Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
59/08.2IDVRL-C.G1
Relator: FÁTIMA FURTADO
Descritores: PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
EXECUÇÃO DA PENA
AUTORIZAÇÃO AUSÊNCIAS
COMPETÊNCIA DO TEP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: DESPACHO RECORRIDO NULO
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) A execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação (prevista no artigo 44.º do Código Penal), designadamente a apreciação do requerimento do condenado para autorização de ausências, é da competência material do Tribunal de Execução das Penas.

II) A violação das regras da competência material configura nulidade insanável, que deve ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento, nos termos do artigo 119.º, al. e) do Código de Processo Penal.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.
(Secção penal)

Relatora: Fátima Furtado; adjunta: Maria José Matos.

I. RELATÓRIO

No processo comum coletivo n.º 59/08.2IDVRL, do Juízo de Competência Genérica de Peso da Régua, Juiz 2, da comarca de Vila Real, foi indeferido o requerimento formulado pelo arguido Manuel, com os demais sinais dos autos, para se ausentar do domicílio (onde se encontra a cumprir pena de um ano de prisão, em regime de permanência na habitação) para prestar trabalho, por despacho de 26 de junho de 2018, com o seguinte teor:

«I. A fls. 1074 e ss. dos autos vem o arguido requerer autorização para ausência do domicilio para prestar trabalho com empregado de mesa no estabelecimento comercial denominado “restaurante A”, explorado por sua mãe, de segunda-feira a domingo, das 10h às 15h e das 19h às 22h.
O Ministério Público opôs-se ao requerido.

Foram juntos os seguintes elementos aos autos:

- Certidão permanente de registo comercial da firma “Maria, unipessoal, Lda.”
- Certidão Permanente de Registo Comercial da Sociedade “Líder W. Lda.”
- Certidão dos autos de Inquérito registados sob o n.º 6/17.0FAPRT
- Certidão do PA com o n.º 203/18.1 T9PRG.

Foram recolhidas informações junto da entidade exploradora do estabelecimento em causa e junto da equipa de vigilância electrónica.

II.

Face aos elementos supra elencados, damos como assentes os seguintes factos que nos permitem chegar a uma decisão:

1. “Maria, Unipessoal, Lda.” é gerida por Maria, mãe do arguido.
2. “Líder W. Lda.” é gerida por Manuel, sendo sócios da mesma Manuel e Maria, mãe do arguido.
3. A sociedade referida em 2. tem a sua sede na Rua (...), em Santa Marta de Penaguião.
4. O Restaurante A, onde o arguido pretende trabalhar, situa-se na Rua das (...), em Santa Marta de Penaguião.
5. O Restaurante A, sito na Rua das (...), Santa Marta de Penaguião possui Alvará de Licença de Utilização n.º (...), emitido em 1983, pela CM, em nome de Líder W, Lda.
6. Nos presentes autos o arguido foi condenado pela prática do crime de Fraude Fiscal Qualificada.

III.

Cumpre decidir.

A natureza de pena de substituição do Regime de permanência na habitação, prevista no artigo 44.º do Código Penal, afigura-se-nos relativamente pacífica.

Neste sentido refere Paulo Pinto de Albuquerque «… o regime de permanência na habitação é uma verdadeira pena de substituição da pena de prisão (ver expressamente neste sentido a exposição de motivos da proposta de lei n.º 98/X, que esteve na base da Lei n.º 59/2007). Não se trata, pois, de um mero regime de cumprimento da pena de prisão, que possa ser aplicado em momento posterior ao da condenação. A configuração da permanência na habitação como uma verdadeira pena de substituição é rica em consequências substantivas e processuais» - [cf. Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2008, pág. 182].

Também, Germano Marques da Silva não deixa de incluir o Regime de permanência na habitação no âmbito das penas de substituição aplicáveis às pessoas singulares, designando-a, tal como, entre outras, a prisão por dias livres e o regime de semidetenção, de «Pena substitutiva na execução da pena» - [cf. “Direito Penal Português”, Parte Geral, III, Verbo, 2008, págs. 90/91].

