Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
354/14.1TBEPS.G1
Relator: LINA CASTRO BAPTISTA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
DANO BIOLÓGICO
DANO PATRIMONIAL FUTURO
DANO NÃO PATRIMONIAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida em instrução e julgamento ou documento superveniente impuserem decisão diversa.

II – É entendimento comum e quase pacífico na jurisprudência o de que a incapacidade permanente representa, em si mesma, um dano patrimonial.

III – Apesar de a Autora não exercer uma atividade profissional remunerada, o dano biológico dos autos constitui um dano patrimonial, por representar previsivelmente uma supressão do seu rendimento potencial, ao longo do seu período de vida ativa.

IV - Este mesmo dano biológico pode e deve ser "novamente" considerado em sede de fixação de indemnização a título de danos não patrimoniais, uma vez que este, para além da repercussão na capacidade de trabalho, repercute-se igualmente e habitualmente na saúde mental, nas atividades sociais, na dinâmica familiar, na vida sexual e/ou nas atividades recreativas ou desportivas do lesado.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO

A. S., residente na Rua …, Esposende, intentou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra “COMPANHIA DE SEGUROS A, S.A.", cuja denominação foi, entretanto, alterada para “COMPANHIA DE SEGUROS B, S.A.”, sociedade com sede na Avenida …, Lisboa, pedindo que a Ré seja condenada a pagar-lhe a indemnização global de € 7 152,27, acrescida de juros de mora vincendos, contados à taxa legal de 4 % ao ano, desde a data da propositura da presente ação e até efetivo pagamento.
Alega, em síntese, que, no dia 03 de junho de 2011, pelas 17.30 horas, ocorreu um acidente de viação, na Estrada Nacional, Esposende, em que foram intervenientes o veículo automóvel ligeiro de mercadorias de matrícula n.º IT (doravante designado apenas por IT), a si pertencente e conduzido pela sua mulher M. C., e o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula n.º QN (doravante designado apenas por QN), pertencente a A. C. e conduzido por F. C., por conta, no interesse e sob a direção efetiva do dono.
Defende que o acidente de trânsito se ficou a dever a culpa, única e exclusiva, do condutor do QN, o qual, agindo com imperícia, falta de destreza, inconsideração e negligência, não parou o veículo que tripulava no espaço livre e visível à sua frente.
Invoca a ocorrência de um conjunto de danos de carácter patrimonial e não patrimonial como consequência directa e necessário do referido acidente, no valor global de € 7 152,27.
Expõe que o dono do veículo QN tinha transferido a responsabilidade civil por danos causados a terceiros para a Ré, através de contrato de seguro, titulado pela Apólice n.º …, em vigor à data dos factos.
A Ré veio contestar, aceitando a ocorrência do acidente, bem como a celebração e vigência do contrato de seguro invocado.
Contrapõe, em síntese, que o acidente ora em apreço se ficou a dever essencialmente à condutora do IT, a qual, não obstante estar obrigada a ceder a passagem a todos os veículos que transitassem na via em que ia entrar, decidiu avançar.
Impugna a generalidade da matéria de facto atinente aos danos alegados na Petição.
Conclui pedindo que a presente ação seja julgada em função da prova que venha a ser produzida, com as necessárias consequências legais.
Proferiu-se despacho saneador, identificou-se o objeto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.
Entretanto, ordenou-se a apensação a estes autos da ação declarativa comum que corria termos sob o n.º 439/14.4TBEPS, a qual passou a constituir o Apenso A.
Nos autos deste Apenso, M. C., residente na Rua …, Esposende, intentou ação contra a mesma Ré “COMPANHIA DE SEGUROS A, S.A.”, cuja denominação foi, entretanto, alterada para “COMPANHIA DE SEGUROS B, S.A.”, sociedade com sede na Avenida …, Lisboa, pedindo que a Ré seja condenada a pagar-lhe:

A. A indemnização global líquida de € 34 688,16, acrescida de juros de mora vincendos, contados à taxa legal de 4 % ao ano, desde a data da propositura da presente ação até efetivo pagamento;
B. A indemnização ilíquida que, por força dos factos alegados nos art.º 257.º a 273.º da Petição Inicial, vier a ser quantificada em incidente de liquidação.
Alega, em síntese, a ocorrência de um acidente de viação e a vigência de um contrato de seguro entre o dono do veículo alegadamente culpado deste acidente e a Ré, nos mesmos termos alegados pelo Autor da ação principal.
Invoca a ocorrência de um conjunto de danos de carácter patrimonial e não patrimonial como consequência direta e necessário do referido acidente, no valor global de € 34 688,16 (correspondente a € 10 000,00 de indemnização por danos de natureza não patrimonial; € 3 400,00 a título de ITA de 02,00 meses; € 20 000,00 a título de IPP de 03,00 %; € 1 258,16 a título de despesas efetuadas e € 30,00 de indemnização pelas peças de vestuário e calçado danificados).
Alega ainda que não se encontra completamente curada nem clinicamente estabilizada e requer que a quantificação da indemnização por esses danos seja relegado para incidente de liquidação.
A Ré veio contestar, aceitando a ocorrência do acidente, bem como a celebração e vigência do contrato de seguro invocado.
Contrapõe, em síntese, que o acidente ora em apreço se ficou a dever essencialmente à Autora (enquanto condutora do IT), a qual, não obstante estar obrigada a ceder a passagem a todos os veículos que transitassem na via em que ia entrar, decidiu avançar.
Impugna a generalidade da matéria de facto atinente aos danos alegados na Petição.
Conclui pedindo que a presente ação seja julgada em função da prova que venha a ser produzida, com as necessárias consequências legais.
Proferiu-se despacho saneador, identificou-se o objeto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.
Procedeu-se a audiência de julgamento conjunto, no âmbito do qual as partes chegaram a acordo judicial quanto ao pedido formulado pelo Autor da ação principal.
Proferiu-se sentença, que julgou a ação apensa parcialmente procedente, condenando a Ré a pagar à Autora a quantia total de € 17 544,16, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4 % ao ano, contados desde 15/05/2014 e até integral pagamento, absolvendo a Ré do demais peticionado pela Autora.
Inconformada com a sentença, a Ré interpôs recurso, terminando com as seguintes

