Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1578/21.0T8VNF.G1
Relator: ROSÁLIA CUNHA
Descritores: SOCIEDADE ANÓNIMA
FORMA DE CONVOCAÇÃO DE ASSEMBLEIA GERAL
NOMEAÇÃO DE ADMINISTRADOR ÚNICO
NULIDADE DE DELIBERAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Face ao disposto no art. 377º, nº 2, do CSC, a convocatória para as assembleias gerais das sociedades anónimas tem de ser publicada.
II - O art. 377º, nº 3, do CSC, permite que o contrato de sociedade estabeleça outras formas de comunicação diferentes da publicação, faculdade que se aplica a todas as sociedades anónimas, independentemente do tipo de ações.
Relativamente a sociedades anónimas cujas ações sejam todas nominativas, o contrato de sociedade pode substituir a publicação por carta registada ou por correio eletrónico, com recibo de leitura, mas, neste último caso, exige-se que o acionista tenha previamente manifestado o seu acordo quanto a esta forma de comunicação.
III – Não constando do contrato de sociedade outras formas de comunicação distintas da publicação, e não tendo esta ocorrido, o vício que afeta a convocatória decorrente da omissão de publicação consiste na anulabilidade.
IV - A finalidade da lei quando exige que a convocatória da assembleia geral das sociedades anónimas seja publicada é a de que os acionistas com direito a voto tenham conhecimento da realização da assembleia a fim de nela poderem intervir.
V - A autora/recorrida, ao invocar a omissão de uma formalidade na convocatória consistente na omissão de publicação, age em abuso de direito, excedendo manifestamente os limites impostos pela boa fé e pelo fim desse direito, porquanto, não obstante a irregularidade cometida, quer ela quer os demais sócios com direito a intervir na assembleia tiveram conhecimento efetivo da convocatória visto que, embora se trate de uma sociedade anónima, os sócios são duas pessoas que viveram em união de facto, a filha comum de ambos e uma sociedade que é representada por um daqueles sócios, tendo inclusive a autora/recorrida sido convocada por carta registada, devidamente recebida e à qual respondeu.
VI - De acordo com o disposto no art. 390º, nº 1 e 2, do CSC, o número de administradores que compõem o conselho de administração é fixado pelo contrato de sociedade e este pode dispor que haja um único administrador, mas tal só é possível se o capital social não exceder € 200 000; se exceder, o contrato de sociedade não pode estabelecer que haja apenas um administrador.
VII - A deliberação tomada em sentido contrário a tal disposição é nula, conforme disposto no art. 56º, nº 1, al. d), do CSC, por o seu conteúdo ser ofensivo de preceito legal que não pode ser derrogado, nem sequer por vontade unânime dos sócios, no caso o art. 390º, nº 2, do CSC, norma esta que tem natureza imperativa.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

RELATÓRIO

AA veio intentar ação de impugnação de deliberações sociais contra C..., S.A. pedindo que seja declarada a nulidade/anulabilidade das deliberações tomadas na assembleia geral de 17.2.2021, onde foram decididas a aprovação do relatório de contas do exercício de 2019, a aplicação de resultados, a apreciação geral da administração e fiscalização da sociedade e a nomeação dos membros dos órgãos sociais para o quadriénio de 2020 a 2023.
Como fundamento do seu pedido alegou, em síntese, que a convocatória e a deliberação padecem de diversas causas de nulidade e de anulabilidade, atinentes à legitimidade do fiscal único para a convocar, à recusa de informações e de acesso à informação pela acionista, à omissão de formalismos da convocatória, e por o teor da deliberação ser contra legem, ao aprovar a nomeação de um órgão de administração singular, quando a lei e os estatutos exigem que o mesmo seja plural, e servir o propósito de conferir vantagens ao acionista BB, através do exercício do voto, em prejuízo da sociedade.
Defende que tudo isto causa dano irreparável à sociedade, pois foram aprovadas contas sem qualquer critério, foi afastada a autora do Conselho de Administração e nomeado um único administrador, em violação da lei e dos estatutos, o qual tem vindo a deteriorar a estabilidade económica da empresa, com dívidas avultadas perante a Autoridade Tributária, os fornecedores e os clientes, e processos crime e ações cíveis, que evidenciam uma má gestão e a delapidação do património da empresa, em proveito próprio, o que culminará na insolvência da mesma.
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Regularmente citada, a ré apresentou contestação, defendendo-se por impugnação e por exceção. Invocou a caducidade do direito de ação, a falta de causa de pedir, a falta de efeito útil da pretensão da autora e a existência de abuso de direito na conduta desta.
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A autora apresentou resposta, pugnando pela improcedência das exceções invocadas.
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Foi dispensada a realização da audiência prévia.
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Foi proferido despacho que:

- fixou o valor da ação em € 30 000,01;
- julgou improcedente a arguida ineptidão da petição inicial e, bem assim, a caducidade do direito de ação relativamente ao pedido de declaração de nulidade das deliberações sociais;
- relegou para final o conhecimento da exceção da caducidade do direito de ação quanto ao pedido de declaração de anulabilidade das deliberações;
- identificou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova.
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Realizou-se a audiência final e foi proferida sentença com o seguinte teor decisório:
“Face ao exposto, decido:

· julgar inverificada a excepção peremptória da caducidade do direito da Autora em interpor a presente acção relativamente às deliberações anuláveis;
· julgar verificada a violação do disposto no artigo 390.º do CSC e, consequentemente, declaro nula a deliberação de nomeação do órgão de administração;
· julgar verificada a irregularidade da convocação da Autora para a assembleia geral da Ré, fruto da omissão de publicação da convocatória e, consequentemente, declaro anuláveis as demais deliberações.
· julgar verificado o abuso de direito invocado pela Ré quanto à questão que se prende com a legitimidade do ROC em convocar a assembleia e inverificado o abuso de direito quanto à invocação da falta de publicitação.
· julgar improcedente a alegação relativa à prova de resistência invocada pela Ré.”
*
A ré não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

