Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
250/16.8IDBRG.G1
Relator: MARIA JOSÉ MATOS
Descritores: NATUREZA JURÍDICA DO IMPOSTO E SUA FINALIDADE
FINS DAS PENAS
REGIME DE PENA DE SUBSTITUIÇÃO NO RGIT
ARTºS 104º DA CRP
40º DO CP E 14º DO RGIT
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/14/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I. O Imposto é uma prestação patrimonial e unilateral, integrada numa relação unilateral, estabelecida por lei a favor de uma entidade que exerça funções públicas, com o fim de satisfazer os fins desta e sem carácter de sanção.

II. O Imposto tem como finalidade o financiamento das despesas públicas do Estado e a prossecução dos objectivos gerais da colectividade, razão por que se acham na titularidade de entidades que exercem funções públicas.

III. Considerando que o fim do direito penal é o da protecção dos bens jurídico-penais, as penas são os meios indispensáveis à realização desse fim de tutela dos bens jurídicos – razão por que a reinserção social do delinquente não é senão um dos meios de realizar o fim do direito penal, qual seja o de protecção dos bens jurídicos.
No concreto afinamento da pena a aplicar terá o aplicador de nortear-se, antes de mais, pelo ditame constitucional vertido no artigo 18º, nº 2 da Constituição da Republica Portuguesa, que institui o princípio da máxima restrição possível da pena sem olvidar que a legitimidade ético-jurídica da pena está na necessidade de prevenção de futuros crimes.

IV. A asserção legislativa que repousa no artigo 14º do RGIT não pode ser de aplicação automática, despido do juízo obrigatório de conformidade, adequação e proporcionalidade a que aludem as normas dos artigos 50º, nº 1 e 2, 51º, 52º e 53º do Código Penal.

V. A aplicação do regime especial ditado no RGIT se desvinculado dos princípios aludidos
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes, em Conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

. RELATÓRIO

Nos presentes autos de Processo Comum Singular que seguem termos sob o nº 250/16.8IDBRG no Tribunal Judicial da Comarca de Braga/Juízo Local Criminal de Braga/Juiz 2, o Ministério Publico requereu o julgamento do arguido

D. A., divorciado, empresário (sem ocupação), nascido em -/-/1970, filho de A. C. e de F. F., natural da freguesia de …/…, concelho de Braga, residente na Rua …, em Braga,

Imputando-lhe a prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos artigos 7º e 105º, nºs 1, 2, 4 e 7 do RGIT, aprovado pela Lei n° 15/2001, de 5 de Junho.

O arguido apresentou contestação escrita e juntou requerimento probatório.

Foi levado a efeito o julgamento, findo o qual veio a ser proferida sentença, na qual foi decidido:
. Condenar o arguido D. A., como autor material, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105º, nºs 1 e 5 da Lei nº 15/2001, de 05/06 e artigo 30º, nº 2 do Código Penal, na pena de um ano e seis meses de prisão, substituída por 480 (quatrocentas e oitenta) horas de trabalho a favor da comunidade;
. Condenar o arguido no pagamento das custas do processo, fixadas em 4 (quatro) UC de taxa de justiça, nos termos do disposto no artigo 513º, nº 1 do Código do Processo Penal e da Tabela III do Regulamento das Custas Processuais.

Inconformado com tal decisão condenatória, o arguido D. A. da mesma interpôs o presente recurso, que motivou e apresentou as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto da decisão proferida pelo Mº Juiz “a quo” que condenou o arguido D. A. autor material de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artº 105º, nº 1 e 5 da Lei nº 15/2001, de 05/06 e 30º, nº 2 do Código Penal, na pena de um ano e seis meses de prisão, substituída por 480 (quatrocentas e oitenta) horas de trabalho a favor da comunidade.
2. As razões que levam o Recorrente a não concordar com a decisão proferida e que seguidamente se exporão, passam desde logo pela consideração da errada apreciação/valoração da prova produzida e, a sua insuficiência para a matéria de facto considerada por provada, e, sempre, a não aplicação da suspensão da execução da pena de prisão.

Quanto à primeira questão objecto deste recurso:

3. A ERRADA APRECIAÇÃO/VALORAÇÃO DA PROVA PRODUZIDA E A SUA INSUFICIÊNCIA PARA A MATÉRIA DE FACTO CONSIDERADA POR PROVADA: O PRINCÍPIO IN DÚBIO PRO REO.

4.1. O Recorrente não se conforma que o Tribunal Recorrido tenha considerado como provada a factualidade descrita em 4., 5., 6., 7., 8., 9., 10., e 11. dos factos provados; porquanto não foi produzida em audiência de julgamento prova bastante para o efeito.
4.2. A decisão recorrida, carecida de meios de prova suficientes constitui VIOLAÇÃO do Princípio In Dubio Pro Reo- 32º, nº2 CRP.
4.3. Na verdade, entende o Recorrente que o Tribunal Recorrido não poderia considerar como provado (muito menos na totalidade) o recebimento do IVA alegadamente liquidado pela Sociedade D. A., LDA.
4.4. Isto porque, se atendermos ao único depoimento com relevância para o apuramento dos pressupostos do ilícito típico - o Inspector Tributário J. N. - do mesmo resulta que parte do IVA liquidado havia sido regularizada por “pelo menos dois ou três clientes”.
4.5. Não conseguindo, no entanto, o Sr. Inspector esclarecer o Tribunal das razões para que aqueles clientes tenham eles mesmos, regularizado aquele IVA…
4.6. Entendemos, pois, que, do depoimento do Sr. Inspector ainda que, conjugado com prova documental recolhida no âmbito da acção inspectiva, que não foi em sede de julgamento concretizada e explicitada, NÃO PODERIA RESULTAR PROVADO O RECEBIMENTO PELA SOCIEDADE ARGUIDA DO IVA NO VALOR DE €265.769,13, e, receptivamente o aproveitamento pelo Recorrente de tais montantes;
4.7. Ainda menos quando, como sucedeu in casu, são carreadas para os autos informações que demonstraram contrariedade à prova daquela factualidade!
4.8. Na verdade, no decurso da audiência de julgamento vieram os Serviços de Finanças prestar informações sobre o valor de IVA regularizado, (cfr. esclarecimentos juntos aos autos em 11 de Fev. de 2019) da qual se extrai que em 2016 (a maioria) dos clientes aos quais haviam sido emitidas facturas regularizaram o IVA liquidado pela Sociedade, num valor total de €152.167.97.
4.9. Resulta das informações juntas aos autos em 11 de Fev. 2019 que o IVA em questão nos presentes autos se encontra (parcialmente) regularizado pelos clientes a quem foram emitidas as facturas…
4.10. Por outro lado, da audiência a de julgamento não resultou provado qualquer razão para que os clientes a quem tinham sido emitidas as facturas objecto de inspecção tributária trazidas aos presentes autos regularizassem o IVA que não havia sido entregue.
4.11. Ou seja, não se produziu, pois, prova suficiente do recebimento pela sociedade A. C., Unipessoal, Lda., e muito menos pelo Recorrente do montante de €265.769,13.
4.12. Não tendo sido produzida em audiência de julgamento prova capaz de confirmar o recebimento daqueles montantes de IVA, sempre o Tribunal Recorrido deveria considerar que o arguido não houvera recebido o montante de IVA de que vem acusado de ter-se apropriado!
4.13. Não o fazendo actuou o Tribunal Recorrido em violação do princípio IN DUBIO PRO REO.
4.14. Além de que, o entendimento do Tribunal Recorrido ao considerar provada tal factualidade sempre resulta de errada apreciação da prova, porquanto:
•Subsistindo sérias dúvidas, porque em audiência de julgamento não se logrou provar, quanto à razão da assunção daqueles montantes pelos clientes a quem foram emitidas as facturas em causa nos presentes autos,
•E, sempre se tendo por certo que, procederam os próprios clientes, em momento posterior, à regularização de parte dos montantes liquidados.
4.15. Sempre o Tribunal Recorrido, convocando as máximas da experiência comum, deveria concluir que caso os clientes tivessem efectivamente pago o IVA e, bem sabendo que a sociedade “D. A., Unipessoal” o houvera recebido, não iriam aqueles, voluntariamente, pagar novamente os montantes que já haviam pago (ainda mais quando em causa estão quantias tão avultadas como as dos autos).
4.16. Todo o exposto, sempre o Tribunal Recorrido deveria ter considerado por não provada o recebimento pela Sociedade D. A. Lda. e, como tal, a apropriação de tal montante pelo Recorrente - pelo que, sempre a factualidade descrita em 4., 5., 6., 7., 8., 9., 10., e 11., deveria passar a constar dos factos não provados!
4.17. E, consequentemente, deveria o Tribunal Recorrido decidir pela falta de verificação dos pressupostos objectivos do crime de abuso de confiança fiscal p. e. p. art. 105º RGIT!
4.18. Isto porque, só pode praticar esse crime se tiver recebido o montante da prestação tributária, se esta lhe tiver sido entregue pelo adquirente.
4.19. Não resultando provado o efectivo recebimento pela Sociedade D. A. Lda. do IVA no valor total de €265.769,13 (duzentos e sessenta e cinco mil, setecentos e sessenta e nove euros e treze cêntimos) e, muito menos, a sua apropriação pelo Recorrente sempre o Tribunal Recorrido em respeito do PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO, deveria considerar não provada - a factualidade descrita em 4., 5., 6., 7., 8., 9., 10., e 11., e
4.20. Consequentemente, não podia o Tribunal Recorrido entender pela condenação do arguido, mas antes - uma vez que não estão verificados os elementos objectivos do crime de abuso de confiança fiscal - a dedução ou o recebimento da prestação tributária - pelo não preenchimento do ilícito típico do artigo 105º do RGIT.
4.21. Concluindo-se, pois, pelo não preenchimento dos pressupostos objectivos do ilícito típico de vem o arguido- ora Recorrente - vem acusado, deveria o Tribunal Recorrido entender pela sua absolvição!
4.22. Dúvidas não podem restar de que a AT não está privada dos montantes referidos na acusação, pois recebeu-os (em grande parte) dos clientes da arguida.

Por sua vez, no que tange à segunda questão objecto deste recurso:

5. DA NÃO APLICAÇÃO AO CONDENADO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO (MEDIDA CONCRETA DA PENA APLICADA AO ARGUIDO, E, AS CONDIÇÕES DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA)
5.1. Considerou o Tribunal Recorrido, que in casu, atenta a situação socio-económica do arguido, os seus rendimentos conhecidos, bem assim o elevado valor da dívida em causa que, não seria possível ao arguido cumprir a condição de pagamento da divida e legais acréscimos - decidindo por não suspender a execução da pena de prisão optando antes por medida substitutiva de trabalho a favor da comunidade.
5.2. Portanto, o Tribunal Recorrido apesar de verificados todos os pressupostos da suspensão da execução da pena de prisão, porque demonstrado que o Recorrente não tem possibilidades de pagar as quantias condicionantes da suspensão da execução da pena-entendeu pela adopção de outra pena substitutiva!
5.3. Destarte, apesar do condenado reunir os pressupostos legais para beneficiar da suspensão de execução da pena, a mesma não lhe foi aplicada pelo simples facto de não ter condições de liquidar a prestação tributária em falta e legais acréscimos durante o período da suspensão, aplicando-se-lhe por isso, uma pena de substituição diversa da suspensão da execução da prisão.
5.4. O entendimento sufragado pelo Tribunal Recorrido tem vindo a merecer fortes críticas pela jurisprudência considerando-o como violador de garantias constitucionalmente consagradas – como sendo, o princípio da dignidade humana e o princípio da igualdade, consagrados nos artigos 1º e 13º da CRP.
5.5. Da análise dos preceitos legais e da jurisprudência obrigatória do Supremo Tribunal de Justiça, não nos parece, contrariamente ao que sustenta o Tribunal Recorrido que, nos crimes tributários, a suspensão de execução da pena de prisão aplicada, só possa ser possível desde que condicionada ao pagamento da prestação tributária e legais acréscimos, isto é, desde que o condenado tenha condições de pagar a prestação tributária e legais acréscimos…
5.6. A defesa desta tese levaria a que dois arguidos na mesma situação processual, em que ambos reunissem condições para beneficiar do regime de suspensão de execução da pena, mas com diferente situação financeira, um pudesse beneficiar da mesma (porque tinha condições para liquidar a prestação tributária devida) e outro não pudesse (por não ter condições financeiras para liquidar a prestação tributária).
5.7. Tal situação acarretaria, inexoravelmente, uma violação do princípio da igualdade previsto no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa e seria inconstitucional.
5.8. Sempre se diga que, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2012 (citado pela decisão recorrida) tal como o artigo 14º do RGIT, não afastam a aplicabilidade do artigo 51º, nº 2 do Código Penal, o qual materializa a protecção constitucional da dignidade da pessoa humana, como se alcança do artigo 1º da Constituição da República Portuguesa.

Todo o exposto:

5.9. Considerando o preceituado pelo artigo 50º, nº1 e, sempre o disposto no artigo 51º, nº2, não obstante a condição do artigo 14º do RGIT, sempre o Tribunal Recorrido, ainda que, concluindo que a situação socioeconómica do arguido não lhe permite liquidar a prestação tributária em falta e legais acréscimos durante o período da suspensão: Deveria ter decidido pela suspensão da execução da pena de prisão!
5.10. Não o fazendo, violou o Tribunal a quo disposto no artigo 51º, nº2 do CP, o princípio da dignidade da pessoa humana e a garantia constitucional de igualdade dos cidadãos (vide artigos 1º e 13º da CRP).