CONCLUSÕES

1. Salvo o devido respeito, entende a ora recorrente que o Meritíssimo Juiz, ao pronunciar-se sobre as matérias vertidas no artigo 140.º da petição inicial, avaliou incorretamente e não conjugou os diversos meios de prova que tinha ao seu alcance, no que a esta factualidade diz respeito e, por isso mesmo, falhou no julgamento que fez sobre a matéria ínsita em tal artigo, nos termos constantes do ponto 55. dos Factos Provados.
2. Parece claro existir uma contradição entre os fundamentos invocados pelo Meritíssimo Julgador e a decisão que acabou por tomar no que a estas concretas matérias diz respeito.
3. Tal como resulta da sentença, para responder à matéria vertida no artigo 140.º do petitório, o Meritíssimo Juiz fundou-se apenas nos registos clínicos juntos aos autos e no relatório pericial médico de fls ....
4. Ora, em parte alguma dos registos clínicos, ou do sobredito relatório vem referido que, em consequência do acidente dos autos, a autora tenha sofrido um traumatismo facial, um traumatismo da coluna vertebral, um traumatismo da região coxofemoral direita, um traumatismo da coluna lombar, um traumatismo da coluna dorsal, um traumatismo da coluna cervical, um traumatismo da bacia, escoriações e hematomas.
5. Ao dar como demonstrado que, em consequência do presente sinistro, a autora sofreu as patologias descritas no ponto 4. das presentes conclusões do recurso, o Meritíssimo Juiz contraria os citados elementos de prova sem, para tanto, invocar qualquer fundamento e referindo que a sua decisão se fundou, de modo exclusivo, naqueles meios probatórios.
6. A prova documental e a prova pericial foram, de facto, as únicas que verdadeiramente, com propriedade, foram produzidas sobre estas matérias, até pela especificidade técnica que as mesmas encerram.
7. Em face do exposto, quer parecer à aqui recorrente que o Meritíssimo Juiz incorreu em erro na apreciação da prova, no que a esta factualidade diz respeito, erro esse que resulta patente da leitura da sentença, quando conjugada com os supra aludidos meios de prova.
8. A situação acima descrita consubstancia até, salvo o devido respeito, a nulidade prevista na alínea c) do n. 1 do artigo 615.° do C.P.C., já que o fundamento da decisão invocado pelo Meritíssimo Juiz está em clara oposição com o que resulta da resposta dada ao artigo 140.° da p.i., nos termos em que a mesma se mostra expendida (vide ponto 55. dos Factos Provados).
9. Considerando o teor dos sobreditos meios de prova - registos clínicos e relatório pericial de fls .... - os únicos elementos de prova em que o Tribunal se fundou para responder a esta questão - impõe-se a revogação daquele segmento da decisão da primeira instância, já que, em face da prova produzida, não há fundamento para dar como demonstrado que, em consequência do acidente, a autora tenha sofrido as supra mencionadas lesões.
10. Por conseguinte, deve ser alterado o ponto 55. dos Factos Provados, o qual deverá passar a ter a seguinte redação: "Em consequência do acidente a autora sofreu um traumatismo com escoriações no nariz e manifestou queixas de dor no ombro, hemitórax direito e na coxofemoral direita."
11. A ora recorrente não pode igualmente conformar-se com o valor indemnizatório fixado na sentença recorrida pelo défice funcional permanente de que a autora ficou a padecer em consequência do acidente dos autos.
12. A este respeito importa ter presente que não está demonstrado que as sequelas que a recorrida apresenta lhe reduzam a sua capacidade de ganho no futuro.
13. Atendendo a que o prejuízo que se visa ressarcir não é o da perda da capacidade do lesado para produzir rendimentos, no cômputo desta indemnização não faz sentido fazer apelo aos parâmetros habitualmente utilizados para o cálculo dos lucros cessantes futuros.
14. Atenta a factualidade que vem dada como demonstrada (em particular o défice funcional de 2 pontos que afeta a recorrida, pontos, decorrente do agravamento de uma patologia prévia e a idade desta última, à data dos factos), entende a aqui recorrente que o montante indemnizatório arbitrado à recorrida deverá ser reduzido para um valor não superior à quantia de 3.500,00€.
15. De resto, fazendo uso de um cálculo meramente aritmético para uma previsível perda de rendimento da autora - o que, repete-se, não se demonstrou no caso dos autos - chega-se a um valor inferior a 3.500,00€.
16. Com efeito, tendo por referência o rendimento mínimo garantido à data do acidente - 485,00€ - e o défice funcional permanente que afeta a recorrida - 2 pontos ­verifica-se que a perda de rendimento anual desta última se cifraria no montante de 116,40€ (= 485,00€ x 12 por 0,02), sendo que se se multiplicar tal verba pelo período de vida ativa que lhe resta (26 anos), alcançaríamos o montante global de 3.026,40€.
17. No entanto, a este valor sempre se haveria de aplicar os fatores de correção que são considerados na Jurisprudência, nomeadamente, o facto da incapacidade da recorrida não originar uma diminuição efetiva dos seus rendimentos laborais e, bem assim, o facto da antecipação do recebimento do capital constituir um benefício para quem o recebe, posto que permite a sua aplicação, de modo a que tal montante gere rendimentos.
18. Em face do acima exposto, crê a ora recorrente que se impõe, nesta parte, a revogação da decisão da primeira instância e a sua substituição por outra que fixe em 3.500,00€ a indemnização a arbitrar à recorrida pelo défice funcional permanente de que a mesma ficou a padecer em consequência do acidente dos autos.
19. Ressalvando sempre o devido respeito por opinião diversa, entende, bem assim, a aqui recorrente que o montante indemnizatório arbitrado pelo Tribunal a quo à recorrida, a título de danos morais - 8.000,00 € - se mostra excessivo e desajustado, atendendo não apenas à factualidade que vem dada como provada, mas também aos parâmetros que vêm sendo seguidos pela nossa mais recente Jurisprudência em situações análogas.
20. Em face das lesões e sequelas sofridas pela autora em consequência do presente sinistro - felizmente de pouca gravidade - e, bem assim, do sentido Jurisprudência invocada no corpo das presentes alegações (com particular destaque para o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 13.02.2014, proferido no âmbito do processo n. 114/10.9TBPTL.G2, da 2a Secção Cível), crê a ora recorrente que se impõe a redução da apontada indemnização para um valor próximo dos 4.000,00€.
21. Caso a decisão quanto à matéria de facto não venha a ser alterada - o que apenas se admite para efeitos do presente raciocínio - sempre a indemnização a título de danos não patrimoniais não deveria fixar-se em quantia superior a 5.000,00€.
22. A decisão ora posta em crise ofende o preceituado nos artigos 496.º, 562.°, 563.°, 564.° e 566.° do Código Civil.

A Autora apresentou contra-alegações, afirmando, em resumo, que não merece qualquer censura a factualidade dada como provada pela sentença recorrida nem os concretos pontos da decisão da matéria de facto impugnados pela Recorrente. Acrescenta que os montantes indemnizatórios postos em crise não pecam por excesso, como alega a Recorrente.
Apresentou recurso subordinado, terminando com as seguintes

CONCLUSÕES

A. Não se questiona, no presente recurso, a parte da douta sentença recorrida, em que a mesma se pronuncia sobre a culpa na produção do sinistro, em relação ao condutor do veículo automóvel segurado da Recorrida.

B. Já que, de acordo com a prova produzida e com os factos provados, essa culpa é exclusivamente imputável ao condutor do veículo automóvel segurado da Recorrida.

C. Discorda, porém, a Recorrente em relação ao montante indemnizatório/compensatório que lhe foi atribuído, a título de indemnização por danos de natureza não patrimonial;

D. A indemnização fixada pela sentença recorrida para ressarcimento do dano biológico, em virtude da incapacidade de que passou a padecer, de 9.000,00 € -, é manifestamente insuficiente.

E. Em sua substituição, deve ser fixada, em via de recurso, a quantia de 20.000,00 € ..

F. Por outro lado, também se afigura insuficiente a indemnização fixada em primeira instância para a compensação dos danos não patrimoniais sofridos - € 8.000,00 - a qual, pela sua extensão e gravidade, conforme resulta dos factos provados, deve ser também alterada e fixada em valor não inferior a € 10.000,00.

G. Decidindo de modo diverso, fez a sentença recorrida má aplicação do direito aos factos provados e violou, além de outras, as normas dos artigos 496°., n", 1, 562°. e 564°., nos. 1 e 2, do Código Civil.

H. Quanto ao restante que não posto em crise nas presentes alegações de recurso, deve manter-se o doutamente decidido pelo Tribunal de Primeira Instância.

O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

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II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

As questões a apreciar, delimitadas pelas conclusões dos recursos, são as seguintes:
I. Nulidade da sentença por os fundamentos estarem em oposição com a decisão.
II. Modificabilidade da decisão de facto.
III. Quantificação dos montantes indemnizatórios devidos a título de Incapacidade Permanente Parcial e de danos não patrimoniais.
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III – NULIDADE DA SENTENÇA POR OS FUNDAMENTOS ESTAREM EM OPOSIÇÃO COM A DECISÃO