Na mesma linha, distinguindo, embora, penas de substituição em sentido próprio e impróprio, pronuncia-se António João Latas quando a propósito escreve:

«Trata-se de uma pena de substituição em sentido amplo ou impróprio, uma vez que é decidida pelo tribunal de julgamento no momento da condenação e pressupõe a não substituição da prisão previamente determinada por pena de substituição em sentido próprio, que se traduz numa forma de cumprimento ou execução da pena privativa da liberdade (tal como a Prisão por dias livres e o Regime de semidetenção), cujo carácter alternativo à prisão tout court reside precisamente em ter lugar em meio não prisional, evitando-se o efeito criminógeno e outros factores de dessocialização do arguido inerentes ao cumprimento de pena em meio prisional» - [cf. “A Reforma do Sistema Penal de 2007, Garantias e Eficácia; O novo quadro sancionatório das pessoas singulares», Justiça XXI, Coimbra Editora, págs. 106/107].

Tal como a Prisão por dias livres [artigo 45.º do CP] e o Regime de semidetenção [artigo 46º do CP], pressuposto material do Regime de Permanência na habitação é o da sua adequação às finalidades da punição, aspecto que, no caso, não surge controvertido.

Mostrando-se subjacente a todas estas penas de substituição a vontade do legislador em eliminar [artigo 44.º] ou, não sendo possível, reduzir ao mínimo os casos de cumprimento da pena curta de prisão em meio prisional de forma contínua [artigos 45º e 46º], procurando, assim, evitar o efeito criminógeno da prisão, o facto é que se distinguem no seu modo de execução, revelando-se incontroversa a maior adequação de umas relativamente a outras na prossecução de determinados objectivos, avaliação que, dada a identificada natureza de penas de substituição, terá de ter lugar na própria sentença.

Com efeito, no que respeita ao desempenho profissional o legislador é claro quando reportando-se ao Regime de semidetenção diz consistir o mesmo «numa privação da liberdade que permita ao condenado prosseguir a sua actividade profissional normal, a sua formação profissional ou os seus estudos, por força de saídas estritamente limitadas ao cumprimento das suas obrigações», apresentando-se-nos, também, inequívoca a compatibilidade [em princípio] da Prisão por dias livres com o exercício de uma eventual actividade profissional.

Pretende o condenado que o Regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, se desenvolva de modo a permitir ausentar-se da sua habitação por um período diário correspondente ao seu horário normal de trabalho – no caso de segunda-feira a domingo entre as 10h e as 15h, e entre as 19h e as 22h.

Ou seja, o regime preconizado pelo condenado redundaria no Regime de semidetenção, com a diferença, não desprezível, de para além do horário de trabalho, ir pernoitar a casa, em vez de recolher ao estabelecimento prisional.

Constituiria, pois, uma terceira via, traduzindo uma simbiose com o que de melhor cada uma das outras oferece, podendo mesmo descaracterizar a identidade da pena de substituição que lhe foi aplicada ou comprometer as finalidades da punição enveredar ab initio - à margem do dito regime de progressividade - por semelhante solução, que sempre representaria um salto no escuro num momento em que não se mostrava o tribunal munido de todos os elementos necessários à avaliação, desde logo, da autenticidade dos dados, agora, convocados, não estando, naturalmente, por ocasião da sentença, em condições de enveredar por outra flexibilização.

