Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
78/12.4GDVCT.G1
Relator: MARIA LUÍSA ARANTES
Descritores: MAUS TRATOS ENTRE CÔNJUGES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/18/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO PROCEDENTE
Sumário: I – A simples prática de crimes de ofensa à integridade física simples, ameaça, ou injúria, não configura um crime de violência doméstica só por a vítima ser cônjuge, ou ex-cônjuge, do agente; é necessário que se verifiquem “maus tratos físicos ou psíquicos”.
II – Os maus tratos físicos ou psíquicos traduzem-se em atos que revelam sentimentos de crueldade, desprezo, vingança, especial desejo de humilhar e fazer sofrer a vítima.
III – Provando-se que, no contexto de discussões familiares, a vítima utilizava palavras do mesmo jaez, o facto do arguido se ter dirigido à sua mulher chamando-lhe “puta” e dizendo-lhe “vai-te foder”, não permite enquadrar tais expressões no conceito de maus tratos.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – RELATÓRIO

No processo comum (com intervenção do tribunal singular) n.º78/12.4GDVCT do 2ºJuízo Criminal do Tribunal Judicial de Viana de Castelo, por sentença proferida em 9/11/2012 e depositada na mesma data, o arguido Manuel V... foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152.º n.º1 alínea a) do Código Penal, na pena de 1 ano e 15 dias de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo e no pagamento à vitima Ana V... da quantia de €1000,00, a título de indemnização por danos morais, acrescida de juros, à taxa legal, desde a data da decisão até efectivo pagamento.
O arguido, inconformado com a decisão, interpôs recurso, em 22/11/2012, extraindo da respectiva motivação, as seguintes conclusões [transcrição]:
1ª-Não existem dúvidas, de que, pratica o crime de violência doméstica, quem, de modo reiterado ou não, (sublinhado nosso) infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ao cônjuge ou ex-cônjuge (...) – artigo 152.°, n.º 1 do C. Penal.
2ª-Correndo-se o risco de se estar a ser peregrino na análise jurídica, sem pretendemos que, um comportamento reiterado, só pode ser aquele que é repetido no tempo, mas com um carácter de renovação consequente e repetitivo.
3ª-De outro modo, privação da liberdade, só poderá ser entendida, como a retirada ou a negação por qualquer meio do exercício da liberdade individual, em termos de impedir, esse mesmo exercício individual, e
4ª-Maus tratos, só poderão ser entendidos, como o conjunto de acções (activas ou omissivas) que visem e atinjam uma terceira pessoa, causando-lhe prejuízo.
5ª-A violência doméstica, traduz-se, no nosso modesto entendimento, num comportamento ou comportamentos que pela sua natureza implicam a força física ou a intimidação de alguém, contra alguém, com um carácter de crueldade, de coação, de opressão, de tirania, de génio irascível de quem se encoleriza facilmente, e o demonstra com palavras e ou com acções – de outra maneira – a violência também se traduz num constrangimento físico ou moral que é exercido sobre alguém para o obrigar a submeter-se à vontade de outrem, demonstrando-se que esse comportamento tem em si mesmo um carácter violento – cf. por todos, Dicionário do Português Atual Houaiss, 1.a Edição/2011.
6ª-Não há reiteração porque a conduta do Recorrente não se traduziu em mau trato a quem ao tempo (cronológico) era ainda sua mulher, e também não foi determinante para a privação da liberdade, pois que esta não se verificou ou sequer é ou está aduzida nos factos imputados ao Recorrente e ou resultam da matéria de facto dada como provada.