Termos em que deve ser revogada a decisão recorrida e substituindo-a por outra que absolva o Recorrente, ou e, sempre decidindo pela suspensão da execução da pena de prisão!

Notificado o Ministério Público, nos termos do disposto no artigo 411º do Código do Processo, veio o mesmo pronunciar-se, no uso da faculdade a que alude o artigo 413º do mesmo diploma legal, no sentido da improcedência do recurso interposto alegando as seguintes conclusões (resumo):

1. Insurge-se o recorrente contra a matéria de facto provada, nomeadamente a que considerou que a sociedade arguida recebeu o IVA que vem reportado na acusação e não o entregou ao Estado, invocando que não se provou a razão do não pagamento e ainda que subsistem dúvidas quanto ao montante do IVA apropriado, alegando que foi violado o princípio do in dubio pro reo.
2. Alega ainda, subsidiariamente, seja a pena aplicada suspensa na sua execução, invocando existir violação do princípio constitucional da igualdade.
3. Salvo melhor opinião, não assiste razão ao recorrente.
A nosso ver, a matéria de facto encontra-se correctamente apreciada e valorada não merecendo qualquer reparo nem enfermando de qualquer vício ou nulidade.
Com efeito, os elementos probatórios assentam em prova documental que comprovam o recebimento do IVA em causa nos autos, quer nas informações posteriormente prestadas pela Autoridade Tributária, quer ainda pelo depoimento do Sr. Inspector Tributário, cujo depoimento, por não ter sido inequívoco, suscitou o pedido de esclarecimentos adicionais à AT, a qual, de forma inequívoca, esclareceu a falta de entrega ao Estado do IVA em causa.
Destes factos, não existem dúvidas, ainda que outros crimes, nomeadamente de fraude fiscal, possam eventualmente ter sido praticados e que não afastam a punibilidade do crime pelo qual o recorrente foi condenado.
Não tendo tido o tribunal dúvidas quanto aos factos que deu como provados, não colhe a violação do princípio in dubio pro reo.
De resto, não se alcança que o recorrente pretenda a suspensão da execução da pena, quando o tribunal substituiu a pena de prisão por outra pena ainda menos gravosa!
Assim, com o devido respeito, não faz sentido, invocar uma inconstitucionalidade com base numa (putativa) pena que não foi aplicada.
4. Assim, não existem razões para alterar ou modificar a matéria de facto provada nem a pena a pena a que o recorrente foi condenado

Termos em que, nestes e nos mais de Direito, deve julgar-se improcedente o presente recurso, mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.

O Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal da Relação de Guimarães emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso.

Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2 do Código do Processo Penal.

Procedeu-se a exame preliminar.

Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir do recurso apresentado.

Na sentença recorrida, com relevância para a decisão da matéria recursal, foi feito constar o seguinte:

FUNDAMENTAÇÃO:

Factos provados

1. A sociedade D. A., Unipessoal, Lda., contribuinte nº …, com sede na Travessa …, Braga, está registada em Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) na actividade de actividades de limpeza geral em edifícios (CAE: …), tendo como competente o Serviço de Finanças de Braga 1 e está enquadrada, para efeitos do Imposto Sobre o Valor Acrescentado (IVA), no regime normal de periodicidade trimestral.
2. O sócio gerente da referida sociedade era e é o arguido D. A., sendo este que de facto e de direito geriu e administrou esta sociedade, tomando todas as decisões respeitantes ao seu funcionamento.
3. A sociedade referida realizou operações tributáveis, não tendo procedido, nos termos dos artºs 19º a 26º e 78º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (CIVA), ao envio das declarações periódicas referidas no artº 41º do CIVA, relativa ao primeiro trimestre de 2014.
4. No entanto, emitiu facturas, liquidou e recebeu o IVA correspondente.
5. Quadro I

Período a que respeita a infracçãoMontante da prestação tributáriaData limite de pagamento
2º Trim/2013€28.774,0015/08/2013
3º Trim/2013€82.469,9515/11/2013
4º Trim/2013€46.081,1915/02/2014
1º Trim/2014€31.043,1015/05/2014
2º Trim/2014€32.547,5315/08/2014
3º Trim/2014€28.274,8315/11/2014
4º Trim/2014€16.578,4015/02/2015

6. Ascende deste modo a €265.769,13 (duzentos e sessenta e cinco mil, setecentos e sessenta e nove euros e treze cêntimos), o montante de imposto sobre o valor acrescentado apurado e não entregue, tendo decorrido 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega, sem que tenha sido realizada qualquer diligência no sentido da sua regularização.
7. A prestação tributária em causa nos autos não foi comunicada à administração tributária através da respectiva declaração.
8. A sociedade D. A. Unipessoal, Unipessoal, Lda. recebeu efectivamente os seguintes valores:
9. Quadro II

PeríodoIVA liquidadoData limite de pagamentoIVA recebido dos clientes dentro do prazo% IVA recebido dos clientes dentro do prazo
2º Trim/2013€28.774,1315/08/2013€25.695,3089%
3º Trim/2013€82.469,9515/11/2013€82.469,95100%
4º Trim/2013€46.081,1915/02/2014€46.081,19100%
1º Trim/2014€31.043,1015/05/2014€30.214,2597,33%
2º Trim/2014€32.547,5315/08/2014€32.547,53100%
3º Trim/2014€28.274,8315/11/2014€22.976,1781,26%
4º Trim/2014€16.578,4015/02/2015€16.578,40100%

10. Porém, a sociedade D. A. Unipessoal, Unipessoal, Lda., não deu a esses montantes o destino devido, não os entregando ao Erário Público, como devia, nos prazos legais, nem regularizando tal pagamento noventa dias volvidos sobre essas datas, como estava legalmente obrigada, e integrou tais quantias no montante global de €265.769,13 (duzentos e sessenta e cinco mil, setecentos e sessenta e nove euros e treze cêntimos), no seu património, apropriando-se dos mesmos, como era seu propósito.
11. O arguido D. A. agiu, por si e na qualidade de sócio-gerente da sociedade referida, em clara violação das disposições legais relativas ao dever de entrega, como se estas integrassem os activos que se servia para suportar o giro comercial, sabendo que não lhe pertenciam e com plena consciência de que a sua conduta era proibida por lei.

Mais se provou que:

12. A sociedade “D. A., Unipessoal, Lda.” (D. A.), foi declarada insolvente, por decisão de 03/12/2014, por decisão de 03/05/2015, foi encerrada a sua liquidação, por insuficiência da massa insolvente, encontrando-se cancelada a matrícula desde 03/06/2015 (certidão de fls. 361-364).
13. O arguido foi também sócio gerente da sociedade X, Unipessoal, Lda., declarada insolvente em 22/12/2015, encerrada a liquidação por insuficiência da massa insolvente em 10/02/2016 e cancelada a matrícula (fls. 365-369).

Da situação socioeconómica do arguido (relatório social)

14. O arguido cresceu num contexto socioeconómico de humildes recursos, assente na actividade do progenitor, funcionário de uma serração. A mãe era doméstica e, após a separação conjugal, vivenciou muitas dificuldades económicas para proporcionar condições de vida dignas aos 4 filhos, situação que os expôs à necessidade de um início precoce de actividade profissional.
15. D. A. terminou o 5º ano de escolaridade e aos 12 anos e começou de imediato a trabalhar numa metalurgia, onde se manteve durante 3 anos. Seguidamente trabalhou junto de um tio, como pintor de automóveis, durante 4 anos, e, seguidamente na Y durante um ano. Depois do encerramento desta última empresa o arguido experienciou outra área de trabalho, limpezas, iniciando funções numa empresa do ramo Limpa ... onde permaneceu durante 9 anos. Posteriormente passou a laborar numa outra – P. Unipessoal, permanecendo aí cerca de 8 anos. O facto de desenvolver com agrado esta actividade e ter entretanto conseguido uma carteira de clientes, optou por se estabelecer por conta própria, tendo recorrido à ajuda de pessoa amiga para desenvolver um projecto com o apoio do IEFP. Contudo, por incumprimento da entrega desse projecto na data prevista, até Dezembro/2009, o arguido não usufruiu do apoio daquele organismo, mas como já havia investido no arrendamento de espaço e equipamentos decidiu avançar com a constituição da empresa D. A. – D. A. Unipessoal Lda., em 2010.
16. O arguido iniciou o consumo de bebidas alcoólicas no período da adolescência, hábito que foi intensificando, com manifestação de forte dependência a partir dos 20 anos de idade.
17. Com o apoio da família, submeteu-se a tratamento de desintoxicação alcoólica no Departamento de Psiquiatria do Hospital de Braga, há 13 anos, mantendo-se abstinente desde essa data.
18. O arguido contraiu matrimónio aos 25 anos de idade. O casamento terminou findos 3 anos de união, ruptura motivada pelos hábitos de adição do arguido.
19. Tendo por referência a data dos factos, o arguido geria a empresa D. A.-D. A. Unipessoal Lda., que prestava serviços de limpeza e que desde o início já se debatia com dificuldades económicas. Exerceu actividade durante 4 anos, com uma facturação considerada adequada, mas insuficiente a partir de 2013/2014.
20. No entanto, D. A. continuou a laborar na tentativa de ultrapassar as dificuldades financeiras, até que há dois anos uma das funcionárias da D. A. - D. A. Unipessoal Lda., enquanto credora, iniciou o processo de insolvência da mesma.
21. O arguido reside com a progenitora há 18 anos, e desde o divórcio, mantendo com este familiar uma relação de grande proximidade. Com o pai não mantém contactos, uma vez que este vive com uma companheira, relação que não foi aceite pela família.
22. O arguido e a mãe residem no rés-do-chão de uma habitação antiga, que coube ao irmão mais velho do arguido após processo de partilhas, elemento que ocupa o primeiro piso da habitação.
23. O arguido caracteriza o relacionamento familiar como coeso e vinculativo.
24. Economicamente a família subsiste com a pensão de reforma da mãe do arguido no valor de 240 €.
25. O arguido realiza tarefas na área das limpezas sem vínculo formal, mas perspectiva conseguir uma colocação numa empresa de serviços de limpeza no Porto. Com as tarefas que realiza, segundo o próprio, consegue um rendimento que varia entre 500 e 600€, o que lhe permita assegurar as suas despesas pessoais e apoiar a mãe nas despesas da casa.
26. D. A. mantém-se em acompanhamento no Departamento de Psiquiatria do Hospital de Braga, com consultas anuais. O arguido está abstinente há 13 anos e sem registo de recaídas.
27. O arguido é considerado pela família como pessoa afável e trabalhadora.
28. D. A. ocupa o tempo livre que dispõe no convívio com os vários elementos da família de origem, mãe e irmãos.
29. No meio de residência o arguido é tido como pessoa educada, trabalhadora e que mantém com os vizinhos uma relação de proximidade e cordialidade no trato.
30. O arguido manifesta forte preocupação face à qualidade de arguido, receando o desfecho do presente processo, contextualizando o mesmo num período conturbado da sua vida profissional.
31. Como repercussões do presente processo o arguido sinaliza algum desgaste emocional e, sobretudo, preocupação pelos familiares em face da preocupação destes pelo seu envolvimento com a justiça.
32. Em abstracto e perante a problemática criminal em causa, o arguido foi capaz de se pronunciar de forma crítica sobre a sua ilicitude e a existência de danos.
33. Na eventualidade de condenação, o arguido mostra-se receptivo para a execução de uma sanção na comunidade.
34. O arguido não possui antecedentes criminais. Factos não provados:

C. Motivação da decisão de facto

O Tribunal baseou a sua convicção no conjunto da prova produzida em audiência, à luz do princípio da livre apreciação da prova consagrado no artº 127º do Código de Processo Penal e na estrita observância do princípio da legalidade (artº 125º), do princípio da presunção de inocência e do princípio in dubio pro reo que vigora em direito penal, com acolhimento na Lei Fundamental (artº 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa), designadamente: - Auto de Notícia de fls. 39-40, 49-51 e anexo de fls. 46 (CD: facturas, meios de pagamento, comprovativos do recebimento, que se encontram juntos a fls. 98-328;
- Declarações de correcção de IVA fls. 64-71;
- Certidão permanente de fls. 4-7, 42-45, 52-55, 361-364;
- Certidão permanente de fls. 365-369 (X); relatório final de inspecção e informação tributária da X, de fls. 378-397 e 404-406;
- Informação Inspecção Tributária de fls. 56-63;
- Parecer fundamentado de fls. 337-347.
- Informações da AT constante da refª 7956395 (de 07/12/2018), constante de fls. 447 vº;
- Informação de fls. 441 (“W, Lda.), fls. 448 e 459-462 e relatórios da AT juntos a fls. 463-469, 470-491, 492-497.
- Certificado de registo criminal de fls. 420.
- Relatório social de fls. 421-423, quanto aos factos apurados nos pontos 14-33;
- O arguido D. A., não prestou declarações em audiência, no uso do direito fundamental ao silêncio, que a lei processual penal lhe confere (artºs 61º, nº 1, al. d) e 343º, nº 1 do Código de Processo Penal), decorrente do princípio da presunção de inocência, constitucionalmente vertido no artº 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.
- A testemunha J. N., inspector Tributário, aludiu à acção inspectiva realizada, às facturas detectadas e conhecidas (havendo ainda outras que não foram localizadas) e não declaradas (não foi cumprida a obrigação declarativa); à forma como apurou o recebimento do IVA facturado através de circularização junto dos respectivos clientes e meios de pagamento exibidos), na percentagem indicada nos autos, encontrando-se o valor mencionado na acusação por regularizar.
- A testemunha M. D., contabilista certificada da sociedade até 2012, referiu que o arguido era o gerente da empresa e era com ele com quem contactava no exercício da sua actividade; que o arguido deixou de lhe entregar os documentos necessários à elaboração da contabilidade e “depois apareceu com documentos acumulados”; mais referindo que se tratava de uma empresa pequena.
- A testemunha B. P., funcionária do arguido/sociedade por ele representada, como empregada de limpeza nos escritórios e condomínio, até 2013, referiu que, nesse período o arguido sempre pagou os salários direitinho, abonando no mais a personalidade do arguido: respeitador, trabalhador, trabalhava nas limpezas, junto com os funcionários e trabalha actualmente numa empresa da qual a declarante é titular.
- A testemunha R. J., gerente comercial, explicou que era com o arguido com quem contactava, no âmbito dos serviços de limpeza e jardinagem que “a empresa dele” prestou ao declarante, abonando no mais a personalidade do arguido.
- A testemunha J. P., trabalhou com o arguido, durante 7/8 anos, sempre lhe pagou, apesar da sua modesta situação económica, quer nessa ocasião, quer actualmente.
- Do correlacionamento dos meios de prova acima indicados, entendemos não terem resultado dúvidas quanto aos factos acima dados como provados, que constituem o objecto do processo delimitado pela acusação deduzida nos autos.
- Quanto à responsabilidade pelo arguido pela gerência da sociedade “D. A. Unipessoal, Lda. (D. A.), mostra-se esta factualidade sustentada pelo teor da certidão permanente da sociedade (361-364) e pelos depoimentos conjugados das testemunhas M. D., contabilista certificada da empresa até 2012, B. P. (trabalhadora), R. J. (cliente) e J. P. (trabalhador), todos confirmando que era o arguido quem exercia efectivamente as funções de gerência vertidas na certidão do registo comercial documentada nos autos.
- Quanto aos valores de IVA liquidado e recebido constantes dos quadros I e II, mostram-se de harmonia com as facturas e meios de pagamento constantes do anexo 46 (cfr. fls. 98-328), conforme sustentado em audiência pela testemunha J. N..
- Estes elementos probatórios em nada foram infirmados pela prova documental carreada ao processo no decurso da audiência, nem pelas conclusões já contidas nos relatórios da autoridade tributária (fls. 56-63 e 337-347), apontando para a existência de matéria indiciária quanto à verificação de “facturas falsas”, subsumível ao crime de fraude fiscal (cf. fls. 346), materialidade que todavia não foi levada à acusação, até porque ambos os referidos ilícitos são autonomamente puníveis em concurso real de infracções. Com efeito, não contraria os factos apurados, o facto de terem existido eventualmente facturas falsas, nem as correcções, nomeadamente em sede de IVA (cf. relatório de fls. 378 e declarações de correcção realizadas (fls. 64-71), nem tampouco as declarações de substituição de IVA emitidas, na sequência da fiscalização, por parte de alguns clientes (…, SGM – Serviços Gerais de Manutenção, Lda., … – Motors – Unipessoal, Lda.), conforme resulta da informações complementares e dos relatórios juntos aos autos a fls. 459 e sgs, que, diga-se, sempre seria irrelevantes quanto aos factos em apreço, porquanto os valores do IVA constantes de tais declarações de substituição são, aliás, substancialmente superiores aos declarações iniciais (cf. quadros de fls. 461 e 462). Sejam falsas ou não, o certo é que as facturas indicadas nos autos foram emitidas (fls. 98-328) e o IVA nelas mencionado foi pago à sociedade D. A. pelos clientes na percentagem indicada, e não foi entregue ao Estado nos prazos legais, não tendo sido sequer declarado.
- Por outro lado, apesar de ser plausível que a conduta foi empreendida num contexto de dificuldades económicas da empresa, que culminaram logo após com a declaração de insolvência, certo é que a sociedade foi procedendo ao pagamento de outras despesas, mormente o pagamento de salários de trabalhadores (cf. depoimentos das testemunhas B. P. e J. P.), sendo pois ao arguido, na qualidade de legal representante da empresa D. A., objectivamente possível, caso fosse essa a prioridade escolhida - embora com consequências difíceis e lesivas naqueles outros domínios que o arguido priorizou -cumprir a obrigação legal, fundamento da responsabilidade que lhe vem assacada nos autos. Tampouco se demonstrou a ocorrência de qualquer causa de exclusão de procedibilidade, dado que, como resulta da informação de fls. 447, os montantes de IVA não foram pagos, nem pelo arguido, nem pela sociedade D. A., nem por qualquer dos alegados clientes, independentemente das declarações de substituição mencionadas nos pareceres/relatórios de fls. 463 a 497 (cf. ainda 441, 448, 458 a 462, nem tal factualidade permitiria tal exclusão de punibilidade, dado que o sujeito passivo de IVA não cumpriu nos prazos legais a obrigação declarativa e as declarações de correcção de IVA de fls. 64 a 71, apenas ocorreram na sequência da acção inspectiva, não sendo consequentemente aplicável o artº 105º, nº 4, al. b) do RGIT, conforme aliás mencionado (matéria de direito) a fls. 401 na douta acusação (cf. ponto 7 dos factos provados).

D. Matéria de direito Enquadramento jurídico-penal

Do crime de abuso de confiança fiscal

Nos termos do artº 105º, nº 1 da Lei nº 15/2001, de 05/06, pratica o crime de abuso de confiança fiscal:

“1- Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
2- Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
3- É aplicável o disposto no número ainda que a prestação tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.
4- Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se: a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação; b) a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito.
5- Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega for superior a (euro) 50000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 dias a 1200 dias para as pessoas colectivas.
6- (Revogado pela Lei nº 64-A/2008, de 31/12).
7- Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.”

De harmonia com as disposições conjugadas dos artºs 28º, nº 1, al) c) e 40º do CIVA, os sujeitos passivos de IVA, estão obrigados a proceder à entrega na Direcção de Serviços de Cobrança do IVA, das declarações periódicas referentes às operações efectuadas, com indicação do imposto devido e dos elementos que contribuíram ou serviram de base ao seu cálculo e estava legalmente obrigados, fazendo acompanhar tal declaração do respectivo meio de pagamento do montante do imposto respectivo.

Nos termos do artº 26º, nº 1 e 40º, nº 1, al. a) do CIVA as quantias assim liquidadas deverão ser entregues até ao dia 15 do 2º mês seguinte ao trimestre do ano civil a que respeitam as operações, no que respeita às obrigações trimestrais (redacções dos Decreto-Lei nº 139/92, de 17/07 e Decreto-Lei nº 418/99, de 21/10).

Este dever constitui uma obrigação pública com assento constitucional (artº 103º e 104º da Constituição da República Portuguesa), considerando a importância que assume num Estado de direito democrático a obrigação deste para a concretização de uma democracia económica, social e cultural, visando garantir a todos a possibilidade de uma existência em condições de dignidade, o que acarreta a necessidade da criação e cobrança de impostos. Apesar da natureza da ultima ratio da intervenção penal, a relevância dos interesses públicos imanentes a essas obrigações do Estado e dos cidadãos, bem como a frequência e a amplitude das condutas que os infringem e os dados da experiência sobre a insuficiência de medidas ou reacções menos limitadoras do que as sanções penais, justificam a criminalização e a punição, até com pena de prisão, nos termos previstos na lei.
A legitimidade da incriminação advém, por conseguinte, da própria Constituição da República Portuguesa.

Neste sentido, cfr Ac. RP de 05-12-2001, in www.dgsi.pt/jtrp; Ac. RC de 19-03-2003, in www.dgsi.pt/jtrc; Acs. STJ de 22-01-2003 e de 29-01-2003, ambos in www.dgsi.pt/jstj e, ainda, os Acs. do Tribunal Constitucional nº 348/97, D.R., II Série de 25-07-1997 e nº 312/2000, D.R., II Série, n.º 240, de 127-10-2000.

Por isso a obrigação do pagamento de impostos, dada a sua natureza, sobrepõe-se ao cumprimento de outras obrigações do devedor tributário, nomeadamente o pagamento de salários, ou outras despesas essenciais ao prosseguimento da sua actividade comercial.
E independentemente do cumprimento de tais obrigações do ponto de vista fiscal, encontra-se firmada a jurisprudência, nos termos do Ac. de Uniformização de Jurisprudência do STJ nº 8/2015, de 02/06/2015, no sentido de que “A omissão de entrega total ou parcial, a administração tributária de prestação tributária de valor superior a 7.500 euros relativa a quantias derivadas do Imposto sobre o Valor Acrescentado em relação às quais haja obrigação de liquidação, e que tenham sido liquidas, só integra o tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal, previsto no artº 105º, nº 1 e 2 do RGIT, se o agente as tiver efectivamente recebido.”
O crime de abuso de confiança fiscal consuma-se pois no momento em que o agente não entrega a prestação tributária devida, pelo que o valor a considerar, para estes efeitos, será o valor de devia ter sido pago nesse momento, de acordo com a declaração periódica prestada pelo agente, desde que se prove que os valores foram efectivamente retidos e em valor superior a 7500 euros.
Neste sentido, vd entre outros, o Ac. do TRC de 24/04/2013, in www.dgsi.pt: “O crime de abuso de confiança fiscal, recortado no artigo 105º do RGIT, é um crime omissivo puro, que se consuma no momento em que o agente não entrega a prestação tributária devida, ou seja, a prevista no artº 7º da referida norma. As circunstâncias indicadas no nº 4 do mesmo artigo 105º configuram condições objectivas de punibilidade, isto é, elementos que não se ligam nem à ilicitude nem à culpa, mas que decidem sobre a punibilidade do facto. Assim, o pagamento parcial da prestação tributária, mesmo que feito no prazo a que se reporta a al. a) do artigo 105º do RGIT, não pode ter a virtualidade de alterar o montante da prestação tributária para efeito de responsabilidade penal do devedor pela prática do crime de abuso de confiança fiscal.”
No mesmo sentido, cf. ainda Ac. do TRE, de 10/12/2013, in www.dgsi.pt.

Para o caso, chega a ser indiferente o destino dado a essas quantias, não sendo necessária sequer a prova de que as mesmas tenham sido gastas em proveito exclusivo da empresa ou dos seus sócios, ou seja, o enriquecimento da sociedade tanto pode traduzir no aumento do activo, como na diminuição do seu passivo.
Actualmente, o elemento da apropriação foi mesmo eliminado do artº 105º, bastando-se o preenchimento do tipo com a não entrega da prestação tributária deduzida nos termos da lei e que o agente estava legalmente obrigado a entregar.
Conforme se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 14/10/2015, in www.dgsi.pt: São elementos constitutivos deste crime: [Tipo objectivo] – que o agente, estando legalmente obrigado a entregar à administração tributária; - prestação tributária deduzida nos termos da lei; - prestação deduzida por conta daquela prestação tributária; ou; - prestação que tendo recebido, tenha a obrigação legal de liquidar; - de valor superior a €7.500,00 [limiar da tipicidade foi introduzido pela Lei nº 64-A/2008, de 31/12] omita, total ou parcialmente tal entrega; [Tipo Subjectivo] – o dolo, conhecimento e vontade de praticar o facto com consciência da sua censurabilidade, em qualquer das modalidades previstas no artº 14º do C. Penal, posto que não se exige qualquer dolo específico.”

No caso em apreço, pelas razões constantes da fundamentação de facto, resulta dos factos provados, que o arguido, na qualidade de legal representante e actuando em nome e no interesse da pessoa colectiva, sua representada, não procedeu à entrega ao Estado das quantias efectivamente recebidas, a título de IVA, no valor global de €265.769,13, retendo e revertendo as respectivas quantias em benefício da empresa, sabendo que as mesmas lhes não pertenciam, nem à empresa que geria, o que constitui uma verdadeira inversão do título da posse.
E pese embora as dificuldades económicas, não se provou qualquer facto que possa excluir a ilicitude ou a culpa do arguido, uma vez que cabia ao mesmo a opção pela forma de gestão mais adequada e compatível com a tutela dos valores criminal e constitucionalmente protegidos, sendo certo que, no período em causa a empresa efectuou outros pagamentos, designadamente os salários de trabalhadores.
Neste sentido, cfr Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 10/01/2018, in www.dgsi.pt, “A prova de que, fruto de uma opção de gestão errada e estrutural, o arguido resolveu dar prevalência ao pagamento dos salários dos trabalhadores, rendas e outros custos de laboração, não pode ser considerada suficiente para levar à conclusão de que actuou numa situação de conflito de deveres excludente da ilicitude.”
Pelo que acima fica dito, damos por verificados, todos os elementos (objectivos e subjectivos) de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p.p. 105º, nº 1 e 5 do RGIT.
Com efeito, verifica-se que, a resolução criminosa se manteve ao longo do ininterrupto período temporal apurado (desde o 2º Trimestre de 2013 até ao 4º Trimestre de 2014), embora traduzida numa pluralidade de acções naturalísticas e o somatório de toda actividade é superior a €50,000,00 (da mesma forma que já o era a prestação do 3º Trimestre de 2013, no valor de €82.469,95, integralmente recebida, sendo também pois a qualificação do crime agravada pelo nº 5 do artº 105º, caso se entendesse ocorrer uma situação de crime continuado).
Neste sentido, cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 20/12/2012, in www.dgsi.pt: “Condenado o arguido pela prática de um crime único de abuso de confiança fiscal (embora traduzido numa pluralidade de acções naturalísticas), o valor a atender para integrar a sua conduta no nº 1 ou no nº 5 do artº 105º do RGIT é o correspondente ao somatório de toda a actividade.”
Não se verificam causas de exclusão da ilicitude ou da culpa.
Por outro lado, tal como se disse na fundamentação de facto, irrelevante se torna saber se, in casu, ocorreram ou não factos que pudessem ser subsumíveis ao crime de fraude fiscal, dado que tal factualidade não excluiria a ilicitude dos factos em apreço nos presentes autos e acima dados como provados, face à punibilidade, em concurso real de infracções, de cada um dos referidos ilícitos – neste sentido Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 24/10/2000, in www.dgsi.pt.

