atravessava dificuldades financeiras, o que motivou o recurso ao crédito bancário, tendo o arguido AA, à semelhança dos restantes membros da Direcção, avalizado várias letras e livranças.
*
2.2. Matéria de facto não provada

Não se provou que a arguida BB fosse a responsável pela elaboração e envio das listagens dos utentes à Segurança Social para efeitos de comparticipação.
Não se provou que tivesse integral conhecimento do valor das mensalidades de todas as respostas sociais.
Não se provou que a arguida BB tivesse decidido enviar ou tivesse enviado ao ISS listagens onde estavam incluídos utentes que não tinham frequentado/beneficiado das respectivas valências, por forma a fazer falsamente crer que aqueles tinham efectivamente usufruído desses serviços, com o objectivo de conseguir para a Associação Cultural e Recreativa de ..., a esse título, quantias que não lhe eram devidas.
Não se provou que a arguida BB tivesse actuado em comunhão de esforços e intentos com o arguido AA.
Não se provou que tivesse sido a arguida BB a inscrever o utente EE ao mesmo tempo nas respostas sociais de SAD e CD, quando apenas beneficiava da valência do Serviço de Apoio Domiciliário.
Não se provou que tivesse sido a arguida BB a inscrever os utentes FF e GG para efeitos de comparticipação em valências da Associação Cultural e Recreativa de ..., depois de terem falecido.
Não se provou que tivesse sido a arguida BB a inscrever os utentes HH, FF, II, JJ e KK para efeitos de comparticipação na resposta social SAD, quando, nos respectivos períodos, já não frequentavam tal resposta ou frequentavam a resposta social de Centro de Dia.
Não se provou que tivesse sido a arguida BB a inscrever os utentes mencionados no ponto 13 da matéria de facto provada na resposta social SAD para efeitos de comparticipação pelo ISS.
Não se provou que o arguido AA se tivesse apropriado em benefício próprio das quantias destinadas à Associação Cultural e Recreativa de ... provenientes da Segurança Social.
Não se provou que AA seja uma pessoa honesta, honrada e considerada por toda a gente.
*
2.3. Motivação da decisão de facto

São essencialmente três as questões a que, em termos de análise da matéria de facto, importa responder: A Associação Cultural e Recreativa de ... recebeu indevidamente comparticipações da Segurança Social, isto é, recebeu comparticipações a que não tinha direito, nos exactos termos constantes do despacho de acusação? Fê-lo de forma consciente e propositada? Qual ou quais os responsáveis por esse recebimento indevido e intencional?
Para responder às duas primeiras questões foi crucial o depoimento da testemunha CC, inspectora da Segurança Social, que levou a cabo a inspecção à arguida Associação Cultural e Recreativa de ..., sendo a responsável pela elaboração do respectivo relatório de inspecção de fls 5 e ss dos autos.
Num depoimento a todos os títulos notável e até bastante raro, porque extremamente assertivo, seguro e circunstanciado, ao ponto de podermos dizer que foi dos depoimentos mais clarividentes a que tivemos oportunidade de assistir em situações similares, CC demonstrou um enorme conhecimento sobre a matéria em discussão, fruto da inspecção tributária que realizou, analisando ponto por ponto e de uma forma extremamente objectiva (rejeitando qualquer extrapolação a partir desses mesmos factos, mesmo quando instada a tal pelo tribunal) todas as questões suscitadas pela inspecção realizada.
Na verdade, a análise do relatório da inspecção tributária que elaborou e que se encontra junto aos autos já deixava transparecer estarmos perante alguém bastante meticuloso e dotado de qualidades excepcionais para o exercício da função, o que veio a ser plenamente confirmado pelas declarações que prestou em sede de audiência de julgamento.
Debruçou-se sobre as relações existentes entre a arguida Associação Cultural e Recreativa de ... e a Segurança Social, incluindo as comparticipações por esta efectuadas de acordo com os serviços prestados por aquela.
Esclareceu que iniciou a inspecção a que se reportam os presentes autos em 27/09/2019, tendo confrontado as listagens de frequência fornecidas pela instituição com as listagens remetidas ao Centro Distrital de ... da Segurança Social para efeitos de comparticipação, consultado os processos individuais dos utentes, os registos dos serviços efectivamente prestados, os contratos de prestação de serviços entre a instituição e os diversos utentes, bem como alguns recibos de mensalidades.
Prosseguiu, reportando-se aos quatro quadros analíticos transpostos para a acusação, confirmando integralmente cada um deles, nomeadamente e além do mais, em termos do nome do utente, respostas comparticipadas indevidamente, períodos indevidos e valores indevidos. Acrescentou que o total das atribuições patrimoniais indevidas ascendeu a €154 798,63.
Adiantou que o Serviço de Apoio Domiciliário teria de incluir, no mínimo, dois serviços considerados indispensáveis, concretamente: higiene pessoal, higiene habitacional, alimentação, tratamento de roupas, serviço de teleassistência e serviço de animação/socialização.
Ora, no que concerne ao último quadro analítico, em muitos casos, a Associação Cultural e Recreativa de ... inseriu indevidamente nas listagens de utentes remetidas ao Centro Distrital da Segurança Social de ... para efeitos de comparticipação na resposta social de Serviço de Apoio Domiciliário utentes em relação aos quais apenas foi prestado um único serviço (Alimentação ou Higiene Pessoal).

Na verdade, como explicou, os serviços comunicados ou, pura e simplesmente, não foram prestados ou, tendo-o sido, não o foram com a periodicidade prevista no documento intitulado “FAQ´S-Operacionalização da revisão dos acordos de cooperação SAD”:
- A higiene habitacional não era prestada no mínimo 1 x por semana;
- O tratamento de roupa não era prestado no mínimo 1 x por semana;
-O serviço de animação/socialização não abrangia, no mínimo, quatro actividades semanais; por outro lado, não existiam quaisquer registos ou evidências da sua prestação;
- O apoio psicossocial não era prestado por uma equipa multidisciplinar constituída no mínimo por dois técnicos: um do serviço social e um psicólogo; também não existiam quaisquer registos ou evidências da sua prestação;
- Relativamente aos outros serviços alegadamente prestados, para além de não existirem quaisquer registos ou evidências da sua prestação, não se enquadravam na tipologia definida pelo nº 4 do artº 4º da Portaria nº 38/2013, de 30 de Janeiro.
Prosseguiu, frisando que, entre os anos de 2013 e 2019, no âmbito da valência Serviço de Apoio Domiciliário, a Associação Cultural e Recreativa de ... teve um total de 61 utentes (note-se que a testemunha não está a reportar-se ao número de utentes que a arguida tinha em simultâneo em cada um dos períodos, que era muito inferior, mas ao seu número total) e que os analisou um a um, isto é, estudou a situação individual de cada um deles, tendo consultado todos os documentos existentes na instituição, adiantando que a documentação interna estava bem preenchida, organizada, não levantava suspeitas e demonstrava ser fidedigna [“Se o utente levava 5 iogurtes, no documento apareciam 5 iogurtes (…), os registos eram feitos pelos funcionários e eram confiáveis (…) em muitos deles, aparecia a assinatura da Directora Técnica, que tinha funções de coordenação (…), o que não batia certo eram as listagens (enviadas à Segurança Social) com os registos.” ]. Tal permitiu-lhe chegar, com grande segurança, às conclusões que depois plasmou no relatório da inspecção e que foram transpostas para a acusação dos autos.
A testemunha CC frisou ainda que nos contactos que teve com a arguida BB, Directora Técnica da Associação Cultural e Recreativa de ..., esta foi sempre muito prestável e colaborante, não aparentando estar a esconder fosse o que fosse.
Por último, explicou que para submeter informaticamente e enviar as listagens dos utentes para efeitos de comparticipação à Segurança Social são necessários códigos que são fornecidos à Direcção da instituição e que cada utente, para além de ser comparticipado pela Segurança Social, paga uma mensalidade à instituição, mal se compreendendo que a Associação Cultural e Recreativa de ... não se tivesse apercebido, ao longo de quase dois anos, da morte de uma utente (no caso, a Associação Cultural e Recreativa de ... recebeu, ao longo de quase dois anos, comparticipações da Segurança Social relativamente à utente FF, num total de €5 831,98, sem que, durante esse lapso temporal, recebesse qualquer mensalidade da parte da utente ou de seus familiares, pois aquela já tinha falecido!).
Note-se que as conclusões que a testemunha CC retirou da inspecção que efectuou à Associação Cultural e Recreativa de ... encontram ainda apoio em diversos outros depoimentos, que passamos a descrever de forma naturalmente sucinta.
FFF, filha da utente HH, confirmou que a mãe frequentava apenas o Centro de Dia da instituição. Tudo o resto era assegurado por ela, nomeadamente, o pequeno almoço, a higiene e o tratamento de roupa eram efectuados em casa.
WW, ele próprio utente da instituição, juntamente com a esposa CCC, frisou que os serviços que lhe eram prestados cingiam-se à alimentação, ao passo que à esposa consistiam na alimentação, higiene pessoal, auxílio à toma da medicação ao pequeno almoço e ao almoço, incluindo administração de insulina aquando do pequeno almoço.