7ª-Vista a sua conduta pela análise dos factos dados como provados, retira-se que, só a partir de 2011, e não se sabe, se do princípio, do meio ou fim desse ano, o relacionamento do casal se degradou,
8ª-Dos factos dados como provados, resulta inequivocamente que as expressões usadas pelo Recorrente contra a ofendida foram tomadas no âmbito de discussões, não fora utilizadas de modo voluntário e livre com vontade unívoca de atingir o físico ou o psíquico da ofendida, antes resultaram de uma relação de causa-efeito, discussão alimentada entre sujeitos, mas de cuja causa ou origem se desconhece, sendo portanto impossível (e injusto) atribuir apenas ao Recorrente o efeito pretendido pela lei, esquecendo-se o âmbito em que a sua conduta foi tomada. E,
9ª- Tribunal também deu como provado, que nas discussões existentes entre o Recorrente e a ofendida, era vulgar (sublinhado nosso) a ofendida também proferir expressões dirigidas ao arguido, de igual teor às supra referidas,
10ª- E mais está provado que, a ofendida mantém sentimentos de desconfiança relativamente ao comportamento do arguido, comportamentos alimentados pelo desinvestimento
afectivo deste. Assim,
11ª-Se por um lado, se deu como provado, que o Recorrente proferiu as expressões supra referidas e que constam melhor descritas dos factos provados, também provado está que, a ofendida também (e vulgarmente) proferia iguais expressões dirigidas ao Recorrente, nas mais,
12ª- Na verdade, os sujeitos – Recorrente e ofendida – usavam igual conduta nas suas discussões, significando isso, que o vocabulário utilizado, não era, nem pode ser tido como reciprocamente ofensivo e ou lesivo das suas "honra e considerações".
13ª-Não está provado, que a ofendida tenha chegado ao estado de saúde referido nos autos, como consequência da conduta do Recorrente.
14ª-Resulta por isso que o Recorrente, com a conduta que tomou, não infligiu, impôs, aplicou, causou ou obrigou a ofendida a suportar o que se designa de "maus tratos".
15ª- O Tribunal errou na apreciação da prova,
16ª- Julgou incorrectamente os factos dados como provados, pelo que se impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto – artigos 410.ª n.º 2 al. a) e c) e 412.ª do C. P. Penal.
17ª- Vai por isso violado o disposto no artigo 152.º n.º1 al.a) do C.P.Penal.
O Ministério Público junto da 1ªinstância respondeu ao recurso, pugnando pela rejeição do recurso uma vez que o recorrente afirma impugnar a matéria de facto e no entanto não deu cumprimento ao disposto no art.412.º n.º3 do C.P.Penal; defende ainda a confirmação da sentença recorrida [fls.358 a 365].
A demandante não respondeu ao recurso.
Admitido o recurso e fixado o seu efeito, foram os autos remetidos ao Tribunal da Relação.
Nesta instância a Exma.Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer em que se pronunciou pela procedência do recurso [fls.374 a 380].
Cumprido o disposto no art.417.º n.º2 do C.P.Penal, a demandante veio apresentar resposta, não ao parecer, mas antes ao recurso, pugnando pelo seu não provimento.
Colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.

II – FUNDAMENTAÇÃO

Decisão recorrida
A sentença recorrida deu como provados e não provados os seguintes factos a que se seguiu a respectiva fundamentação:
A Factos provados
Discutida a causa, o Tribunal apurou que:
1. O arguido Manuel V... contraiu casamento com Ana V... em 19/12/1987.
2. Deste matrimónio nasceram dois filhos, Ilídio V..., de 22 anos, e Ana C..., de 20 anos.
3. Desde o casamento o casal habitou sempre em casa dos pais da ofendida Ana V..., sita Caminho do X, M..., em Viana do Castelo.
4. Desde 2011 que o relacionamento do casal se degradou.
5. No Verão de 2011, a ofendida confrontou o arguido pelo telefone com uma suspeita de uma relação extra-conjugal por causa de uns comentários no facebook.
6. Em 29/12/2011, cerca das 21h30m, a ofendida disse ao arguido que iria tratar do divórcio, ao que o arguido respondeu: «cala-te, qualquer dia dou-te um estouro, meto-vos uma bomba, acabo com a vossa raça e depois entrego-me à GNR».
7. Em 21/05/2012, cerca das 22.00 horas, quando a ofendida se encontrava a lavar a loiça, o arguido chamou-a de «puta».
8. Pelo menos noutra ocasião, durante o ano de 2012, na presença da filha, o arguido, no seguimento de uma discussão com a ofendida, chamou-a de puta e disse-lhe vai-te foder.
