Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
7/14.0TMBRG.G1
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: MEDIDA DE PROMOÇÃO E PROTECÇÃO DO MENOR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: Não obstante se reconhecer que estamos perante uma situação delicada, tem que se concluir que, mesmo assim, ela não comporta o perigo a que alude o artigo 3.º n.º 1 LPCJP, pelo que não se justifica a intervenção do tribunal, designadamente aplicando uma medida de promoção e protecção, como seja a de "prorrogar-se por mais 3 meses a medida de apoio junto dos pais aplicada ao menor."
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I
Nos presentes autos de promoção e protecção, que correm termos na Secção de Família e Menores da Instância Central da Comarca de Braga, relativos ao menor C…, filho de C… e de Z…, foi, a 24-7-2014, proferida decisão de "prorrogar-se por mais 3 meses a medida de apoio junto dos pais aplicada ao menor C…."
Anteriormente, a 27-3-2014, no decorrer da conferência a que alude o artigo 110.º b) da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, tinha sido obtido acordo quanto à aplicação da "medida de promoção e protecção de apoio junto dos pais - art.º 35.º, alínea a) da LPCJP", pelo prazo de 3 meses, relativamente ao qual o Meritíssimo Juiz decidiu que "tendo em conta o acordo que foi obtido, o qual faz parte da presente ata, ao abrigo do disposto no artigos 113.º, n.º 2 e 3, da L.P.C.J.P., homologo-o, aplicando ao menor C… a medida de apoio junto dos pais, com as condições e pelo prazo ali expressamente previstos."
Posteriormente a Segurança Social elaborou um novo relatório em que propôs a prorrogação da medida. O Ministério Público subscreveu esta posição.
Os pais do menor pronunciaram-se dizendo "que não se justifica a continuação da intervenção do Tribunal, não devendo ser aplicada qualquer medida."
Inconformado com a decisão de 24-7-2014, o pai do menor dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo, findando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:
A- Não se justifica a prorrogação por mais 3 meses da medida de apoio junto dos pais aplicada ao menor C….
B- Na verdade não se justifica o prolongamento de uma medida que durante os 3 primeiros meses de aplicação não teve qualquer apoio aos pais.
C- Os pais do menor são pais responsáveis e acompanham devidamente o menor.
D- A medida de 3 meses de apoio junto dos pais, que estes acabaram por aceitar voluntariamente era para ajudar os pais a lidar com a "doença" do menor, a ajudar os pais no relacionamento com a escola.
D- A verdade é que nenhum apoio tem sido prestado aos pais.
E- Nomeadamente quando os pois pretendem a transferência de escola por parte do menor e nenhum apoio foi prestado pela Dr.ª J…, mesmo quando solicitado.
F- A Dr.ª J… não acompanhou a situação do menor na escola, limitando-se a no final dos 3 meses a elaborar relatório, depois de consultar as pessoas no finai do período sobre o que se passou, não tendo feito, como devia o devido acompanhamento, quer com a deslocação regular à escola, para acompanhar a situação do menor, quer o contacto com os pais para possível ajuda ou apoio.
G- Mesmo quando solicitado o apoio este não é prestado.
H- O arrastar do processo nada tem de benéfico para a criança e seus pais e tem contribuído para o aumento do sofrimento e perda de qualidade de vida da família.
I- No relatório médico da Dr.ª V… está patente que: "Os conflitos no meio escolar e o acompanhamento da família [ ... ] têm do aumentado a tensão no meio familiar e dificultado uma evolução mais favorável do menor", isto é, a continuidade do processo agrava o estado de saúde do menor e prejudica a sua integração na escola.
J- Durante o período de duração da medida acordada pelo tribunal, como se disse, os pais não tiveram qualquer intervenção efectiva por parte dos serviços da Segurança Social.
K- Assim sendo, uma vez que não houve qualquer tipo de intervenção a sua continuidade não se justifica.
L- A criança, nunca foi vítima de qualquer tipo de negligência por parte dos progenitores.
M- Os pais nunca puseram em causa o bem estar, a saúde, segurança, formação moral ou educação do seu filho, e é perfeitamente visível a existência de uma relação familiar saudável.
N- Os pais sempre se dedicaram inteiramente ao seu filho, e agiram sempre na defesa e protecção dos seus interesses, proporcionando-lhe um adequado ambiente securizante, que permite ao menor a necessária estabilidade para o seu desenvolvimento.
O- O menor tem o devido acompanhamento por pedopsiquiatra e a dedicação, apoio e carinho dos pais, não sendo necessário a intervenção do Tribunal.
P- A intervenção do Tribunal apenas deve ser efectuada quando necessário, o que de todo no presente caso não é, revelando-se até maléfica, na instabilidade que cria ao menor e à família.
O Ministério Público contra-alegou sustentando a improcedência da apelação.
Já na pendência do recurso, a Segurança Social apresentou um novo relatório, onde defende a cessação da medida.
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635.º n.º 3 e 639.º n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil [1], delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir consiste em saber se "não se justifica a prorrogação por mais 3 meses da medida de apoio junto dos pais aplicada ao menor C…" [2].
II
1.º
Lamentavelmente, o Meritíssimo Juiz a quo proferiu decisão sem enunciar os factos que considera provados.
Cumpre fazê-lo.