Acrescentou que tais serviços não eram prestados aos domingos e feriados, não se recordando em que período temporal o foram.
Pois bem.
O depoimento desta testemunha acabou, de certa forma, por confirmar as conclusões da srª inspectora CC. Na verdade, se analisarmos o último dos quadro analíticos mencionados na matéria de facto provada, constata-se que relativamente a estes dois utentes (WW e CCC), a Associação Cultural e Recreativa de ... comunicou à Segurança Social, para efeitos de comparticipação no âmbito da valência SAD (Serviço de Apoio Domiciliário), os seguintes serviços: Acompanhamento ao Exterior, Alimentação, Outros Serviços e Serviço de Animação/Socialização.
Ora, dos serviços comunicados, apenas um tipo de serviço foi prestado, concretamente o serviço de alimentação, sendo certo que a Segurança Social só comparticiparia as despesas, conforme ficou provado, caso os respectivos utentes usufruíssem de dois serviços considerados indispensáveis, a saber, higiene pessoal, higiene habitacional, alimentação, tratamento de roupas, serviço de teleassistência e serviço de animação/socialização.
Na verdade, por um lado, a administração de medicação, designadamente aquando do fornecimento das refeições, não assume autonomia, isto é, não configura um serviço autónomo e muito menos um serviço considerado indispensável (note-se que os serviços considerados indispensáveis são de seis tipos definidos no artº 4º nº3 da Portaria nº 38/2013, de 30/01 e que o artº 4º nº3 al. c) da Portaria nº 38/2013, de 30/01 considera um único serviço o fornecimento e apoio nas refeições, respeitando as dietas com prescrição médica).
Por outro lado, embora a crer no depoimento da testemunha WW, a Associação Cultural e Recreativa de ... também tratasse da higiene pessoal da sua esposa, a verdade é que esse não foi um dos serviços que foram comunicados pela instituição à Segurança Social para efeitos de comparticipação no âmbito da valência SAD.
Ora, se foi a própria instituição a não comunicar a prestação de tal serviço é porque entendeu que não tinha direito a ser comparticipada pela prestação do mesmo, desconhecendo-se o motivo.
Como é óbvio, não cabe ao tribunal especular o que quer que seja nesta matéria e muito menos substituir-se à Associação Cultural e Recreativa de .... Ao tribunal cabe apenas apreciar se os serviços comunicados foram efectivamente prestados e a verdade é que, com a excepção da alimentação, não o foram.
GGG, neta do utente TT, frisou que o único serviço prestado ao seu avô foi o serviço de alimentação. A instituição levava-lhe a refeição ao almoço, a qual servia também para o jantar, nunca lhe tendo tratado das roupas ou da higiene da casa.
HHH afirmou, em sede de audiência de julgamento, que a sua madrasta JJ apenas frequentou o Centro de Dia ..., indo para a instituição às 9h30m e regressando às 17h00. Por outro lado, o seu pai VV apenas usufruiu de um dos serviços prestados pela instituição, concretamente da alimentação, a partir de Novembro de 2017. Só a partir de Agosto de 2022 é que também lhe passaram a tratar da roupa.
UU sublinhou que o único serviço que a Associação Cultural e Recreativa de ... lhe prestou foi o serviço de alimentação.
III esclareceu que o único serviço prestado pela instituição à sua mãe XX era o serviço de alimentação. A limpeza da casa, o tratamento das roupas e a higiene pessoal ficavam a cargo dos familiares.
JJJ adiantou que o único serviço prestado pela Associação Cultural e Recreativa de ... à sua mãe YY entre Setembro de 2016 e Novembro de 2017 era a alimentação (levavam-lhe o almoço e, nessa altura, davam-lhe a medicação juntamente com o almoço).
KKK explicou que a sua avó LLL apenas usufruiu do serviço de alimentação. Quem tratava da roupa e da higiene pessoal era a avó.
Por outro lado, e uma vez que passou a trabalhar para a Associação Cultural e Recreativa de ... a partir de 2016, confirmou que a instituição era dirigida pelo arguido AA e que quem recebia os pagamentos dos serviços prestados aos utentes era o funcionário DD, filho daquele.
MMM esclareceu que a sua sogra DDD, até ao ano de 2019, apenas beneficiou do serviço de alimentação (a instituição Associação Cultural e Recreativa de ... levava-lhe o almoço ao domicílio).
Por último, a testemunha NNN adiantou que a sua mãe EEE também só usufruiu do serviço de alimentação, pagando duas refeições à instituição, que não lhe prestava qualquer outro serviço.
Como facilmente se vislumbra, os depoimentos prestados apontam praticamente todos no mesmo sentido: no caso de quase todos os utentes, o único serviço que era prestado no âmbito da valência SAD era o serviço de alimentação. No entanto, a Associação Cultural e Recreativa de ... permitia-se comunicar à Segurança Social uma multiplicidade de outros serviços, desde o acompanhamento ao exterior até ao serviço de animação e socialização, passando pela higiene habitacional, pela higiene pessoal e pelo tratamento de roupas.
Desta perspectiva, as declarações disponibilizadas pela Associação Cultural e Recreativa de ... a fls 321 verso e ss dos autos, em que os utentes ou familiares dos utentes atestam que determinados serviços foram prestados não têm qualquer valor.
Na verdade, desconhecem-se as circunstâncias em que tais declarações foram subscritas; elas têm a aparência de um texto previamente elaborado em que o subscritor se limitava, aparentemente sem qualquer critério, a apor a sua assinatura muitos anos depois da alegada prestação de serviços (atente-se nas datas das mesmas); nem a Associação Cultural e Recreativa de ... nem o seu ex-presidente arrolaram como testemunhas os subscritores das declarações; algumas dessas declarações estão subscritas pelo próprio arguido AA que optou pelo silêncio em audiência de julgamento (cfr. fls 334, 351); alguns dos subscritores das declarações mal conseguem assinar o seu nome, no entanto a declaração respectiva alude a apoio psicossocial e ao artº 4ºnº 5 da Portaria nº 38/2013 (cfr. fls 356); outros não sabem ler nem escrever, limitando-se a apor a sua impressão digital (cfr. fls 374); alguns dos serviços alegadamente prestados ou não se enquadram na tipologia legal ou não têm qualquer autonomia face aos legalmente previstos.
Estamos agora em condições de responder às duas primeiras questões a que nos propusemos no início desta exposição.
Dado o modo meticuloso, seguro e circunstanciado como o depoimento da testemunha CC foi prestado (cujos traços gerais deixámos expostos) e os documentos em que ela se baseou (incluindo os processos individuais dos utentes, os registos dos serviços efectivamente prestados, bem como alguns recibos de mensalidades e não apenas os contratos de prestação de serviços entre os utentes e a instituição, pois, por vezes, os serviços contratualizados pura e simplesmente não eram prestados ou não o eram com a periodicidade exigida), depoimento corroborado por outros depoimentos testemunhais já mencionados, o tribunal não teve a mais pequena dúvida em dar como provado que as comparticipações indevidas efectuadas pela Segurança Social à Associação Cultural e Recreativa de ... foram precisamente as constantes do despacho de acusação, num total de €154 798,63.
Por outro lado, também não existe a mais pequena dúvida que a Associação Cultural e Recreativa de ... solicitou, de forma consciente, deliberada e propositada tais comparticipações, bem sabendo que não tinha direito a elas, o mesmo é dizer, quis ludibriar e enganar a Segurança Social.
Na verdade, e de forma decisiva, como foi salientado pela testemunha CC, os documentos internos, nomeadamente os registos de serviços prestados pela instituição, contrariavam as listagens que a mesma instituição enviava para a Segurança Social, sendo certo que os primeiros estavam muito bem organizados, eram bastante confiáveis e fidedignos.
Só por si isto já bastaria para concluirmos estarmos perante um comportamento doloso e, mais do que isso, intencionalmente motivado e dirigido a um fim bem específico: obter um enriquecimento ilegítimo da instituição à custa do empobrecimento da Segurança Social.
A isto acresce que não estamos perante pequenos lapsos, ocasionais ou isolados uns dos outros, fruto eventualmente do descuido, dando origem a pequenas vantagens patrimoniais, mas perante comportamentos sistemáticos, perpetrados ao longo de um espaço de tempo bastante dilatado (mais de seis anos), dando azo a uma vantagem patrimonial de €154 798,63!
E também não estamos perante dúvidas na interpretação da legislação conforme, a determinada altura, se tentou fazer passar a ideia em sede de audiência de julgamento.
Por um lado, a Portaria nº 38/2013, de 30 de Janeiro, que entrou em vigor no dia seguinte, era perfeitamente clara e até aludia à prestação, não de dois, mas de quatro serviços considerados indispensáveis no âmbito da valência SAD (cfr. artº 4º nº3 do mencionado diploma), sendo que a redução a dois serviços para efeitos de comparticipação ficou a dever-se aos Protocolos de Cooperação celebrados entre o Ministério do Trabalho, Solidariedade Social e Segurança Social e a Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade.