9. O arguido, igualmente no ano de 2012, na presença da filha, no seguimento de uma discussão com a ofendida, disse que esta não prestava para nada.
10. Em 21/05/2012, após o último episódio descrito, a ofendida saiu de casa e foi apoiada socialmente.
11. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas são proibidas e punidas por lei como crime.
Mais se provou que:
12. Nas discussões existentes entre o casal era vulgar a ofendida também proferir expressões, dirigidas ao arguido, de igual teor às supra referidas.
13. A ofendida mantém sentimentos de desconfiança relativamente ao comportamento do arguido, alimentados pelo desinvestimento afectivo deste.
14. O arguido, em resultado da sua actividade profissional, passa dias fora de casa e mantém uma convivência próxima com colegas de profissão, nomeadamente do sexo feminino. Esta situação, que passou a ser mais frequente, causou sofrimento psicológico na ofendida a ponto de a levar a recorrer a ajuda médica e a tomar anti-depressivos.
15. A educação da filha era também motivo de discórdia entre o casal, considerando a ofendida que o arguido era demasiado permissivo no processo educacional daquela.
16. A ofendida realizava trabalhos de empregada de limpeza e organizava excursões.
17. Os filhos, depois de o agregado se desmembrar, passaram a viver com o progenitor.
18. O arguido passou a centrar a sua vida profissional em Lisboa.
19. O arguido é muito considerado no seu meio sócio-profissional. A entidade patronal deste atribui-lhe as funções/serviços da maior responsabilidade para a função.
Provou-se ainda que:
20. O Arguido é motorista e aufere mensalmente Euros 800,00.
21. Vive em casa arrendada para a qual paga mensalmente Euros 200,00.
22. Tem dois filhos maiores, sendo que um está a seu cargo.
23. Tem o 9º ano de escolaridade.
24. Não tem antecedentes criminais.
*
B - Factos não provados
Dos factos constantes da acusação e da contestação, com interesse para a discussão da causa, não ficaram provados os seguintes:
1. Desde o início do casamento e ao longo destes 25 anos, por diversas vezes e de forma amiúde, o arguido dirigiu-se à ofendida, sua esposa e disse-lhe: «filha da puta, és uma puta, és uma vaca, cabra, não sabes ser mulher, vai aprender a ser mulher».
2. Tais expressões eram ditas sempre no interior da residência e muitas vezes mesmo na presença dos pais da ofendida e dos filhos do casal.
3. Em 19/09/2010, na sequência de uma discussão, o arguido dirigiu-se à ofendida e disse-lhe: «não representas nada para ninguém, vai-te matar».
4. Desde 2011 que o comportamento do arguido piorou, tornando-se aquele mais agressivo.
5. Em 21/07/2011, na sequência de uma discussão, o arguido dirigiu-se à ofendida e disse-lhe: «estendo-te um braço nessa cara que ficas anestesiada, queres um conselho? Estás doente. Dá com a cabeça na parede».
6. Em resposta aquele disse-lhe: «se estivesse à tua beira dava-te dois estalos na cara».
7. Mais tarde, chegou a casa furioso, agarrou a depoente pelos braços, apertando-a com força e encostou-a contra a parede da cozinha, ao mesmo tempo que lhe dizia: «és uma cabra, és uma puta, alguém já te montou».
8. Em 04/12/2011, no seguimento de mais uma discussão, o arguido levantou uma cadeira no ar na direcção da ofendida, só não a arremessando porque a mãe da ofendida interveio.
9. Não satisfeito o arguido disse à ofendida: «és uma cabra, és uma puta, uma vaca, alguém já te montou», tendo a ofendida saído da habitação.
10. Quando voltou a entrar na cozinha o arguido atirou-lhe com um copo de vidro, só não a atingindo porque ela se desviou a tempo.
11. Nesta altura o arguido dirigiu-se para a mãe da ofendida e disse: «vou matá-la», referindo-se à ofendida, sua esposa.
12. A ofendida, com medo, refugiou-se no quarto, fechando-se à chave.
13. Em 27/12/2011, ao questionar o marido por chegar às 4.00 horas da manhã a casa e este disse-lhe: «cala-te, senão levas já com o telemóvel».