Resulta dos autos estar provado que:
a) o menor C… nasceu a 15 de Setembro de 2000 e é filho de C… e de Z….
b) o menor vive com os seus pais em Braga e, em Março de 2014, frequentava o 8.º ano de escolaridade na escola EB2/3 de Gualter.
c) os pais do menor encontram-se desempregados. Em Março de 2014 o pai do menor recebia um subsídio de desemprego de € 540,00 e a mãe não tinha rendimentos. Em Junho de 2014 o subsídio recebido pelo pai do menor já era de € 419,10.
c) o menor padece da síndrome de Asperger.
d) o menor tem acompanhamento médico no serviço de pedopsiquiatria do Hospital da Escala.
e) na escola o menor é acompanhado pela equipa de ensino especial e tem apoio psicológico, com sessões individuais e semanais.
f) o menor toma antidepressivos por causa dos comportamentos obsessivo-compulsivos.
g) o menor tem dificuldade na interacção social.
h) o menor tem bons resultados escolares e gosta da escola.
i) os pais do menor têm algumas divergências com a escola, quanto ao modo como esta acompanha o seu filho.
j) na escola, por vezes, o menor tem dificuldade em permanecer na sala de aula e ocasionalmente também se descontrola e assume comportamentos agressivos para com bens materiais.
l) a Segurança Social elaborou os três relatórios que se encontram juntos aos autos, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido.
2.º
O Meritíssimo Juiz, como se viu, considerou haver motivos [3] para "prorrogar-se por mais 3 meses a medida de apoio junto dos pais aplicada ao menor C…."
Os pais do menor tinham sustentado "que não se justifica a continuação da intervenção do Tribunal, não devendo ser aplicada qualquer medida." Dizem os pais que "a criança, nunca foi vítima de qualquer tipo de negligência por parte dos progenitores" e que eles "nunca puseram em causa o bem estar, a saúde, segurança, formação moral ou educação do seu filho, e é perfeitamente visível a existência de- uma relação familiar saudável."
O artigo 3.º n.º 1 da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo consagra o princípio de que "a intervenção para promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem em perigo tem lugar quando os pais (…) ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de acção ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo", enunciando-se no seu n.º 2 exemplos de casos em que se considera "que a criança ou o jovem está em perigo". E artigo 34.º desta lei diz-nos que "as medidas (…) de promoção e protecção visam:
a) Afastar o perigo em que estes se encontram;
b) Proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral;
c) Garantir a recuperação física e psicológica das crianças e jovens vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso."
Examinados os factos dos autos, deles logo sobressai a circunstância de o menor, infelizmente, padecer da síndrome de Asperger. É esse facto que está no centro de tudo o que aqui se discute e é ele que condiciona, decisivamente, o comportamento do menor.
Como é sabido, a síndrome de Asperger caracteriza-se, para além do mais, por uma dificuldade, em alguns casos trata-se mesmo de uma verdadeira incapacidade, de estabelecer relações sociais. Daqui decorrem inúmeros efeitos que condicionam a vida do doente e de quem com ele convive, nomeadamente, tratando-se de menores, dos seus pais.
A situação do C… mostra-nos, se dúvidas houvesse, que não é fácil lidar com este problema e que ele coloca constantemente desafios para os quais nem sempre é fácil encontrar a resposta certa.
Verifica-se que, tanto os pais, como a escola, têm procurado corresponder às necessidades do C…. Provavelmente que, uns e outros, nem sempre adoptaram a solução mais adequada, mas parece claro que todos eles sempre agiram com o propósito de a alcançar. Trata-se de um caminho difícil, exigente e recheado de obstáculos. Por isso, é natural que frequentemente não se obtenha um consenso quanto ao trilho a seguir. Nessa medida, percebe-se que entre os pais e a escola haja, quanto a alguns pontos, perspectivas diferentes. Mas essas divergências, que na prática não facilitam a resolução de alguns dos problemas, não deixam de evidenciar a existência de um empenho, por parte dos pais e da escola, na procura do melhor para o C….
Regista-se que o menor tem acompanhamento médico no serviço de pedopsiquiatria do Hospital da Escala e que na escola é acompanhado pela equipa de ensino especial e que tem apoio psicológico, com sessões individuais e semanais [4].
Não se encontra, na conduta dos pais, qualquer tipo de negligência ou falta de interesse para com o menor; dito de outra forma e recorrendo à linguagem do n.º 1 do artigo 3.º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, nada se vê naquele comportamento que ponha "em perigo" a "segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento" do menor e também não se vislumbra que haja um "perigo [que] resulte de acção ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo".
O que temos pela frente é um problema que reclama uma resposta orientada, essencialmente, por uma visão médica; o que se impõe é uma abordagem clínica e não judicial, a qual, aliás, já existe e nada permite prever que não se manterá.
Os pais têm plena consciência da doença do seu filho e têm mostrado querer que ele tenha o tratamento que aquela exige, o que não significa que tudo quando têm defendido seja, efectivamente, o que melhor se adequa ao menor.
Aqui chegados, reconhecendo que estamos perante uma situação delicada e que ainda aí vêm dias difíceis, tem que se concluir que, mesmo assim, ela não comporta o perigo a que alude o citado artigo 3.º n.º 1, o mesmo é dizer que não se justifica a intervenção do tribunal, designadamente aplicando uma medida de promoção e protecção, como seja a de "prorrogar-se por mais 3 meses a medida de apoio junto dos pais aplicada ao menor C…."
III
Com fundamento no atrás exposto, julga-se procedente o recurso, pelo que se revoga a decisão recorrida.
Sem custas.
10 de Novembro de 2014
António Beça Pereira
Manuela Fialho
Filipe Caroço
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[1] São deste código todos os artigos adiante mencionados sem qualquer outra referência.
[2] Cfr. conclusão A.
[3] Pese embora não os tenha explicitado com a clareza desejável, na medida em que se limita a remeter para o que se encontra no relatório da Segurança Social, ignorando em absoluto o extenso requerimento apresentado pelos pais.
[4] Parece que seria muito vantajoso que houvesse um diálogo entre a psicóloga da escola e a médica que no hospital acompanha o menor.