Determinação da medida da pena

Nos termos do artº 105º, nº 1 e 5 da Lei nº 15/2001, de 05/06, o crime de abuso de confiança fiscal é punível com pena de prisão de um a cinco anos.
Como resulta do artº 40º, nº 1 do Código Penal, a finalidade das penas visa assegurar a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, sendo que, nos termos do artº 71º do Código Penal, a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
Para tanto deverá atender-se a uma moldura legal de prevenção geral, entendida na sua modalidade positiva, de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária que garanta as expectativas comunitárias na validade e na vigência da norma violada e dos bens jurídicos pela mesma protegidos, o que nos dará o limite mínimo da pena a aplicar.
Por sua vez a culpa ditará o limite máximo inultrapassável das exigências de prevenção, não podendo em caso algum a pena ultrapassar a culpa (artº 40º, nº 2 do Código Penal).
As finalidades das penas – por um lado, de prevenção geral positiva e de reintegração e, por outro, de prevenção especial de socialização – conjugam-se na prossecução de um objectivo comum, a saber: o de por meio da prevenção de comportamentos danosos, proteger bens jurídicos comunitariamente valiosos.

Para determinação da pena concreta, ponderam-se as seguintes circunstâncias:

- As elevadas necessidades de prevenção geral, mormente nesta comarca e zona do país, dada a elevada incidência deste tipo de crime;
- O valor do montante global em causa (€265.769,13), prejuízo que não se encontra reparado, não existindo forma de o Estado obter a reparação coerciva (a sociedade está insolvente e encerrada a liquidação por insuficiência da massa insolvente e o arguido, a avaliar pelo relatório social elaborado, não tem capacidade para proceder ao seu pagamento).
- O período de tempo que perdurou a conduta delituosa (cerca de dois anos - menos o 1º trimestre de 2013);
- O contexto de dificuldades financeiras da empresa, sendo a opção de pagar salários essencial à subsistência da empresa;
- O dolo (dolo directo), revela intensidade normal neste tipo de ilícitos.
- Não se poderá valorar em favor do arguido a confissão, nem o arrependimento, dada a postura assumida em audiência.
- Contudo, pondera-se em favor do arguido, a sua modesta situação sócio económica, pautada pela precoce inserção laboral, a ausência de antecedentes criminais, mostrando-se familiar e socialmente inserido e revelando, no mais, uma vida normativa.
Tudo ponderado, entende-se adequado condenar o arguido na pena de 1 ano e 6 meses de prisão.

Das penas substitutivas

Em tese geral, o tribunal deve preferir à pena privativa da liberdade uma pena de substituição sempre que, verificados os respectivos pressupostos, a pena de substituição se mostre adequada e suficiente à realização das necessidades da punição.
São pois finalidades exclusivamente preventivas – de prevenção especial de socialização e de prevenção geral de defesa do ordenamento jurídico – que justificam a preferência por uma pena de substituição – Figueiredo Dias, “Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime”, pp 331-333.

No caso concreto, atenta a medida da pena, não se mostram preenchidos os requisitos previstos no artº 43º, nº 1 do Código Penal, quanto à possibilidade de substituição da pena por multa.
Todavia, preceitua o artº 58º, nº 1 do Código Penal que, “se ao agente dever ser aplicada pena de prisão não superior a dois anos, o tribunal substitui-a por prestação de trabalho a favor da comunidade sempre que concluir que por este meio se realizam de forma adequada as necessidades da punição.”
Para este juízo, importa pois ponderar se o arguido, deverá ser condenado em pena de prisão suspensa na sua execução, condicionada, nos termos previstos no RGIT, ou se poderá ainda ser condenado em outra pena de substituição, nomeadamente a prevista no artº 58º do Código Penal, face à possibilidade legal de substituição da prisão por prestação de trabalho a favor da comunidade, pena para a qual o arguido deu a sua expressa aceitação.
Neste juízo de ponderação, deverá atender-se à doutrina constante do Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ nº 8/2012, de 24/10, que, baseado em princípios de razoabilidade, veio determinar um especial juízo de cautela, na opção do regime de suspensão da execução da pena de prisão, no quadro das sanções fiscais, mediante a imposição ao condenado de condição - o pagamento dos tributos em dívida - que o mesmo não possa razoavelmente cumprir.
Com efeito, face ao regime geral do Código Penal, verifica-se que, nos termos do preceituado no artº 51º, nº 1, a possibilidade de a suspensão da execução da pena de prisão, pode ficar subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime.
Porém, de acordo com o nº 2 da referida norma, os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir, impondo por isso, ao julgador um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição por parte do condenado, tendo em conta a sua condição pessoal ou económica.

Ora, conforme jurisprudência do Ac. de Fixação de Jurisprudência do STJ nº 8/2012, in DR, 1ª Série, nº 206, de 24/10/2012: “No processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e. p. artº 105º, nº 1 do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artº 50º, nº 1 do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artº 14º, nº 1 do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia.”
Tal como se refere no aludido Acórdão, “De pouco valerá impor um dever económico de forma cega só porque a lei a impõe de forma automática, dir-se-ia, num posicionamento que roça a total e completa alienidade em relação ao concreto ser julgado e condenado, quando não só pelo exagero do montante, não arbitrado mas imposto, pelo muito curto prazo assinalado para o cumprimento […] seria dentro de um juízo de normalidade das coisas da vida do cidadão comum, de um juízo de verosimilhança, de antever o inevitável incumprimento […] Ao decretar-se a imposição da condição deve ter-se uma imagem global do condicionamento, da real dimensão económica do dever imposto, que a opaca fórmula legal de jeito algum deixa transparecer ”.
É certo que o referido acórdão não fornece a solução para a inevitabilidade de o julgador, reunidos os pressupostos para a suspensão da execução da pena de prisão, ser confrontado com a incapacidade do agente em cumprir a condição imposta, de forma automática, pelo artº 14º, nº 1 do RGIT, deixando porém ao julgador a tarefa de adoptar pela solução mais justa e equilibrada, compatível com o quadro legal acima apontado e orientando o julgador para a clara opção por outra pena de substituição, sempre que tal seja legalmente possível.
Reportados ao caso concreto, ponderando a situação socioeconómica do arguido apurada nos autos e os seus rendimentos conhecidos, bem assim o elevado valor da dívida em causa, facilmente se concluiu que fazer depender a suspensão da execução da prisão, do efectivo pagamento da dívida e legais acréscimos, apenas poderá equivaler ao protelar, mais ou menos prolongado, da execução de uma pena de prisão anunciada, pois que o cumprimento de tal condição se mostra inexequível, incompatível e desproporcional ao quadro de possibilidades económicas revelado pelo arguido.
Assim, no caso em apreço e pese embora as necessidades de prevenção geral sejam elevadas e elevado também o prejuízo patrimonial decorrente da conduta, provou-se todavia que o arguido praticou os factos no âmbito do giro comercial da sociedade, não se provando que tenha sido em proveito próprio.
São também desconhecidos antecedentes criminais ao arguido relativamente à prática de outros crimes de natureza fiscal, ou de qualquer outra natureza.
Face a todo este circunstancialismo, ao tempo decorrido e à sua actual situação profissional, não lhe sendo conhecido o exercício de qualquer função de gerência de pessoa colectiva, entendemos que a presente condenação deverá, por si só, obstar a que o mesmo repita comportamentos semelhantes e impeli-lo ao respeito pelas obrigações fiscais, designadamente à entrega dos montantes de IVA.
Neste sentido, entendemos que as necessidades de prevenção especial consentem que a prisão possa ser substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade, satisfazendo, por outro lado, as expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada.
Assim, ao abrigo do artº 58º, nº 1 e 2 do Código Penal, a pena de 1 ano e 6 meses de prisão, será substituída pela prestação de 480 horas de trabalho (atendendo ao limite constante do nº 3 do artº 58º), nos termos do plano de trabalho que vier a ser elaborado pela DGRSP e que, homologado, fará parte integrante da decisão.
*
. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

O âmbito de conhecimento do recurso pode ser limitado a uma parte da decisão recorrida, desde que cindível, isto por forma a tornar possível a sua apreciação e a tomada de decisão autónoma, tal como o determina o nº 1 do artigo 403º do Código do Processo Penal, isto é apresenta-se como um “corolário da disponibilidade do direito a recorrer, parte sempre de um pressuposto básico: a possibilidade de autonomização da parte recorrida relativamente à sobrante decisão, por forma a que seja possível uma apreciação e uma decisão também autónomas relativamente ao restante decidido.” (1)Daqui se conclui, pois, que é das conclusões da motivação que se concretiza o objecto do recurso e, assim posto, o respectivo alcance, razão da superior importância da objectividade, clareza e concisão desse excerto final da motivação.
Claro está, sem o óbvio prejuízo do disposto no nº 3 do mesmo dispositivo legal, que impõe ao Tribunal que “A limitação do recurso a uma parte da decisão não prejudica o dever de retirar da procedência daquele (o recurso) as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida.”

Descendo ao caso dos autos, analisadas que sejam as conclusões apresentadas pelo recorrente, as questões que se apresentam a decidir são, pois, as seguintes:

. Impugnação da sentença, por erro de julgamento da matéria de facto dada como provada nos pontos 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10 e 11 da matéria de facto dada como provada, requerendo a reapreciação da matéria de facto, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 3 e 4 do Código do Processo Penal;
. Impugnação da sentença, por erro de direito, por violação do principio in dubio pro reo;
. Impugnação da sentença, por erro de direito, por violação do disposto no artigo 51º, nº 2 do Código Penal e dos artigos 1º e 13º da Constituição da Republica Portuguesa.
*

. DECISÃO

Considerando o que é disposto no artigo 428º do Código de Processo Penal aos Tribunais da Relação estão conferidos poderes de cognição de facto e de direito.

Apreciando a peça recursiva apresentada pelo recorrente D. A. verificamos que o mesmo começa por impugnar a decisão recorrida alegando a existência de erro de julgamento relativamente à matéria de facto dada como provada nos pontos 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10 e 11, lançando mão do mecanismo a que alude o artigo 412º, nºs 3, 4 e 6 do aludido diploma legal.

Entende-se existir erro de julgamento, de acordo com o disposto no artigo 412º, nº 3 do Código de Processo Penal, sempre que o Tribunal emita um juízo sobre determinado facto sem que acerca do mesmo tenha sido oferecida ou mandada produzir prova suficiente; situação em que o recurso visa a reapreciação da prova produzida e sedimentada nos autos, a ser apreciada em 2ª instância.
Há, assim, lugar a uma apreciação alargada, que não se fica pela decisão recorrida, antes se alargando à análise do conteúdo de toda a prova dos autos, sempre dentro dos limites especificados pelo recorrente face ao ónus que lhe é imposto pelos nº 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal.
Exige, nesta situação, a lei processual penal que o recorrente indique qual a matéria factual erroneamente julgada tal qual como qual a decisão de facto que se impõe face ao manancial probatório em contraponto à decisão de facto que consta da decisão recorrida, indicando a cada passo factual a justificação do facto alternativo que propõe como o acertado.
Como ficou decidido no Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 03/2012, publicado no Diário da Republica, I Série, nº 77, a 18 de Março de 2012 «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/ excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».
Absolutamente impressivo acerca desta matéria se apresenta a decisão do mesmo Tribunal (2) onde alude que “no que se refere à parte criminal, importa ter presente que o recurso em matéria de facto não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento da decisão recorrida, mas apenas, em plano diverso, uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre os «pontos de facto» que o recorrente considere injustamente julgados, na base, para tanto, da avaliação das provas que, na perspectiva do recorrente, imponham «decisão diversa» da recorrida (provas em suporte técnico ou transcritas quando as provas tenham sido gravadas) – art. 412º, nº 3, al. b) do CPP, ou determinado a renovação das provas nos pontos em que entenda que deve haver renovação da prova. Porém, tal sindicância deverá ter sempre uma visão global da fundamentação sobre a prova produzida de forma a poder acompanhar todo o processo dedutivo seguido pela decisão recorrida em relação aos factos concretamente impugnados (…).”