14. Em 21/05/2012, cerca das 22.00 horas, quando a ofendida se encontrava a lavar a loiça, o arguido começou a implicar com aquela por umas alegadas mensagens que teria recebido no telemóvel, agarrou-a pelos braços, apertando com força, e disse-lhe: «vaca, não tenho dúvida que és uma grande vaca, uma puta, uma cabra».
15. De seguida, mantendo-a presa, arrastou-a até à lavandaria, e depois até à sala e novamente à cozinha.
16. Isto, sempre repetindo, aos gritos, aquelas expressões.
17. Após, o arguido deu um empurrão na ofendida e dirigiu-se para o carro.
18. Chegada a GNR ao local, o arguido disse: «chamei e chamo-te outra vez: és uma filha da puta».
19. A isto acresce que o arguido sempre limitou o acesso da ofendida ao dinheiro do casal, controlando-o sozinho e deixando-a na dependência económica dele, bem como sempre a desautorizou em frente dos filhos, incentivando-os a desobedecer às ordena dadas pela ofendida, dizendo-lhes: «o que a mãe diz não se escreve».
20. Demonstrando ciúmes doentios e afirmando que a esposa tinha amantes e que tinha rebaixado os bancos do carro.
21. A ofendida trabalhava no serviço doméstico, por conta de outrem, 5 dias por semana e 4 a 5 horas dia.
22. No mês de Agosto havia apalavrado com uma família de emigrantes trabalhar 2 horas por dia a Euros 7,00 a hora.
23. A ofendida era uma pessoa alegre, divertida, com muito sentido de humor.
*
CMotivação de facto
1 - Para considerar como provados ou não provados os factos acima enunciados o Tribunal fundou-se nos seguintes meios de prova:
Nas declarações do Arguido que negou, no essencial, a prática dos factos de que vem acusado.
No depoimento da Demandante, ex-mulher do Arguido, que confirmou os factos vertidos na acusação, o que fez de forma tensa e desgarrada. As suas declarações foram prestadas com emoção, suscitando, em alguns casos, dificuldade em percepcionar a causa de tão mal-estar.
Na verdade, a Demandante além de mencionar os problemas que tem com os filhos, que no seu entender se ficou a dever à educação – permissiva – dada pelo Arguido, também verbalizou o pouco investimento que o arguido, enquanto cônjuge, começou a atribuir ao casamento.
No depoimento da testemunha Ana C., filha dos intervenientes processuais, que de forma parcial confirmou a existência do mal-estar entre os progenitores e relatou algumas situações de conflito que presenciou.
A testemunha Maria P..., progenitora da Demandante, que de forma parcial confirmou a existência do mal-estar entre os intervenientes processuais e relatou algumas situações de conflito que presenciou.
No depoimento da testemunha Manuel P..., progenitor da Demandante, que atestou ter ouvido o arguido a proferir expressões como as referidas na acusação. Porém, e estranhamente, refere que jamais conseguiu perceber o que a filha respondia àquele.
As testemunhas João E... e Salvador E..., militares da GNR, confirmaram que se deslocaram à residência no dia a que alude a acusação. Relataram o que percepcionaram e esclareceram que jamais ouviram o arguido a proferir expressões injuriosas relativamente à ofendida.
As testemunhas Fernanda S..., Cristina P..., Vítor P... e Manuel C..., familiares ou amigos próximos da ofendida, atestaram o estado de espírito da ofendida nos últimos tempos e estabeleceram uma comparação com anos anteriores.
A testemunha Carla F..., psicóloga do centro de acolhimento onde a ofendida permaneceu entre o dia 28 de Maio de 2012 e o dia 26 de Outubro, descreveu o estado psíquico em que encontrou a ofendida. Atestou que esta estava bastante perturbada e muito fragilizada, resultado, segundo percepcionou, de problemas conjugais e do relacionamento com os filhos.
As testemunhas Armando V... e Francisco O... abonaram sobre o comportamento habitual do Arguido. Atestaram tratar-se de uma boa pessoa, calmo e um excelente funcionário.
Nos documentos juntos aos autos dos quais destacamos os de fls. 23 a 26, 119 a 122;
No C.R.C. de fls. 156.