Vozes na doutrina têm-se pronunciado no sentido da flexibilização do regime em causa, escrevendo neste contexto Germano Marques da Silva «O regime de permanência na habitação é um regime flexível, podendo o juiz ao determinar o regime estabelecer que a obrigação de permanência se faça apenas em períodos limitados do dia para permitir ao condenado o exercício de profissão, de frequência escolar, cumprimento de preceitos religiosos, etc.», concretizando, em nota, o autor «O juiz deve ter em atenção que a obrigação de permanência na habitação representa para o condenado uma permanente tensão, um desafio para não violar a obrigação (…). Por isso que enquanto Presidente da Comissão de Acompanhamento do Sistema de Vigilância Electrónica sempre recomendámos aos Serviços do IRS que propusessem ao juiz regimes com alguma flexibilidade para evitar o mais possível a desinserção social do condenado, mas também para facilitar o cumprimento da pena. A experiência alheia mostra que a obrigação de permanência na habitação cumpre melhor as suas finalidades quando tem alguma flexibilidade …» - [cf. ob. cit., pág. 92]. Flexibilização a que, embora em termos que transparecem bem mais mitigados, não deixa de aludir Paulo Pinto de Albuquerque quando refere «O tribunal de julgamento pode, em casos especialmente justificados, permitir saídas da habitação desde que a sua periodicidade e duração sejam compatíveis com as finalidades preventivas, nos termos do artigo 3.º, n.º 2, da Lei n.º 122/99, de 20.8, por força do artigo 9.º da Lei n.º 59/2007, de 4.9. Por exemplo, são justificadas as saídas para assistência médica indispensável ou para cumprimento inadiável de obrigações processuais. Portanto, o regime de saídas há-de necessariamente ser mais apertado do que aquele que seria aplicável antes do trânsito em julgado da condenação, pois com esta desaparece a presunção de inocência» - [cf. ob. cit., pág. 183].

Sobre a questão pronunciou-se o acórdão do TRP de 17.(...).2010, proferido no proc. n.º 42/06.2TAOVR-C.P1 [invocado pelo condenado], do qual se respiga: «… não vislumbramos incompatibilidade alguma entre o conteúdo e a natureza da pena de permanência na habitação e as saídas para o exercício pelo condenado de actividade laboral, desde que a sua periodicidade e duração se mostrem compatíveis com as finalidades de prevenção que lhe estão subjacentes e tendo em atenção o consignado no artigo 3º, n.º 2, da Lei n.º 122/99, de 20/08.

Certo é que no artigo 46º, do CP (regime de semidetenção) se consagrou expressamente que o regime «consiste numa privação da liberdade que permita ao condenado prosseguir a sua actividade profissional normal, a sua formação profissional ou os seus estudos, por força de saídas estritamente limitadas ao cumprimento das suas obrigações» e no regime de permanência na habitação não se faz referência alguma a estes objectivos e saídas com vista a atingir este escopo.

Contudo, da inexistência dessa consagração expressa não resulta, em nosso entender, que a lei pretenda afastar, à partida, que o condenado no regime de permanência na habitação prossiga a sua actividade profissional, a sua formação profissional ou os seus estudos (salvaguardando sempre a compatibilidade com as finalidades de prevenção), sendo que apenas se impõe como necessária essa consagração no regime de semidetenção por se tratar ainda de um cumprimento de prisão intramuros, uma privação da liberdade com recurso ao sistema prisional, com efectivo ingresso num estabelecimento prisional», revogando, assim, o despacho recorrido, autorizando o ali arguido, que havia sido condenado na pena de substituição de permanência na habitação, «a ausentar-se da sua habitação para prestar trabalho dois dias por semana para a …, no horário laboral das 08.00horas às 18.00horas, nas instalações da empresa sitas …».

Não se sufragando integralmente os fundamentos – muito respeitáveis, embora - explanados no citado aresto, afigura-se-nos que o Regime de permanência na habitação não pode ser objecto de um regime de flexibilização que o descaracterize de tal forma que o mesmo passe a ser confundido com o regime de semidetenção, com a particularidade de em momento algum o condenado ter contacto com o Estabelecimento prisional, dando, assim, origem a um tertium genus, que não encontra arrimo nas penas de substituição.

Além disso, não podemos olvidar que o arguido é condenado nestes autos pela prática do crime de Fraude Fiscal qualificada, e que a promiscuidade existente entre a “Maria, Unipessoal, Lda.” e a “Líder W. Lda.”, geridas, uma pelo condenado e outra por sua mãe, nos levantam questões de duvidosa legalidade – designadamente fiscal.

