Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
138/10.6TATMC.G1
Relator: FERNANDO MONTERROSO
Descritores: DENÚNCIA CALUNIOSA
REQUERIMENTO
ABERTURA DE INSTRUÇÃO
OMISSÃO
FACTOS
INADMISSIBILIDADE
INSTRUÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/26/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE
Sumário: «I) Uma acusação por denúncia caluniosa tem de narrar factos que, para além de identificao autor, indiquem o dia, o local e perante quem a denúncia foi feita. Deve, também, indicar os exactos termos do que falsamente se imputou ao denunciado, para além, dos elementos subjectivos do crime.
II) No caso em apreço, uma vez que a assistente requereu a abertura de instrução, sem descrever no respectivo RAI, os mencionados elementos objectivos do tipo de ilícito, impõe-se decidir pela inadmissibilidade desta fase processual».
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
No Processo 138/10.6TATMC do extinto Tribunal Judicial de Torre de Moncorvo foi proferido despacho de não pronúncia da arguida Maria s., como autora de um crime de denúncia caluniosa p. e p. pelo art. 365 do Cod. Penal, por o processo não conter indícios suficientes da prática de tal crime.
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Deste despacho interpôs recurso a assistente Antónia C., suscitando as seguintes questões:
- a decisão recorrida é nula por não especificar os factos indiciados e os não indiciados; e
- subsidiariamente, os autos contêm indícios suficientes para a pronúncia da arguida.
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Respondendo a arguida Maria Susana e a magistrada do MP junto do tribunal recorrido defenderam a improcedência do recurso.
Nesta instância a sr. procurador-geral adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
Observou-se o disposto no art. 417 nº 2 do CPP.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
Como se referiu no relatório deste acórdão, o recurso vem interposto, pela assistente Antónia C., da decisão instrutória que decidiu não pronunciar a arguida Maria s., como autora de um crime de denúncia caluniosa, por o processo não conter indícios suficientes da prática de tal crime.
Porém, suscita-se uma questão prévia à decisão sobre as questões suscitadas no recurso.
Consiste tal questão em saber se a abertura da instrução era legalmente admissível, em face dos termos em que foi formulado o requerimento da assistente.
A questão, aliás, já foi suscitada nos autos pela arguida Maria S., após o despacho que declarou aberta a instrução. Alegou ela que o requerimento para a abertura de instrução é “omisso quanto à narração de factos (circunstâncias de tempo, modo, lugar, descrição da conduta), não apresentando o verdadeiro formato de uma acusação” – v. fls. 149. Na ocasião a magistrada do MP junto do tribunal recorrido pronunciou-se pela inadmissibilidade legal da instrução (fls. 168) a solução da questão não está coberta pelo caso julgado formado pela decisão da Relação do Porto proferida nestes autos (fls. 224), pois nesta apenas se decidiu que a arguida não tinha “legitimidade” para recorrer do despacho que admitiu a instrução.
Vejamos então:
Tem sido jurisprudência constante que o requerimento do assistente para a abertura da instrução tem de configurar substancialmente uma acusação, com a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e a indicação das disposições legais aplicáveis. Di-lo desde logo o art. 287 nº 2 do CPP, ao remeter para o art. 283 nº 3 als. b) e c) do mesmo código, onde se comina com nulidade a falta de cumprimento de qualquer destes ónus. Efetivamente, o requerimento para a abertura da instrução, apresentado pelo assistente quando o MP arquiva o inquérito, fixa o objeto do processo, traçando os limites dentro dos quais se há-de desenvolver a atividade investigatória e cognitória do juiz de instrução. Isso resulta dos arts. 303 nº 3 e 309 nº 1 do CPP, onde se proíbe a pronúncia do arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos no requerimento do assistente para a abertura da instrução. Trata-se de uma decorrência do princípio do acusatório que, nos termos do art. 32 nº 5 da Constituição, estrutura o processo penal.
Na realidade diz o art. 287 nº 2 do CPP:
O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação (…), sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no art. 283 nº 3, als. b) e c)”.
Ou seja, o requerimento para a abertura da instrução, formulado pelo assistente, tem duas partes:
Uma, sem formalidades especiais, em que são expostas as razões de discordância relativamente à decisão de não acusar.
A outra, em que, sob pena de nulidade, têm de ser observados os requisitos das als. b) e c) do nº 3 do art. 283 do CPP. Sem esta segunda parte não é possível respeitar o princípio do acusatório, o qual, como se disse tem consagração constitucional.
Quando o requerimento do assistente para a abertura da instrução não contém uma acusação, nomeadamente por não narrar factos que integrem um crime, não pode haver legalmente pronúncia. Por outras palavras, é “legalmente inadmissível”.