Resulta, pois, de harmonia com os nºs 3 e 4 do disposto no artigo 412º do Código do Processo Penal que o recorrente tem o ónus de especificar:

. Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
. As concretas provas que impõem (impõem e não permitem) decisão diversa da recorrida e, eventualmente;
. As provas que devem ser renovadas, sendo que quando tenha ocorrido a respectiva gravação, as especificações aludidas na lei devem ter lugar por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364º do Código do Processo Penal, havendo que ser feita a concreta indicação das passagens em que o recorrente fundamenta a respectiva impugnação».

No seguimento das alterações levadas a efeito em sede de lei adjectiva penal, mormente em 2007, a exigência colocada no recurso em sede de matéria de facto vem pugnando que o recorrente cumpra escrupulosamente o ónus de impugnação (dos factos erroneamente julgados), concretização das provas (que impõem diversa decisão) e, assim, formular uma interpretação (das indicadas provas) onde dê conta do respectivo exame critico que suporte a diversa decisão.

Como o já decidido pelo Tribunal da Relação de Coimbra (3) “I - Na impugnação da matéria de facto, com base em erro de julgamento, nos termos do art. 412.º, n.º 3, al. a) e b), do CPP, o recorrente deve especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida. II - Não basta impugnar a matéria de facto com base em erro de julgamento de uma forma genérica e apontar o sentido que deve ser dado à prova. III - Para além da indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, este tem ainda que expressar o respectivo exame crítico das mesmas, isto é o processo lógico e racional que foi seguido na apreciação das provas e depois a justificação pela qual o tribunal optou por determinada solução de direito. IV - Não basta fixar os factos, dando-os como provados ou não provados, mas é preciso explicar e dizer o porquê de tal opção, relativamente a cada um deles.”

Recurso este, que não obstante vise a correcção dos erros de julgamento não tem como desiderato um novo julgamento em que o Tribunal “ad quem” em que este tenha, necessariamente, de apreciar toda a prova produzida em sede de primeira instância como se o julgamento ali levado a efeito não tivesse qualquer valia ou sequer existisse.

Unanimemente o tem afirmado o mais Alto Tribunal (4) não podendo deixar de se destacar, pela sua assertividade, o decidido naquela instância (5) onde foi feito constar que “I - O recurso em matéria de facto («quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto») não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre os «pontos de facto» que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base da avaliação das provas que, na indicação do recorrente, imponham «decisão diversa» da recorrida (provas, em suporte técnico ou transcritas quando as provas tiverem sido gravadas) – art. 412.º, n.º 3, al. b), do CPP –, ou da renovação das provas nos pontos em que entenda que esta deve ocorrer. II - A reapreciação da matéria de facto, se não impõe uma avaliação global, também se não poderá bastar com meras declarações gerais quanto à razoabilidade do decidido no acórdão recorrido, requerendo sempre, nos limites traçados pelo objecto do recurso, a reponderação especificada, em juízo autónomo, da força e da compatibilidade probatória entre os factos impugnados e as provas que serviram de suporte à convicção. III - A delimitação precisa dos pontos de facto controvertidos constitui um elemento determinante na definição do objecto do recurso em matéria de facto e para a consequente possibilidade de intervenção do tribunal de recurso. (…)”

Tendo presentes estas exigências legais e sem esquecer todo o conteúdo da lide recursiva apresentada pelo recorrente D. A. importa concluir que o mesmo não deu cabal cumprimento, como lhe competia, às exigências versadas nos nºs 3 e 4 do artigo 412º do Código do Processo Penal.
Com efeito tendo identificado os «concretos pontos de facto» que entende incorrectamente julgados, e ainda vindo indicar as «concretas provas» não elaborou, como se lhe impunha, uma interpretação (das indicadas provas) onde dê conta do respectivo exame critico que suporte, a seu ver, a diversa decisão que veio pugnar.

Com efeito tal explicitação é um dos ónus que se impõe ao recorrente, face ao cotejado no artigo 412º do Código do Processo Penal, para obviar à ausência de imediação do Tribunal “ad quem”, explicitação que há-de traduzir a razão pela qual as indicadas e concretas provas impõem, e não só permitem, uma diversa decisão da recorrida.

Pela sua clareza se chama à colação o decidido pelo mais Alto Tribunal (6) onde se diz que “Com a Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, que deu actual redacção ao preceito (…), o legislador propôs-se alcançar dois objectivos: «tornar mais exigente a especificação dos pontos de facto impugnados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida no recurso da decisão sobre a matéria de facto e de pôr cobro ao dever de transcrição dos registos gravados», e em matéria da especificação das provas concretas «só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida», sendo «insuficiente a indicação genérica de um depoimento, de um documento, de uma perícia ou de uma escuta telefónica realizada entre duas pessoas», devendo o recorrente explicitar «por que razão essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida. Este é o cerne do dever de especificação. O grau acrescido de concretização exigido pela Lei n.º 48/2007, de 29.8, visa precisamente impor ao recorrente que relacione o facto individualizado que considera incorrectamente julgado (…)”, concluindo que no caso sub judice “O recorrente não cumpriu com essa imposição, por um lado, considerando os factos impugnados em bloco e, por outro lado, remetendo genericamente para os depoimentos das testemunhas (…) contrapondo em globo a valoração feita pelo tribunal, menosprezando todas as inferências retiradas pelo tribunal desses particulares depoimentos e dos demais meios de prova produzidos em audiência, nos termos em que a motivação da decisão melhor espelha».

A este propósito António Pereira Madeira (7) salienta que “o recorrente tem sobre si o ónus de: (…) concretizar (não bastando uma alusão genérica) os pontos de facto tidos por mal julgados; (…) indicar as provas concretas que em seu entender impõem julgamento diverso daquele também concreto ponto de facto (…)”.

Nestes termos, e considerando a finalidade a que se dirige o nº 6 do versado artigo 412º do Código do Processo Penal, este Tribunal “ad quem” está, assim, impossibilitado de levar a efeito o estabelecido no nº 6 do versado artigo 412º do Código do Processo Penal, isto é a reexaminar os meios probatórios que julgue relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa, de entre os indicados pelo recorrente D. A., além de outros que considerasse úteis e necessárias para alcançar tal desiderato.
Como já decidido pelo Tribunal da Relação de Coimbra (8) “Na impugnação da matéria de facto, com base em erro de julgamento, nos termos do art. 412.º, n.º 3, al. a) e b), do CPP, o recorrente deve especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida. II - Não basta impugnar a matéria de facto com base em erro de julgamento de uma forma genérica e apontar o sentido que deve ser dado como provado. III - Para além da indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, este tem ainda que expressar o respectivo exame crítico das mesmas, isto é o processo lógico e racional que foi seguido na apreciação das provas e depois a justificação pela qual o tribunal optou por determinada solução de direito. IV - Não basta fixar os factos, dando-os como provados ou não provados, mas é preciso explicar e dizer o porquê de tal opção, relativamente a cada um deles. (…).
Solução esta que o legislador impõe uma vez que, como bem saliente o Professor Germano Marques da Silva (9) “o poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação, apenas constitui remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância”.

Nesses termos, e pelos fundamentos aduzidos, improcede a lide recursal do recorrente D. A., no que atende à impugnação da sentença proferida, mediante impugnação ampla da matéria de facto, nos termos do disposto no artigo 412º do Código do Processo Penal.

O recorrente D. A. vem, também, na sua lide recursal colocar em crise a decisão recorrida por entender que a mesma viola o princípio “in dubio pro reo”, porquanto entende que face às declarações da testemunha J. N. tal como pelas informações juntas aos autos em 11 de Fevereiro de 2019 não existe prova suficiente do recebimento pela sociedade “D. A., Unipessoal, Lda.” e, menos ainda, por banda do ora recorrente, da quantia de €265.769,13, e assim que este último se tenha apropriado do montante de IVA em causa.

Nas palavras de Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira (10) «este princípio (o do in dubio pro reo) considera-se também associado ao princípio nulla poena sine culpa, pois o princípio da culpa é violado se, não estando o juiz convencido sobre a existência dos pressupostos de facto, o mesmo pronuncia uma sentença de condenação. Assim os versados princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo constituem a dimensão jurídico-processual do princípio jurídico-material da culpa concreta como suporte axiológico-normativo da pena».

Isso mesmo foi já afirmado pelo mais Alto Tribunal (11) quando decidiu que “a violação do principio do in dubio pro reo, que dizendo respeito à matéria de facto é um principio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, só pode ser sindicado pelo STJ dentro dos seus limites de cognição, devendo, por isso, resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do art. 410º, nº 2 do CPP, e só se verifica quando seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção. Inexistindo dúvida razoável na formação do juízo factual que conduziu á condenação do arguido, fica afastado o princípio do in dubio pro reo e da presunção de inocência, nomeadamente quando tal juízo factual não teve por fundamento uma imposição de inversão de prova, ou ónus de prova a cargo do arguido, mas resultou do exame e discussão livre das provas produzidas e examinadas em audiência, com impõe o art. 355º, nº 1 do CPP, subordinadas ao princípio do contraditório, conforme art. 32º, nº 1 da CRP (…)
Levando a efeito a análise crítica da decisão recorrida resulta evidente que foi a mesma forjada em absoluto respeito pelo disposto no artigo 374º do Código do Processo Penal.
No que tange ao segmento da fundamentação impõe-se concluir que o Tribunal “a quo”, para além de sedimentar o espólio probatório, cumpriu o dever de especificar cada meio de prova em que se estribou para formar a sua convicção, fazendo, também, a alusão circunstanciada da matéria factual para que o mesmo foi essencial.
No que respeita à prova testemunhal aquele Tribunal especificou o teor do conhecimento transmitido por cada um dos intervenientes, não deixando de explicitar a respectiva razão de ciência.
Não deixou, ainda, de firmar a correlação de tais depoimentos testemunhais com a demais prova carreada para os autos, qual seja a prova documental.
Não olvida, ainda, a apreciação do manancial probatório adquirido para os autos, como sejam o auto de notícia de fls. 39 e 40, 49 a 51, o anexo de fls. 46 (CD: facturas, meios de pagamento, comprovativos do recebimento, que se encontram juntos a fls. 98 a 328, as declarações de correcção de IVA juntas a fls. 64 a 71, a certidão permanente de fls. 4 a 7, 42 a 45, 52 a 55, 361 a 364, 365 a 369, tal qual como o relatório final de inspecção e as informações tributária de fls. 56 a 63, 378 a 397 e 404 a 406, sem olvidar o parecer fundamentado de fls. 337 a 347 e as informações prestadas pela AT a fls. 447v, a informação de fls. 441, 448 e 459 a 462 bem como os relatórios da AT juntos a fls. 463 a 469, 470 a 491 e 492 a 497.
Igualmente atendeu ao certificado de registo criminal de fls. 420 e ao relatório social de fls. 421 a 423.
Outrossim aquele Tribunal “a quo”, no seguimento de ter explicitado os meios de prova em que fundou a sua convicção, mencionando-os e explicando o seu raciocínio lógico-dedutivo, procedeu ao respectivo exame crítico dessa prova achada crível, raciocínio esse compreensível para todos quanto se destinava tal decisão, capaz, por isso, de se impor ao seu directo destinatário, tanto quanto a toda a comunidade.
Cumprindo, assim, os princípios da legalidade e da livre apreciação probatória, em estrito cumprimento dos ditames constitucionais e legais, sempre norteando a sua conduta pela escorreita observância dos direitos e garantias consagrados ao arguido.

Como salienta Germano Marques da Silva (12) “as decisões judiciais, com efeito, não podem impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz” não sem que antes deixe de firmar que “a fundamentação da sentença consiste, pois, na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que determinaram o sentido («fundamentaram») a decisão.”

Esta garantia (a da fundamentação) decorre do princípio da legalidade, princípio estruturante do processo penal, uma vez que apenas o seu respeito concorre para a garantia da imparcialidade da decisão posto que apenas um juiz independente e imparcial só o é se a decisão fluir de um apuramento objectivo dos factos e da interpretação válida da norma jurídica.
Este mesmo é o pensamento firmado por Michele Taruffo (13)

O mais Alto Tribunal vai no mesmo sentido ao firmar que “O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção” (14).
Sem que deixe, ainda, de sublinhar que “O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte”. (15)

Vale tudo por dizer que a decisão final proferida pelo Tribunal “a quo” resulta de uma analise critica e ponderada dos meios probatórios tidos como fiáveis para a formação da sua convicção, que ditou qual a factualidade dada como provada e aquela que não resultou provada bem como a medida da pena.
Não ressuma da mesma qualquer fimbria de dúvida, mais pequena que seja, em qualquer espirito avisado.

Nestes termos, e na ausência de qualquer dúvida, não pode o aplicador da Lei deitar mão ao princípio “in dubio pro reo” por ausência de fundamento legal.

Pelo exposto, e considerando a fundamentação aludida, terá de improceder a lide recursal do recorrente D. A., ainda no que respeita à versada matéria.