Por outro lado, não conseguimos descortinar qual é a dúvida: os serviços ou eram prestados ou não eram prestados e, no caso concreto, na esmagadora maioria, não o eram. Comunicar serviços não prestados não é matéria de dúvida, mas de ilicitude.
Aliás, como já foi evidenciado, alguns dos casos são caricatos, sendo o expoente máximo o caso da utente FF, que, ao longo de quase dois anos, esteve a ser comparticipada pela Segurança Social quando já tinha falecido, não se percebendo como é que a Associação Cultural e Recreativa de ... poderia ignorar tal facto, pois já não recebia qualquer mensalidade desta mesma utente.
Passemos, então, a tentar responder à terceira e última questão: Qual ou quais os responsáveis pelo recebimento indevido e intencional das comparticipações mencionadas ou, dito de outra forma, quem tomou a decisão de as solicitar e quem executou essa mesma decisão?
Para isso, necessário se torna expor, em traços gerais, alguns depoimentos que foram prestados em sede de audiência de julgamento.
O arguido AA remeteu-se ao silêncio, no uso de um direito que lhe assiste, à excepção dos factos respeitantes à sua situação pessoal e económica.
OOO, actual Vice-Presidente da Associação Cultural e Recreativa de ..., salientou que a actual Direcção da Associação Cultural e Recreativa de ... só tomou posse em Janeiro de 2020, ignorando o que sucedeu antes dessa data. Não obstante, antes da tomada de posse da actual Direcção e desde a criação da Associação, o Presidente da Associação foi sempre o arguido AA, pelo que entre os meses de Janeiro de 2013 e Agosto de 2019 (período mencionado na acusação) era ele quem, nessa qualidade, dirigia a instituição.
PPP, actual Presidente da Associação Cultural e Recreativa de ... e filho do anterior presidente (o arguido AA), explicou, na segunda sessão de audiência de julgamento, que a Associação foi fundada em 21/06/1983 e desde essa data até Dezembro de 2019 o seu presidente foi sempre o arguido AA, que exercia efectivamente essas funções, salientando que até 2019, na prática, era apenas o seu pai a trabalhar em prol da Associação, pois os outros membros da Direcção não exerciam as funções para que foram eleitos (“Era o AA a trabalhar e a dirigir”, “durante muito tempo, a Associação foi trabalho de uma pessoa.”)
Acrescentou que a Associação Cultural e Recreativa de ... foi alvo de outras inspecções por parte da Segurança Social e que nada foi detectado, pelo que, na sua opinião, apenas parte das conclusões do relatório inspectivo estarão correctas, concretamente as respeitantes às comparticipações de utentes que já tinham falecido e as respeitantes à duplicação de valências (SAD, Centro de Dia), não se percebendo como é que retira tais ilações, pois, à data dos factos, nem sequer fazia parte da Direcção da Associação Cultural e Recreativa de ....
A arguida BB teve um discurso sereno, preciso, sincero e bastante credível, explicando que entrou para a Associação Cultural e Recreativa de ... no ano de 2007 como socióloga, efectivando-se em 2008. Acrescentou que começou logo a desempenhar o cargo de Directora Técnica em 2007, mas não como a lei o descreve.
Prosseguiu, sublinhando que AA foi sempre o Presidente da Direcção da Associação Cultural e Recreativa de ..., funções que efectivamente exercia, estando muito presente na vida da Associação.
As relações que com ele manteve eram cordiais, mas não muito próximas ou de amizade, obedecendo às suas ordens e expondo as ideias que tinha sobre a Associação. Ao longo do tempo, sobretudo durante o ano de 2019, tais relações começaram a deteriorar-se, tendo-lhe sido retirado o pelouro da gestão dos recursos humanos das valências da 3ª idade (Lar, Centro de Dia e SAD). Na sequência da degradação dessas relações, recorreu por diversas vezes à Autoridade para as Condições de Trabalho e inscreveu-se no Sindicato dos Trabalhadores em Funções Públicas e Sociais do Norte, tendo sido atendida nos respectivos serviços por várias vezes.
Nesta parte, o tribunal baseou-se ainda no atestado médico de fls 607 e na declaração do Sindicato dos Trabalhadores em Funções Públicas e Sociais do Norte de fls 608.
Acrescentou que era responsável pela abertura dos processos dos utentes, os quais eram entregues ao funcionário administrativo DD, filho do Presidente da Direcção.
Não elaborava nem remetia informaticamente à Segurança Social as listagens dos utentes para efeitos de comparticipação, funções que cabiam ao dito funcionário, limitando-se a comunicar-lhe oralmente quem tinha faltado ou não, quem tinha morrido, de acordo com os registos dos serviços prestados, ignorando se as listagens que eram remetidas pelo funcionário coincidiam com aquilo que lhe transmitia.
Porém, no mês de Maio de 2019, quando DD adoeceu, AA incumbiu-a de tal tarefa, fornecendo-lhe os respectivos códigos de acesso, códigos que até então nunca teve e que sempre estiveram na posse da Direcção e do referido funcionário. Nessa altura, detectou algumas situações que julgava provenientes de erro e que corrigiu.
Prosseguiu, negando qualquer participação nos factos descritos na acusação, sublinhando que a relação que teve com o Presidente da Direcção da Associação Cultural e Recreativa de ... nunca lhe permitiria o acordo a que se faz referência no despacho acusatório nem, de resto, teria qualquer interesse ou vantagem nesse acordo.
De resto, quando o utente morre, ele ou a sua família deixam de pagar mensalmente os serviços prestados, não se compreendendo como é que tal situação não foi detectada pelo funcionário DD ao longo de quase dois anos (no caso da utente FF), pois era ele que estava encarregue de receber os pagamentos dos utentes e os utentes do Serviço de Apoio Domiciliário não eram tantos quanto isso (cerca de 20 em simultâneo).
QQQ, animadora sócio-cultural na Associação Cultural e Recreativa de ... desde 1998, explicou, de forma segura e precisa, que, antes da tomada de posse da actual Direcção, o Presidente da Associação foi sempre o arguido AA, que ele exercia efectivamente tais funções, que o via periodicamente na instituição e conversava com ele.
Acrescentou que também ela (à semelhança da arguida BB) teve problemas com a Direcção da Associação Cultural e Recreativa de ... sobre o montante do respectivo vencimento e que o sindicato chegou a deslocar-se às instalações da Associação Cultural e Recreativa de ... devido a tais problemas.
RRR, desempenhou as funções de educadora de infância na Associação Cultural e Recreativa de ... entre 2009 e Setembro de 2020, altura em que foi nomeada Directora Técnica da Creche. Explicou que o arguido AA foi sempre o Presidente da Direcção da Associação Cultural e Recreativa de ... e que embora não estivesse lá todos os dias, exercia efectivamente as funções de presidente.
SSS, desempenhou as funções de Directora Técnica da Creche e Directora de Serviços na Associação Cultural e Recreativa de ..., não trabalhando para a instituição desde Agosto de 2020.
Começou o seu depoimento, frisando que o Presidente da Associação, o arguido AA, estava todos os dias ou quase todos os dias na Associação, exercendo efectivamente tais funções.
No que a si diz respeito, quando desempenhou as funções de Directora Técnica da Creche, quem elaborava e enviava informaticamente as listagens dos utentes à Segurança Social para efeitos de comparticipação era o funcionário administrativo DD (filho do Presidente da Direcção) com base nas informações que lhe transmitia.
Sabe que relativamente às valências da 3ª idade em que a Directora Técnica era a aqui arguida BB, as coisas passavam-se exactamente do mesmo modo, com a única diferença que a arguida BB costumava comunicar oralmente ao funcionário administrativo os dados e informações de que dispunha.
Acrescentou, por último, que a relação com a Direcção da Associação Cultural e Recreativa de ... era uma relação normal de trabalho, havendo, porém, alguns problemas, pois o vencimento não era o adequado.
TTT, Segundo Secretário da actual Direcção da Associação Cultural e Recreativa de ... e que também desempenhou o cargo de Secretário na Direcção presidida pelo arguido AA, o que fez desde Janeiro de 2012, explicou que o arguido AA estava constantemente na Associação, era a pessoa que mais lá ia e que tal instituição “nasceu do nada, da força de vontade do anterior presidente.”
Prosseguiu o seu depoimento, frisando que o arguido AA, à semelhança dos restantes membros da Direcção, avalizou várias letras e livranças, pois a Associação Cultural e Recreativa de ... teve de recorrer ao crédito bancário.
Por último, sublinhou que, antes da inspecção a que se reportam os presentes autos, a Segurança Social efectuou diversas acções de acompanhamento, nunca tendo sido detectadas quaisquer desconformidades, admitindo que o Vice-Presidente da Direcção anterior (UUU) também era um familiar do arguido AA, concretamente um seu genro.