Por outro lado, vista a descrição das actividades que o arguido se propõe a desempenhar, constantes de fls. 1137/1138, constatamos que as mesmas compõem funções que se prendem com a gerência de facto do estabelecimento – facturação, e reposição de stocks.

Ora, consideramos que o exercício de funções num estabelecimento que foi gerido por si e agora é gerido por sua mãe põe em causa as razões de prevenção geral que se fazem sentir, as razões de prevenção especial e as finalidades da pena em que o arguido foi condenado nestes autos.
Por tudo o exposto, indefiro o requerido.
Notifique.»
*
Inconformado, o arguido interpôs recurso, apresentando a competente motivação que remata com as seguintes conclusões:

«1) O recurso é de direito.
2) O arguido encontra-se a cumprir pena de prisão de um ano em regime de permanência na habitação, com fiscalização pelos meios técnicos de controlo à distância cf. -Sentença com a referência 31888742, de 05.02.2018.
3) Ao abrigo do artigo 43° do Código Penal, o arguido requereu autorização para se ausentar do seu domicílio para prestar trabalho na firma “Maria, Unipessoal Lda.”, que se dedica à exploração de café e restauração e é gerido pela sua mãe, denominado “Restaurante A”, situado na Rua das (...), em Santa Marta de Penaguião, de segunda-feira a domingo, das 10 às 15 horas (serviço de almoço) e das 19 às 22 horas (serviço de jantar), regressando à sua residência após o cumprimento desses horários, com os fundamentos expostos a fls. 1074 e seguintes — cf. requerimento com a referência 29098022, de 10.05.2018.
4) O Tribunal a quo indeferiu a pretensão do arguido, por entender que “…o regime de permanência na habitação não pode ser objeto de um regime desflexibilização que o descaraterize de tal forma que o mesmo passe a ser confundido com o regime de semidetenção, com a particularidade de em momento algum o condenado ter contacto com o Estabelecimento prisional, dando, assim, origem a um tertium genus, que não encontra arrimo nas penas de substituição.

Além disso, não podemos olvidar que o arguido é condenado nestes autos pela prática do crime de Fraude fiscal qualificada, e que a promiscuidade existente entre a “Maria, Unipessoal, Lda.” e a “Líder Aromas. Lda." geridas, uma pelo condenado e outra por sua mãe, nos levantam questões de duvidosa legalidade — designadamente fiscal.