“1 - A deliberação social dos autos foi declarada nula pelos seguintes motivos:
· Falta de publicação da convocatória (que foi enviada directamente para a recorrida)
· Eleição de um Conselho de Administração composto por um administrador
2 – Conforme resulta dos autos, não há qualquer carácter abusivo na deliberação social impugnada.
3 - Quanto à convocatória, importa referir que o seu objectivo é trazer ao conhecimento do respectivo destinatário o agendamento e subsequente realização de uma sessão ordinária ou extraordinária de Assembleia Geral, possibilitando ao seu destinatário que esteja presente e que exerça os direitos correspondentes, nomeadamente votando, formulando propostas e/ou apresentando declarações de voto.
4 - Conforme consta dos autos, a recorrida (por comunicação que lhe foi enviada e recebeu) teve conhecimento directo e atempado do agendamento da sessão de Assembleia Geral dos autos, pôde estar presente e exercer os seus direitos, tendo optado voluntária e conscientemente por não o fazer, preferindo criar um enquadramento artificial que lhe permitisse apresentar a presente acção.
5 – Importa destacar que a recorrente, independentemente da sua forma societária, acaba por se reconduzir muito mais a uma sociedade de pessoas do que uma sociedade de capitais, como é possível verificar pela sua estrutura societária, em que, aquando da sua constituição e sem prejuízo das evoluções ocorridas nos relacionamentos pessoais, todos os sócios têm (ou tinham) relações próximas, sendo perfeitamente admissível encarar-se a recorrente como uma sociedade de pessoas.
6 - Nunca ocorreu qualquer sessão anterior de Assembleia Geral da recorrente que tivesse sido objecto de convocatória publicada no Portal da Justiça, precisamente porque, considerando os laços pessoais existentes, essa mera formalidade foi dispensada por todos, nomeadamente pela recorrida, como é possível verificar por uma consulta do Portal da Justiça em https://publicacoes.mj.pt/Pesquisa.aspx
7 – Face a tal histórico (sem publicação de convocatória) e o carácter indiscutivelmente pessoal da estrutura societária da recorrente, não assiste qualquer razão à recorrida quando invoca a preterição da publicação dessa convocatória, tanto mais que lhe foi dado conhecimento directo e escrito do agendamento e da intenção de realização da sessão de Assembleia Geral dos autos.
8 – Importa ainda destacar o facto da recorrida, em manifesto abuso de direito, ter recusado reiteradamente proceder à convocação da sessão de Assembleia Geral dos autos, em claro prejuízo dos interesses da recorrente, face à circunstância dos mandatos dos titulares dos seus órgãos sociais ter chegado ao fim.
9 - A este respeito, importa relembrar o que o Tribunal recorrido apurou a propósito da conduta da recorrida no sentido de boicotar e de bloquear a realização da sessão de Assembleia Geral dos autos, o que obrigou a recorrente a solicitar a respectiva convocação ao Revisor Oficial de Contas, face às sucessivas recusas de convocação pela recorrida, que também era Presidente da Mesa da Assembleia Geral, como decorre da factualidade provada e das citações que, a título meramente exemplificativo, se incluem nas presentes alegações retratando fielmente a conduta da recorrida.
10 - O art. 377, nº 3 CSC, permite que a publicação da convocatória seja substituída por carta registada, quando todas as acções forem nominativas, como é o caso de todas as acções da recorrente, pelo que, também neste ponto, não assiste qualquer razão à recorrida, quer formal, quer materialmente.
11 - Conforme o documento nº ... junto com a oposição à providência cautelar (que a recorrente invocou a seu favor na parte final da contestação dos presentes autos), o pacto social estabelece que o Conselho de Administração pode ser composto por um a sete membros, Como resulta do número um do artigo vigésimo do pacto social da recorrente supra-transcrito.
12 - A recorrida aceitou a actual redacção do pacto social, não a tendo colocado em causa aquando da sua aprovação e nunca tendo adoptado qualquer acto ou comportamento que de alguma forma traduzisse desacordo com a mencionada redacção estatutária.
13 - Os próprios serviços do registo comercial aceitaram e validaram tal opção da recorrente.
14 – É plenamente lícita e legítima a opção da recorrente por uma qualquer das alternativas estatutariamente estabelecidas (vd. art. 390, CSC), sendo eleito ou nomeado um Conselho de Administração com a composição numérica admitida pelo pacto social – um a sete membros.
15 - Não se trata, pois, da opção por um Administrador Único, mas sim da opção por um Conselho de Administração com a composição que está estatutariamente prevista e que foi aceite, quer pelos serviços do registo comercial, quer pela própria recorrente, que nunca impugnou essa disposição estatutária e que não pode ser posta em causa nos presentes autos.
16 - Conforme consta dos autos, independentemente do que vier a ser decidido, a recorrente continuará a ser representada legalmente e gerida pelo actual membro do Conselho de Administração BB, que já o era (membro do Conselho de Administração) antes da data da realização da sessão de Assembleia Geral dos autos, competindo-lhe tomar as decisões e adoptar as opções de gestão mais adequadas ao fim societário, como, de resto, a própria recorrida admite, ao referir que não tem qualquer intervenção na gestão da recorrente.
17 - Ainda que a deliberação social dos autos seja declarada nula, a recorrente continuará a ser gerida pelo membro do Conselho de Administração BB, pelo que falta, no caso vertente, um requisito essencial para que a impugnação proceda, tanto mais que, ao invés, são incomparavelmente mais gravosos os efeitos da procedência da presente acção do que permitir que a recorrente se faça representar por quem esteja a exercer funções para além do fim de mandato, como sucedia até às deliberações sociais impugnadas, ou fazer com que as contas da recorrente estejam plenamente aprovadas, conforme já referiu o Douto Acórdão desta Veneranda Relação que confirmou a improcedência da providência cautelar apensa e que supra se transcreveu
18 - Se a presente acção proceder e a recorrente tiver necessidade de ver convocada nova sessão de Assembleia Geral com a mesma ordem de trabalhos, o resultado será exactamente o mesmo, face à distribuição interna do capital social correspondente, como resulta da factualidade provada nos autos, o que evidencia adicionalmente a ausência de efeito útil da pretensão da recorrida.
19 – A Douta Sentença recorrida viola o disposto nomeadamente no art. 390, nº 1, CSC e no art. 334 CC.”

Termina pedindo que seja proferido acórdão que julgue a ação improcedente.
*
A autora contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, tendo formulado as seguintes conclusões:
(…)
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito devolutivo, não tendo sido objeto de alteração neste Tribunal da Relação.
*
A 1ª instância não admitiu a junção do documento apresentado pela recorrida com as contra-alegações.
*
Foi junto aos autos documento comprovativo do registo da ação (cf. requerimento de 9.2.2023 ref. Citius ...78).
*
Foram colhidos os vistos legais.

OBJETO DO RECURSO

(…)
Neste enquadramento, as questões relevantes a decidir são as seguintes:

I - saber se a irregularidade da convocação da autora para a assembleia geral da ré, fruto da omissão de publicação da convocatória, tem, ou não, como consequência a anulabilidade de todas as deliberações tomadas nessa assembleia;
II - na hipótese negativa, saber se a deliberação de nomeação do órgão de administração violou, ou não, o disposto no artigo 390.º do CSC e, consequentemente, se é nula.

FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTOS DE FACTO

Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos, que aqui se transcrevem nos seus exatos termos (ressalvadas as correções de lapsos que infra se assinalarão):

1) A Ré é uma sociedade anónima, NIPC ..., com o capital social de € 1.750.000,00 (um milhão setecentos e cinquenta mil euros), composto por ações nominativas, cada uma no valor nominal de € 10,00 (dez euros) que se distribuem da seguinte forma:
a. BB - 105.000 ações, que correspondem a € 1.050.000,00 (um milhão e cinquenta mil euros) de capital social.
b. Autora - 14.875 ações, que correspondem a € 148.750,00 (cento e quarenta e oito mil setecentos e cinquenta euros) de capital social.
c. AA, nascida em .../.../2003, filha da Autora e de BB - 9.625 ações, que correspondem a € 96.250,00 (noventa e seis mil duzentos e cinquenta euros) de capital social.
d. M..., Lda. - 45.500 ações, que correspondem a € 455.000,00 (quatrocentos e cinquenta e cinco mil euros) de capital social.
2) No artigo 14.º, n.º 1, do pacto social da Ré, consta que «A cada grupo de cem ações corresponde um voto, tendo os acionistas tantos votos quantos os correspondentes à parte inteira que resulta da divisão por cem do montante de ações que possua sem qualquer limite.».
3) No artigo 16.º do pacto social da Ré, foi contemplado que «terminando os respetivos mandatos, os membros dos órgãos sociais manter-se-ão em exercício até à sua efetiva substituição»
4) O presidente do conselho de administração pode assinar sozinho em nome da Ré.
5) No ano de 2016, foram designados, para o quadriénio 2016/2019, como presidente do conselho de administração da Ré, BB, como sua vogal, a Autora e como fiscal único, E... & ASSOCIADOS, S..., LIMITADA, representada por CC.
6) Entre a nomeação dos órgãos sociais da Ré no ano de 2016 e a deliberação de 17 de fevereiro de 2021, não foram nomeados novos órgãos sociais.
7) A Autora era, até à deliberação realizada em 17 de fevereiro de 2021, a presidente da mesa da assembleia geral da Ré.
8) Em 26 de outubro de 2020, foi enviado um e-mail, subscrito por DD, usando o endereço ..., e apresentando-se em nome da Ré, sob o assunto «Convocatória A... SA», dirigido ao endereço de e-mail da Autora, a solicitar indicação de disponibilidade para assinatura, por esta, das convocatórias para a assembleia geral da Ré.
9) No dia 05 de novembro de 2020, foi enviado um e-mail, subscrito por DD, usando o endereço ..., apresentando-se em nome da Ré, sob o assunto «Re: Convocatória A... SA», e dirigido ao endereço de e-mail da Autora, a solicitar indicação de disponibilidade para assinatura, por esta, das convocatórias para a assembleia geral da Ré, enquanto presidente da respetiva mesa da assembleia, e com a advertência de, nada dizendo até 06/11/2020, concluiriam pela sua recusa em proceder às convocatórias em falta.
10) Em 10 de novembro de 2020, foi enviada pela Ré à Autora, uma carta registada, onde:
a. lhe indicou que poderia consultar os documentos nos dias 19 ou 20 de novembro de 2020, entre as 14:30 e as 17:30, e disponibilizando-se para reagendar, em caso de indisponibilidade;
b. solicitando-lhe que, enquanto presidente da Mesa da Assembleia Geral, procedesse à convocação da sessão de assembleia geral, indicando como ordem de trabalhos «eleição dos titulares dos órgãos sociais para o quadriénio 2020/2023», concedendo-lhe até ao dia 18/11/2020, após o que concluiriam pela sua recusa em convocar a assembleia.
11) A carta indicada no ponto precedente veio devolvida, tendo, no dia 18 de novembro de 2020, sido reenviada à Autora, por e-mail, por DD, usando do endereço eletrónico ..., sob o assunto «Re: Convocatória A... SA».
12) Nos dias 19 e 20 de novembro de 2020, a Autora não se deslocou às instalações da Ré para consulta da respetiva documentação de gestão.
13) Em 27 de novembro de 2020, foi enviado um e-mail, do endereço ..., subscrito por DD, apresentando-se em nome da Ré, sob o assunto «Re: Convocatória A... SA», e dirigido ao endereço de e-mail da Autora, a solicitar a assinatura das convocatórias ou a realização do agendamento das assembleias gerais da Ré, enquanto presidente da mesa, e com a advertência de que, nada dizendo até 30/11/2020, recorreriam às vias judiciais.
14) Em 14 de dezembro de 2020, foi enviado um e-mail, do endereço ..., subscrito por BB, sob o assunto «Convocatórias de Assembleia Geral – C...», dirigido ao endereço de e-mail da Autora, onde lhe pediu a renúncia ao cargo e delegação das suas funções no secretário de mesa, ou a subscrição das convocatórias e presidência ou não da assembleia, indicando como alternativa a convocatória judicial, indicando que, o que se pretende é «Eleição dos titulares dos órgãos sociais para o quadriénio de 2020/2023.
15) Em 14 de outubro e 30 de novembro, ambos de 2020, e em 08 de janeiro de 2021, foram enviadas cartas registadas com aviso de receção, pela Autora à Ré, onde reporta ter sido afastada, pelo Presidente do Conselho de Administração, das suas funções e impedida de entrar nas instalações da Ré, e onde solicita acesso às informações e documentação de gestão da Ré, conferindo prazo para o efeito, e advertindo de que, não sendo fornecidos, recorreria às vias judiciais.
16) A Autora, apesar de lhe ter sido solicitado que convocasse a assembleia geral, não o fez, sabendo que haviam cessado o hiato de tempo pelo qual os órgãos tinham sido eleitos e que as contas não tinham sido aprovadas
17) Em 18 de janeiro de 2021, foi expedida carta, subscrita por CC, ROC 893, e dirigida à Autora, pela qual a convocou para a assembleia geral da sociedade anónima C..., S.A., a realizar no dia 17 de fevereiro de 2021, pelas 14:30, de onde constava, entre o mais, que «toda a documentação a ser submetida à apreciação da Assembleia, encontra-se patente e poderá ser consultada na sede da Sociedade».
18) A Autora recebeu a carta indicada no ponto precedente, em 20/1/2021, contendo a convocatória para a reunião de assembleia geral, a realizar no dia 17 de fevereiro de 2021.
19) Em 27 de janeiro de 2021, a Autora respondeu à missiva do ponto precedente, por carta registada com aviso de receção, referindo que: “Uma vez mais se constata que Vªs. Exªs., não estão a agir de forma isenta, para com a sociedade C..., S.A., nem para com os seus acionistas, salvo claro para com o alegado Presidente do Conselho de Administração BB, a quem de forma subordinada obedecem até naquilo que fazem constar na missiva de que “(…) e na impossibilidade de obter resposta ao requerimento efectuado ao Presidente da Mesa da Assembleia Geral para o efeito (…)”, como se estivessem sequer a par das inúmeras comunicações que enviei á sociedade e da qual não obtive resposta. Mas mais, o nº 7 do artigo 377º do Código das Sociedades Comerciais refere que “(…) o conselho fiscal (…) só podem convocar a assembleia geral dos accionistas depois de ter, sem resultado, requerido a convocação ao presidente da mesa da assembleia geral, cabendo a esses órgãos, nesse caso, fixar a ordem do dia, bem como, se ocorrerem motivos que o justifiquem, escolher um local ou meio de reunião diverso da reunião física na sede, nos termos do número anterior (…)”, - o que não aconteceu uma vez que Vªs. Exªs., apenas agora vieram dar um ar da sua graça, a pedido do Senhor BB. Logo aí se demonstra que não possuem qualquer credibilidade, sendo que inclusivamente se encontram a usurpar funções uma vez que a nomeação de Vªs. Exªs., já havia terminado no final de 2019.Mas as ilegalidades que Vªs. Exªs, conscientemente, cometem não se ficam por aqui, pois nos termos do nº 2 do artigo 377º do Código das Sociedades Comerciais, a mesma deveria ser publicada, uma vez que não autorizei previamente que a minha convocatória fosse realizada por correio electrónico, ou sequer registado, conforme obriga o nº 3 do artigo 377º do Código das Sociedades Comerciais. Para além disso entre a expedição das cartas registadas e a reunião deve mediar pelo menos 21 dias, nos termos do disposto no nº 4 do artigo 377º do Código das Sociedades Comerciais. Por ultimo a missiva enviada de forma ilegal padece de vários vícios de conteúdo não preenchendo os requisitos legais para a convocação de uma assembleia geral. Assim, para além de não reconhecer na minha qualidade de acionista Vªs. Exªs., como R... da sociedade C..., S.A., uma vez que o mandato já terminou, constato que a mando e em conluio com BB estão a praticar um ato ilegal, com o qual não irei pactuar, sendo que a realizar-se qualquer assembleia geral nos termos em que a convocam a mesma é nula/anulável e ineficaz ou de nenhum efeito. Para além disso já por inúmeras vezes solicitei informações e que me fossem facultadas as contas, informações essas que me foram sendo sucessivamente sonegadas e que agora percebo que terão igualmente envolvimento de Vªs. Exªs. Reservo-me, pois, no direito de accionar judicialmente, não apenas Vªs. Exªs., pelas ilegalidades que se encontram a cometer e por todas as outras que na minha qualidade de accionista venha a apurar, mediante participação imediata ao DIAP a fim que sejam aferidos todos os indicios de ilegalidade que já existem. Caso a Assembleia Geral venha ainda assim a realizar-se não deixarei igualmente de vir peticionar a Vªs. Exªs, e aos membros dessa sociedade, todas as responsabilidades civis e criminais e o pagamento de todos os prejuizos inerentes”.
20) A carta do ponto precedente foi enviada para a morada da Sociedade de Revisores Oficiais de Contas constante da missiva enviada por CC, mas foi devolvida, com a indicação «objeto não reclamado».
21) Para comparência na assembleia geral da sociedade anónima C..., S.A., a realizar no dia 17 de fevereiro de 2021, pelas 14:30, foi, ainda, enviada carta a BB, enquanto pai de AA, então menor de idade.
22) Da acta consta a indicação que a Autora não compareceu e que a filha “não se encontrava suficientemente representada”.
23) A convocatória para a reunião de assembleia geral de 17 de fevereiro de 2021 não foi publicada.
24) Em 17 de fevereiro de 2021, reuniu-se a assembleia geral Ré, com a presença de BB, por si e ainda em nome e representação de M..., Lda., com a seguinte ordem de trabalhos:
Ponto 1 – Deliberar sobre o relatório de contas do exercício de 2019.
Ponto 2 - Deliberar nos termos do n.º 1 do artigo 376.º do Código das Sociedades Comerciais sobre a proposta de aplicação de resultados apresentada pelo Conselho de Administração.
Ponto 3 – Proceder à apreciação geral da administração e fiscalização da sociedade.
Ponto 4 – Nomeação dos membros dos órgãos de administração e de fiscalização, bem como da mesa da assembleia geral, para o quadriénio de dois mil e vinte e dois e dois mil e vinte e três.
25) Na assembleia foi decidida a nomeação dos membros dos órgãos de administração e fiscalização para o quadriénio de dois mil e vinte a dois mil e vinte e três, passando a compor o conselho de administração o Arq. BB[1] e o fiscal único efetivo V..., S..., Lda., o que foi objecto de registo em 19/2/2021;
26) Em 19 de março de 2021, a Autora enviou uma carta registada à Ré, a informar que, em 15 de março de 2021, tomou conhecimento da realização da assembleia geral de 17 de fevereiro de 2021, e a solicitar cópia da respetiva ata.
27) Corre termos no Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo Local Criminal ... - Juiz ..., sob o n.º 384/16...., ação de processo-crime contra a Autora, a Ré e BB.
28) Corre termos no Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo Local Cível ... - Juiz ..., sob o n.º 369/20...., ação especial para o cumprimento de obrigações provenientes de contrato de valor superior à alçada de 1.ª instância, contra a Ré.
29) Autora e BB viveram juntos entre Setembro de 2002[2] e Novembro de 2019 e possuem duas filhas em comum, AA[3], nascida em .../.../2003 e EE, nascida a .../.../2018;
30) BB abandonou o lar conjugal e casou-se com uma terceira pessoa em .../.../2019.
31) O ROC CC, comunicou à ordem dos Técnicos Oficiais de Contas que em 31 de Julho de 2020, que cessara funções que mantinha com a sociedade C..., S.A..
32) A presente acção deu entrada em juízo em 19/3/2021 e a assembleia foi encerrada no dia 17/2/2021.