VVV, actualmente Presidente do Conselho Fiscal e que na Direcção presidida pelo arguido AA desempenhou as funções de Tesoureira, explicou que o arguido AA era a pessoa que passava mais tempo na instituição (estava lá praticamente todos os dias) até porque, à data dos factos, já estaria aposentado e que a Associação Cultural e Recreativa de ... foi um projecto pessoal do arguido, tendo nascido do nada.
Acrescentou que as obras da Associação também foram financiadas pela Segurança Social, tendo sido contraídos alguns empréstimos e que a instituição sempre teve dificuldades financeiras.
Na sua opinião, o arguido, o arguido AA é um homem sério e honesto, acha a acusação injusta, nunca tendo recebido instruções para actuar de forma irregular.
Acabou, porém, por admitir que quem recebia os pagamentos dos serviços prestados aos utentes era o funcionário DD e que se alguém (utentes ou familiares) deixasse de pagar determinados serviços (como em caso de morte), a Associação teria imediatamente conhecimento, o que, de resto, decorre das regras de experiência comum.
WWW, Presidente da Mesa da Assembleia Geral na actual Direcção da Associação Cultural e Recreativa de ... e que desempenhou as funções de Secretário na Direcção anterior, explicou que, à data dos factos, a Associação tinha dificuldades financeiras, o que levou ao recurso ao crédito bancário, tendo todos os membros da Direcção prestado avales pessoais a letras e livranças e “hoje a obra está lá!”.
Na sua opinião, o arguido AA é um homem sério, conceituado, tendo sido Presidente da Junta de Freguesia ... e “nunca houve instruções para facturar serviços que não eram prestados”.
DD, filho do arguido AA, teve um depoimento completamente comprometido e bastante nervoso (chegou a gaguejar, por diversas vezes) e é nossa forte convicção, uma vez conjugados todos os elementos de prova, que teve um papel determinante na burla tributária a que se reportam os autos, sendo ele, aparentemente, o executor material dessa mesma burla. Por tal motivo, a final, irá ser extraída a competente certidão para efeitos de procedimento criminal contra o mesmo.
Como se verá, em tempo oportuno, o papel que na acusação é atribuído à arguida BB parece ter sido desempenhado por ele e se, nos factos provados, nos referimos a “terceira pessoa” é, sobretudo, por uma questão de escrúpulo, pois não nos cabe a nós julgar a testemunha nem este é o processo adequado para o efeito. A prova de que coube a esta testemunha e não à arguida BB o papel que a acusação reservou a esta última no esquema delineado pelo Presidente da Direcção terá de aguardar o competente processo.
Centremo-nos, porém, no seu depoimento.
Começou por esclarecer que trabalha na Associação Cultural e Recreativa de ... desde o ano de 2008, tendo contrato desde 2011. Entre os anos de 2013 e 2019 trabalhou na Secretaria da Associação, sendo o único funcionário que lá trabalhava, competindo-lhe, além do mais, receber os pagamentos efectuados pelos utentes.
Assumiu que era ele que elaborava e enviava informaticamente (tendo os códigos necessários) as listagens dos utentes à Segurança Social para efeitos de comparticipação, mas que o fez sempre de acordo com as informações que lhe eram transmitidas, quer pela Directora Técnica da Creche (que lhe fornecia as folhas de presença), quer pela Directora Técnica da 3ª idade, no caso a arguida BB (que lhe comunicava oralmente cada um dos beneficiários das diversas valências, presenças e ausências).
Assim, seria completamente estranho à matéria da acusação, ignorando ou desconhecendo as desconformidades detectadas entre os serviços efectivamente prestados aos utentes e as comparticipações atribuídas pela Segurança Social.
A credibilidade do depoimento desta testemunha ficou definitivamente abalada quando, sendo ele quem recebia as mensalidades dos utentes, não conseguiu explicar minimamente como não detectou, ao longo de quase dois anos, a situação da utente FF, que fez incluir nas listagens enviadas à Segurança Social para efeitos de comparticipação na valência “Serviço de Apoio Domiciliário” quando a mesma já tinha falecido e, consequentemente, nem ela nem os seus familiares pagavam à instituição qualquer mensalidade.
Tal situação é tanto mais inexplicável quanto os utentes que beneficiavam simultaneamente da resposta SAD não excediam, a crer no depoimento da própria testemunha, os 14 ou 15 de cada vez e, por conseguinte, a situação não poderia ter passado despercebida.
O embaraço desta testemunha foi de tal ordem que chegou a dizer que não fazia ideia dos serviços que cobrava!...
A questão é tão só esta: a testemunha recebia o dinheiro dos utentes (as mensalidades), emitia os respectivos recibos e não reparava na discrepância existente, isto é, que certos utentes não pagavam determinados serviços à instituição, mas eram comparticipados pela Segurança Social relativamente a esses mesmos serviços, situação que, como já se disse, atingiu o seu expoente máximo no caso da utente FF? Como é que se relaciona um utente ao longo de dois anos que, durante esse período, não contribuiu com um único cêntimo para a instituição?
Acabou por admitir, a muito custo (não se percebendo, de resto, a resistência em fazê-lo), que quem lhe dava ordens na Associação Cultural e Recreativa de ... era o seu pai e Presidente da Direcção, o arguido AA, pessoa que efectivamente dirigia a Associação e a quem recorria quando tinha dúvidas.
Se vislumbrámos serenidade, honestidade e rectidão no depoimento da arguida BB, detectámos nervosismo e comprometimento no depoimento da testemunha DD. O modo claramente comprometido como respondia às diversas questões que lhe eram colocadas ficou bem patente nas três respostas-tipo que dava: “Não me recordo”, “Já vai muito tempo”, “Era a Direcção Técnica.”
A conjugação destes dois depoimentos serviu para excluirmos totalmente a responsabilidade da arguida BB nos factos que lhe são imputados na acusação. Não era esta arguida que elaborava ou enviava informaticamente as listagens dos utentes à Segurança Social para efeitos de comparticipação (nem sequer dispunha dos códigos necessários para o efeito), apenas comunicava (oralmente) à testemunha DD tais dados, nada nos garantindo (bem pelo contrário!) que a testemunha respeitasse o que lhe era comunicado, em vez de adulterar os dados que lhe eram transmitidos.
Por outro lado, também já sabemos que a relação da arguida BB com o arguido AA, Presidente da Direcção da Associação Cultural e Recreativa de ..., embora relativamente cordial até 2019, não era uma relação próxima, muito menos amistosa, antes uma relação pautada por diversos problemas (em termos de funções que lhe estavam atribuídas e do montante do vencimento inerente a essas mesmas funções), que se foram agudizando ao longo do tempo.
Também desta perspectiva, o acordo entre o arguido AA e a arguida BB mencionado na acusação não faz muito sentido.
Mas tal acordo já poderá, muito bem, fazer sentido se substituirmos a arguida BB pela testemunha DD, pessoa da total confiança do Presidente da Direcção, pois era nada mais nada menos do que o seu filho, não custando até a crer que lhe tenha sido atribuída aquela específica função (a de elaborar e enviar as listagens à Segurança Social para efeitos de comparticipação), não por acaso, mas por estratégia.
Na verdade, não era inexorável que tal função recaísse num mero funcionário administrativo, pois outros processos similares temos tido em que tal não sucedeu.
Aqui chegados, estamos agora em condições de enfrentar o cerne da questão: se os autos não contêm elementos que nos permitam assegurar com segurança que a arguida BB teve participação nos factos descritos na acusação, conterão eles elementos que nos permitam, para além da dúvida razoável, atribuir responsabilidades ao Presidente da Associação Cultural e Recreativa de ... ou, ao invés, deverá a culpa recair apenas num simples funcionário administrativo (resposta deveras tentadora)?
Dito de outra forma: O arguido AA, por força das funções que exercia, sabia que a instituição que dirigia estava a ser comparticipada indevidamente pela Segurança Social, tendo sido ele quem decidiu solicitar tais comparticipações?
Desde já se diga que não podemos pretender/esperar ter meios de prova directa quanto a esta questão, muito menos uma declaração oral ou escrita atestando que assim era, tanto mais que o arguido AA nem sequer prestou declarações, no uso de um direito que, por lei, lhe assiste.
Tal não nos deve preocupar em demasia, tanto mais que os meios de prova directa, no caso vertente, até são muito mais abundantes do que seria expectável.
De resto, na formação da sua livre convicção, ao tribunal não está vedada a possibilidade de retirar ilações dos factos probatórios, socorrendo-se de um raciocínio dedutivo ou indutivo, apoiado nos princípios da lógica e fundamentado nas regras de experiência comum.
Sob pena de incontornável frustração de qualquer tentativa de apreensão exacta da realidade sujeita a comprovação judicial, exige-se do julgador que, uma vez confrontado – como não raras vezes sucede no universo da criminalidade em que nos situamos – com a ausência de testemunhos completos e auto-suficientes, proceda a uma apreciação global e correlativa de toda prova produzida, valorando-a dialecticamente e inferindo a partir dos factos expressamente afirmados aqueles outros que são sugeridos por um critério de experiência comum.
O sistema probatório alicerça-se, na verdade, em grande parte, no raciocínio indutivo de um facto conhecido para um facto desconhecido.