A Recorrente “COMPANHIA DE SEGUROS B, S.A.” sustenta que o Tribunal recorrido, ao pronunciar-se sobre as matérias vertidas no artigo 140.º da petição inicial, avaliou incorretamente e não conjugou os diversos meios de prova, falhando no julgamento que fez sobre a matéria ínsita em tal artigo, nos termos constantes do ponto 55. dos Factos Provados.
Entende existir uma contradição entre os fundamentos invocados pelo Meritíssimo Julgador e a decisão que acabou por tomar no que a estas concretas matérias diz respeito. Sendo que, por esta via, se verifica a nulidade prevista na alínea c) do n. 1 do artigo 615.° do C.P.C., já que o fundamento da decisão invocado pelo Meritíssimo Juiz está em clara oposição com o que resulta da resposta dada ao artigo 140.° da p.i., nos termos em que a mesma se mostra expendida (vide ponto 55. dos Factos Provados).
A Autora, em sede de contra-alegações, contrapôs que não merece qualquer censura a factualidade dada como provada pela sentença recorrida.
Vejamos:
Decorre do disposto no art.º 615.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil(1) que a sentença é nula – entre o mais – quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
Trata-se – como os demais enunciados nesta disposição legal - de um vício de natureza formal e não substancial.
Concretizando: ocorre uma situação de nulidade quando os fundamentos de facto e/ou de direito, de forma clara e evidente, não são passíveis de logicamente conduzir à decisão concreta escolhida.
Explica, a este propósito, Pais do Amaral (2) que "(...) a sentença tem de ser entendida pelos destinatários. Doutro modo, de nada lhes servirá. Por isso, a sentença tem de ser clara, de forma que na sua interpretação se não hesite entre dois sentidos e se conheça claramente o seu alcance."
No caso em apreciação, a sentença especificou quais os factos provados e não provados e fundamentou a sua convicção quanto a tais factos, nos termos do disposto no artigo 607.º do C.P.Civil. Sequencialmente, analisou a matéria de facto à luz das pretensões das partes, concluindo pela decisão final.
Não se verifica qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão, nem qualquer vício de raciocínio que tenha levado a uma decisão em sentido oposto àquele que deveria ter sido, atenta a matéria de facto dada como provada. Também não se verifica qualquer ambiguidade que torne a sentença ininteligível ou qualquer questão por apreciar.
Em concreto, quanto à resposta ao indicado Item 55 dos Factos Provados, o Tribunal de 1.ª Instância justificou, em sede de fundamentação da decisão de facto, que “Relativamente às lesões sofridas pela autoras, suas consequências e sequelas, fundou-se a convicção do tribunal na análise da documentação clínica respeitante à assistência prestada à Autora nas urgências do Hospital e, como particular relevância, no relatório do exame médico levado a cabo – cujas conclusões periciais não resultaram infirmadas, na ótica do tribunal, pelo depoimento prestado pela testemunha O. S., que a ré arrolou.”
A discordância da Recorrente prende-se – diversamente - com questões de mérito: esta entende que o Tribunal recorrido deveria ter apreciado a matéria de facto sob um certo prisma e, por esta via, decidido de forma diferente.
Trata-se, portanto, não de uma situação de nulidade da sentença, mas de mérito da mesma, na vertente da modificabilidade da matéria de facto com base na reapreciação das provas produzidas.
Inexiste, assim, a nulidade invocada pela Recorrente, consignando-se que esta questão de mérito será seguidamente apreciada no local próprio.
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IV - DA MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO

Decorre do disposto no art. 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil que "A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa."
A Relação usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes da 1ª instância, nos termos consagrados pelo n.º 5 do art. 607.º do C.P.Civil. Assim, após análise conjugada de todos os meios de prova produzidos, a Relação deve proceder a reapreciação da prova, de acordo com a própria convicção que sobre eles forma, sem quaisquer limitações, a não ser as impostas pelas regras de direito material.
Tal como explica Abrantes Geraldes (3), "(…) sendo a decisão do Tribunal “a quo” o resultado da valoração de meios de prova sujeitos à livre apreciação (…) a Relação, assumindo-se como verdadeiro Tribunal de instância, está em posição de proceder à sua reavaliação, expressando, a partir deles, a sua convicção com total autonomia. Afinal nestes casos, as circunstâncias em que se inscreve a sua actuação são praticamente idênticas às que existiam quando o Tribunal de 1ª instância proferiu a decisão impugnada, apenas cedendo nos factores da imediação e oralidade."
Descendo ao caso concreto, temos que a Ré Recorrente – como já ficou referido acima - sustenta que o Tribunal recorrido, ao pronunciar-se sobre as matérias vertidas no artigo 140.º da petição inicial, avaliou incorretamente e não conjugou os diversos meios de prova, falhando no julgamento que fez sobre a matéria ínsita em tal artigo, nos termos constantes do ponto 55. dos Factos Provados.
Especifica que a prova documental e a prova pericial foram, de facto, as únicas que verdadeiramente, com propriedade, foram produzidas sobre estas matérias, até pela especificidade técnica que as mesmas encerram.
Afirma que, em parte alguma dos registos clínicos, ou do sobredito relatório vem referido que, em consequência do acidente dos autos, a autora tenha sofrido um traumatismo facial, um traumatismo da coluna vertebral, um traumatismo da região coxofemoral direita, um traumatismo da coluna lombar, um traumatismo da coluna dorsal, um traumatismo da coluna cervical, um traumatismo da bacia, escoriações e hematomas.
Entende que, ao dar como demonstrado que, em consequência do presente sinistro, a autora sofreu as patologias descritas no ponto 4. das conclusões do recurso, o Meritíssimo Juiz contraria os citados elementos de prova sem, para tanto, invocar qualquer fundamento e referindo que a sua decisão se fundou, de modo exclusivo, naqueles meios probatórios.
Pretende que seja alterado o ponto 55. dos Factos Provados, passando a ter a seguinte redação: "Em consequência do acidente a autora sofreu um traumatismo com escoriações no nariz e manifestou queixas de dor no ombro, hemitórax direito e na coxofemoral direita."
A Autora respondeu, em sede de contra-alegações, que não merece qualquer censura a factualidade dada como provada pela sentença recorrida.
O Item 55) dos Factos Provados tem a seguinte redação: “Como consequência do acidente resultaram para a autora lesões corporais várias, nomeadamente traumatismo facial, traumatismo da coluna vertebral, traumatismo do nariz, traumatismo da região coxofemoral direita, traumatismo da coluna lombar, traumatismo da coluna dorsal, traumatismo da coluna cervical, traumatismo da bacia, escoriações e hematomas.”
Sequencialmente, o Tribunal de 1.ª Instância justificou, em sede de fundamentação da decisão de facto, que “Relativamente às lesões sofridas pela autoras, suas consequências e sequelas, fundou-se a convicção do tribunal na análise da documentação clínica respeitante à assistência prestada à Autora nas urgências do Hospital e, como particular relevância, no relatório do exame médico levado a cabo – cujas conclusões periciais não resultaram infirmadas, na ótica do tribunal, pelo depoimento prestado pela testemunha O. S., que a ré arrolou.”
Compulsados os autos, verificamos que da documentação clínica respeitante à assistência prestada à Autora nas urgências do Hospital, de fls. 113 e ss. do Apenso A, resulta que esta apresentava “escoriações no nariz, dor na coxofemoral dt, sem outras queixas sem alterações neurológicas”. Acrescenta, mais à frente, “RX dos ossos próprios do nariz e bacia, sem evidência de fratura”. E ainda mais à frente “Rx sem evidência de fratura ou de lesão pleuripulmonar aguda. Teve alta medicada.”
Dos Registos Clínicos do “Centro de Saúde”, de fls. 147 e ss. do Apenso A, resulta o registo dos seguintes problemas da utente: “Síndrome vertebral com irradiações de dores (10-07-2015); sinais/sintomas do pescoço (16-06-2015); sinais/sintomas da região lombar (16-06-2015); sinais/sintomas do joelho (16-06-2015); alterações do metabolismo dos lípidos (26-08-2014); sinais/sintomas da região dorsal (25-02-2014); sinais/sintomas dos ombros (25-02-2014); medicina preventiva/de acompanhamento geral (25-11-2013).”
Por outro lado, e com particular relevo, do “Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Civil”, de fls. 173 e ss. do Apenso A, resulta - com relevo para a apreciação desta questão - que “Do evento terá (ão) resultado traumatismo facial, coluna lombar, perna direita.”, que “(…) foi avaliada por Ortopedista particular (Dr. C. M.) que pediu RX e sugeriu tratamento de Medicina Física e Reabilitação que cumpriu em Laundos ministrado por Osteopata.”. Mais resulta, em sede de queixas, que “refere dores nos ombros direito e esquerdo que a impedem de colocar a roupa a secar; (…) lombalgias irradiadas para o membro direito. Cervicalgias persistentes; (…) refere que não consegue limpar vidros em casa por dores nos ombros e na região cervical; (…) refere agravamento das dores lombares com os esforços.” Resulta ainda, em sede de exame objetivo, que “Ráquis: lombalgias e cervicalgias residuais com flexão anterior da coluna lombar preservada. Sem alterações ao exame neurológico. A examinada apresenta queixas de parestesias nas mãos e membro inferior direito sem trajeto radicular. Lasegue negativo. Mobilidade do joelho direito dolorosa.” (…) Membro superior direito; omalgia direita despertada pelos movimentos do ombro nomeadamente com a abdução forçada compatível com tendinite do supraespinhoso; Membro superior esquerdo: omalgia direita despertada pelos movimentos do ombro nomeadamente com a abdução forçada compatível com tendinite do supraespinhoso.” Finalmente, em sede de discussão, que “Trata-se de doente com patologia degenerativa difusa da coluna vertebral. Admite-se que além do agravamento temporário das dores durante o período de convalescença, possa ter ocorrido um agravamento sequelar das dores da doença de base que apresenta a sinistrada, isto é, osteoartrose vertebral, uma vez que o mesmo também foi admitido pela seguradora.”
Com base na análise conjugada destes elementos clínicos e do Relatório Pericial, concordamos com a Recorrente que se deve restringir o elenco das lesões decorrentes do acidente somente para aquelas efetivamente referidas em tais elementos documentais e periciais. No entanto, em nosso entender, de tais elementos de prova resulta a prova de lesões mais extensas do que aquelas sugeridas por esta. Em concreto, entendemos que se deve considerar provado que a Autora, em consequência do acidente, sofreu traumatismo facial, traumatismo da coluna lombar e traumatismo da perna direita.
Assim, na procedência parcial deste fundamento de recurso, altera-se a redação do Item 55) dos Factos Provados, da seguinte forma: “Como consequência do acidente, resultaram para a autora lesões corporais várias, nomeadamente traumatismo facial, traumatismo da coluna lombar e traumatismo da perna direita.”
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V - FUNDAMENTAÇÃO
FACTOS PROVADOS (elencados na sentença, com a alteração decorrente da modificabilidade parcial acima determinada):