Na 1ª instância foram considerados não provados os seguintes factos, que aqui se transcrevem nos seus exatos termos:

1) As ações que compõem o capital social da Ré sejam ações ao portador.
2) A convocação da assembleia geral por carta registada ou por e-mail conste do pacto social da Ré ou tenha sido autorizada pela Autora.
3) A Autora tenha tentado entrar nas instalações da Ré e ali consultar a respetiva documentação, não lhe tendo sido permitida a entrada, nem o acesso aos documentos.
4) A documentação não tenha estado patente na sede da sociedade.
5) A deliberação de 17 de fevereiro de 2021 tenha visado a obtenção de vantagens para BB ou para terceiros.
6) A deliberação de 17 de fevereiro de 2021 tenha causado prejuízos à Ré, à Autora e à filha AA.
7) A data em que a Autora tomou conhecimento da deliberação da assembleia geral de 17 de fevereiro de 2021.
8) Após impedir o acesso da Autora à C..., S.A., a actuação de BB tenha vindo a deteriorar a estabilidade económica da mesma, com dividas à Autoridade Tributária, fornecedores e clientes, na ordem das centenas de milhares de euros;
9) A deliberação tenha tido como fito que BB se locupletasse à custa da sociedade, esvaziando-a dos seus activos, levando a que a mesma entrasse em colapso, aprovando contas sem qualquer controlo, colocando em risco o património da Ré, da Autora, da filha AA e os postos de trabalho dos trabalhadores.