Finalmente, no relatório social elaborado pela DGRS.
Perante o exposto, dúvidas não existem de que o Arguido praticou parte dos factos de que vinha acusado.
Na verdade, tal conclusão retira-se da conjugação das declarações do Arguido e da Demandante, com os depoimentos das testemunhas Ana C..., Maria P... e Manuel P..., que presenciaram parte dos factos e constataram as respectivas consequências.
Importa referir, face à relevância que mereceu, que a testemunha Ana C... descreveu pelo menos três ou quatro episódios em que presenciou o progenitor a proferir expressões atentatórias da honra e consideração da ofendida, tal como resulta da acusação.
Mais importa referir que, não obstante o comportamento do Arguido, resultou de forma segura que a ofendida também praticou factos semelhantes aos imputados àquele. Esta, sem que se conseguisse determinar aquele/ou o que espoletava a discussão, também proferia expressões atentatórias da honra e consideração do Arguido.
Finalmente, que o mal-estar evidenciado pela ofendida resultou, além dos factos em análise, do mau relacionamento que tem com os filhos e do fim da relação matrimonial que durou mais de 25 anos.”

Apreciação
Atento o disposto no art.412.º n.º1 do C.P.Penal, o âmbito do recurso é delimitado pelo teor das respectivas conclusões, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso, como são os vícios da sentença previstos no art.410.º n.º2 do C.P.Penal.
Analisando as conclusões do presente recurso, embora o recorrente afirme que o tribunal a quo errou na apreciação da prova, o certo é que não questiona a factualidade dada como provada, mas antes a respectiva qualificação jurídica; a questão suscitada reconduz-se, por isso, a saber se a factualidade dada como provada permite o enquadramento jurídico efectuado; por outro lado, o recorrente insurge-se quanto à condenação em indemnização civil.
Antes, porém, cabe apreciar a questão da rejeição do recurso, suscitada pelo Ministério Público na 1ªinstância.
Defende a Exma.Magistrada que afirmando o recorrente, na parte final das suas conclusões, impugnar a matéria de facto, não tendo dado cumprimento ao disposto no art.412.º n.º3 do C.P.Penal, deve o recurso ser rejeitado.
Salvo o devido respeito, a questão suscitada soçobra, pois o recorrente, embora na parte final das conclusões afirme que impugna a matéria de facto, o certo é que não o faz, questionando antes o enquadramento jurídico dos factos.
-Qualificação jurídica dos factos
O arguido foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art.152.º n.º1 al.a) do C.Penal.
Dispõe o referido preceito que, quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ao cônjuge ou ex-cônjuge, é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
Desde logo, há que traçar a fronteira entre este tipo legal e os crimes de ofensa à integridade física simples (art. 143.º n.º 1 do C.Penal), ameaça (art.153.º n.º 1 do C.Penal) ou injúria (art. 181.º n.º 1 do C.Penal), pois a prática de qualquer destes crimes não configura um crime de violência doméstica só por a vítima ser cônjuge ou ex-cônjuge do agente; é necessário que se verifiquem “maus tratos físicos ou psíquicos”.
A jurisprudência discutiu durante muito tempo se os maus tratos pressupunham a reiteração das condutas em causa. Porém, essa discussão está hoje ultrapassada, pois com a Lei n.º59/2007, de 4/7, que procedeu à 23ª alteração do Código Penal, para o preenchimento do crime de violência doméstica não é necessária a reiteração de condutas. Actualmente, o segmento «de modo reiterado ou não» introduzido no corpo do n.º1 do art.152.º é inequívoco no sentido de que pode bastar um só comportamento, pela gravidade intrínseca do mesmo, para integrar o tipo legal em apreço.
O traço distintivo baseia-se no bem jurídico protegido através da incriminação em apreço.
O bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental –, o qual pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que afectem a dignidade pessoal do cônjuge [Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, pág. 332.]. Deste modo, não é suficiente qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, para o preenchimento do tipo legal. «O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à degradação pelos maus-tratos» – Plácido Conde Fernandes, Violência Doméstica – novo quadro penal e processual penal, Revista do CEJ n.º8, pág.305.