1) No dia 3 de junho de 2011, pelas 17:30 horas, ocorreu uma colisão de veículos na E.N., do concelho de Esposende.
2) Nessa colisão foram intervenientes o veículo automóvel ligeiro de mercadorias de matrícula IT (doravante designado IT) e o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula QN (doravante designado QN).
3) O IT, à data registado em nome de A. S., marido da autora, era na altura do sinistro conduzido por esta última.
4) O QN, à data registado em nome de A. C., era na altura do acidente conduzido por F. C..
5) A E.N., no local da deflagração do acidente, configura um traçado retilíneo com um comprimento superior a 600 metros.
6) A sua faixa de rodagem tem uma largura de 7,15 metros.
7) O tempo estava bom e seco, de sol aberto.
8) O pavimento asfáltico da faixa de rodagem da E.N. encontrava-se limpo, seco e em bom estado de conservação.
9) Pelas suas duas margens, a E.N. apresentava bermas também pavimentadas a asfalto.
10) O plano configurado pelo pavimento dessas duas bermas asfálticas situa-se ao mesmo nível do plano configurado pelo pavimento asfáltico da faixa de rodagem da E.N..
11) Essas bermas encontram-se delimitadas, em relação à faixa de rodagem da E.N., através de linhas, pintadas a cor branca, sem soluções de continuidade.
12) No preciso local das duas vias que ali confluem com a faixa de rodagem da E.N., essas linhas, que delimitam as suas bermas, apresentam soluções de continuidade.
13) Pelas suas duas margens, a E.N., no local do sinistro e antes de lá chegar, para quem circula em qualquer dos seus dois sentidos de marcha, é ladeada por casas de habitação e por estabelecimentos comerciais, com as suas portas e com os seus acessos a deitar diretamente para a faixa de rodagem da referida via.
14) O local da deflagração do acidente situa-se numa zona da E.N. existente entre placas, fixas em suporte vertical, que assinalam e avisam a presença e a existência do núcleo urbano, habitacional e comercial da localidade de Apúlia.
15) Para quem circulasse pela E.N., no sentido Norte-Sul (Viana do Castelo-Póvoa de Varzim), deparava à data, antes de chegar ao local da eclosão do embate, com os seguintes sinais de trânsito: proibição de exceder a velocidade máxima de 50 km/hora – C13; passagem de peões – A16a e H7; cruzamento com via sem prioridade – B8; proibição de ultrapassar – C14a e Semáforos.
16) Nas imediações do local da deflagração do acidente, a E.N. configura dois entroncamentos.
17) Pela sua margem direita, tendo em conta o sentido Norte-Sul, conflui com a E.N. a denominada Travessa ….
18) Pela sua margem esquerda, tendo em conta o indicado sentido de marcha, mas a uma distância de alguns metros, a Norte, da confluência da travessa da Rua das …, conflui com a E.N. a denominada Rua do ….
19) Para quem se encontrasse situado no local onde ocorreu o embate era possível avistar a faixa de rodagem da E.N. e as suas duas bermas asfálticas em toda a sua largura: no sentido Norte, ou seja, em direção a Viana do Castelo, ao longo de uma extensão superior a 300 metros; no sentido Sul, ou seja, em direção à Póvoa de Varzim, ao longo de uma extensão superior a 100 metros.
20) Para quem circula pela E.N., no sentido Norte-Sul, consegue avistar-se o local da deflagração do acidente numa altura em que se encontra, ainda, a uma distância superior a 300 metros.
21) A E.N. permite o trânsito automóvel nos seus dois sentidos, ou seja, permite o trânsito automóvel no sentido Norte-Sul (Viana do Castelo-Póvoa de Varzim) e no sentido Sul-Norte (Póvoa de Varzim-Viana do Castelo).
22) Para o efeito, a E.N. encontrava-se dividida em duas hemi-faixas de rodagem distintas através de uma linha, pintada a cor branca no seu eixo divisório, com soluções de continuidade.
23) No dia 3 de junho de 2011, pelas 17:30 horas, o veículo IT, tripulado pela autora, transitava pela Travessa …, desenvolvendo a sua marcha no sentido Poente-Nascente, em direção à E.N..
24) A sua condutora pretendia penetrar com o IT na faixa de rodagem da E.N., efetuar manobra de mudança de direção à sua esquerda e passar a circular, através da metade direita da faixa de rodagem da E.N., no sentido Sul-Norte.
25) Antes de chegar ao local da confluência da Travessa … com a E.N., a condutora do IT reduziu a velocidade de que vinha animada e pôs em funcionamento o sinal luminoso – “pisca” – do lado esquerdo.
26) Ao chegar ao preciso local da confluência da faixa de rodagem da Travessa … com a faixa de rodagem da E.N., a autora, que conduzia o IT, imobilizou completamente a sua marcha.
27) Quando assim se encontrava parada, a autora olhou para o seu lado direito, no sentido Sul, ao longo da E.N., em direção à cidade de Póvoa de Varzim, e reparou e certificou-se de que naquele momento não circulava qualquer veículo para si visível pela dita estrada, no sentido Sul-Norte.
28) A autora olhou também para o seu lado esquerdo, no sentido Norte, ao longo da E.N., em direção à cidade de Viana do Castelo, e reparou que naquele momento circulava pela metade direita da faixa de rodagem da E.N., tendo em conta o sentido Norte-Sul, um veículo automóvel ligeiro de mercadorias, do tipo Toyota modelo Dyna, de cabine fechada e caixa aberta.
29) Esse veículo automóvel ligeiro de mercadorias desenvolvia a sua marcha no sentido Norte-Sul pela metade direita da referida via, tendo em conta o seu indicado sentido de marcha.
30) Naquele momento encontrava-se ainda a uma distância não apurada, mas superior a 100 metros, antes de chegar ao local onde o IT se encontrava imobilizado.
31) À frente desse veículo automóvel ligeiro de mercadorias do tipo Toyota modelo Dina não circulava pela E.N., no sentido Norte-Sul, qualquer outro veículo automóvel, motociclo, ciclomotor ou velocípede.
32) Então, a autora arrancou e reiniciou a sua marcha, com o referido veículo automóvel IT, por forma a descrever, como descreveu, uma trajetória perpendicular em relação ao sentido de onde provinha e em relação ao eixo divisório da faixa de rodagem da E.N..
33) Transpôs com o IT a metade esquerda da faixa de rodagem da E.N., tendo em conta o sentido Sul-Norte, transpôs o eixo divisório da faixa de rodagem dessa estrada, por forma a dar a sua esquerda e a esquerda do veículo automóvel que conduzia ao ponto de intersecção dos eixos divisórios das duas vias: Travessa … e E.N..
34) A autora penetrou então com o IT na metade direita da faixa de rodagem da E.N. nº 13, tendo em conta o sentido Sul-Norte, apontou a parte frontal daquele veículo que conduzia no sentido Norte, em direção à cidade de Viana do Castelo, e passou a circular com esse mesmo veículo no sentido Sul-Norte.
35) O IT passou a transitar sobre a metade direita da faixa de rodagem da E.N., tendo em conta o sentido Sul-Norte.
36) Quando rodava nessas circunstâncias, depois de ter já percorrido alguns metros pela metade direita da faixa de rodagem da E.N., tendo em conta o sentido Sul-Norte, e depois de ter travado o veículo automóvel que tripulava, foi este embatido pelo QN, conduzido pelo F. C..
37) Nas referidas circunstâncias temporais, o QN transitava também pela E.N., desenvolvendo a sua marcha no sentido Norte-Sul, inicialmente pela metade direita da faixa de rodagem dessa estrada, atento aquele sentido, e numa posição situada à retaguarda do supra-referido veículo automóvel ligeiro de mercadorias do tipo Toyota, modelo Dyna.
38) O condutor do QN decidiu levar a efeito a manobra de ultrapassagem ao veículo tipo Toyota, modelo Dyna, pois pretendia colocar aquela viatura à frente deste último veículo e prosseguir a sua marcha, à frente dele, no sentido Sul, em direção à cidade de Póvoa de Varzim.
39) O F. C. não se apercebeu da presença do IT, conduzido pela autora, nem que este veículo, naquele preciso momento, transitava pela E.N. no sentido Sul-Norte, pela metade direita da faixa de rodagem dessa via.
40) O condutor do QN imprimia a esse veículo uma velocidade não concretamente apurada, mas não inferior a 80 kms horários.
41) O F. C. guinou o QN para a sua esquerda, por detrás do veículo do tipo Toyota, modelo Dyna, com vista a iniciar e a concretizar a sua pretendida manobra de ultrapassagem, numa altura em que o IT já circulava pela E.N., apenas nesse momento se apercebendo da presença deste último veículo tripulado pela autora.
42) O F. C. acionou os travões do QN, mas, por força da velocidade a que seguia, não dominou aquele veículo.
43) Transpôs para o seu lado esquerdo o eixo divisório da faixa de rodagem da E.N., invadiu com aquele veículo a metade esquerda dessa faixa de rodagem, atento sentido Norte-Sul, até que embateu no IT, depois de ter deixado marcados no pavimento rastos de travagem com o comprimento de 39,30 metros.