FUNDAMENTOS DE DIREITO

I - Anulabilidade das deliberações por a convocatória para a assembleia geral não ter sido publicada

A sentença recorrida, quanto a esta matéria, considerou que a assembleia geral que teve lugar em 17 de fevereiro de 2021 não foi regularmente convocada, porque a convocatória não foi publicada, conforme exigido pelo art. 377º, nº 2, do CSC.
Considerou que tal integra um vício de procedimento gerador de anulabilidade, nos termos dos arts. 58º, nº 1, al. a) e 56º, este último a contrario, ambos do CSC.
Mais entendeu que a atuação da autora não se integra na figura do abuso de direito e, como decorrência destes fundamentos, declarou anuláveis as deliberações tomadas na assembleia geral ocorrida em 17 de fevereiro de 2021.

A recorrente discorda deste entendimento e considera que as deliberações são válidas, aduzindo em abono da sua pretensão os seguintes argumentos:

- o objetivo da convocatória é trazer ao conhecimento do respetivo destinatário a realização da Assembleia Geral, possibilitando que o mesmo que esteja presente e que exerça os direitos correspondentes; ora, tendo a recorrida tido conhecimento efetivo da convocatória, porque a mesma lhe foi enviada por carta registada com aviso de receção, a aludida finalidade foi atingida;
- a recorrente, independentemente da sua forma societária, acaba por se reconduzir muito mais a uma sociedade de pessoas, dadas as relações próximas existentes entre os sócios, do que a uma sociedade de capitais;
- nunca ocorreu qualquer sessão anterior de Assembleia Geral da recorrente que tivesse sido objeto de convocatória publicada porque, considerando os laços pessoais existentes, essa mera formalidade foi dispensada por todos, nomeadamente pela recorrente;
- o art. 377, nº 3, do CSC, permite que a publicação da convocatória seja substituída por carta registada, quando todas as ações forem nominativas, como é o caso de todas as ações da recorrente.

Em primeiro lugar importa referir que a questão ora em análise tem de ser apreciada e decidida à luz da matéria de facto que foi dada como provada na 1ª instância, a qual não foi objeto de impugnação, sendo certo que não se verifica, no caso, nenhuma das situações referidas no art. 662º do CPC, em que é permitido ao tribunal da Relação alterar oficiosamente a matéria de facto.
Ora, percorrendo a integralidade da matéria de facto provada da mesma não resulta que nunca ocorreu qualquer sessão anterior de Assembleia Geral da recorrente que tivesse sido objeto de convocatória publicada porque, considerando os laços pessoais existentes, essa mera formalidade foi dispensada por todos, nomeadamente pela recorrente.
Assim, por falta de sustentação factual, cai pela base este argumento apresentado pela recorrente com vista à alteração da decisão no sentido por si propugnado.
Quanto à alegação de que a ré é uma sociedade de pessoas e não de capitais, trata-se de argumento que considerado de per se não tem relevância jurídica porquanto a lei não reconhece a figura jurídica das “sociedades de pessoas”. Este argumento apenas poderia ter relevância em conjugação com o argumento anterior, no sentido de explicar o motivo da dispensa da formalidade de publicação da convocatória. Porém, não tem relevância jurídica autónoma e, não sendo o anterior argumento procedente, por falta de sustentação factual, este também não o é.

No que concerne à forma de convocação da a assembleia geral das sociedades anónimas, na parte que aqui releva, dispõe o art. 377º, do CSC, que:

1 - As assembleias gerais são convocadas pelo presidente da mesa ou, nos casos especiais previstos na lei, pela comissão de auditoria, pelo conselho geral e de supervisão, pelo conselho fiscal ou pelo tribunal.
2 - A convocatória deve ser publicada.
3 - O contrato de sociedade pode exigir outras formas de comunicação aos acionistas e, quando sejam nominativas todas as ações da sociedade, pode substituir as publicações por cartas registadas ou, em relação aos acionistas que comuniquem previamente o seu consentimento, por correio eletrónico com recibo de leitura.

Ora, da leitura desta norma resulta, de forma que nos parece ser clara e incontroversa, que, de acordo com a lei, a convocatória tem de ser publicada. É esta a única forma estabelecida para a convocatória das assembleias gerais das sociedades anónimas como decorrência da lei.
Porém, a lei permite que o contrato de sociedade estabeleça outras formas de convocatória, nas situações referidas no nº 3 do art. 377º, do CSC.
Assim, e de acordo com tal normativo, o contrato de sociedade pode exigir formas de comunicação diferentes da publicação. Esta faculdade aplica-se a todas as sociedades anónimas, independentemente do tipo de ações.
Relativamente a sociedades anónimas cujas ações sejam todas nominativas, o contrato de sociedade pode substituir a publicação por carta registada ou por correio eletrónico, com recibo de leitura, mas, neste último caso, exige-se que o acionista tenha previamente manifestado o seu acordo quanto a esta forma de comunicação.
Portanto, e sendo a sociedade C... uma sociedade anónima composta por ações nominativas (facto provado 1), tal significa que a convocatória para a assembleia geral tem de ser realizada por publicação, nos termos do art. 377º, nº 2, do CSC, a menos que o contrato de sociedade disponha diversamente, ao abrigo da faculdade concedida no nº 3 do mesmo normativo e nas condições referidas.
Não resulta dos factos provados que esta situação se verifique, ou seja, que o contrato de sociedade consagre outras formas de comunicação distintas da publicação ou que preveja a substituição da publicação por carta registada ou por correio eletrónico com recibo de leitura, neste último caso em relação aos acionistas que comuniquem previamente o seu consentimento.
Por conseguinte, resta concluir que efetivamente houve violação da forma legalmente exigida para a convocação da assembleia geral, a qual tinha que ser feita por publicação, e não o foi, tendo sido efetuada por carta registada (factos provados 17 e 23).
Na verdade, conforme demonstrado, e diversamente do alegado pela recorrente, o art. 377º, nº 3, do CSC, não permite, sem mais, que a publicação da convocatória seja substituída por carta registada, quando todas as ações forem nominativas. Tal normativo apenas permite que o contrato de sociedade preveja tal substituição, previsão essa que no caso em apreço não se encontra contemplada no contrato de sociedade.
Improcede, assim, este argumento apresentado pela recorrente com vista à alteração da decisão no sentido por si propugnado.