Por outro lado, vista a descrição das actividades que o arguido se propõe desempenhar, constantes de fis. 1137/1138, constatamos que as mesmas compõem funções que se prendem com a gerência de facto do estabelecimento —facturação, e reposição de stocks. Ora, consideramos que o exercício defunções num estabelecimento que foi gerido por si e agora é gerido por sua mãe põe em causa as razões de prevenção geral que se fazem sentir, as razões te prevenção especial e as finalidades da pena em que o arguido foi condenado nestes autos” — cf. Despacho com a referência 32369605, datado de 26.06.2018. Posto isto,
5) O Tribunal a quo procedeu a uma incorreta interpretação e aplicação do atual artigo 43.° do Código Penal.
6) As alterações introduzidas pela Lei nº 94/2017, de 23.08, aboliram a prisão por dias livres e o regime da semidetenção, e ampliaram o campo de aplicação do regime de permanência na habitação.
7) O regime de permanência na habitação passou a constituir não só uma pena de substituição em sentido impróprio, mas também uma forma de execução ou de cumprimento da pena de prisão.
8) Deixou de se limitar à mera descaraterização do condenado, ao seu confinamento à habitação e à sua vigilância através de tecnologias de controlo à distância, mas visa sobretudo a prossecução, de um modo próprio, das finalidades cometidas às penas, designadamente a finalidade ressocializadora, conforme expressou posteriormente, e bem, o mesmo Tribunal a quo no âmbito deste processo — cf. Despacho com a referência 32468291, de 25.07.2018.
9) A aplicação ao arguido do regime de permanência na habitação teve em vista a ideia de prevenção especial (finalidade de socialização), aliada à expectativa de eficácia relativamente ao comportamento futuro do arguido, entendendo-se aquele regime como suficiente não só para evitar que o arguido reincida (dissuadir o agente da prática de novos crimes), como também para satisfazer aquele limiar mínimo da prevenção geral do ordenamento jurídico — cf. Relatório Social, elaborado pela DGRSP, Equipa Douro, em 21.02.2012.
10) Pelo que não é compreensível que o mesmo Tribunal, com base em “desconfianças” não fundamentadas e invocando a mesma prevenção especial e geral, se afaste agora daquele juízo de prognose positivo e vislumbre que o exercício de uma actividade laboral pelo arguido, nos termos em que foi requerida, coloque em causa finalidades de prevenção de conduziram à aplicação do regime de permanência na habitação.
11) Juízo de prognose positivo reforçado com as particularidades seguintes: o arguido pagou integralmente o imposto em dívida nos presentes autos, do valor de € 15.375,37, e, ao contrário do é referido no Despacho em crise, já contactou, no âmbito deste processo e desde 31.01.2018 até 08.03.2018, directamente com a vida prisional intramuros, no estabelecimento prisional de Lamego, experiência que lhe ficou gravada no corpo e na alma — cf. requerimentos do arguido de 26.04.2016, de 30.0S.206, de 26.09.2016 e requerimento com a referência 26932243, de 03.10.201 7.
12) Trata-se de uma decisão diametralmente oposta ao fim principal que norteia o novo artigo 43° do C.P., que é a ressocialização do arguido, sendo o trabalho o meio mais eficaz para se atingir esse fim. 13) Assim sendo, deverá julgar-se procedente o presente recurso, revogar-se a decisão recorrida e autorizar-se o arguido a ausentar-se da sua habitação para trabalhar, nos termos requeridos a fis. 1074 e seguintes.
14) Consequentemente, o Despacho recorrido violou, por incorreta interpretação e aplicação da lei, o art.º 43° do Código Penal.
15) Nestes termos e, sobretudo, nos que serão objeto do douto suprimento dc Vossas Excelências, deve ser concedido provimento ao recurso e revogado o Despacho recorrido, assim se fazendo JUSTIÇA e se cumprindo a LEI.»
*
O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação de Guimarães, com o regime e efeito próprios.

O Ministério Público junto do Tribunal a quo respondeu, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Nesta Relação, o Exmo. Senhor Procurador-Geral adjunto emitiu douto parecer, no qual conclui pela nulidade insnável do despacho recorrido, prevista no artigo 119.º, al. e) do Código de Processo Penal, por violação das regras da competência material.

Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sem resposta.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO

Como é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação apresentada, mas sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (1).
*
No caso em apreço verifica-se uma circunstância que obsta à apreciação do recurso, como se passará a demonstrar.

O recurso interposto pelo arguido visa o despacho judicial datado de 26 de junho de 2018, com a referência 32369605, proferido no âmbito do processo comum singular n.º 59/08.2IDVRL, do Juízo de Competência Genérica de Peso da Régua, Juiz 2, da comarca de Vila Real.

Foi em tal despacho indeferido o requerimento formulado pelo arguido Manuel para que lhe fosse permitido ausentar-se do domicílio para prestar trabalho como empregado de mesa no estabelecimento comercial denominado «Restaurante A», explorado por sua mãe, de segunda a domingo, das 10h às 15h e das 19h às 22h, nos termos do artigo 43.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal (2), por ter sido condenado, por sentença já transitada em julgado, na pena de um ano de prisão, em regime de permanência na habitação, com fiscalização pelos meios técnicos de controlo à distância, que se encontra a cumprir.

Estamos, assim, perante uma questão incidental suscitada pelo condenado já no decurso da execução da pena de prisão, em regime de permanência na habitação, o que logo nos remete para a prescrição do n.º1 do artigo 470.º do Código de Processo Penal, que precisamente com a epígrafe de «Tribunal competente para a execução», estabelece: «A execução corre nos próprios autos perante o presidente do tribunal de 1.ª instância em que o processo tiver corrido, sem prejuízo do disposto no artigo 138.º do Código da Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade.»