Por ultimo, na sua lide recursal o recorrente D. A. coloca em crise a decisão recorrida porquanto o Tribunal “a quo” procedeu à substituição da pena privativa de liberdade de 1 ano e 6 meses pela pena de 480 horas de trabalho a favor da comunidade, por entender que a falada pena privativa de liberdade deveria ter sido declarada suspensa na sua execução, por estarem verificados os pressupostos para a respectiva determinação.

Importa que tenhamos presente o estabelecido no artigo 14º do RGIT, sob a epígrafe “Suspensão da execução da pena de prisão” que determina que:

1 - A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.
2 - Na falta do pagamento das quantias referidas no número anterior, o tribunal pode:
a) Exigir garantias de cumprimento;
b) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas sem exceder o prazo máximo de suspensão admissível;
c) Revogar a suspensão da pena de prisão.

Colocados perante a imperatividade desta condição de pagamento quando fixada a suspensão da execução da pena – e não obstante o caracter mitigador do Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 8/2012, publicado no D.R., I Série, nº 206, a 24 de Outubro de 2012, urge proceder a um breve excurso sobre duas questões que convergem para a solução do problema - qual a natureza jurídica do fenómeno a que chamamos imposto e qual o bem jurídico tutelado quando o legislador convocou o Direito Criminal para dar tutela à relação jurídica tributária.

No que tange à primeira das questões, a da natureza jurídica do imposto:
Em termos conceptuais o Imposto é uma prestação patrimonial e unilateral, integrada numa relação unilateral, estabelecida por lei a favor de uma entidade que exerça funções públicas, com o fim de satisfazer os fins desta e sem carácter de sanção.
São-lhe pois imanentes:
. o carácter obrigacional
Fazendo a doutrina a distinção entre objecto imediato e objecto mediato, no que tange às obrigações de prestação de coisa, havemos de concluir que, neste caso, o objecto imediato se revela na actividade devida, qual seja, a da entrega de uma certa prestação pecuniária; ao passo que o objecto mediato se trata da própria coisa, isto é na prestação pecuniária, ela mesma;
. a patrimonialidade
O Imposto é uma prestação patrimonial dado que é susceptível de avaliação pecuniária. Contudo, situações há em que se verifica que as prestações fiscais podem não ser levadas a cabo mediante a entrega de quantias em dinheiro;
. a legalidade
A obrigação fiscal nasce, apenas, por força da lei, por ela é estruturada e só a lei molda a sua prestação e forma de execução.
. a titularidade por entidades que exerçam funções publicas para satisfazer os seus próprios fins
O Imposto tem como finalidade o financiamento das despesas públicas do Estado e a prossecução dos objectivos gerais da colectividade, razão por que se acham na titularidade de entidades que exercem funções públicas.
. a unilateralidade
Não corresponde ao Imposto uma contraprestação específica por banda do Estado, na medida em que a exigência que o fundamenta é o poder de tributar, poder este que visa a satisfação do interesse público geral;
. sem carácter sancionatório
O Imposto é despido de carácter sancionatório.

Já no que atende ao bem jurídico tutelado pela incriminação fiscal
Reinhold Zippelius, distinto e Ilustre Professor, aquele a quem outro Mestre, Luís Cabral de Moncada, apelidou de “não só um homem novo, mas inclusivamente um homo novus no sentido latino desta palavra no tempo de Cícero”, começa, de forma categórica, por afirmar no seu livro a “Teoria Geral do Estado” (16) que “Os problemas do conhecimento da realidade do Estado e da escolha do ideal de Estado devem ser distinguidas um do outro no decurso de toda e qualquer reflexão acerca do Estado, encarado este como textura de convívio humano. Um dos problemas enuncia-se: como é constituído o Estado? O outro problema enuncia-se: como deve o Estado ser constituído? Num caso trata-se de uma compreensão da realidade; no outro de um ideal, de uma valoração.”
Eis, pois, como lançado está o debate acerca do papel do Estado e das suas funções. Questão esta que Gustav Radbruch (17) sintetiza afirmando que o modelo do Estado varia na medida em que se assente na ideia que o Estado existe para proveito do indivíduo ou, inversamente, na ideia de que são os indivíduos existem para proveito da comunidade.
Concluindo, afirma, Zippelius que “Consoante os fins do Estado escolhidos, assim variará a definição dos objectivos políticos e dos correspondentes modelos de estrutura, desde os mais liberais, passando pelos socialistas e pelos nacionalistas, até aos religiosos.” (18)
O modelo português, adoptado na sequência da aprovação da Constituição de 1976, é caracterizado como de “Estado fiscal social” na medida é que é “um Estado que tem por suporte financeiro determinante os impostos e um Estado cujo nível de fiscalidade é o reclamado pelo Estado social recortado na Constituição.” (19)
Assim o afirma José Casalta Nabais, em obra diversa, considerando o recorte que ao Estado é conferido, dadas as atribuições lhe são inerentes como tendentes à realização do bem comum, sendo essenciais à vida da comunidade, como seja a da defesa dos direitos e liberdades fundamentais, a da segurança, a da saúde, a da educação a par da preservação da natureza, do meio ambiente e património cultural, entre outras várias.
E, assim, tão actuais como ponderosas são as questões deixadas pelo Conselheiro Manuel Fernando dos Santos Serra, então Presidente do Supremo Tribunal Administrativo (20) - “Como poderemos nós, de facto, continuar a assegurar a gratuitidade do ensino básico, do ensino secundário e o financiamento estatal parcial do ensino superior público, armas fundamentais no combate à reprodução social das desigualdades se os impostos continuarem a ser, entre nós, tão grosseiramente evadidos? Como garantir serviços de saúde mínimos, a quem não os possa pagar? Ou segurança social, a quem não possa contribuir para o sistema? Ou a gratuitidade dos próprios serviços de justiça, a quem não possa suportar a respectiva taxa? Como sustentar, pois, todos estes serviços, e os correspondentes direitos, se a receita apurada por via dos impostos diminuir por entre os dedos porosos da fraude e da evasão fiscais?
Quem pratica a evasão e a fraude fiscal está, pois, a dar uma machadada fatal não apenas no Estado fiscal, que tem o seu principal apoio financeiro nos impostos e ideal normativo norteador na realização da dignidade da pessoa humana, mas também, e sobretudo, a comprometer o futuro, que é já presente, daquela solidariedade sistémica que vem sustentando os mais básicos pilares da nossa existência enquanto sociedade política civilizada.
Uma sociedade onde os impostos são, como o devem ser aliás, cobrados de entre todos os membros da comunidade com capacidade contributiva, independentemente de quem venha a beneficiar mais directamente, por comprovada necessidade, dos serviços ou prestações públicas por esses impostos financiados: nisto consiste, de resto, a própria ideia de uma solidariedade social fiscalmente ancorada.”
É na Constituição da Republica Portuguesa – artigo 103º - que encontramos inscrita a natureza, finalidade e garantias que regem o sistema fiscal, posto que aí se acha versado, no nº 1, que “O sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza”.
Logo, também, se estabelecendo os princípios da legalidade, da irretroactividade e da anualidade.
Já na disposição subsequente, a do artigo 104º, encontramos estruturado todo o regime constitucional sobre os impostos.

Versa o mesmo nos seguintes termos:

1. O imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades sociais e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar.
2. A tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real.
3. A tributação do património deve contribuir para a igualdade entre os cidadãos.
4. A tributação do consumo visa adaptar a estrutura do consumo à evolução das necessidades do desenvolvimento económico e da justiça social, devendo onerar os consumos de luxo.

Dando conta ao que de maior relevo, a nosso ver, sobre esta temática Jorge Miranda e Rui Medeiros (21) dissertaram há que salientar que “um primeiro aspecto a reter é o de que a constituição fiscal aponta no sentido de que a tributação deve atingir quer o rendimento, quer o consumo, quer o património”; por outro lado que “não parece, no entanto, legitimo sustentar que a Constituição estabeleça preferências em relação a qualquer delas modalidades de tributação, privilegiando um sistema fiscal assente na tributação do consumo, do rendimento ou do património” para, continuando, afirmarem “poderá, quando muito, admitir-se que a referencia a uma repartição justa do rendimento como objectivo do sistema fiscal tem subjacente a ideia de que a tributação do rendimento deve desempenhar um papel de relevo no sistema sem o que dificilmente poderia ser conseguido aquele objectivo”.
Para concluírem no sentido de que “aquilo de que o legislador constituinte não se coibiu foi de marcar orientações quanto a cada um desses modelos de tributação (…)”.
De todo o recorte constitucional enunciado resulta, pois, que sistema fiscal e o imposto têm uma matriz e finalidades eminentemente sociais.
Mas, também aqui, há que chamar, de novo, à colação as palavras do Conselheiro Manuel Fernando dos Santos Serra, que na aludida comunicação, ainda afirmou que “Infelizmente, Portugal é, ainda hoje, um país em que a evasão e a fraude fiscais, mesmo as organizadas, contam com a complacência de muitos dos nossos concidadãos, continuando, por conseguinte, a violação de potenciais contribuintes às leis tributárias, pela não apresentação de declarações ou pela apresentação de declarações que minimizam ou simplesmente falsificam os seus rendimentos, a não ser punida ou sequer socialmente recriminada. E, no entanto, a iniquidade do nosso sistema fiscal é tão flagrante que chega a ser escandaloso ignorá-la.”

É relevante, pois, como resulta do exposto, para a solução do problema a fisionomia que o Estado assuma.
Na verdade, enquanto que um Estado concebido em lógica totalitária como uma realidade em si, configurará o imposto como um meio de alimentação da respectiva fazenda, tornando os cidadãos contribuintes compulsivos e, assim, súbditos fiscais, vergados aos “jus imperi tributário”; já uma concepção liberal, tanto mais se temperada por uma lógica social, assentará a perspectiva numa relação contratualizada em que este é contrapartida devida para que o Estado possa, através da administração dos réditos fiscais, satisfazer primacialmente necessidades sociais, a benefício da comunidade, suportando, ainda com esses meios, os encargos legítimos ao seu funcionamento.
Daqui decorre que a primeira acepção do Estado é que permitirá arrogar-se do direito de operar a suspensão da pena privativa de liberdade sem relevar os critérios gerais decorrentes das exigências do Direito Penal Comum, fazendo triunfar os critérios próprios inerentes à sua natureza, auto-centrada, em detrimento da ponderada pelo respeito devido à dignidade da pessoa humana; fazendo, assim, triunfar uma lógica de intromissão nas atribuições conaturais ao Poder Judicial, subvertendo a separação de poderes e julgando em causa própria. Um Estado autoritário degrada a cidadania e desrespeita a pessoa através de uma lógica de sujeição tributária, materializando direito quase potestativos tributários perante os quais o cidadão se acha em situação de sujeição.
Já um Estado liberal social reivindica, em nome da comunidade, direitos tributários para o bem-estar da comunidade mas ponderando, no contribuinte a vertente da sua cidadania, por membro da dita comunidade, não o degrada a ponto de esquecer a Pessoa Humana que lhe é inerente enquanto individuo. Por isso no momento do apuramento da sua responsabilidade, importa-lhe que efectue uma concordância prática entre a proporcionada expansão do seu direito e o do direito do cidadão contribuinte, já que aquele só existe por sub-rogação deste, posto que num Estado de Direito Democrático é postulado que a existência deste

Conheçamos agora das finalidades das penas no nosso ordenamento jurídico para que possamos entender e tomar posição acerca da solução sufragada.
Tendo presente o artigo 40º do Código Penal, na letra que lhe foi conferida pelo D.L. nº 45/95 de 15/03 vigora hoje uma “concepção preventivo-ético da pena” (22) na medida em que as finalidades da pena são exclusivamente preventivas, desempenhando a culpa somente o papel de pressuposto e limite máximo da pena.
Firma o legislador que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” (artigo 40º, nº 2 e 2 do citado diploma).
Daqui se conclui que o fundamento legitimador da pena é a prevenção – geral e especial – sendo a culpa a desempenhar o papel de pressuposto e limite mínimo da pena a aplicar, por maiores que sejam as exigências de prevenção.
Considerando que o fim do direito penal é o da protecção dos bens jurídico-penais, as penas são os meios indispensáveis à realização desse fim de tutela dos bens jurídicos – razão por que a reinserção social do delinquente não é senão um dos meios de realizar o fim do direito penal, qual seja o de protecção dos bens jurídicos.
No concreto afinamento da pena a aplicar terá o aplicador de nortear-se, antes de mais, pelo ditame constitucional vertido no artigo 18º, nº 2 da Constituição da Republica Portuguesa, que institui o princípio da máxima restrição possível da pena sem olvidar que a legitimidade ético-jurídica da pena está na necessidade de prevenção de futuros crimes.
Prevenção, que se dirige ao próprio infractor condenado – a prevenção especial e que é de sentido duplo: já que visa a sua ressocialização (prevenção especial positiva) e a sua dissuasão da pratica de futuros crimes (prevenção especial negativa).
Prevenção, que visa todos os membros da comunidade – a prevenção geral e que tem, igualmente, uma dupla vertente: assim como meio de interpelação da sociedade e de cada um dos seus membros para a relevância social e individual do respectivo bem tutelado penalmente (prevenção geral positiva) tendo, ainda, a dimensão ou objectivo de pacificação social ou restabelecimento/revigoramento da confiança da comunidade na efectiva tutela penal estatal dos bens jurídicos fundamentais à vida colectiva e individual tanto como a dissuasão geral de todos os membros da comunidade ao cumprimento das normas (prevenção geral negativa).
Chegados, pois, ao ponto ideal da pena a aplicar – e tendo presente que entre as penas principais se situam as de multa e prisão – caso a opção seja a de prisão, impõe-se ao aplicador ponderar os requisitos aludidos no artigo 50º do Código Penal, caso a sua dosimetria o determine.