O crime de violência doméstica pressupõe, assim, a existência de maus tratos, físicos ou psíquicos e estes traduzem-se em actos que revelam crueldade, desprezo, vingança, especial desejo de humilhar e fazer sofrer a vítima.
No caso vertente, os factos provados não permitem concluir pela existência de maus tratos.
Está assente que em 29/12/2011, na sequência da ofendida ter dito que iria tratar do divórcio, o arguido respondeu «cala-te, qualquer dia dou-te um estouro, meto-vos uma bomba, acabo com a vossa raça e depois entrego-me à GNR» e em 21/05/2012, cerca das 22.00 horas, quando a ofendida se encontrava a lavar a loiça, o arguido chamou-lhe «puta». Mais se provou que, durante o ano de 2012, na presença da filha, o arguido, no seguimento de uma discussão com a ofendida, apelidou-a de «puta» e disse-lhe «vai-te foder». E noutra ocasião, também na presença da filha e no seguimento de uma discussão com a ofendida, disse que esta não prestava para nada. Provou-se ainda que nas discussões existentes entre o casal era vulgar a ofendida também proferir expressões, dirigidas ao arguido, do mesmo teor às supra referidas.
As expressões utilizadas pelo arguido, proferidas em contexto de desentendimentos, discussões com a ofendida, em que esta utilizava palavras do mesmo jaez, não revelam a crueldade, o desprezo, a particular vontade de humilhar a ofendida, de forma a permitir enquadrá-las em «maus tratos».
Trata-se, sem dúvida, de um comportamento muito reprovável. Só que o juízo de censura que a conduta do arguido suscita, nas concretas circunstâncias do caso, não tem aquele especial desvalor que permita o seu enquadramento no crime de violência doméstica. Não nos podemos esquecer que, conforme resulta da factualidade assente, a ofendida tinha sentimentos de desconfiança relativamente à fidelidade do marido, o qual, por força da sua actividade profissional, passava dias fora de casa e tinha uma convivência próxima com colegas de profissão, nomeadamente, colegas do sexo feminino. Ora, nas discussões conjugais, por vezes, proferem-se palavras que ofendem, magoam, mas não revelam desprezo, vontade de humilhar o outro. Acresce que este tipo de expressões não era do uso exclusivo do arguido, mas igualmente da ofendida, pelo que não se descortina a especial censurabilidade, a vontade de humilhar, em termos de preencher o conceito de «maus tratos».
Por isso, o arguido tem de ser absolvido do crime de violência doméstica pelo qual foi acusado.
E será que a conduta do arguido integra o crime de injúria?
Face à factualidade provada sob os pontos 7 e 8, apelidando a sua mulher de “puta” e dizendo-lhe “vai-te foder”, dúvidas não restam de que se trata de termos atentatórios da sua honra e consideração, o que o arguido bem sabia, tendo actuado livre, voluntária e conscientemente, integrando-se tal conduta, assim, na previsão do art.181.º do C.Penal.
Conforme dispõe o art.188.º do C.Penal, o procedimento criminal por este tipo de crime depende de acusação particular e para esta ser deduzida, a ofendida tinha de se constituir assistente – art.50.º C.P.Penal. In casu, a ofendida não se constituiu assistente nem deduziu acusação particular pelos factos integradores do crime de injúria. Faltando este pressuposto processual, declara-se extinto o procedimento criminal pelo crime de injúria.
Já relativamente à expressão «cala-te, qualquer dia dou-te um estouro, meto-vos uma bomba, acabo com a vossa raça e depois entrego-me à GNR» – ponto 6 da factualidade dada como provada – a mesma não integra o crime de ameaça. Vejamos.
Nos termos do art.153.º n.º 1 do C.Penal «Quem ameaçar outra pessoa com a prática de um crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de autodeterminação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias».
Quando os factos forem realizados por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias – art.155.º n.º1 al.a) do C.Penal.
São elementos objectivos deste tipo legal: o anúncio de um mal futuro, cuja ocorrência dependa da vontade do agente; o mal anunciado configure a prática de um crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor; o mal anunciado seja adequado a provocar receio, medo, inquietação ou prejudique a liberdade de determinação de outrem, tratando-se de um crime de mera actividade e não de resultado.