Como já se teve a oportunidade de frisar e tem vindo a ser entendido pela jurisprudência, a prova indirecta, circunstancial ou indiciária não é um “minus” relativamente à prova directa, permitindo, se devidamente valorada, alicerçar uma condenação penal.
Decidiu-se no Ac. RG de 19/01/2009 (Relator: Juiz Desembargador Cruz Bucho), in www.dgsi.pt., que “A prova indiciária, circunstancial ou indirecta, devidamente valorada, permite fundamentar uma condenação quando, como refere o artº 192º do CPP Italiano, os indícios são graves, precisos e concordantes.”
O primeiro aspecto que importa salientar, neste particular, é que o arguido AA, presidente de uma IPSS, não era um presidente qualquer ou um presidente à semelhança de tantos outros, mas (situação que não é única, mas não deixa de ser invulgar) um presidente que dirigiu a instituição durante 36 anos!
Em segundo lugar, era um presidente sempre presente. Testemunhas houve que disseram que ele estava lá todos os dias ou quase todos os dias. Ele próprio alega, na contestação, que foi um presidente presente, “um faz tudo”, de dia ou de noite e nunca virou a cara às dificuldades. O actual presidente e seu filho chegou a afirmar que, até 2019, na prática, era apenas o seu pai a trabalhar em prol da Associação, pois os outros membros da Direcção não exerciam as funções para que foram eleitos, ao ponto de chegar a caracterizar a Associação Cultural e Recreativa de ... como a obra de um só homem.
Em terceiro lugar, a Associação Cultural e Recreativa de ... não é propriamente a Santa Casa da Misericórdia, isto é, não é uma IPSS de grandes dimensões, mas a IPSS de uma pequena localidade.
Em quarto lugar, o poder ou influência de AA na instituição era de tal ordem que quando saiu (ao fim de 36 anos), sucedeu-lhe na Presidência um seu filho (PPP), para além de já sabermos que empregava na instituição um outro filho (DD) e que o Vice-Presidente da sua Direcção (UUU) era seu genro, o que confere à Associação Cultural e Recreativa de ..., de certa forma, um cariz ou cunho familiar.
A questão que agora se coloca é a de saber se é crível que um presidente que dirige uma pequena IPSS ao longo de 36 anos e que não só está diariamente presente na vida da instituição, como verdadeiramente é a única pessoa que efectivamente a dirige, possa ignorar a matéria de acusação, que não se cinge nem circunscreve ao recebimento indevido de alguns (poucos) euros, mas ao recebimento indevido de €154 798,63!...
Avancemos um pouco mais.
Relativamente aos presidentes de direcção das instituições particulares de solidariedade social, como é o caso da Associação Cultural e Recreativa de ..., uma das suas principais preocupações é certamente a estabilidade financeira da instituição que gerem ou dirigem, estabilidade que passa, em primeiro lugar e sobretudo, por saber que tipo de apoios financeiros a Segurança Social presta e os montantes desses mesmos apoios.
Deste ponto de vista, avulta, em primeira linha, a comparticipação mensal que a Segurança Social paga por cada um dos utentes.
Receber da Segurança Social, ao longo de cerca de seis anos e oito meses, mais €154 798, 63 não é, obviamente, algo que possa passar despercebido a um Presidente da Direcção de uma IPSS, ainda para mais a um presidente com um profundo conhecimento da vida da instituição, pois foi presidente durante quase quatro décadas, um “faz tudo” como ele se intitula na contestação, um presidente diligente, que se deslocava à instituição todos os dias ou quase todos os dias, como outros disseram.
Repare-se que estamos a falar mensalmente, em média, de quase mais €2 000,00, concretamente de mais €1 934,98 (€154 798,63: 80 meses).
Este tipo de acréscimo poderia passar despercebido numa grande instituição (e, hoje em dia, mesmo aí, já seria difícil), não nas IPSS, que enfrentam constantes dificuldades de tesouraria e, sobretudo, não numa associação cultural e recreativa de uma pequena localidade!...
Os presidentes destas associações debatem-se diariamente com os custos de cada um dos utentes, com as despesas mais diversas, com as dificuldades financeiras mais variadas e com o apoio ou a falta dele por parte da Segurança Social. Eles dominam perfeitamente o binómio custos dos utentes/apoios da Segurança Social, até porque são estes apoios que constituem a sua principal fonte de financiamento.
A reforçar o que temos vindo a dizer, várias testemunhas disseram (e o próprio arguido AA o admite na contestação) que a Associação Cultural e Recreativa de ... atravessava sérias dificuldades financeiras, tendo sido necessário recorrer ao crédito bancário, ao ponto de todos os membros da Direcção prestarem avales pessoais a letras e livranças.
Receber ou não receber da Segurança Social, em média, mais cerca de €2 000,00 mensais não é obviamente um pormenor.
E se o arguido AA sabia perfeitamente o que se passava ( como já demonstrámos que tinha de saber) e não pôs termo à situação é porque foi ele a dar início à mesma, isto é, a decidir pela solicitação de comparticipações indevidas à Segurança Social (note-se que o raciocínio é praticamente silogístico), ainda que, como muito bem salienta a acusação (embora enganando-se quanto ao executor material), em conjugação de esforços com terceira pessoa, pois não é crível que, sendo ele quem era e desempenhando o cargo que desempenhava, lhe coubesse, mês após mês, ao longo de 80 meses, todo o trabalho material.
Doutra perspectiva, nenhum funcionário administrativo (mesmo familiar do Presidente ou, sobretudo, porque familiar do Presidente) toma, à sua revelia, uma decisão deste jaez. Por que razão o faria? Pode participar na mesma, pode até sugeri-la, mas, em última análise, a decisão é e será sempre do Presidente, pois o dito funcionário não tem autonomia para tanto. Pensar o contrário é ingenuidade!
Em suma: a conjugação de todos os meios de prova assinalados com as mais elementares regras de experiência comum e juízos de normalidade, inculca a ideia, pelos motivos abundantemente expostos, que os factos ocorreram da forma como foram dados como provados, não tendo o tribunal a mais pequena dúvida a esse respeito.
Quanto aos antecedentes criminais dos arguidos, os CRCs de fls 637 a 639. Relativamente à situação pessoal, familiar, profissional e económica dos arguidos
AA e BB, as suas declarações, bem como, quanto ao primeiro, as declarações do seu filho PPP, tendo as declarações de OOO (actual Vice-Presidente da Direcção da Associação Cultural e Recreativa de ...) servido para dar como provada a situação económica da instituição.
No que concerne aos restantes factos não provados, cumpre dizer que não se produziu em audiência de julgamento qualquer outra prova que permitisse dar como provados outros factos para além dos que, nessa qualidade, se demonstraram.
***

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

A. Impugnação da matéria de facto.

Os recorrentes começam por se insurgir com a decisão da matéria de facto, por entenderem que a factualidade descrita nos pontos 6 a 19, no que se refere à coautoria e conluio do arguido AA, deve ser dada como não provada e incluída nos factos não provados, por ausência de prova direta ou indireta que a fundamente; levando-se à matéria de facto provada que o arguido é uma pessoa honesta, honrada e considerada por toda a gente, retirando-se, consequentemente, este facto da matéria de facto não provada.
Vejamos.
A matéria de facto pode ser impugnada de duas formas distintas, através da invocação dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que respeita o artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma.
No caso em apreço, da leitura da motivação e conclusões do recurso tudo indica que os recorrentes não pretendem fazer uma impugnação ampla da matéria de facto, alargada à análise do que se pode extrair da prova produzida em audiência.
Aliás, se era essa a sua intenção, não cumpriram o ónus de especificação que lhes é imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, pois que não procedem à identificação das concretas passagens das declarações e/ou depoimentos em que se fundam, o que impede que este tribunal de recurso proceda à reapreciação da prova gravada, tal como essa reapreciação está prevista na lei.
Resta assim a impugnação da matéria de facto por via da arguição dos vícios decisórios do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, já que a argumentação dos recorrentes é toda no sentido de que as premissas do silogismo judiciário não admitem as conclusões que o julgador delas extraiu, no que respeita à coautoria e conluio do arguido AA a que se alude na factualidade descrita nos pontos 6 a 19 dos Factos Provados.
Os vícios que os recorrentes apontam à sentença, como todos os que integram o n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, têm de resultar «do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum», isto é, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos. São «vícios ao nível da lógica jurídica da matéria de facto, da confeção técnica do decidido, apreensíveis a partir do seu texto, a denunciar incoerência interna com os termos da decisão» In acórdão do STJ de 07.12.2005, CJ-STJ, tomo III/2005, p. 224..
A contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão traduz-se numa «incompatibilidade não ultrapassável através da própria decisão, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão» Cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, Editora Rei dos Livros, 8ª ed. Lisboa, 2012, p. 77..
O erro notório, por sua vez, é aquele que consiste numa «falha grosseira e ostensiva na análise da prova» que leva a que «um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta que o tribunal violou as regras da experiência ou que se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das legis artis» Cfr. Simas Santos e Leal Henriques, op. citada, p. 80..