44) Esses rastos de travagem prolongavam-se de forma enviesada, para o seu lado esquerdo, através da metade esquerda da faixa de rodagem da E.N., considerando o mesmo sentido de marcha, até ao local da colisão contra o veículo IT, junto à linha delimitativa da berma do lado esquerdo da E.N., tendo em conta o sentido Norte-Sul.
45) O embate ocorreu totalmente sobre a metade direita da faixa de rodagem da E.N., tendo em conta o sentido Sul-Norte, ou seja, Póvoa de Varzim-Viana do Castelo, por onde circulava o IT, conduzido pela autora.
46) Essa colisão verificou-se entre a parte frontal direita, ao nível do canto do mesmo lado, do QN, e a parte frontal, ao meio, do veículo de matrícula IT, tripulado pela autora.
47) Em consequência do embate, o IT rodou sobre si próprio, para o lado direito, ao longo de um ângulo de 180 graus, e foi projetado para a sua retaguarda, no sentido Sul.
48) Após o embate, o IT ficou posicionado sobre o eixo divisório da faixa de rodagem da E.N., com a sua parte da frente voltada em direção à cidade da Póvoa de Varzim.
49) O veículo QN, por sua vez, após o embate com o IT, prosseguiu a sua marcha, no sentido Sul, e apenas se imobilizou após ter colidido com os rodados da frente contra o lancil de um passeio existente numa ponte ali situada sobre um riacho cujo curso naquele local passa sob a faixa de rodagem da E.N..
50) O F. C. iniciou e desenvolveu a sua pretendida manobra de ultrapassagem num local em que a E.N. configura dois entroncamentos: um deles pela sua margem esquerda, tendo em conta o sentido Norte-Sul (configurado pela Rua …) e outro, a uma distância de alguns metros mais a Sul, pela sua margem direita, tendo em conta o mesmo indicado sentido de marcha (configurado pela Travessa …).
51) Correu termos pelo 2º Juízo do extinto Tribunal Judicial da Comarca de Esposende um procedimento criminal, sob o 813/11.8GAEPS, que teve origem no mesmo acidente de viação que está na génese da presenta ação.
52) Nesse procedimento foi deduzida acusação pelo Digno Magistrado do Ministério Público e teve lugar a realização da audiência de discussão e julgamento, tendo o condutor do QN, F. C., sido condenado como autor material de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148º, nº 1 do Código Penal, na pena de 85 dias de multa, à taxa diária de € 8,00, por sentença já transitada em julgado.
53) Na Travessa …, no local em que esta entronca com a E.N., estava colocado à data do acidente um sinal de STOP, que obrigava quem circulasse por aquela Travessa a parar e a ceder a passagem a todos os veículos que naquele momento circulassem na E.N..
54) O local onde se dá o acidente configura uma extensa reta, sendo que a visibilidade que a autora tinha para a sua esquerda, estando parada à entrada do entroncamento, era superior a 300 metros.
55) Como consequência do acidente, resultaram para a autora lesões corporais várias, nomeadamente traumatismo facial, traumatismo da coluna lombar e traumatismo da perna direita.
56) A autora foi transportada para o Hospital, onde lhe foram prestados os primeiros socorros, no respetivo serviço de urgência.
57) Foram-lhe aí efectuados exames radiológicos às regiões do corpo atingidas, e prescritos medicamentos, nomeadamente analgésicos e anti-inflamatórios, que a autora se viu na necessidade de ingerir.
58) No próprio dia do embate a autora obteve alta hospitalar, medicada e com recomendação de repouso.
59) Regressou à sua casa de habitação, onde se manteve doente, combalida e retida no leito ao longo de um período não apurado, mas de aproximadamente três dias, sem se poder levantar da cama.
60) Posteriormente a autora passou a ser seguida, acompanhada e tratada pelo ortopedista Dr. C. M., com consultório na Póvoa de Varzim, o qual lhe prescreveu exames radiológicos que a autora realizou.
61) Prescreveu-lhe ainda tratamentos de fisioterapia, que a autora cumpriu numa clínica sita na freguesia de Laúndos, concelho de Póvoa de Varzim, ao longo de 95 sessões.
62) Posteriormente a autora dirigiu-se aos serviços clínicos da ré COMPANHIA DE SEGUROS A, S.A., onde foi avaliada, com alta em 18 de abril de 2012, com as seguintes sequelas: lombalgia residual; data da consolidação das lesões sofridas: 3 de agosto de 2011; “quantum doloris” de grau 3, numa escala de 0 a 7; IPG – Incapacidade Permanente Geral de 3 Pontos – Md0905 – numa escala de 0 a 100.
63) No momento do acidente e nos instantes do que precederam a autora sofreu um enorme susto, tendo receado pela própria vida.
64) A autora sofreu dores em todas as regiões do corpo atingidas, que a afligiram durante um período de tempo não apurado, e que a afetam ainda na presente data quando faz força e esforço com as regiões do seu corpo atingidas, quando sopesa, carrega e transporta objetos pesados.
65) A autora sofreu os efeitos do RX e dos medicamentos que se viu na necessidade de ingerir.
66) A autora sofreu os incómodos inerentes ao período de acamamento na sua casa de habitação, assim como sofreu a privação da sua liberdade pessoal durante esse período.
67) Sofreu as dores e os incómodos inerentes aos tratamentos de fisioterapia a que se viu na necessidade de se submeter.
68) Como queixas resultantes do acidente, das lesões e das sequelas sofridas, a autora apresenta: dores nos ombros direito e esquerdo, lombalgias irradiadas para o membro direito, cervicalgias persistentes, agravamento das dores lombares com os esforços.
69) Como sequelas das lesões sofridas, a autora apresenta: Ao nível da ráquis - lombalgias e cervicalgias residuais com flexão anterior da coluna lombar preservada, parestesias nas mãos e membro inferior direito sem trajeto radicular, lasegue negativo, mobilidade do joelho direito dolorosa; Ao nível do membro superior direito – omalgia direita despertada pelos movimentos do ombro, nomeadamente com a abdução forçada, compatível com tendinite do supraespinhoso; Ao nível do membro superior esquerdo - omalgia direita despertada pelos movimentos do ombro, nomeadamente com a abdução forçada, compatível com tendinite do supraespinhoso.
70) A autora sofreu: um Défice Funcional Temporário Total fixável num período de 3 dias; Um Défice Funcional Temporário Parcial fixável num período de 184 dias; Uma Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total fixável num período total de 62 dias; Uma Repercussão Temporária na Atividade Profissional Parcial fixável num período total de 122 dias.
71) A autora sofreu um “quantum doloris” fixável num grau 3, numa escala crescente de 1 a 7.
72) A autora ficou a padecer de um Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica, decorrente do agravamento sintomático de artrose da coluna vertebral prévia ao traumatismo, fixável em 2 pontos percentuais.
73) Tais sequelas são compatíveis com o exercício da atividade habitual da autora, mas implicam esforços suplementares.
74) A autora obteve a sua consolidação médico-legal no dia 3 de dezembro de 2011.
75) A autora nasceu no dia 21 de agosto de 1966.
76) A autora exercia à data da ocorrência do acidente a atividade de doméstica, na sua residência, cujo agregado era composto por ela própria, pelo seu marido, dois filhos e pela sua mãe.
77) No exercício da sua atividade de doméstica, a autora lavava e passava a roupa a ferro, dobrava e arrumava essa roupa, lavava e arrumava a louça, confecionava e servia refeições aos elementos que compunham o seu agregado familiar, limpava o pó da casa e dos móveis, e, de um modo geral, executava todas as demais tarefas inerentes ao seu lar.
78) A autora desempenhava, ainda, a atividade de agricultora, no amanho de terrenos, cultivando e colhendo diversos géneros agrícolas que se destinavam ao consumo do seu agregado familiar, sendo o excedente destinando à venda, com o que reforçava o seu orçamento familiar mensal.
79) Durante um período de tempo não apurado, a autora viu-se impedida de desempenhar as suas referidas tarefas de doméstica, na sua casa de habitação, e de agricultora.
80) A autora efetuou as seguintes despesas: em consultas médicas, a quantia de € 140,00; em medicamentos, a quantia de € 15,20; em taxas moderadoras, a quantia de € 17,60; em exames complementares de diagnóstico, a quantia de € 14,36; em tratamentos de fisioterapia e de osteoterapia, a quantia de € 357,00; com a obtenção de duas certidões da conservatória do registo automóvel, a quantia de € 34,00.
81) À data do embate, a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ligeiro de matrícula QN encontrava-se transferida para a ré COMPANHIA DE SEGUROS A, S.A., através de contrato de seguro titulado pela apólice nº ….
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FACTOS NÃO PROVADOS (elencados na sentença, com a alteração decorrente da modificabilidade parcial acima determinada):