É neste Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (3) que se encontra regulada a competência do Tribunal da Execução das Penas (TEP) (4), que é um tribunal de competência alargada e especializada, conhecendo de matérias determinadas, independentemente da forma de processo aplicável, como prescreve o artigo 83.º, n.º1, 2 e 3, al. d) da Lei da Organização do Sistema Judiciário (5) (LOSJ).

A competência material do TEP é estabelecida no artigo 138.º daquele Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, constando dos seus n.ºs 2 e 4, al) l), que:

«2. Após o trânsito em julgado da sentença que determinou a aplicação de pena ou medida privativa da liberdade, compete ao tribunal de execução das penas acompanhar e fiscalizar a respectiva execução e decidir da sua modificação, substituição e extinção, sem prejuízo do disposto no artigo 371.º-A do Código de Processo Penal.
(…)
4. Sem prejuízo de outras disposições legais, compete aos tribunais de execução das penas, em razão da matéria:

(…)

l) Decidir sobre a homologação do plano de reinserção social e das respetivas alterações, as autorizações de ausência, a modificação das regras de conduta e a revogação do regime, quando a pena de prisão seja executada em regime de permanência na habitação;»

Com um texto idêntico a este, estabelece também o artigo 114.º, n.sº 1 e 3, al. k), da LOSJ:

«1- Após o trânsito em julgado da sentença que determinou a aplicação de pena ou medida privativa da liberdade, compete ao tribunal de execução das penas acompanhar e fiscalizar a respetiva execução e decidir da sua modificação, substituição e extinção, sem prejuízo do disposto no artigo 371.º-A do Código do Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro.

(…)
3 - Sem prejuízo de outras disposições legais, compete ao tribunal de execução das penas, em razão da matéria:

(…)
k) Decidir sobre a homologação do plano de reinserção social e das respetivas alterações, as autorizações de ausência, a modificação das regras de conduta e a revogação do regime, quando a pena de prisão seja executada em regime de permanência na habitação;»

O teor destes normativos não deixa dúvidas de que a execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação (prevista no artigo 44.º do Código Penal), designadamente a apreciação do requerimento do condenado para autorização de ausências – como é o caso daquele sobre que se pronunciou o despacho recorrido nestes autos – é manifestamente da competência material do Tribunal de Execução das Penas. No caso do Tribunal de Execução das Penas do Porto, por ser o territorialmente competente, face à previsão do artigo 137.º, n.º 3 do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade.

O despacho recorrido violou pois as regras de competência material do tribunal, o que configura nulidade insanável, que deve ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento, nos termos do artigo 119.º, al. e) do Código de Processo Penal.

Terá pois de ser declarado nulo o despacho recorrido, com a consequente determinação para que o Tribunal a quo providencie pelo envio do requerimento do arguido ao competente Tribunal de Execução das Penas do Porto.

Ficando prejudicado o conhecimento do recurso interposto.
***

III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam as juízas deste Tribunal da Relação de Guimarães em declarar nulo o despacho recorrido – datado de 26 de junho de 2018, com a referência 32369605 – que deverá ser substituído por outro que providencie pelo envio do requerimento do arguido – com a referência 1626976 – ao competente Tribunal de Execução de Penas do Porto.
Sem tributação.
***

Guimarães, 22 de outubro de 2018
(Elaborado em computador e revisto pela relatora)


1. Cfr. artigo 412.º, nº 1 do Código de Processo Penal e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
2. Na redação da Lei nº 94/2017, de 23 de agosto.
3. Aprovado pela Lei n.º 115/2009, de 12 de outubro, em vigor desde o dia 10 de abril de 2010, atualmente com a redação introduzida pela Lei n.º 94/2017, de 23 de agosto.
4. Cf. artigo 18.º do Código de Processo Penal: «A competência do Tribunal de Execução das Penas é regulada em lei especial.»
5. Lei n.º 62/2013, de 13 de agosto, atualmente na reacção da Lei n.º 23/2018, de 05 de junho.