Revertendo novamente ao caso sub judice, da leitura da sentença recorrida, designadamente da parte da motivação factual, verifica-se que o Tribunal a quo começa por enunciar vários factos diretamente resultantes da prova documental e testemunhal produzida, que elenca, como sejam:
- entre o ano de 1983 e dezembro de 2019, ou seja, durante 36 anos consecutivos, o arguido AA foi Presidente da Associação Cultural e Recreativa de ..., que é uma pequena localidade;
- era um presidente sempre presente, «estava lá todos os dias ou quase todos os dias», «de dia ou de noite e nunca virou a cara às dificuldades»; «o atual presidente e seu filho chegou a afirmar que, até 2019, na prática, era apenas o seu pai a trabalhar em prol da Associação, pois os outros membros da Direcção não exerciam as funções para que foram eleitos, ao ponto de chegar a caracterizar a Associação Cultural e Recreativa de ... como a obra de um só homem»;
- entre janeiro de 2013 e agosto de 2019, a Associação Cultural e Recreativa de ... recebeu 154 798,63 € (cento e cinquenta e quatro mil, setecentos e noventa e oito euros e sessenta e três cêntimos) de comparticipações da Segurança Social, a que não tinha direito, por terem sido deliberada e conscientemente solicitadas com o intuito de ludibriar e enganar a Segurança Social;
- o poder ou influência de AA na instituição era de tal ordem que quando saiu (ao fim de 36 anos), sucedeu-lhe na Presidência um seu filho (PPP), para além de empregar na instituição um outro filho (DD) e o Vice-Presidente da sua Direcção (UUU) era seu genro, o que confere à Associação Cultural e Recreativa de ..., de certa forma, um cariz ou cunho familiar.

Em seguida, e com base em tais factos, que funcionam como indícios, através de recurso a juízos de normalidade e probabilidade, em conformidade com regras da experiência comum, o Tribunal a quo afirma um facto desconhecido (o factum probandum), no caso, que o arguido AA, por força das funções que exercia, sabia que a instituição que dirigia estava a ser comparticipada indevidamente pela Segurança Social, tendo sido ele (sozinho ou em comunhão de esforços e intenções com outrem) quem decidiu, com base na prestação de informação falsa, solicitar tais comparticipações ao Instituto da Segurança Social, com o intuito de o enganar.
Isso mesmo é cabalmente explicado no seguinte segmento da motivação:
«A questão que agora se coloca é a de saber se é crível que um presidente que dirige uma pequena IPSS ao longo de 36 anos e que não só está diariamente presente na vida da instituição, como verdadeiramente é a única pessoa que efectivamente a dirige, possa ignorar a matéria de acusação, que não se cinge nem circunscreve ao recebimento indevido de alguns (poucos) euros, mas ao recebimento indevido de €154 798,63!...
Avancemos um pouco mais.

Relativamente aos presidentes de direcção das instituições particulares de solidariedade social, como é o caso da Associação Cultural e Recreativa de ..., uma das suas principais preocupações é certamente a estabilidade financeira da instituição que gerem ou dirigem, estabilidade que passa, em primeiro lugar e sobretudo, por saber que tipo de apoios financeiros a Segurança Social presta e os montantes desses mesmos apoios.
Deste ponto de vista, avulta, em primeira linha, a comparticipação mensal que a Segurança Social paga por cada um dos utentes.
Receber da Segurança Social, ao longo de cerca de seis anos e oito meses, mais €154 798, 63 não é, obviamente, algo que possa passar despercebido a um Presidente da Direcção de uma IPSS, ainda para mais a um presidente com um profundo conhecimento da vida da instituição, pois foi presidente durante quase quatro décadas, um “faz tudo” como ele se intitula na contestação, um presidente diligente, que se deslocava à instituição todos os dias ou quase todos os dias, como outros disseram.
Repare-se que estamos a falar mensalmente, em média, de quase mais €2 000,00, concretamente de mais €1 934,98 (€154 798,63: 80 meses).
Este tipo de acréscimo poderia passar despercebido numa grande instituição (e, hoje em dia, mesmo aí, já seria difícil), não nas IPSS, que enfrentam constantes dificuldades de tesouraria e, sobretudo, não numa associação cultural e recreativa de uma pequena localidade!...
Os presidentes destas associações debatem-se diariamente com os custos de cada um dos utentes, com as despesas mais diversas, com as dificuldades financeiras mais variadas e com o apoio ou a falta dele por parte da Segurança Social. Eles dominam perfeitamente o binómio custos dos utentes/apoios da Segurança Social, até porque são estes apoios que constituem a sua principal fonte de financiamento.
A reforçar o que temos vindo a dizer, várias testemunhas disseram (e o próprio arguido AA o admite na contestação) que a Associação Cultural e Recreativa de ... atravessava sérias dificuldades financeiras, tendo sido necessário recorrer ao crédito bancário, ao ponto de todos os membros da Direcção prestarem avales pessoais a letras e livranças.
Receber ou não receber da Segurança Social, em média, mais cerca de €2 000,00 mensais não é obviamente um pormenor.
E se o arguido AA sabia perfeitamente o que se passava (como já demonstrámos que tinha de saber) e não pôs termo à situação é porque foi ele a dar início à mesma, isto é, a decidir pela solicitação de comparticipações indevidas à Segurança Social (note-se que o raciocínio é praticamente silogístico), ainda que, como muito bem salienta a acusação (embora enganando-se quanto ao executor material), em conjugação de esforços com terceira pessoa, pois não é crível que, sendo ele quem era e desempenhando o cargo que desempenhava, lhe coubesse, mês após mês, ao longo de 80 meses, todo o trabalho material.
Doutra perspectiva, nenhum funcionário administrativo (mesmo familiar do Presidente ou, sobretudo, porque familiar do Presidente) toma, à sua revelia, uma decisão deste jaez. Por que razão o faria? Pode participar na mesma, pode até sugeri-la, mas, em
última análise, a decisão é e será sempre do Presidente, pois o dito funcionário não tem autonomia para tanto. Pensar o contrário é ingenuidade!
Em suma: a conjugação de todos os meios de prova assinalados com as mais elementares regras de experiência comum e juízos de normalidade, inculca a ideia, pelos motivos abundantemente expostos, que os factos ocorreram da forma como foram dados como provados, não tendo o tribunal a mais pequena dúvida a esse respeito.»
O que resulta da explicação acabada de transcrever e é contra isso que, no fundo, os recorrentes tanto se insurgem – mas sem razão – é que o Tribunal se socorreu da chamada prova indireta ou por presunção. Como já se referiu, esta prova também assume indubitavelmente um papel fundamental e virtualidade incriminatória para afastar a presunção de inocência, uma vez que em processo penal são admissíveis todas as provas que não forem proibidas por lei, nos termos do disposto no artigo 125.º do Código de Processo Penal.
E, in casu, todo o circunstancialismo fático decorrente da prova produzida, aliado às mais elementares regras da experiência comum, da normalidade e da lógica, permite a quem quer que seja concluir, como o Tribunal, que verificando-se todas as circunstâncias descritas é porque o arguido AA sabia que a instituição que dirigia estava a ser comparticipada indevidamente pela Segurança Social, tendo sido ele (sozinho ou em comunhão de esforços e intenções com outrem) quem decidiu, com base na prestação de informação falsa, solicitar tais comparticipações ao Instituto da Segurança Social, com o intuito de o enganar.
De tudo assim decorrendo que as objeções feitas no recurso não são suficientes para contradizerem a conclusão lógica que se retira de toda a prova produzida.
Tendo o Tribunal a quo explicitado na motivação as provas e as regras de normalidade e experiência comum em que se baseou. Valorando as provas conjugadamente, estabelecendo correlações entre elas, confrontando-as e tendo sempre presentes as regras da lógica e as máximas da experiência, de forma a conseguir uma decisão responsável, demonstradora de inteligência e conhecimento das realidades da vida, como impõe a lei. Aliás, nesta sede, o que não é legalmente permitido é o que pretende a recorrente, ou seja, que se apreciem as provas isoladamente, sem contextualização e sem recurso a critérios de lógica, pois tal é próprio de um julgador desprovido de cultura jurídica e sem conhecimento da realidade, ou seja, de um julgador que não cumpre o seu papel e profere decisões ao arrepio da sensibilidade e da sagacidade de qualquer cidadão médio, contribuindo para o descrédito da justiça.
Acresce realçar que, contrariamente ao também invocado no recurso, toda a motivação da decisão de facto se encontra primorosamente elaborada no acórdão recorrido, com exteriorização de todo o processo lógico que determinou a convicção, de forma absolutamente percetível e sem hiatos, em cumprimento da exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais e das normas processuais penais que a concretizam.
*
Resta fazer uma alusão à alegada violação do princípio in dubio pro reo, também convocado pelos recorrentes, e cuja demonstração pode afirmar-se pela respetiva notoriedade, aferida pelo texto da decisão, ou seja, em termos idênticos aos que vigoram para os vícios da sentença.