a) O F. C. conduzia o QN à ordem, com conhecimento, com autorização, por conta, no interesse e sob a direção efetiva do A. C., seguindo por um itinerário que este último lhe havia previamente determinado.
b) O veículo que a autora tripulava havia percorrido já uma distância superior a trinta metros pela metade direita da faixa de rodagem da E.N., tendo em conta o sentido Sul-Norte, quando foi embatido pelo QN.
c) O F. C. imprimia ao QN uma velocidade superior a 140 km/hora.
d) No momento em que o QN se encontrava já na hemi-faixa de rodagem esquerda da E.N., atento o seu sentido de marcha, em plena manobra de ultrapassagem, o respetivo condutor foi súbita e inesperadamente surpreendido pelo surgimento do IT na sua frente.
e) Ao chegar ao entroncamento formado pela Travessa … e pela E.N., a autora não imobilizou o IT à entrada do mesmo, tendo entrado de forma súbita e inesperada na E.N., mudando ato contínuo de direção à sua esquerda e tomando o sentido Póvoa de Varzim – Esposende.
f) A autora entrou na E.N. sem previamente ter olhado para a sua esquerda, a fim de se certificar de que não circulavam quaisquer veículos provindos desse mesmo lado e de que poderia efetuar a manobra de mudança de direção pretendida com segurança.
g) A condutora do IT efetuou a referida manobra de mudança de direção à esquerda de forma diagonal, isto é, sem dar a sua esquerda ao ponto de intersecção das duas vias.
h) Como consequência do acidente resultaram ainda para a autora as seguintes lesões corporais: traumatismo da coluna vertebral; traumatismo do nariz; traumatismo da coluna dorsal; traumatismo da coluna cervical, traumatismo da bacia, escoriações e hematomas.
i) A autora sofre dores que vão afligi-la ao longo de toda a sua vida sempre que movimenta as regiões do corpo atingidas, sempre que se mantém na posição de pé, quando caminha, e invariavelmente nas mudanças de tempo.
j) A autora passou a necessitar de ingerir diariamente medicação analgésica e anti-inflamatória, a qual vai ter necessidade de tomar ao longo de toda a sua vida.
k) A autora sofreu, e sofre ainda, de estado depressivo, o que a levou a ter necessidade de recorrer à ingestão de mediação do tipo calmantes e ansiolíticos.
l) A autora, nos seus quatro campos agrícolas, com uma área de 6.000 metros quadrados, cultivava e colhia géneros agrícolas que lhe proporcionavam um rendimento mensal de € 500,00.
m) A autora esteve absolutamente impedida durante um período de tempo de 60 dias de desempenhar as suas atividades de doméstica e de agricultora, o que lhe causou um prejuízo de € 3.400,00.
n) A partir da data da ocorrência do acidente, a autora jamais pôde, nem vai poder jamais, no futuro, exercer as suas atividades de doméstica, na sua casa de habitação, e de agricultora, em terrenos próprios.
o) A autora, por razão e em consequência do acidente, das lesões e das sequelas delas resultantes, passou a produzir um rendimento mais reduzido nas suas atividades de doméstica e de agricultora.
p) Passou a necessitar de fazer permanentes e constantes intervalos de descanso no desempenho de todas essas atividades, assim como passou a necessitar da presença, do auxílio e da ajuda de terceiras pessoas, que a passaram a complementar e a substituir em tarefas que ela já não é capaz de executar.
q) Se não fosse o acidente, as lesões e as sequelas delas resultantes, a autora ia continuar a trabalhar na plenitude das energias próprias de uma mulher ao longo de, pelo menos, mais trinta e sete anos.
r) A autora viu danificada e inutilizada uma blusa, que usava na altura da ocorrência do acidente, no valor de € 30,00.
s) Como consequência do acidente, a autora necessita e vai necessitar no futuro de tratamentos de fisioterapia e de osteoterapia, assim como das consultas médicas correspondentes.
t) No futuro vai necessitar de se submeter a consultas médicas da especialidade de ortopedia e de fisiatria, de osteopatia, de medicina e de cirurgia, além de outras.
u) Vai necessitar de efectuar exames de diagnóstico, tais como RX, ecografias, TACs e ressonâncias magnéticas.
v) Vai ter necessidade de pagar os custos correspondentes a essas consultas médicas, exames complementares, cirurgias e tratamentos.
w) Vai necessitar de suportar os prejuízos decorrentes do tempo de trabalho perdido para a obtenção dessas consultas médicas, tratamentos, exames, cirurgias e, ainda, com transportes e refeições no restaurante.
x) Vai ter necessidade de adquirir e de tomar medicamentos, já que necessita e vai continuar a necessitar ao longo de toda a sua vida, de ingerir medicação analgésica todos os dias.
y) Vai ter necessidade de se submeter a novas sessões de fisioterapia e osteoterapia para recuperação funcional, e vai ter necessidade de pagar os honorários médicos, os medicamentos, além todas as outras despesas necessárias e indispensáveis a todos os tratamentos de que vai carecer.
z) Vai ter necessidade de recorrer a serviços de enfermagem, para se submeter a curativos e a outros tratamentos.
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VI – QUANTIFICAÇÃO DO MONTANTE INDEMNIZATÓRIO DEVIDO A TÍTULO DE INCAPACIDADE PERMANENTE PARCIAL
Consignando-se que a alteração à matéria de facto não produz qualquer alteração à decisão da 1ª Instância quanto à culpa na produção do acidente e consequente responsabilidade civil pelos danos causados, cumpre passar a apreciar a quantificação do montante indemnizatório devido a título de Incapacidade Permanente Parcial, fixado na sentença recorrida em € 9 000,00.
A Ré Recorrente sustenta, a este respeito, que não está demonstrado que as sequelas que a recorrida apresenta lhe reduzam a sua capacidade de ganho no futuro.
Bem como que, atendendo a que o prejuízo que se visa ressarcir não é o da perda da capacidade do lesado para produzir rendimentos, no cômputo desta indemnização não faz sentido fazer apelo aos parâmetros habitualmente utilizados para o cálculo dos lucros cessantes futuros.
Defende que, atenta a factualidade que vem dada como demonstrada (em particular o défice funcional de 2 pontos que afeta a recorrida, pontos, decorrente do agravamento de uma patologia prévia e a idade desta última, à data dos factos), o montante indemnizatório arbitrado à recorrida deverá ser reduzido para um valor não superior à quantia de 3.500,00€.
Por contraponto, a Autora, em recurso subordinado, advoga que a indemnização fixada pela sentença recorrida para ressarcimento do dano biológico, em virtude da incapacidade de que passou a padecer, de € 9.000,00, é manifestamente insuficiente.
Defende que, em sua substituição, deve ser fixada, em via de recurso, a quantia de € 20.000,00.
Cumpre decidir.
É incontestável que na génese do pedido de indemnização por Incapacidade Permanente Parcial está um dano corporal, resultante da violação do direito subjectivo à integridade física e à saúde da Autora, consagrado constitucionalmente.
No caso dos autos, e em face do conjunto de factos acima transcritos, é manifesto que os danos corporais sofridos pela Autora, também chamados danos biológicos, lhe provocaram uma alteração da sua integridade física, diminuindo as capacidades que antes tinha.
Este dano biológico é obviamente indemnizável. Mas sê-lo-á a título de dano patrimonial ou não patrimonial?
Contrariamente à tese aqui apresentada pela Ré Recorrente, é entendimento comum e quase pacífico na jurisprudência o de que a incapacidade permanente representa, em si mesma, um dano patrimonial.
Cita-se, a título exemplificativo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/02/2008 (4), onde se refere expressamente que “Mesmo que não haja retracção salarial, a IPP dá lugar a indemnização por danos patrimoniais, pois o dano físico determinante da incapacidade exige do lesado um esforço suplementar, físico e psíquico, para obter o mesmo resultado de trabalho.”
Bem como o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/09/2013 (5), onde consta expressamente que "Mesmo que as sequelas físicas, que afectam permanentemente o lesado, não impliquem perda de créditos salariais, ele não deixa de ser indemnizado por dano patrimonial. A força produtiva depende da capacidade e integridade do corpo humano, sendo que a capacidade para trabalhar é, em si mesma, um valor que, para lá de relevar no plano moral da dignidade pessoal, assume um valor inquestionável como fonte de rendimento potencial, que deve existir ao longo do período de vida activa laboral que se estima, normalmente até aos 65 anos de idade, razão pela qual importa ter presente o rebate das sequelas do acidente."
Ainda o recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/03/16 (6), que refere, ao referir-se ao dano biológico, que "Trata-se de um "dano primário" do qual pode derivar, além de incidências negativas não susceptíveis de avaliação pecuniária, a perda ou diminuição de capacidades funcionais que, mesmo não importando perda ou redução da capacidade para a actividade profissional habitual do lesado, impliquem, ainda assim, um maior esforço no exercício dessa actividade e/ou a supressão ou restrição de outras oportunidades profissionais ou de índole pessoal, no decurso do tempo de vida expectável, mesmo foram do quadro da sua profissão habitual."
Conclui-se, em face do exposto, que o dano biológico dos autos constitui um dano patrimonial, por representar previsivelmente uma supressão do rendimento potencial da Autora, ao longo do seu período de vida activa.
Por outro lado, este mesmo dano biológico pode e deve ser "novamente" considerado em sede de fixação de indemnização a título de danos não patrimoniais, uma vez que este, para além da repercussão na capacidade de trabalho, repercute-se igualmente e habitualmente na saúde mental, nas actividades sociais, na dinâmica familiar, na vida sexual e/ou nas actividades recreativas ou desportivas do lesado.
Esta dupla faceta indemnizatória do dano biológico é confirmada e explicada na doutrina por Armando Braga (7), ao declarar: "(...) se para além do "dano biológico" puder ser verificado um concreto dano à capacidade laboral da vítima, tal representa um ulterior coeficiente ou plus de dano a acrescentar ao dano corporal. Também o "dano moral" poderá ser considerado, se se verificarem os requisitos jurídicos da ressarcibilidade, sendo representado pelo estado de sofrimento psíquico provocado na vítima, habitualmente transitório, da ofensa produzida e das suas consequências."
O cálculo desta indemnização é de difícil concretização, por se traduzir numa concretização em dinheiro de um dano sem expressão monetária e por se tratar de um dano futuro.
O Código Civil não estabelece nenhuma forma de cálculo matemática para o cômputo deste ressarcimento. Somente nos diz que a indemnização em dinheiro tem como medida, em princípio, a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos - art.º 566.º n.º 2.
Aplicando este princípio geral a jurisprudência tem vindo a entender, desde há vários anos e de forma pacífica, que “O cálculo da frustração do ganho deverá conduzir a um capital que considere a produção de um rendimento durante todo o tempo de vida activa da vítima, adequada ao que auferiria se não fora a lesão, correspondente ao grau de incapacidade e adequado a repor a perda sofrida.” (8).
Vê-se assim que a indemnização a arbitrar a este título deve assentar nas regras gerais da equidade (566.º n.º 3 do Código Civil) tendo em linha de conta os elementos objectivos apurados da discussão da causa.
Antigamente, a jurisprudência utilizava habitualmente, como elementos de auxílio para o apuramento de um valor concreto, as regras de cálculo das tabelas financeiras para determinação do capital necessário à formação de uma renda periódica correspondente ao juro anual de 9 % ou as tabelas vigentes para acidentes de trabalho e remição de pensões.
A partir do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/05/94 (9) vieram-se realçar as distorções que esta fórmula ocasiona no cálculo deste tipo de indemnizações.
Com efeito, é do conhecimento geral que as taxas de juros líquidas têm vindo a baixar, pelo que se nos afigura mais ajustado atender a uma taxa de juros na ordem dos 2 %.
Além disso, deve ter-se em especial consideração a previsível inflação no longo prazo, os ganhos de produtividade e as evoluções salariais por progressão na carreira.
Aqui chegados, concordamos com o recurso às fórmulas de cálculo que, desde 1994, vêm sendo propostas pelo Supremo Tribunal de Justiça como princípio de cálculo. Depois, tal como referido acima, deverá fazer-se intervir a equidade, levando em linha de conta as variáveis específicas do caso concreto.
O caso em apreciação tem uma dificuldade acrescida, relacionada com o facto de a Autora não ter, nem antes do acidente nem atualmente, uma atividade remunerada. Sem embargo, deverá, uma vez mais de acordo com um critério equitativo, encontrar-se um valor remuneratório de referência para efeito de cálculo do prejuízo patrimonial decorrente do seu défice funcional da atividade físico-psiquica.
Sopesando todos os elementos factuais convergentes nos autos, afigura-se-nos que o salário médio do nosso país será excessivo como medida de referência. Consigna-se, a este respeito, que uma analise estatística nos revela (10) que o salário médio mensal dos trabalhadores por conta de outrem no ano de 2014 (ano de última atualização disponível) foi de € 909,50.
Atendendo a que não temos qualquer prova nos autos de que a Autora, atualmente com 51 anos de idade, alguma vez tenha exercido uma qualquer atividade remunerada, entendemos que se deve considerar o salário mínimo nacional como adequado para fixação desta verba indemnizatória, por ser o mais aproximado da realidade social e económica global para pessoas com as características da Autora.
Em face destas considerações, concordamos inteiramente com os parâmetros atendidos na decisão recorrida e com a indemnização fixada com base na análise dos mesmos. Tal como aí se refere, “Com efeito, ficou provado que a autora ficou a padecer de uma incapacidade permanente geral para o trabalho ou défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixado, no entanto, em apenas 2%. Demonstrado ficou também que essa incapacidade e as demais sequelas de que a autora ficou afetada são compatíveis com o exercício das suas atividades habituais, implicando, contudo, sofrimento e esforços complementares. Ponderando esses factos, bem como que a autora contava 44 anos à data do acidente, que executava todas as atividades domésticas e tinha também uma pequena exploração agrícola, sopesando que a esperança de vida ativa poderia estender-se até aos 75 ou mais anos, os seus gastos previsíveis, considerando uma taxa média de remuneração do capital de 3 % e uma taxa de crescimento de 2 % (atentos o padrão atual e o previsível no futuro), recorrendo indicativamente às conhecidas fórmulas matemáticas e vistas também as concretas circunstâncias do caso, entendemos equitativo atribuir à Autora, pelo dano patrimonial futuro, na vertente de dano biológico, uma indemnização no valor de € 9 000,00.”
A conclusão é, portanto, a da confirmação da sentença recorrida, com a inerente improcedência de ambos os recursos nesta parte.
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VII – QUANTIFICAÇÃO DO MONTANTE INDEMNIZATÓRIO DEVIDO A TÍTULO DE DANOS NÃO PATRIMONIAIS