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Pois bem, o requerimento do assistente para a abertura de instrução limita-se a discordar das razões do arquivamento pelo MP indicando as razões da discordância.
Em nenhum passagem, como mais abaixo se demonstrará, existe a intenção de «acusar».
É certo que o requerimento também refere alguns factos, como não podia deixar de ser, já que analisa e se debruça sobre comportamentos.
Porém, de forma nenhuma «narra» factos nos termos impostos pelo art. 283 nº 3 al. c) do CPP. «Narrar» significa “relatar”, “contar”, “historiar” - Dicionário da Porto Editora, 3ª ed.. Relatar ou contar factos implica a sua enumeração, um a um, numa sequência que vá desde o seu início temporal até ao fim. Não «narra» factos quem intermeia os que vai referindo com juízos e considerações sobre a prova e o direito aplicável.
Concretizando, o caso em apreço:
Uma acusação por denúncia caluniosa tem de narrar factos que, para além de identificarem o autor, indiquem o dia, o local e perante quem a denúncia foi feita; e também, naturalmente, os exatos termos do que falsamente se imputou ao denunciado. Isto para além dos factos que integram os chamados elementos subjetivos do crime.
Ora, o requerimento para a abertura de instrução da assistente Antónia C. é totalmente omisso quanto aos mencionados elementos objetivos do tipo de crime.
Lendo-se o requerimento para a abertura de instrução da assistente, como peça autónoma, sem se consultar o resto do processo, fica-se sem se saber, sequer, de que se queixa a assistente. Há frases desgarradas “são materialmente impossíveis os factos imputados à assistente, porque ela nunca entrou no convento propriedade da assistente” (quais foram os “factos imputados”?). “A denunciada inventou os factos relatados”.
É certo que, como já se referiu, ao longo das considerações feitas no RAI, vão sendo referidos «factos», como não podia deixar de ser, pois opina-se sobre comportamentos humanos. Mas não podem subsistir dúvidas de que o requerente não pretendeu deduzir uma acusação com os requisitos acima indicados.
O juiz de instrução não tem a missão de tentar «salvar» os requerimentos imperfeitos e insuficientes, respigando uma palavra aqui, um segmento de frase mais à frente, eventualmente aproveitando também o conteúdo da queixa, para, contextualizando tudo, compor uma acusação que não lhe compete formular. Na realidade, a sua função não é “acusar”, mas apenas a de “comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento” (art. 286 nº 1 do CPP). Tendo o MP decidido arquivar o inquérito o juiz de instrução “comprova” a acusação do assistente.
Por regra, o Código de Processo Penal não indica os requisitos formais das peças do processo.
Porém, em alguns casos impõe formas ou técnicas específicas de as elaborar. É o que acontece com a acusação (art. 283 nº 3), o requerimento para a abertura de instrução formulado pelo assistente (última parte do art. 287 nº 2), a sentença (art. 374), ou as conclusões do recurso (art. 412 nº 2). Não por acaso, em todos estes casos, o não cumprimento da forma especialmente determinada tem efeitos devastadores: a nulidade para as três primeiras peças (cfr. art. 379 nº 1 al. a), quanto à sentença) e a rejeição do recurso, para a última.
Vejamos o caso da sentença. Em tese, nada obstaria a que o juiz, ao elaborá-la, fizesse como fez a recorrente no requerimento para a abertura de instrução. Se limitasse ao exame da prova, analisando-a criticamente e enquadrando-a no Direito aplicável, de forma a que, a final, contextualizando o seu pensamento e o que ficou implícito e subentendido, fosse possível perceber quais os factos que considerava «provados» e «não provados». Mas isso não salvaria a sentença de ser declarada nula (o que se afigura pacífico), porque o art. 374 nº 2 manda que sejam enumerados os factos «provados» e «não provados», sem recurso a contextos ou subentendidos.
Nesta parte, nenhuma diferença existe entre a sentença, a acusação ou o requerimento para a abertura de instrução formulado pelo assistente quanto à necessidade de fixar os factos.
Estas exigências não são fruto de um capricho. Nem as nulidades cominadas são manifestações de um imoderado gosto do legislador pelo formalismo processual sem substância. Em todos os casos apontados, a «narração» ou «enumeração» de factos, para além de razões que se prendem com a boa disciplina processual, é exigida pela necessidade de serem observados valores essenciais no processo penal, como a delimitação inequívoca do objeto do processo penal ou a definição da extensão do caso julgado.
A decisão sobre a inadmissibilidade da instrução, nos termos em que foi requerida pela assistente, prejudica o conhecimento das questões suscitadas no recurso.
O recurso improcede.
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DECISÃO
Os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães julgam improcedente o recurso interposto pela assistente Antónia C..
A recorrente pagará 3 UCs de taxa de justiça.