Aí se acha estabelecido que:

1 - O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
2 - O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.
3 - Os deveres e as regras de conduta podem ser impostos cumulativamente.
4 - A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições.
5 - O período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão.

Trata-se, assim, de um poder-dever, ou seja um poder vinculado do julgador, que terá de decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade que for reputada mais conveniente para a realização das vertidas finalidades, sempre que verificados os enunciados pressupostos.

A suspensão da execução da pena de prisão trata-se de um instituto jurídico que, conforme se pode ler em Eduardo Correia (23), que corresponde a uma individualização nascida contra as curtas penas de prisão e que viu luz no projecto francês de Bérenger, datado de 1884, que obteve consagração legislativa na Bélgica, pela primeira vez, em 31 de Maio de 1888, e depois em França, em 26 de Março de 1891.
Este modelo veio, posteriormente, a ser adoptado por vários países da Europa, nomeadamente em Portugal, no ano de 1893.
A ideia dominante de tal instituto era, nas palavras de então, subtrair os criminosos às penas curtas de prisão, que, por um lado, envolvem um grande perigo de contágio com maus elementos e, de qualquer modo, fazem sofrer a quem são infligidas uma degradação social irreparável, sem a compensação de uma possibilidade séria - justamente pela sua curta duração - de reeducação dos criminosos.
Foi este o pensamento que presidiu ao espírito do legislador português de 1893, que na respectiva proposta de lei às cortes, fez a seguinte menção: “Ninguém desconhece que a pena de prisão correccional, pelo modo como se cumpre, nem reprime, nem educa, nem intimida, mas perverte, degrada e macula. É um verdadeiro estágio de corrupção moral. É mister, pois, que se economize esta pena, e que não se ponha um delinquente, que infringiu a lei, pela primeira vez, num momento de paixão ou de fraqueza, um delinquente ainda não ferreteado pela aplicação da pena anterior, em contacto com a vil escória dos cárceres e num meio tão nocivo fisicamente como moralmente.”
É, ainda, Eduardo Correia que afirma, na mencionada obra, que a condenação condicional não deixa de funcionar com uma eficácia retributiva e preventiva e, portanto, como uma pena, dizendo mesmo que “efectivamente, averiguado o facto e aplicada a pena, o agente tem sempre a clara consciência da censura que mereceu o facto e viverá sob a ameaça, agora concreta, e portanto mais viva, da condenação”, citando a propósito Beleza dos Santos e a posição já firmada nesse sentido (24).
A condenação condicional de tipo franco-belga contava com o poder intimidativo da ameaça da pena já fixada; considerava a ameaça da execução da pena de prisão, fixada na sentença, como suficiente para afastar os delinquentes da prática do crime, não se ordenando ou prevendo qualquer espécie de direcção, apoio, orientação, supervisão ou de assistência externas a dar ao condenado. Mas muitos dos sistemas que adoptaram a condenação condicional de tipo franco-belga procuraram completar a suspensão da pena com uma orientação/vigilância levadas a cabo por entidades particulares ou oficiais, passando a condenação a ser integrada por um conjunto de condições visando planificar a vida dos delinquentes e dar-lhes apoio e vigilância, nisto se verificando a influência do instituto da “Probation”, surgido em Boston, Estado do Massachussetts, nos Estados Unidos da América e que veio, igualmente, a ser desenvolvido em Inglaterra.
Em Portugal, a suspensão condicional da pena de prisão foi regulada pela primeira vez, através da Lei de 6 de Julho de 1893, completada depois pelo artigo 633.º do Código de Processo Penal de 1929, pelo Decreto-Lei n.º 29 636, de 27 de Maio de 1939 e, posteriormente integrada, com algumas modificações, no artigo 88.º do Código Penal de 1852-1886, na redacção que lhe foi dada pela reforma de 1954, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 39 688, de 5 de Junho de 1954.
Pressuposto inicial de aplicação do instituto, no ano de 1893, era que a condenação tivesse sido em pena de prisão, procedendo-se mais tarde a um alargamento, previsto em 1939 no Decreto-Lei n.º 29 636, segundo o qual a suspensão passou a poder aplicar-se à pena de multa, incluindo aquela em que fosse convertida a prisão e posteriormente a prisão e multa no artigo 88.º do Código Penal de 1852-1886, na versão de 1954.
Como salientámos, Beleza dos Santos, no estudo citado, defendia que o instituto podia considerar-se uma verdadeira pena, afirmando que “a suspensão da pena implica a substituição desta pela coacção constituída pela ameaça de se executar aquela pena quando não se cumprirem as condições impostas, o que é ainda uma pena», acrescentando que “a medida da suspensão condicional da pena é uma verdadeira sanção penal. Suspender uma pena é afinal aplicar outra pena.”

Já no Código Penal de 1852-1886, a substituição das penas estava sujeita ao princípio da legalidade - artigo 85.º - estando previstas duas modalidades:

. a substituição da prisão por multa - artigo 86.º;
. a suspensão da execução da pena, quer de prisão quer de multa - artigo 88.º, isto na redacção introduzida pela reforma de 1954.

Estabelecia o artigo 88.º que “Em caso de condenação a pena de prisão, ou de multa, ou de prisão e multa, o juiz, tendo ponderado o grau de culpabilidade e comportamento moral do delinquente e as circunstâncias da infracção, poderá declarar suspensa a execução da pena, se o réu não tiver ainda sofrido condenação em pena de prisão. A sentença indicará os motivos da suspensão da pena.

§ 1.º O tempo de suspensão não será inferior a dois anos, nem superior a cinco, e contar-se-á desde a data da sentença em que tiver sido consignada.
§ 2.º A suspensão pode ser subordinada ao cumprimento de obrigações similares às que acompanham a concessão da liberdade condicional.”

As obrigações do libertado condicionalmente estavam previstas no artigo 121.º do mesmo Código, em que se incluía, logo à partida, no n.º 1.º: «A reparação, por uma só vez ou em prestações, do dano causado às vítimas do crime.”

No caso de infracção das obrigações impostas poderia o juiz revogar a suspensão, ordenando a execução da pena, alterar ou manter o condicionamento da condenação.
A impossibilidade legal de suspensão da execução da pena estava prevista para o comércio de estupefacientes - artigo 13.º, g), do Decreto n.º 12 210, de 27 de Agosto de 1926; falsificação de géneros alimentícios e seu comércio - artigo 11.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 41 204, de 24 de Julho de 1957; sendo que o referido Decreto-Lei n.º 619/76, de 27 de Julho - artigo 6.º, estipulava que “não há suspensão condicional da pena aplicada a qualquer infracção tributária”, e o Decreto-Lei n.º 625/76, de 28 de Julho, quanto ao crime do artigo 411.º do Código Penal.
Prescrevendo sobre “requisitos da sentença de condenação em pena suspensa”, dizia o artigo 451.º do CPP que, se a sentença suspender a execução da pena, assim o declarará, indicando as razões desta medida e o prazo da suspensão.
Estabelecia o § 1.º que a suspensão da pena pode tornar-se dependente do pagamento da respectiva indemnização por perdas e danos, dentro de um prazo fixado na sentença.
No Código Penal de 1982, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, pode ler-se no respectivo preambulo que “Outras medidas não detentivas são a suspensão da execução da pena (artigos 48.º e seguintes) e o regime de prova (artigos 53.º e seguintes).
Substitutivos particularmente adequados das penas privativas de liberdade, importa tornar maleável a sua utilização, libertando-os, na medida do possível, de limites formais, por forma a com eles cobrir uma apreciável gama de infracções puníveis com pena de prisão. Assim se prevê a possibilidade da suspensão da execução da pena ou da submissão do delinquente ao regime da prova sempre que a pena de prisão não seja superior a 3 anos.
É evidente, todavia, que a pronúncia de qualquer destas medidas não é nem deve ser mera substituição automática da prisão. Como reacções penais de conteúdo pedagógico e reeducativo (particularmente no que diz respeito ao regime de prova), só devem ser decretadas quando o tribunal concluir, em face da personalidade do agente, das condições da sua vida e outras circunstâncias indicadas no artigo 48.º, n.º 2 (aplicável também ao regime de prova por força do artigo 53.º), serem essas medidas adequadas a afastar o delinquente da criminalidade.
Compete ao tribunal essa indagação e a escolha responsável que sobre ela vier a fazer entre a suspensão da execução da pena e o regime de prova [...].
Com efeito, a condenação condicional, ou instituto da pena suspensa, correspondente ao instituto do sursis continental, significa uma suspensão da execução da pena, que embora efectivamente pronunciada pelo tribunal, não chega a ser cumprida, por se entender que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para afastar o delinquente da criminalidade e satisfazer as necessidades de reprovação e prevenção do crime. A possibilidade de imposição de certas obrigações ao arguido destinadas a reparar o mal do crime ou a facilitar positivamente a sua readaptação social reforça o carácter pedagógico desta medida que o nosso direito já de há muito conhece, embora em termos não totalmente coincidentes com os que agora se propõem no Código. 0 instituto que figura no capítulo I, dedicado a “Penas Principais”, passa a ter o seguinte conteudo: “1 - O tribunal pode suspender a execução da pena de prisão não superior a 3 anos, com ou sem multa, bem como a da pena de multa imposta a condenado que não tenha possibilidade de a pagar. 2 - A suspensão será decretada se o tribunal, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao facto punível, e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para afastar o delinquente da criminalidade e satisfazer as necessidades de reprovação e prevenção do crime. 3 - A decisão condenatória especificará sempre os fundamentos da sua suspensão. 4 - O período de suspensão será fixado entre 1 e 5 anos, a contar do dia em que a decisão transitar em julgado.”; sendo que no art. 49º estavam especificados os deveres que podiam condicionar tal suspensão.

Com a alteração introduzida nesta diploma pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, entrado em vigor em 1 de Outubro de 1995, a suspensão da pena ganhou maior amplitude, posto que o regime de prova foi encarado em novo enquadramento, perdendo autonomia e foi descaracterizado como pena autónoma de substituição, passando a ser configurado como uma modalidade da suspensão da execução da pena, ao lado da suspensão pura e simples e da suspensão com deveres ou regras de conduta, acentuando a vertente ressocializadora e responsabilizante da suspensão da execução da pena de prisão. Na sequência, o artigo 2.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 48/95 determinou a revogação das disposições legais que em legislação penal avulsa proibiam ou restringiam a substituição da pena de prisão por multa ou a suspensão da pena de prisão; sendo que, por outro lado, a pena de multa deixou de ser abrangida pela suspensão, determinando o artigo 7.º do citado decreto-lei que “enquanto vigorarem normas que prevejam cumulativamente penas de prisão e multa, a suspensão da execução da pena de prisão decretada pelo tribunal não abrange a pena de multa”.

Com a reforma introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, foi modificado o pressuposto formal, alargando o campo de aplicação da pena de substituição a penas de prisão até 5 anos, em vez do limite anterior de 3 anos, e alterando o período de suspensão, fazendo-o coincidir com a duração da pena, razão por que o artigo 50.º passou a estabelecer que:

«1 - O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
2 - O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.
3 - Os deveres e as regras de conduta podem ser impostos cumulativamente.
4 - A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições.

5 - O período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão.»

Nesta medida ficou alargado o campo de aplicação da pena de substituição a penas de prisão até 5 anos, em vez do limite anterior de 3 anos; sendo certo, ainda, que a aplicação desta pena de substituição só pode e deve ser aplicada quando a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizarem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Importa, agora, que averiguemos das especificidades do regime previsto no artigo 14º do RGIT e da sua necessária relação com o regime de suspensão de pena previsto no Código Penal.
Sendo propósito afirmado que “O RGIT aproxima o regime processual penal tributário do regime processual penal comum” (25) conclusão diversa não podemos extrair senão a de que, retirando especialidades que decorrem do seu próprio regime – tal como o período da suspensão, que não se pode ter como alterado face à entrada em vigor da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro dado o carácter de norma especial face à do Código Penal – todo o demais regime que resulte da aplicação do mencionado artigo 14º só poderá resultar em conjugação com os princípios firmados na Lei Penal substantiva, quer por força da sua aplicação subsidiaria à luz do artigo 3º do RGIT, mas sobretudo por que tal regime condensa os princípios fundamentais para o aludido instituto da suspensão da pena.
Por tal a asserção legislativa que repousa no dito artigo 14º não pode ser de aplicação automática, despido do juízo obrigatório de conformidade, adequação e proporcionalidade a que aludem as normas dos artigos 50º, nº 1 e 2, 51º, 52º e 53º do Código Penal.
Ora se visto o regime especial ditado no RGIT quanto a esta matéria, se desvinculado dos princípios atrás aludidos, estaríamos perante um comando legal que ordenaria a suspensão da pena privativa de liberdade subtraída a tais juízos, isto é, prevendo uma especial e única modalidade de suspensão da execução da pena de prisão subordinada obrigatoriamente, pelo menos, ao pagamento da prestação tributaria e demais acréscimos, regime este que, para além, de violar os mencionados princípios da conformidade, adequação e proporcionalidade, beliscariam, ainda, princípios constitucionais, desde logo o principio da dignidade de pessoa humana, da necessidade da pena bem como o da independência dos tribunais, conquanto o julgador apenas teria liberdade ao firmar o juízo de prognose favorável para ditar a suspensão da pena privativa de liberdade que havia ponderado aplicar mas já lhe estava vedado o juízo de conveniência e adequação quanto à estipulação de deveres e da sua necessidade para que se achassem melhor realizadas as finalidades da punição, talqualmente não lhe era permitido, ainda que os reputasse necessários, escolher quais os adequados às finalidades do caso concreto.
Outrossim, se entendêssemos estanque o regime versado no RGIT quanto à matéria em discussão, nunca o julgador poderia firmar um juízo de adequação subjectiva do dever ao sujeito, isto é, não poderia verificar se no caso em apreço o mesmo estaria nas concretas condições de cumprir o dever imposto, principio legal que subjaz à actividade jurisdicional decorrente, uma vez mais, do respeito pela dignidade da pessoa humana.
Vale tudo por dizer que nunca o julgador pode olvidar na aplicação da lei, concretamente da norma do artigo 14º do RGIT, os princípios gerais que regem o instituto da suspensão da pena privativa de liberdade sob pena de ilegalidade e inconstitucionalidade materiais.
Dessa emergência fez nota, fixando jurisprudência obrigatória, o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão nº 8/2012, no sentido de que “No processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia.”