O princípio do in dubio pro reo, postulado do princípio da presunção de inocência – consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa – surge como resposta ao problema da incerteza em processo penal, impondo a absolvição sempre que a prova não permite resolver a dúvida acerca da culpabilidade ou dos concretos contornos da atuação do acusado. Tendo esse non liquet de ser resolvido sempre a favor do arguido, sob pena de preterição do referido princípio da presunção de inocência.
Nesta perspetiva, o princípio do in dubio pro reo constitui um verdadeiro limite normativo ao princípio da livre apreciação da prova, regulando o procedimento do tribunal quando tenha dúvidas sobre a matéria de facto.
No caso dos autos, da leitura da sentença recorrida resulta de forma muito clara que o Tribunal a quo considerou provados os factos (designadamente os que foram impugnados pelo recorrente) para além de qualquer dúvida razoável sobre qualquer deles, sem dúvidas em fixar a sua ocorrência tal como se encontram descritos, que se apresenta perfeitamente plausível segundo as provas produzidas e regras da experiência
Não decorrendo da sentença a existência ou confronto do Tribunal com qualquer dúvida insanável sobre factos, motivo pelo qual não houve nem há dúvida para ser valorada a favor do arguido.
Improcedendo totalmente a impugnação da matéria de facto.
**
B. - Quantum da pena de prisão aplicada ao arguido AA e montante que condiciona a suspensão da sua execução;
- quantum da pena de multa aplicada à arguida Associação Cultural e Recreativa de ... e respetivo quantitativo diário

Sustenta o recorrente AA que a pena que lhe foi aplicada é excessiva e desproporcionada e não valorou verdadeiramente todas as circunstâncias relevantes provadas, designadamente, a conduta anterior e posterior aos fatos, a ausência e antecedentes criminais, a sua idade (87 anos), condições pessoais e económicas; para além de a condição do pagamento de 154 798,63 € a que foi subordinada a suspensão da sua execução violar o disposto no artigo 51º, nº 2 do Código Penal.
Relativamente à arguida sociedade, defende o recurso que a concreta pena de multa que lhe foi aplicada é excessiva e desproporcionada, devendo ser reduzida para 500 dias, ao montante diário de 5,00 €;
Vejamos.
Na sentença recorrida o arguido AA foi condenado pela prática de um crime de burla tributária, previsto e punível pelo artigo 87.º nºs 1 e 3 do Regime Geral das Infrações Tributárias (Lei 15/2001 de 5 de junho, doravante apenas RGIT) na pena de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses de prisão, cuja execução foi suspensa pelo período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses, condicionada ao pagamento ao Instituto da Segurança Social, I.P., dentro desse período, da quantia de 154 798,63 € (cento e cinquenta e quatro mil, setecentos e noventa e oito euros e sessenta e três cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, desde a data da atribuição das comparticipações patrimoniais indevidas por parte do ISS e sobre os respetivos montantes até integral pagamento.
Por sua vez, a arguida Associação Cultural e Recreativa de ... foi condenada, igualmente pela prática de um crime de burla tributária, previsto e punível pelos artigos 7.º e 87.º nºs 1 e 3 do RGIT, na pena de 850 (oitocentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 12,00 € (doze euros).
Ao crime de burla tributária cometido pelos arguidos corresponde a moldura penal abstrata de 2 a 8 anos de prisão para as pessoas singulares, e de 480 a 1920 dias de multa para as pessoas coletivas.
A concretização da pena obedece aos critérios definidos nos artigos 40º, nº 1 e nº 2 e 71º do Código Penal, primorosamente concretizados na sentença recorrida da seguinte forma:
«Ao actuarem como actuaram, os arguidos Associação Cultural e Recreativa de ... e AA representaram os factos que preenchem o tipo de crime de burla tributária e agiram com a intenção de o realizarem. Actuaram, pois, com dolo directo, sendo particularmente intensa a sua vontade criminosa.
Quanto ao grau de ilicitude do facto típico, há a considerar, fundamentalmente, o período de tempo ao longo do qual os arguidos actuaram (quase sete anos) e o prejuízo decorrente da sua actuação, agora a considerar no interior da moldura legal agravada (€154 798,63).
Ainda deste ponto de vista, importa atender ao tipo de interesse ofendido, tendo sido postos em causa valores de solidariedade social. Na verdade, “se o dinheiro é mal distribuído, falta onde é preciso”. Sendo os recursos escassos, ainda para mais num país pobre como o nosso, se se comparticipava indevidamente uma IPSS, outras haveria que não beneficiavam das comparticipações de que necessitavam.
O grau de culpa do arguido AA é bastante elevado, pois ele era nada mais nada menos que o Presidente da Direcção de uma IPSS e, por conseguinte, alguém com responsabilidades acrescidas.
Apesar de tudo, não se provou que tivesse beneficiado em proveito próprio das atribuições patrimoniais efectuadas pela Segurança Social.
De qualquer forma, importa fazer sentir aos arguidos e à sociedade em geral que os seus comportamentos são crimes e não meras irregularidades e que a ilicitude tributária não é uma ilicitude de grau menor.
Aliás, esta necessidade ficou bem patente nas últimas declarações do actual Presidente da Associação Cultural e Recreativa de ..., PPP (filho do arguido AA), quando, depois de alijar responsabilidades, sustentou que o dinheiro atribuído pela Segurança Social foi bem empregue, como se os fins justificassem os meios.
A questão não é, pois, saber se o dinheiro foi ou não bem empregue, até porque é extraordinariamente difícil provar o que quer que seja quanto ao destino final das comparticipações indevidas da Segurança Social, embora se ache no mínimo estranho que, com tanto dinheiro atribuído, a Associação atravessasse sérias dificuldades financeiras.
A questão é que o dinheiro, pura e simplesmente, não deveria ter sido empregue no que quer que fosse, pois nunca deveria ter sido atribuído.
Conforme salienta Germano Marques da Silva, Direito Penal Tributário, Universidade Católica Portuguesa, pág. 63, “A ilicitude tributária não é uma ilicitude de grau menor nem os valores que o sistema tributário prossegue, nomeadamente a repartição dos rendimentos e da riqueza, são ilegítimos, antes são valores constitucionalmente consagrados e conforme aos ditames essenciais da democracia.”
Relativamente à conduta anterior ao facto, importa frisar que nem a Associação Cultural e Recreativa de ... nem o arguido AA têm quaisquer antecedentes criminais, o que é especialmente relevante dada a idade deste último, parecendo que os factos destes autos constituíram actos isolados no contexto de uma vida fiel ao direito.
Tal facto permite a formulação de um juízo de prognose favorável quanto à sensibilidade dos arguidos às penas e susceptibilidade de por elas serem influenciados na sua prestação futura, com inevitáveis consequências mitigadoras em sede de prevenção especial.
Por outro lado, o arguido AA encontra-se familiar e socialmente inserido.
Quanto à Associação Cultural e Recreativa de ..., é conhecida pela relevância dos serviços que presta à sociedade.
No que concerne ao comportamento posterior ao facto, importa sublinhar que não foi reparado o dano causado, nem sequer parcialmente.
Também não é possível valorar qualquer confissão relevante e, por conseguinte, muito menos qualquer arrependimento.
Há, ainda, que ter em conta as fortes exigências de prevenção geral que se fazem sentir neste domínio no nosso país e o sentimento de impunidade que se vem gerando. Na verdade, as burlas à Segurança Social conheceram um incremento preocupante.
Doutra perspectiva, a criminalidade tributária carece, cada vez mais, de ser combatida de forma eficaz e sem qualquer espécie de tibiezas, tanto mais que o seu impacto na consciência jurídica comunitária é cada vez maior dados os danos que lhe estão associados.
Note-se, de resto, que a actuação ilícita dos arguidos só cessou na sequência de uma inspecção da Segurança Social.
Ora, as comparticipações financeiras efectuadas pela Segurança Social são um instrumento de justiça social e de diminuição das desigualdades sócio-económicas. Ludibriar ou enganar a Segurança Social não é comportamento digno de aplauso, mas sim a infracção a um dever fundamental de cidadania.
Por último, importa atender ao tempo já decorrido desde a data dos factos (mais de três anos).»
Perante todo este circunstancialismo, confrontando-o com as medidas das penas que habitualmente são aplicadas nos tribunais nestas situações, não pode deixar de se concluir pela adequação das penas aplicadas, ambas inclusive muito próximo dos respetivos mínimos legais; que no caso do arguido AA apenas excede em 10 meses (numa moldura que vai de 2 a 8 anos de prisão); e no caso da arguida Associação Cultural e Recreativa de ... apenas excede em 370 dias (numa moldura que vai de 480 a 1920 dias).
Quanto à fixação em 12,00 € do quantitativo diário da pena de multa a pagar pela Associação Cultural e Recreativa de ..., mostra-se igualmente equilibrado, pelas razões constantes da sentença recorrida, que sufragamos, e por isso aqui reproduzimos:
«Dispõe o nº 1 do artº 15º do RGIT que “Cada dia de multa corresponde a uma quantia entre 1 euro e 500 euros, tratando-se de pessoas singulares e entre 5 euros e 5000 euros, tratando-se de pessoas colectivas ou entidades equiparadas, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos.”