A sentença recorrida, depois de ter concluído que a convocatória enferma de vício, por omissão de publicação, concluiu que esse vício consiste numa anulabilidade, com base na seguinte fundamentação:
“Mais dúvidas poderão existir acerca do vício que enferma, já que, embora a convocatória não tenha sido publicada, ela foi enviada e efetivamente recebida pela acionista Autora, o que levanta questões acerca da respetiva configuração como uma «absoluta falta de convocação» ou como uma mera irregularidade da convocação.
Encarando-se esta como uma verdadeira e absoluta falta de convocação, haverá que concluir pela nulidade, ou, se quisermos, recorrendo ao rigor terminológico de PEDRO MAIA, ob. cit., pp. 702 e seguintes, por uma invalidade mista, nos termos do disposto no artigo 56.º, n.º 1, b), do Código das Sociedades Comerciais. Sendo esse o caso, «Como explica Coutinho de Abreu, trata-se de uma nulidade atípica, derivada de um vício respeitante ao modo ou processo pelo qual se formou a deliberação ou ao “como” se decidiu. Apesar de ser um vício de procedimento, “[c]ompreende-se – continua o autor – que estas deliberações sejam nulas: apesar de a falta de convocação ser vício de procedimento, é vício muito grave, na medida em que afasta sócios do exercício dos direitos fundamentais da socialidade – designadamente o direito de participar (plena ou limitadamente) nas deliberações e o direito de obter informações sobre a vida da sociedade (especialmente em assembleia): art. 21.º, 1, b) e c)” [13].» (destacado nosso) – acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04 de julho de 2019, processo n.º 34352/15.3T8LSB.L1.S1. Se assim não entendermos, a cominação da enfermidade explanada será a da anulabilidade da mesma, nos termos do disposto na al. a), do n.º 1, do artigo 58.º, do Código das Sociedades Comerciais, enquanto sanção-regra ou sanção residual para os casos em que as deliberações violem normas legais. Propendemos para a posição da anulabilidade da deliberação. É que, conforme se disse já, a irregularidade em causa impacta com os direitos de participar na assembleia, de exercer a palavra acerca das propostas em debate e de exercício do direito de voto do acionista não convocado, mas também impacta – conforme se retira de PEDRO MAIA, no seu Invalidade de deliberação social por vício de procedimento, disponível online em https://portal.oa.pt/upl/%7Be3f23683-db21-47da-a52f-5763b5cd061f%7D.pdf (consultado em 21/05/2021), p. 718 –, com os direitos dos demais acionistas e da própria sociedade, na medida em que alarga o debate das questões, concretizando o chamado «método de assembleia» e permite o verdadeiro cumprimento da colegialidade, em oposição à decisão (singular), principalmente nos casos, como o dos autos, em que a assembleia de acionistas ficou resumida a uma pessoa. Não obstante, a assembleia não decorreu em surdina, pois resulta dos autos que a acionista Autora sabia que a mesma se ia realizar, sabia a respetiva data, hora e local, e qual a ordem de trabalhos, tendo, inclusivamente respondido à missiva pela qual a convocatória lhe foi enviada. Os seus direitos – que a norma visa acautelar – saíram ilesos, pois, querendo, podia ter exercido o seu direito de estar presente, de debater e de votar na mesma.
Neste mesmo sentido – de que tal vício configura uma mera irregularidade – se decidiu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de janeiro de 1994 (processo n.º 93...). Este douto aresto, versando sobre situação idêntica, mas referente a sociedade com ações ao portador (e, portanto, com regime ainda menos flexível do que a sociedade dos autos), dispôs, no seu resumo, o seguinte: «Não tendo ocorrido o absoluto desconhecimento da realização da assembleia - o que acontece no caso de aos sócias terem sido enviados pelo correio os avisos convocatórios -, a falta de publicação da convocatória consubstancia uma mera irregularidade na convocação da assembleia geral.».”

Concordamos com esta fundamentação e consideramos, tal como o fez a sentença recorrida, que efetivamente o vício que afeta a convocatória decorrente da omissão de publicação consiste na anulabilidade.

A sentença recorrida prossegue considerando que a atuação da autora de invocação de irregularidade na convocatória da assembleia não integra uma situação de abuso de direito.

A recorrente argumenta que não deve ser declarada a anulabilidade das deliberações com base na irregularidade quanto à forma de convocação porque o objetivo da convocatória é trazer ao conhecimento do respetivo destinatário a realização da Assembleia Geral, possibilitando que o mesmo que esteja presente e que exerça os direitos correspondentes, e a recorrida teve conhecimento efetivo da convocatória, porque a mesma lhe foi enviada por carta registada com aviso de receção, o que implica que a aludida finalidade foi atingida.

Sob a epígrafe “abuso do direito”, prescreve o art. 334º, do CC, que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
A justificação do instituto do abuso do direito assenta em razões de justiça e de equidade e prende-se com o facto das normas jurídicas serem gerais e abstratas.
O instituto do abuso de direito é uma verdadeira “válvula de segurança” para impedir ou paralisar situações de grave injustiça que o próprio legislador preveniria se as tivesse previsto, é uma forma de antijuricidade cujas consequências devem ser as mesmas de todo o ato ilícito (Ac. do STJ, de 23.1.2014, in www.dgsi.pt).
Poder-se-á dizer que ocorre uma situação típica de abuso do direito quando alguém, detentor de um determinado direito, consagrado e tutelado pela ordem jurídica, o exercita, no caso concreto, fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência e ostensivamente contra o sentimento jurídico dominante (Ac. da Relação de Coimbra, de 9.1.2017, in www.dgsi.pt).
Há abuso de direito quando o direito, em princípio legítimo e razoável, é exercido em determinado caso de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante.
Não basta que o titular do direito exceda os limites referidos, sendo necessário que esse excesso seja manifesto e gravemente atentatório e ofensivo daqueles valores.
Para determinar os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes, há que lançar mão dos valores éticos predominantes na sociedade e para os impostos pelo fim social ou económico do direito deverão considerar-se os juízos de valor positivamente consagrados na lei (Ac. do STJ, de 23.1.2014, in www.dgsi.pt).
A nossa lei adota a conceção objetiva do abuso do direito pois não exige que o titular do direito tenha consciência de que o seu procedimento é abusivo. Não é por isso necessário que o titular do direito tenha a consciência de que, ao exercê-lo, está a exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo seu fim social ou económico; basta que objetivamente esses limites tenham sido excedidos de forma evidente para que se considere preenchida a atuação com abuso de direito.
Nas palavras de Antunes Varela (in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 128º, pág. 241) o abuso de direito é um instituto que rege para as situações concretas em que é clamorosa, sensível e evidente a divergência entre o resultado da aplicação do direito subjetivo e alguns dos valores impostos pela ordem jurídica para a generalidade dos direitos ou dos direitos de certo tipo.