No tipo subjectivo de ilícito, o crime de ameaça exige o dolo, que se basta com a consciência (representação e conformação) da adequação da ameaça a provocar medo ou intranquilidade no ameaçado.
No que concerne à adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação ou de modo a prejudicar a liberdade de determinação, o critério tem de ser objectivo-individual: «objectivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do «homem comum»); individual, no sentido de que devem revelar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada» – Ac. da Relação do Porto, proc. nº 0346292, de 14/07/2004, www.dgsi.pt.
Assim, para aferir da capacidade intimidatória da expressão utilizada tem de se atender à conduta na sua globalidade, ao circunstancialismo em que ocorre, assim como às características próprias do agente e da pessoa ameaçada.
In casu, a referida expressão foi proferida na sequência da ofendida ter dito ao arguido que ia tratar do divórcio, num quadro de desentendimentos do casal, sendo que arguido e ofendida durante as discussões utilizavam expressões de cariz ofensivo. Neste enquadramento, a expressão em causa surge como um desabafo, susceptível de causar incómodo e irritação, mas sem a necessária adequação a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação da ofendida.
A expressão proferida pelo arguido não preenche, pois, o crime de ameaça desde logo ao nível dos seus elementos objectivos.
Em face de todo o exposto, impõe-se a absolvição do arguido/recorrente na parte crime.
-Pedido de indemnização civil
O recorrente reporta-se ao pedido de indemnização civil, como mera decorrência da absolvição da matéria criminal.
O pedido de indemnização civil deduzido nos autos foi apresentado em 8/8/2012 e com o valor de €8.066,00.
Então, o valor da alçada dos Tribunal de 1.ª instância era de € 5.000,00 [Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, na redacção do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto].
Na sentença recorrida o tribunal condenou o arguido a pagar à demandante a quantia de €1.000,00 a título de danos morais.
Segundo o disposto no art. 400.º, n.º 2, do C.P.Penal «sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada».
No caso vertente, a decisão recorrida, nesse segmento, não é susceptível de impugnação considerando o valor da sucumbência – € 1.000,00 –, inferior a metade da alçada do tribunal recorrido.
No entanto, dispõe o art. 403.º n.º 3, do C.P.Penal que «a limitação do recurso a uma parte da decisão não prejudica o dever de retirar da procedência daquele as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida.»
Por outro lado «a sentença ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização cível, sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado, sem prejuízo do disposto no art. 82º, nº 3 do C.P.Penal» – art. 377.º nº 1 do C.P.Penal.
O art.483.º n.º1 do C.Civil estabelece que «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».
São, assim, pressupostos da responsabilidade civil do lesante a existência de um facto ilícito, voluntário e imputável ao arguido que seja consequência directa e adequada da produção dos danos no lesado.
Dos factos dados como provados não resulta que a ofendida tenha sofrido danos em consequência da conduta do arguido. Apenas se provou que, em resultado da sua actividade profissional, o arguido passava muitos dias fora de casa e mantinha uma convivência próxima com colegas de profissão, nomeadamente, com colegas do sexo feminino e que tal situação provocou sofrimento à ofendida a ponto de a levar a recorrer a ajuda médica e a tomar anti-depressivos. Ora, estar muitos dias fora de casa por força da actividade profissional desempenhada e ter uma convivência próxima com colegas do sexo feminino, não se traduz em qualquer facto ilícito, pelo que não estão reunidos os pressupostos da responsabilidade civil, impondo-se a absolvição do arguido quanto ao pagamento da quantia de €1.000,00 a título de indemnização por danos morais.

III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar o recurso procedente e em consequência, revogando a sentença recorrida:
-absolver o arguido Manuel V... do crime de violência doméstica p. e p. pelo art.152.º n.º1 al.a) do C.Penal.
-absolver o arguido/demandado Manuel V... do pagamento da indemnização no valor de €1.000,00, acrescida de juros, a Ana V..., a título de danos morais.

Sem custas.