A Ré Recorrente sustenta, por outro lado, que, em face das lesões e sequelas sofridas pela autora em consequência do presente sinistro - felizmente de pouca gravidade - e, bem assim, do sentido Jurisprudência invocada no corpo das presentes alegações (com particular destaque para o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 13.02.2014, proferido no âmbito do processo n. 114/10.9TBPTL.G2, da 2a Secção Cível), crê a ora recorrente que se impõe a redução da apontada indemnização para um valor próximo dos 4.000,00€.
Pelo contrário, a Autora sustenta, em sede de recurso subordinado, que é insuficiente a indemnização fixada em primeira instância para a compensação dos danos não patrimoniais sofridos - € 8.000,00 - a qual, pela sua extensão e gravidade, conforme resulta dos factos provados, deve ser alterada e fixada em valor não inferior a € 10.000,00.
Nos termos do disposto no art.º 496.º do C.Civil: “Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.”
O legislador estabeleceu que no cálculo das indemnizações por danos não patrimoniais se deve recorrer à equidade, tendo em conta os danos causados, o grau de culpa, a situação económica do lesante e do lesado e as demais circunstâncias do caso - art.º 496.º, n.º 3, e 494.º do C.Civil.
Tal como se refere no Ac. do S.T.J. de 05/07/2007 (11): “O montante da indemnização por danos não patrimoniais deve ser proporcional à gravidade do dano e calculado segundo as regras da prudência, do bom senso prático e da justa medida das coisas. Deve ter-se em consideração o sofrimento do lesado, durante e após o acidente bem como as dores físicas e morais de que a vítima sofreu e sofre, bem como o desgosto que as mazelas lhe trouxeram ou trazem.”
No mesmo sentido, explica o Prof. Antunes Varela: “O montante da indemnização deve ser proporcionado à gravidade do dano, devendo ter-se em conta na sua fixação todas as regras da prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida. É este, como já foi observado por alguns autores, um dos domínios onde mais necessários se tornam o bom senso, o equilíbrio e a noção das proporções com que o julgador deve decidir.” (12)
Na avaliação dos danos morais nesta sede são atendíveis vários tipos de prejuízos.
Tal como se explica no Ac. do S.T.J. de 25/11/2009 (13): "O dano não patrimonial não se reconduz a uma única figura, tendo vários componentes e assumindo variados modos de expressão, abrangendo o chamado quantum (pretium) doloris, que sintetiza as dores físicas e morais sofridas no período de doença e incapacidade temporária, com tratamentos, intervenções cirúrgicas, internamentos, a analisar através da extensão e gravidade das lesões e da complexidade do seu tratamento clínico; o "dano estético" (pretium pulchritudinis), que simboliza o prejuízo anátomo-funcional associado às deformidades e aleijões que resistiram ao processo de tratamento e recuperação da vítima; o "prejuízo de distração ou passatempo", caracterizado pela privação das satisfações e prazeres da vida, vg., com a renúncia a atividades extra-profissionais, desportivas ou artísticas; o "prejuízo de afirmação social", dano indiferenciado, que respeita à inserção social do lesado, nas suas variadas vertentes (familiar, profissional, sexual, afetiva, recreativa, cultural, cívica), integrando este prejuízo a quebra na "alegria de viver"; o "prejuízo da saúde geral e da longevidade", em que avultam o dano da dor e o défice de bem estar, e que valoriza as lesões muito graves, com funestas incidências na duração normal da vida; os danos irreversíveis na saúde e bem estar da vítima e o corte na expectativa de vida; o prejuízo juvenil "pretium juventutis" , que realça a especificidade da frustração do viver em pleno a chamada primavera da vida, privando a criança das alegrias próprias da sua idade; o "prejuízo sexual", consistente nas mutilações, impotência, resultantes de traumatismo nos órgãos sexuais; o "prejuízo da auto-suficiência", caracterizado pela necessidade de assistência de uma terceira pessoa para os atos correntes da vida diária, decorrentes da impossibilidade de caminhar, de se vestir, de se alimentar."
O Tribunal recorrido, atendendo aos elementos factuais apurados, decidiu: “É manifesto que todos estes danos assumem gravidade bastante para merecerem a tutela do direito e, por isso, serem objeto de adequada compensação. Sopesada essa gravidade e a extensão de tais danos, e ponderados à luz dos critérios normativos acima enunciados, afigura-se equitativa e ajustada a quantia de € 8 000,00 para compensação dos mesmos.”
Da nossa parte, tendo em conta o conjunto de factos apurados nos autos e os parâmetros legais, afigura-se-nos ajustado este valor indemnizatório, que se mantém.
Aliás, fazendo uma pesquisa à jurisprudência recente, encontramos um caso com lesões e sequelas idênticas, ainda que com um período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total de 180 dias e com um Défice Funcionla Permanente da Integridade Física-Psíquica de 3 pontos, em que esta Relação, por Acórdão de 21/04/16, tendo como Relator Miguel Baldaia Morais (14), fixou a indemnização por danos não patrimoniais no valor de € 10 000,00.
Por outro lado, cumpre ter presente a jurisprudência fixada recentemente pelo Supremo Tribunal de Justiça, no sentido de que “O juízo de equidade das instâncias, essencial à determinação do montante indemnizatório por danos não patrimoniais, assente numa ponderação, prudencial e casuística, das circunstâncias do caso – e não na aplicação de critérios normativos – deve ser mantido sempre que – situando-se o julgador dentro da margem de discricionariedade que lhe é consentida - se não revele colidente com os critérios jurisprudenciais que, numa perspetiva atualística, generalizadamente vêm sendo adotados, em termos de poder pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade.” (15).
Conclui-se, por inerência e também aqui, pela confirmação da sentença recorrida, com a inerente improcedência de ambos os recursos nesta parte.