A Associação Cultural e Recreativa de ... tem, actualmente, as suas contas equilibradas. Está a pagar diversos empréstimos. Tem os seguintes utentes nas suas diversas valências: cerca de 56 utentes na Creche; cerca de 30 utentes no Lar; cerca de 15 utentes no Centro de Dia e cerca de 15 a 20 utentes no Serviço de Apoio Domiciliário. Funciona em instalações próprias. As suas receitas reportam-se exclusivamente aos apoios sociais da Segurança Social, aos pagamentos efectuados pelos utentes e a donativos.»
*
A pena de dois anos e dez meses de prisão aplicada ao arguido AA foi suspensa na sua execução pelo período de dois anos e seis meses, restando agora apreciar a questão de saber se essa suspensão tem de ser condicionada ao pagamento de algum montante.
A esse propósito dispõe o artigo 14.º, n.º 1 do RGIT que:
«A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa».
Contudo e contrariamente ao que à primeira vista poderia parecer, o Supremo Tribunal de Justiça, através do acórdão n.º 8/2012, de 24.10, já fixou jurisprudência no sentido de que «[n]o processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia».
Jurisprudência esta que obviamente se estende a todos os crimes fiscais, precisamente por a todos eles ser aplicável o citado artigo 14.º do RGIT.
No seguimento do que perfilhamos o entendimento jurisprudencial de que a interpretação deste preceito tem de ser conjugada com o disposto no artigo 51.º, n.º 2 do Código Penal; no sentido de que nos crimes tributários, assim como sucede relativamente a todos os outros, a subordinação da suspensão da execução da pena ao dever de pagamento só poderá acontecer quando do juízo de prognose realizado resulte existirem condições para o cumprimento dessa condição. Se esse juízo levar à conclusão de que o arguido não tem qualquer possibilidade de, no prazo estabelecido legalmente, cumprir o dever que lhe é imposto, por não ter nem ter expetativas de vir a ter meios financeiros que o permitam, a subordinação da suspensão da execução da pena à condição de pagamento consubstanciaria obrigação cujo cumprimento não seria razoavelmente de exigir. Contrariando a sua imposição o disposto no artigo 51.º, n.º 2 do Código Penal, que prescreve que «os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir».
Como se escreveu no acórdão do TRL de 18.02.2016, proferido no processo 949/14...., citado e seguido, entre outros Cf. Acórdão do TRP de 20.04.2016, proferido no processo n.º 21/14.6IDAVR.P1 e o Acórdão de 10.10.2016, desta Relação de Guimarães, proferido no processo nº 614/09.3IDBRG.G1, disponíveis em www.dgsi.pt., também pelo acórdão deste TRG de 25.02.2019, proferido no processo n.º 64/15...., relatado por Cândida Martinho Ambos disponíveis em www.dgsi.pt., o qual igualmente subscrevemos, «I - O acórdão de fixação de jurisprudência n.º 8/2012 do Supremo Tribunal de Justiça, tal como o artigo 14.º do Regime Geral das Infrações Tributárias, não afastam a aplicabilidade do artigo 51.º, n.º 2 do Código Penal, o qual materializa a proteção constitucional da dignidade da pessoa humana, como se alcança do artigo 1º da Constituição da República Portuguesa.
II - O que tal AUJ obriga é que se faça, em sede de decisão, um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia, isto é, o julgador tem de aquilatar se o condenado está em condições de proceder ao pagamento da prestação tributária, durante o período da suspensão de execução da pena, e, estando, condicionar tal suspensão a esse pagamento. O acórdão não obriga, nem poderia obrigar, sob pena de violação do princípio da igualdade, a que, não tendo o condenado condições para pagar a prestação tributária, mas reunindo os demais requisitos para a suspensão de execução da pena, a mesma não seja suspensa. Seria uma verdadeira “prisão por dívidas ao Estado”.»
Retomando novamente o caso em apreço, a formulação do juízo de prognose acerca das possibilidades da recorrente proceder ao pagamento da condição passam pela consideração do montante da dívida em causa, num total de 154 798,63 € (cento e cinquenta e quatro mil, setecentos e noventa e oito euros e sessenta e três cêntimos); pela ponderação dos seus rendimentos mensais, correspondentes à reforma de 1 000,00 €, a que acrescem rendas de duas casas antigas de que é proprietário, no valor global de 290,00 € por mês; das despesas decorrentes do quotidiano, que serão as consideradas adequadas para um homem, que vive apenas com a esposa, em casa própria.
Neste quadro fático, tendo o arguido já 86 anos de idade, não há quaisquer expetativas objetivas de que venha a ter meios financeiros que lhe permitam, ao longo do período de dois anos e seis meses de suspensão da execução da pena, pagar a totalidade dos 154 798,63 € correspondentes à vantagem patrimonial obtida com os factos.
Pelo que se mostra adequada a redução para 10 000,00 € (dez mil euros) da concreta condição de pagamento mediante a qual o Tribunal a quo subordinou a suspensão da execução da pena.
É claro que o cumprimento da referida condição nunca será conseguido sem um esforço adicional e até algum sacrifício do recorrente, mas é também isso mesmo que se pretende com a imposição daquela condição, pois sem esse esforço e sacrifício nunca haverá verdadeira responsabilização do condenado e, sem ela, falecem as finalidades punitivas da sanção.
Mas é uma condição possível de ser cumprida.
Neste ponto se alterando o acórdão recorrido em conformidade.
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C. Condenação cível do arguido/demandado AA.

Por último, alega o recorrente AA que o pedido civil contra si deduzido deve soçobrar, por não se ter provado que se apropriou de qualquer quantia.
Nos termos do disposto no artigo 71º do Código de Processo Penal, que estabelece o princípio da adesão, o pedido de indemnização civil a deduzir no processo penal tem que ser sempre fundamentado na prática de um crime, ou seja, tem necessariamente de ter na sua base uma conduta criminosa.
Assim, nesta sede, a sentença recorrida, e bem, embora considerando que a origem da obrigação de indemnizar foi a prática de um crime de burla tributária, recorreu às normas do direito civil para estabelecer a sua génese e contornos, como impõe o artigo 129º do Código Penal, nos termos do qual “a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil”. Na sequência do que considerou verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, do artigo 483º do Código Civil, designadamente o facto, a ilicitude, a culpa, o dano, e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Revisitando os factos provados, o que deles decorre inequivocamente é que foi a conduta do arguido, a prestar intencionalmente informação falsa ao Instituto da Segurança Social, com o intuito de o enganar, que foi a causa direta e necessária do prejuízo patrimonial daquele mesmo Instituto, no valor global de 154 798,63 € (cento e cinquenta e quatro mil, setecentos e noventa e oito euros e sessenta e três cêntimos), referente ao pagamento de comparticipações indevidas à Associação Cultural e Recreativa de ....
Foi a conduta ilícita e dolosa do arguido a causa direta e necessária do dano sofrido pelo Instituto da Segurança Social, preenchendo assim todos os requisitos da responsabilidade civil por factos ilícitos, que dá origem à obrigação de indemnização do lesado, a que aludem os artigos 562º e segs. do Código Civil.
Sendo para tal indiferente a existência de benefício económico de quem quer que seja e, a existir, como sucede no caso em apreço, quem foi a pessoa do beneficiário.
Nenhuma censura merecendo este ponto da decisão recorrida.
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III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta secção do Tribunal da Relação de Guimarães, em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelos arguidos Associação Cultural e Recreativa de ... e AA e, em consequência:
- Reduzir para (pelo menos) 10 000,00 € (dez mil euros) o montante da condição de pagamento ao Instituto da Segurança Social, I.P à qual fica subordinada a suspensão da execução da pena em que foi condenado o arguido AA.
Em tudo o demais se mantendo a sentença recorrida.
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Guimarães, 17 de abril de 2023
(Revisto pela relatora)

Fátima Furtado (Relatora)
Armando Azevedo (vencido conforme declaração infra) (1º Adjunto)
Cândida Martinho (2ª Adjunta)

Declaração de voto:

Confirmaria integralmente a sentença recorrida, pelo que manteria a suspensão da execução da pena de 2 anos e 10 meses de prisão, condicionada ao pagamento das quantias em dívida e acréscimos legais, sem qualquer redução nos respetivos valores, em conformidade com o disposto no artigo 14º, nº 1 do RGIT. Isto porque julgo ser de seguir o entendimento perfilhado pela orientação jurisprudencial de sentido oposto à que fez vencimento, da qual são representativos, entre outros, o Ac. RG de 23.06.2005, processo 867/05-1; Ac. RP de 11.09.2019, processo 20/148IDAVR.P1; Ac. RL de 05.06.2018, processo 3912/12.5T3SNT.L1-5; Ac. RC de 19.05.2021, processo 30/19.9IDVIS-C1; e Ac. RE de 24.05.2022, processo 59/19.7T9SSB.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

Armando Azevedo