A boa fé significa que as pessoas devem ter um comportamento honesto, correto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros.
Os sujeitos de determinada relação jurídica devem atuar como pessoas de bem, com correção e probidade, de modo a contribuir, de acordo com o critério normativo do comportamento, para a realização dos interesses legítimos que se pretendam atingir com a mesma relação jurídica (Ac. da Relação de Lisboa, de 24.4.2008, in www.dgsi.pt).
De todo o modo, para que possa funcionar o comando contido no artigo 334º, do Código Civil, tem de haver um excesso manifesto, o que significa que a existência do abuso de direito tem de ser facilmente apreensível sem que seja preciso o recurso a extensas congeminações.
Haverá abuso de direito, segundo o critério proposto por Coutinho de Abreu "quando um comportamento aparentando ser exercício de um direito se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumental e na negação de interesses sensíveis de outrem" (in Abuso de Direito, p. 43).
Configura-se, assim, um comportamento antijurídico que se caracteriza pelo exercício anormal do direito próprio, que não pela violação de um direito de outrém ou pela ofensa de uma norma tuteladora de um interesse alheio.
E para que o abuso de direito exista, não basta que o exercício do direito pelo seu titular cause prejuízo a alguém - a atribuição de um direito traduz deliberadamente a supremacia de certos interesses sobre outros interesses com aqueles confluentes, sendo necessário, sim, que o titular dele manifestamente exceda os limites que lhe cumpre observar, impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do próprio direito exercido (cf. Acórdãos da Relação de Guimarães de 2.7.2009, do STJ de 1.7.2004, da Relação de Coimbra, de 2.12.2003 in www. dgsi.pt; do STJ de 19.10.2000, in CJ, Ano VIII, Tomo III-2000, pág. 83 a 84).

Assentes nestas premissas, e retornando ao caso concreto, verifica-se que a autora/recorrida era, até à deliberação realizada em 17 de fevereiro de 2021, a presidente da mesa da assembleia geral da ré (facto 7).
Como resulta dos factos 8 a 11 e 16, foram efetuadas diversas tentativas por forma a que a autora efetuasse uma convocatória para a assembleia geral anual, quer por parte do presidente do conselho de administração, que é também acionista em percentagem superior a 5%, quer por parte de um funcionário, as quais se frustraram.
Por via desta atitude da autora/recorrida de não convocar a assembleia, a mesma teve de ser convocada pelo ROC CC (facto 17), tendo a convocatória sido expedida por carta.
A autora não só recebeu a carta em questão como lhe respondeu, tudo nos termos melhor descritos nos factos 18 e 19.
A finalidade da lei quando exige que a convocatória da assembleia geral das sociedades anónimas seja publicada é a de que os acionistas com direito a voto tenham conhecimento da realização da assembleia a fim de nela poderem intervir.
Esta finalidade foi plenamente atingida no caso concreto quanto à autora/recorrida uma vez que a mesma teve conhecimento da convocatória pois rececionou a carta e até lhe respondeu.
Além da autora, os demais sócios são BB, AA e M..., Lda. (facto 1).
Os sócios BB e M..., Lda. tiveram conhecimento da realização da assembleia e intervieram na mesma, como resulta do facto provado 24, sendo a segunda representada pelo primeiro.
A sócia AA é filha da autora/recorrida e de BB (facto 29), sendo menor à data da assembleia (17.2.2021) posto que nasceu em .../.../2003, pelo que carecia de ser representada pelos seus pais.
Ambos os seus pais tiveram conhecimento efetivo da convocatória relativa à realização da assembleia, sendo que o seu pai, inclusivamente esteve presente na mesma.
Por conseguinte, a finalidade de publicação da convocatória foi plenamente atingida posto que todos os sócios tiveram conhecimento efetivo da convocatória, não pela forma legalmente exigida (a publicação) mas por outra forma, até mais direta e pessoal, no caso e quanto à autora/recorrida, o envio de carta, que foi devidamente rececionada e inclusivamente objeto de resposta.
Consideramos, assim, que a autora/recorrida, ao invocar a omissão de uma formalidade na convocatória consistente na omissão de publicação, age em abuso de direito, excedendo manifestamente os limites impostos pela boa fé e pelo fim desse direito, porquanto, não obstante a irregularidade cometida, quer ela quer os demais sócios com direito a intervir na assembleia tiveram conhecimento efetivo da convocatória visto que, embora se trate de uma sociedade anónima, os sócios são duas pessoas que viveram em união de facto (a autora e BB), a filha comum de ambos (AA) e a sociedade M..., Lda., representada por BB.
Deste modo, e por existir abuso de direito, as deliberações tomadas na assembleia geral ocorrida em 17 de fevereiro de 2021 não são anuláveis mercê da omissão da publicação da convocatória, impondo-se, nesta parte, revogar a decisão recorrida.

Por conseguinte, o recurso procede nesta parte.

II - Nulidade da deliberação de nomeação do órgão de administração por violação do disposto no artigo 390.º do CSC
A sentença recorrida considerou que a deliberação referida em 25 (relativa à nomeação dos membros dos órgãos de administração e fiscalização para o quadriénio de dois mil e vinte a dois mil e vinte e três, passando a compor o conselho de administração o Arq. FF e o fiscal único efetivo V..., S..., Lda.) violou o disposto no art. 390º, nº 2, visto a sociedade ter um capital social de € 1 750 000, superior aos € 200 000 previstos na lei, o que gera a sua nulidade nos termos do art. 56º, nº 1, al. a), ambos do CSC.

A recorrente discorda deste entendimento argumentando, no essencial, que:

- o pacto social estabelece que “A administração e representação da sociedade serão exercidas por um Conselho de Administração composto por um a sete accionistas ou não da sociedade, eleita em Assembleia Geral para cada mandato”;
- a recorrida aceitou a atual redação do pacto social nunca tendo adotado qualquer ato ou comportamento que de alguma forma traduzisse desacordo com a mencionada redação estatutária;
- não se trata da opção por um Administrador Único, mas sim da opção por um Conselho de Administração com a composição que está estatutariamente prevista;
- a deliberação tomada encontra apoio no art. 390º, nº 1, do CSC;
- os próprios serviços do registo comercial aceitaram e validaram tal opção da recorrente e a sentença recorrida não se pode sobrepor a tal decisão.

Vejamos, então, se a deliberação em apreço padece ou não de nulidade.

Dispõe o art. 56º, nº 1, al. d), do CSC, que são nulas as deliberações dos sócios cujo conteúdo, diretamente ou por atos de outros órgãos que determine ou permita, seja ofensivo dos bons costumes ou de preceitos legais que não possam ser derrogados, nem sequer por vontade unânime dos sócios.

Por seu turno, dispõe o art. 390º, nºs 1 e 2, do CSC, que:
1 - O conselho de administração é composto pelo número de administradores fixado no contrato de sociedade.
2 - O contrato de sociedade pode dispor que a sociedade tenha um só administrador, desde que o capital social não exceda (euro) 200000; aplicam-se ao administrador único as disposições relativas ao conselho de administração que não pressuponham a pluralidade de administradores.