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VIII - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente o recurso da Ré no que respeita à modificabilidade da matéria de facto, mas mantende a sentença recorrida no que respeita à apreciação de direito e indemnizações aí arbitradas.
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Custas em ambas as instâncias por Autora e Ré na proporção do decaimento (art.º 527.º do C.P.Civil).
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Notifique e registe.
(Processado e revisto com recurso a meios informáticos)
Guimarães, 14 de setembro de 2017

(Lina Castro Baptista)
(Alexandra Maria Rolim Mendes)
(Maria Purificação Carvalho)

1. Doravante designado apenas por C.P.Civil.
2. In Direito Processual Civil, 11ª Edição, Almedina, 2013, pág. 400.
3. In Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2ª Edição, 2014, pág. 235 e ss.
4. Proferido no Processo nº 4596/08 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
5. In Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano XXI, Tomo III, p. 266, tendo como Relator Fonseca Ramos.
6. In Coletânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano XXIV, Tomo 1, p.328.
7. In A Reparação do dano corporal na responsabilidade civil extracontratual, Almedina, 2005, p. 48.
8. In Acórdão do S.T.J. de 8 de Junho de 1993, C.J. Ano 1, T. II ; pag.138 e ss.
9. In C.J. Ano II, T. 2, pág. 86.
10. Através de pesquisa no site www.pordata.pt.
11. Proferido no Proc. nº 07B2132, tendo como Relator Gil Roque e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
12. In R.L.J. Ano 125º ; 599-600.
13. Proferido no Processo nº 397/03.0GEBNV.SI, tendo como Relator Raul Borges e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
14. Proferido no Processo n.º 2214/13.4TBVCT.G2 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
15. Vide Acórdão de 21/01/16, tendo como Relator Lopes do Rego, proferido no Processo n.º 1021/11.3TBABT.E1.S1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.