Feita a leitura hermenêutica da aludida norma, a que se imponha para a decisão a proferir, importa já adiantar que o Tribunal “a quo” procedeu a uma escorreita e valorosa interpretação de todo o arquétipo penal, elaborando um raciocionio fundamentado na conjugação dos princípios do mínimo penal, da culpa e das penas.

Com efeito do sedimento probatório constante da decisão recorrida, no que respeita à situação pessoal, social, profissional e económica do arguido, ora recorrente consta que:

“14. O arguido cresceu num contexto socioeconómico de humildes recursos, assente na actividade do progenitor, funcionário de uma serração. A mãe era doméstica e, após a separação conjugal, vivenciou muitas dificuldades económicas para proporcionar condições de vida dignas aos 4 filhos, situação que os expôs à necessidade de um início precoce de actividade profissional.
15. D. A. terminou o 5º ano de escolaridade e aos 12 anos e começou de imediato a trabalhar numa metalurgia, onde se manteve durante 3 anos. Seguidamente trabalhou junto de um tio, como pintor de automóveis, durante 4 anos, e, seguidamente na Y durante um ano. Depois do encerramento desta última empresa o arguido experienciou outra área de trabalho, limpezas, iniciando funções numa empresa do ramo Limpa ... onde permaneceu durante 9 anos. Posteriormente passou a laborar numa outra – P. Unipessoal, permanecendo aí cerca de 8 anos. O facto de desenvolver com agrado esta actividade e ter entretanto conseguido uma carteira de clientes, optou por se estabelecer por conta própria, tendo recorrido à ajuda de pessoa amiga para desenvolver um projecto com o apoio do IEFP. Contudo, por incumprimento da entrega desse projecto na data prevista, até Dezembro/2009, o arguido não usufruiu do apoio daquele organismo, mas como já havia investido no arrendamento de espaço e equipamentos decidiu avançar com a constituição da empresa D. A. – D. A. Unipessoal Lda., em 2010.
16. O arguido iniciou o consumo de bebidas alcoólicas no período da adolescência, hábito que foi intensificando, com manifestação de forte dependência a partir dos 20 anos de idade.
17. Com o apoio da família, submeteu-se a tratamento de desintoxicação alcoólica no Departamento de Psiquiatria do Hospital de Braga, há 13 anos, mantendo-se abstinente desde essa data.
18. O arguido contraiu matrimónio aos 25 anos de idade. O casamento terminou findos 3 anos de união, ruptura motivada pelos hábitos de adição do arguido.
19. Tendo por referência a data dos factos, o arguido geria a empresa D. A.-D. A. Unipessoal Lda., que prestava serviços de limpeza e que desde o início já se debatia com dificuldades económicas. Exerceu actividade durante 4 anos, com uma facturação considerada adequada, mas insuficiente a partir de 2013/2014.
20. No entanto, D. A. continuou a laborar na tentativa de ultrapassar as dificuldades financeiras, até que há dois anos uma das funcionárias da D. A. -D. A. Unipessoal Lda., enquanto credora, iniciou o processo de insolvência da mesma.
21. O arguido reside com a progenitora há 18 anos, e desde o divórcio, mantendo com este familiar uma relação de grande proximidade. Com o pai não mantém contactos, uma vez que este vive com uma companheira, relação que não foi aceite pela família.
22. O arguido e a mãe residem no rés-do-chão de uma habitação antiga, que coube ao irmão mais velho do arguido após processo de partilhas, elemento que ocupa o primeiro piso da habitação.
23. O arguido caracteriza o relacionamento familiar como coeso e vinculativo.
24. Economicamente a família subsiste com a pensão de reforma da mãe do arguido no valor de 240 €.
25. O arguido realiza tarefas na área das limpezas sem vínculo formal, mas perspectiva conseguir uma colocação numa empresa de serviços de limpeza no Porto. Com as tarefas que realiza, segundo o próprio, consegue um rendimento que varia entre 500 e 600€, o que lhe permita assegurar as suas despesas pessoais e apoiar a mãe nas despesas da casa.
26. D. A. mantém-se em acompanhamento no Departamento de Psiquiatria do Hospital de Braga, com consultas anuais. O arguido está abstinente há 13 anos e sem registo de recaídas.
27. O arguido é considerado pela família como pessoa afável e trabalhadora.
28. D. A. ocupa o tempo livre que dispõe no convívio com os vários elementos da família de origem, mãe e irmãos.
29. No meio de residência o arguido é tido como pessoa educada, trabalhadora e que mantém com os vizinhos uma relação de proximidade e cordialidade no trato.
30. O arguido manifesta forte preocupação face à qualidade de arguido, receando o desfecho do presente processo, contextualizando o mesmo num período conturbado da sua vida profissional.
31. Como repercussões do presente processo o arguido sinaliza algum desgaste emocional e, sobretudo, preocupação pelos familiares em face da preocupação destes pelo seu envolvimento com a justiça.
32. Em abstracto e perante a problemática criminal em causa, o arguido foi capaz de se pronunciar de forma crítica sobre a sua ilicitude e a existência de danos.
33. Na eventualidade de condenação, o arguido mostra-se receptivo para a execução de uma sanção na comunidade.
34. O arguido não possui antecedentes criminais.”

Procedendo-se, pois, a uma leitura de tal sedimento factual à luz do disposto no artigo 14º do RGIT, sempre louvando-nos no decidido no Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 8/2012 e fazendo presentes os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da proporcionalidade, sempre se imporia afastar a pena de substituição da suspensão da execução da pena, porquanto a obrigação de pagamento da quantia de €265.769,13 e acréscimos legais que decorria para o arguido, o ora recorrente, da suspensão da execução da pena de 1 ano e 6 meses que lhe foi aplicada se afigurava como desproporcionadamente onerosa em face das suas actuais e prováveis futuras condições económicas e financeiras e, assim, de cumprimento muito difícil, senão mesmo impossível (fora uma qualquer situação imprevisível que não pode caber num juízo de prognose póstuma a elaborar por qualquer Tribunal).

Fazendo uma correcta leitura do princípio da prevalência da pena não privativa de liberdade, e estando afastada a aplicação da pena de multa em substituição, por inadmissibilidade legal, o Tribunal “a quo” socorreu-se, e bem, da pena de substituição a que alude o artigo 58º do Código Penal, qual seja a pena de trabalho a favor da comunidade.
Com efeito, e estribando-nos na leitura de todo o repositório factual, dúvidas não podem assomar de que estão reunidos os pressupostos formais e materiais de tal pena de substituição, pena esta que, no caso concreto, é ainda capaz de prover às finalidades a que se alude no artigo 40º do Código Penal, quais sejam as de prevenção e reinserção do condenado.

Outrossim tal decisão não belisca, de qualquer modo, o princípio da igualdade a que alude o artigo 13º da Constituição da Republica Portuguesa.

Estabelece tal norma, sob a epígrafe de “Principio da igualdade”, que:

1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.

J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (26) aludindo ao mencionando princípio estabelecem que “o seu âmbito de protecção abrange na ordem constitucional portuguesa as seguintes dimensões: a) proibição do arbítrio, sendo inadmissíveis, quer diferenciações de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objectivos, constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais; b) proibição de discriminação, não sendo legítimas quaisquer diferenciações de tratamento entre os cidadãos baseadas em categorias meramente subjectivas ou em razão dessas categorias (…); c) obrigação de diferenciação, como forma de compensar a desigualdade de oportunidades, o que pressupõe a eliminação, pelos poderes públicos, de desigualdades fácticas de natureza social, económica e cultural.”

Analisando a decisão recorrida à luz da leitura hermenêutica deste principio constitucional, o da igualdade, será forçoso concluir que o Tribunal “a quo” fez a mais correcta leitura das já mencionadas normas legais, em estrito respeito, ainda, por este principio constitucional por não deixou de atender às especificidades do caso concreto e, assim, proceder à aplicação da pena que é a justa, necessária e adequada, o que redunda, sempre, no cumprimento do princípio da igualdade (para além dos demais já aludidos).

Tudo visto e ponderado, considerada a fundamentação de facto e direito aludidas, importa julgar pela improcedência da lide recursal do recorrente D. A., mantendo-se na integra a decisão recorrida.
*

. DISPOSITIVO

Por todo o exposto, e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação Criminal de Guimarães em:

- Julgar improcedente o recurso interposto pelo recorrente D. A. e, em consequência, mantêm integralmente a decisão recorrida.
Custas a cargo do recorrente D. A. que se fixam em 4 UC (quatro unidades de conta), sem prejuízo do gozo de eventual benefício de apoio judiciário.

O presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pela sua relatora, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal.
Guimarães, 14 de Outubro de 2019

Maria José dos Santos de Matos
Armando da Rocha Azevedo


1. Código de Processo Penal Comentado, António da Silva Henriques Gaspar e outros, Almedina, 2016, 1239.
2. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, no Processo nº 1164/09.3JDLAB.L2.S1/3ª Secção de 09 de Julho de 2014, publicado em www.dgsi.pt.
3. Acórdão firmado no Processo nº 370/15.6JALRA.C1, em 08/02/2017, publicado em www.dgsi.pt.
4. Vide, por todos, os acórdãos datados de 15/12/2005, 09/03/2006 e 04/01/2007que foram prolatados, respectivamente, nos Processos nºs 05P2951, 06P461 e 4093/06, publicados em www.dgsi.pt.
5. Acórdão datado de 10/01/2007, proferido no Processo nº 06P3518, publicado em www.dgsi.pt.
6. Acórdão proferido no Processo 9/13.4PATVR.E1.S1, com data de 18/02/2016, publicado em www.dgsi.pt.
7. Código de Processo Penal Comentado de António da Silva Henriques Gaspar e outros, Almedina, Coimbra, 2014, 1389 e seguintes.
8. Acórdão datado de 08/02/2017, prolatado no Processo nº 370/15.6JALRA.C1, publicado em www.dgsi.pt.
9. Forum Iustitiae, Ano I, Maio de 1999.
10. Constituição da Republica Portuguesa Anotada, 4ª edição, Vol. I, 519.
11. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 12/09/2013, publicado em www.itij.pt.
12. Curso de Processo Penal, Tomo III, Verbo Editora, 289
13. Note sulla garanzia costituzionale della motivazione”, in BFDUC, ano 1979, Vol. LV, págs. 31-32
14. Acórdão do STJ, de 30 de Dezembro de 2002, proferido no Processo 3063/01, publicado no sítio daquele tribunal.
15. Acórdãos do STJ de 17 de Março de 2004, proferido no Processo nº 4026/03; de 7 de Fevereiro de 2002, proferido no Processo nº 3998/00 e de 12 de Abril de 2000, proferido no Processo nº 141/00, todos publicados no sítio daquele tribunal.
16. Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª edição, pág. 1.
17. Rechtsphilosophie, 1963, pág. 37.
18. Obra citada, pág. 2v.
19. Direito Fiscal, 4ª edição, 2006, pág. 135.
20. Intervenção sobre “Evasão e Fraude Fiscais e Garantias do Contribuinte” na Sessão de Abertura do Congresso Internacional organizado pela Faculdade de Direito da Universidade Lusíada do Porto, Porto, 15 de Março de 2007.
21. Constituição da Republica Anotada, Tomo II, pág. 226.
22. Américo Taipa de Carvalho.
23. Direito Criminal, II, Almedina, 1965, «§ 21. Substituição da Pena. A reacção contra as penas curtas de prisão», pp. 392 e segs.
24. «A suspensão condicional da execução da pena e os efeitos do não cumprimento das condições», Revista de Legislação e Jurisprudência, 74º, pág. 119.
25. Germano Marques da Silva, “Direito Penal Tributário”, Universidade Católica, pág.47.
26. Constituição da Republica Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 4ª edição, Volume I, 333 e seguintes.