Resulta do nº 1 que, como regra geral, o contrato de sociedade pode livremente fixar o número de administradores que integram o conselho de administração. Porém, a essa regra geral é instituída uma restrição no nº 2, restrição essa aplicável a sociedades com capital social que exceda € 200 000, e que consiste na impossibilidade de o contrato de sociedade poder dispor que a sociedade que exceda o referido capital tenha um único administrador.
Dito de outro modo, o número de administradores que compõem o conselho de administração é fixado pelo contrato de sociedade e este pode dispor que haja um único administrador, mas tal só é possível se o capital social não exceder € 200 000; se exceder, o contrato de sociedade não pode estabelecer que haja apenas um administrador.
Tal é o que claramente resulta, em nosso entender, da leitura dos nºs 1 e 2 do art. 390º.
No mesmo sentido escreve Ricardo Costa, em anotação ao citado art. 390º (in Código da Sociedades Comerciais em Comentário, Vol. IV, 2ª ed., pág. 203) que a “disposição de um só administrador não é, porém, livre. O nº 2 do art. 390º permite que o estatuto social faça essa escolha; ,e ademais, não parece que seja de excluir que essa previsão seja traduzida na indicação da alternativa ‘administrador único/conselho de administração’, em conformidade com a cifra capital social, remetendo a opção para a cláusula estatutária ou deliberação dos acionistas que designa o ou os membros do conselho de administração. No entanto, impõe que essa faculdade de simplificação do órgão administrativo-representativo apenas seja lícita se o capital social da sociedade for igual ou inferior a € 200 000. Acima deste valor, o órgão de administração é necessariamente plural, sendo dois o número mínimo de administradores comuns” (sublinhado nosso).

Ora, no caso em apreço, o capital social da ré é de € 1 750 000 (facto 1), pelo que o contrato social não pode validamente dispor que o conselho de administração seja composto por um único administrador pois tal viola o disposto no art. 390º, nº 2, norma essa que tem caráter imperativo.
Como tal, é juridicamente irrelevante que a autora tenha ou não aceite o que consta do pacto, pois o pacto não pode validamente contrariar o que resulta de norma legal imperativa.
Do mesmo modo, é também irrelevante que a deliberação tomada tenha sido aceite pelos serviços do registo comercial e que conste da certidão do registo comercial relativa à ré pois tais circunstâncias não lhe retiram o vício de nulidade que a afeta.
A deliberação em questão é efetivamente violadora do estabelecido no art. 390º, nº 2, do CSC, norma legal que tem natureza imperativa, não podendo ser derrogada por vontade das partes, razão pela qual a deliberação tomada em sentido contrário a tal disposição é nula, conforme disposto no art. 56º, nº 1, al. d), do CSC, por o seu conteúdo ser ofensivo de preceito legal que não pode ser derrogado, nem sequer por vontade unânime dos sócios, no caso o art. 390º, nº 2, do CSC.
Destarte, impõe-se concluir pela improcedência deste fundamento de recurso, sendo de confirmar esta parte da decisão recorrida.
*
Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º, do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.
Tendo o recurso sido julgado parcialmente procedente, entende-se que as custas devem ser suportadas por recorrente e recorrida, na proporção de metade para cada uma, em conformidade com a disposição legal citada.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência:

A) revogam a decisão recorrida na parte em que julgou verificada a irregularidade da convocação da Autora para a assembleia geral da Ré, fruto da omissão de publicação da convocatória e, consequentemente, declarou anuláveis as demais deliberações, e consideram que a omissão de publicação da convocatória não gera a anulabilidade das deliberações aí tomadas por a autora agir com abuso de direito na invocação de tal irregularidade;

B) confirmam a decisão recorrida na restante parte impugnada, designadamente no segmento em que julgou verificada a violação do disposto no artigo 390.º do CSC e, consequentemente, declarou nula a deliberação de nomeação do órgão de administração.

Custas da apelação por recorrente e recorrida, na proporção de metade para cada uma.

Notifique.
*
Sumário (da responsabilidade da relatora, conforme art. 663º, nº 7, do CPC):

I - Face ao disposto no art. 377º, nº 2, do CSC, a convocatória para as assembleias gerais das sociedades anónimas tem de ser publicada.
II - O art. 377º, nº 3, do CSC, permite que o contrato de sociedade estabeleça outras formas de comunicação diferentes da publicação, faculdade que se aplica a todas as sociedades anónimas, independentemente do tipo de ações.
Relativamente a sociedades anónimas cujas ações sejam todas nominativas, o contrato de sociedade pode substituir a publicação por carta registada ou por correio eletrónico, com recibo de leitura, mas, neste último caso, exige-se que o acionista tenha previamente manifestado o seu acordo quanto a esta forma de comunicação.
III – Não constando do contrato de sociedade outras formas de comunicação distintas da publicação, e não tendo esta ocorrido, o vício que afeta a convocatória decorrente da omissão de publicação consiste na anulabilidade.
IV - A finalidade da lei quando exige que a convocatória da assembleia geral das sociedades anónimas seja publicada é a de que os acionistas com direito a voto tenham conhecimento da realização da assembleia a fim de nela poderem intervir.
V - A autora/recorrida, ao invocar a omissão de uma formalidade na convocatória consistente na omissão de publicação, age em abuso de direito, excedendo manifestamente os limites impostos pela boa fé e pelo fim desse direito, porquanto, não obstante a irregularidade cometida, quer ela quer os demais sócios com direito a intervir na assembleia tiveram conhecimento efetivo da convocatória visto que, embora se trate de uma sociedade anónima, os sócios são duas pessoas que viveram em união de facto, a filha comum de ambos e uma sociedade que é representada por um daqueles sócios, tendo inclusive a autora/recorrida sido convocada por carta registada, devidamente recebida e à qual respondeu.
VI - De acordo com o disposto no art. 390º, nº 1 e 2, do CSC, o número de administradores que compõem o conselho de administração é fixado pelo contrato de sociedade e este pode dispor que haja um único administrador, mas tal só é possível se o capital social não exceder € 200 000; se exceder, o contrato de sociedade não pode estabelecer que haja apenas um administrador.
VII - A deliberação tomada em sentido contrário a tal disposição é nula, conforme disposto no art. 56º, nº 1, al. d), do CSC, por o seu conteúdo ser ofensivo de preceito legal que não pode ser derrogado, nem sequer por vontade unânime dos sócios, no caso o art. 390º, nº 2, do CSC, norma esta que tem natureza imperativa.
*
Guimarães, 2 de março de 2023

(Relatora) Rosália Cunha
(1ª Adjunta) Lígia Venade
(2º Adjunto) Fernando Barroso Cabanelas


[1] O nome correto é BB, e não FF, pelo que se corrigiu o texto em conformidade.
[2] Na sentença consta 2022, mas tal decorre de manifesto lapso de escrita pois na fundamentação deste facto remete-se para a declaração da junta de freguesia e nesta consta que AA e BB vivem em união de facto desde 2002. Assim, corrigiu-se o lapso de escrita em questão no texto supra.
[3] O nome correto é AA, e não GG, pelo que se corrigiu o texto em conformidade.