Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5182/15.4T8VNF.G1
Relator: EUGÉNIA CUNHA
Descritores: DOAÇÃO VERBAL
DOAÇÃO MANUAL
DOAÇÃO ATRAVÉS DE CHEQUE
COLAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/28/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.º SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (elaborado pela relatora):

1- Não obstante as coisas doadas não integrem o acervo hereditário devem, no processo de inventário, havendo herdeiros legitimários, ser objeto de relacionação, com o objetivo de lhes ser fixado o valor, para efeitos de cálculo das legítimas e com vista à sua integralidade, com eventual redução por inoficiosidade, ou à mera igualação da partilha;

2- A colação é um instituto que visa a igualação dos descendentes na partilha do autor da sucessão, mediante a restituição (fictícia) à herança dos bens doados em vida do falecido a um deles;

3- Tal instituto é supletivo pois que o autor da sucessão pode dispensá-la. A dispensa de colação não se presume, tem de resultar de uma declaração positiva do doador, feita pela mesma forma que assumiu a doação, salvo nas doações manuais (e nas remuneratórias) – cfr. nº3, do art. 2113º, do Código Civil;

4- Doação manual é a doação verbal de coisa móvel acompanhada da tradição manual desta (traditio brevi manu), isto é, da entrega pelo doador ao donatário da coisa. Doação manual, cuja dispensa de colação a lei presume, é, por exemplo, aquela em que o tradens, com animus donandi, entrega dinheiro ao accipiens que, pelo recebimento, revela a vontade de aceitação;

5- Não integra doação manual a doação de importância em dinheiro a descendente através de cheque (ordem de pagamento dada a banco), tendo a doação, atualizada por aplicação dos índices de preços do consumidor, nos termos do artigo 551º, do Código Civil, de ser relacionada - cfr. nº3, do artigo 2109º, de tal diploma -, para ser levada à colação, para igualação dos quinhões hereditários dos herdeiros.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

A herança de António C., representada pelo cabeça de casal Domingos C., intentou ação declarativa, com forma de processo comum, contra Palmira C., pedindo:

- que se declare que a Ré se encontra na posse da quantia que lhe foi doada por seu pai António C., em 26 de Janeiro de 2001, quantia esta que por ter sido de 74.820,00 €, por virtude da atualização da moeda, corresponde ao montante de 97.509,62€, à data do óbito daquele;
- que se declare que tal quantia, porque doada por conta da legítima da donatária, ora Ré, terá de ser trazida a conferência, por colação, da herança de seu pai para, assim, se apurar o quinhão hereditário de cada um dos herdeiros daquele.

Alega, para tanto, que a doação feita por cheques, em vida pelo pai de ambos à Ré foi efetuada por conta da legítima e, como tal, em sede de inventário por morte daquele deve ser levada à colação.

A Ré, citada, contestou, defendendo-se por exceção, ao invocar a ilegitimidade do autor para, por si, ainda que como cabeça de casal da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seu pai mas desacompanhado os restantes herdeiros, estar na lide, e no mais, aceitando a doação, data e valor da mesma - cfr art. 14º -, impugna a alegada intenção com que foi feita, invocando que o foi com intenção de a beneficiar, tendo sido feita por conta da parte da herança disponível de seu pai.

Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, onde foi julgada improcedente a exceção invocada pela ré. Foi identificado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova, despacho que não foi objeto de reclamação.
*
Procedeu-se à realização da audiência de julgamento com observância das formalidades legais.
*
Foi proferida sentença com a seguinte parte dispositiva:

Com tais fundamentos julgo a ação procedente por provada e consequentemente:
- declaro que a quantia de 97.509,62€ correspondente ao valor atualizado da doação de 74.820,00€ ocorrida no ano de 2000 pelo falecido pai António C. à ré foi por conta da legitima e terá de ser levada à colação para igualação dos quinhões hereditários de cada um dos herdeiros.
Custas a cargo da ré”.
*
A Ré apresentou recurso de apelação pugnando pela alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto quanto à matéria provada constante de e), f) e g) (alíneas que correspondem ao vertido nos artigos 8º a 10º, da petição inicial), que devia ter sido considerada não provada e pela revogação da sentença proferida, formulando as seguintes

CONCLUSÕES:

I) Os factos correspondentes ao vertido nos artigos 8, 9 e 10 da P.I. e levados à base instrutória sob os quesitos e), f) e g), tendo, todos eles, sido considerados “provados” quando deveriam ter merecido a resposta de “não provados”.
II) Sobre tal matéria pronunciaram-se as testemunhas, Celeste e Manuel. Ora, ao contrário do que se afirma na douta sentença, os depoimentos das referidas testemunhas e declarantes foram imprecisos, calculistas e tendenciosos, pois limitaram-se a falar sempre no mundo das hipóteses, “teria”, “terá acontecido”, “foi assim”, pois nunca viram nada, não assistiram a nada, ou seja, afirmar aquilo que o Autor quis ouvir, que o dinheiro dado à sua irmã tem de ser levado à colação para igualação dos quinhões hereditários.
II) Ora, a obscuridade é evidente: a testemunha Celeste quando questionada se o seu Pai alguma vez beneficiou os seus irmãos e a ela própria, a mesma foi perentória ao afirmar que o seu pai nunca tinha favorecido o seu irmão nem a ela própria.
IV) Sucede porém que, analisados os documentos juntos aos autos, nomeadamente os testamentos e a relação de bens, desmentem categoricamente o afirmado pela referida testemunha, isto porque, tanto a Celeste como o seu irmão foram beneficiados pelo seu Pai.
V) Acresce ainda, que a referida testemunha foi perentória ao afirmar que o documento denominado “Declaração”, valorado como prova, era um documento manuscrito, não sabe quem o fez e que o traduziu.
VI) Assim, “o rigoroso e sóbrio” depoimento foi prestado por alguém que está de relações cortadas com a sua irmã e a sua cunhada Celeste – Ré – há mais de vinte anos.
VII) Pelo que, existem sérias dúvidas que a assinatura constante na Declaração fosse feita pelo punho do inventariado, pois a perícia foi limitada pelo traçado irregular, com paragens e pouco característico das escritas em confronto e por maioria das assinaturas remetidas para comparação se apresentarem em fotocópias, algumas pouco nítidas.
VII) A quantia de € 74.820,00 foi doada com dispensa de colação. Logo: não deve vir ao acervo patrimonial do inventariado, posto que era intenção do inventariado privilegiar de forma inequívoca a donatária em relação aos outros co-herdeiros.
IX) Na douta decisão impugnada foi totalmente ignorada a vontade do inventariado.
X) Como é consabido: o instituto da «colação» cifra-se na restituição, feita pelos descendentes, dos bens ou valores que o ascendente lhes doou, quando pretendam entrar na sucessão deste.
Tem por fim a igualação, na partilha, do descendente donatário com os demais descendentes do autor da herança (art. 2104º do C. Civil).
Dito isto.
XI) Estabelece o art. 2113.º do C. Civil (Dispensa da colação): “...1. A colação pode ser dispensada pelo doador no ato da doação ou posteriormente. 2. Se a doação tiver sido acompanhada de alguma formalidade externa, só pela mesma forma, ou por testamento, pode ser dispensada a colação. 3. A colação presume-se sempre dispensada nas doações manuais e nas doações remuneratórias...”.
Assim:
XII) A dispensa da colação por ato do doador tem natureza negocial. Deve ser expressa. Se tácita, terá de ser concludente: expressamente, o doador não dispensa a colação.
XIII) Nada dizendo, ou sendo omissa qualquer referência, o que se presume é que não há dispensa da colação e que o doador não quis beneficiar os donatários senão pela antecipação do gozo e fruição do bem doado. Nessa situação funciona o regime supletivo previsto no art. 2108º do C. Civil. O beneficiário da doação fica obrigação a conferir.
XIV) Aqui vontade, a extrair do texto do documento, de acordo com as regras da interpretação do negócio jurídico (artigos 236 a 238º do C. Civil), não se presume.
XV) A colação, na sua dinâmica, corresponde, a uma operação intelectual de restituição fictícia dos bens doados, para efeito de cálculo e igualação da partilha, devendo ser conferidas todas as doações, como tal sendo havidas as despesas referidas nos artigos 2110º, nº1, 2111º e 2113º, nº, 3 do C. Civil.
XVI) No que concerne à determinação do valor dos «bens doados», é o que eles tiverem “...à data da doação...”, princípio que é a afloração da regra geral da relevância do momento da abertura da sucessão (art. 2109º, nº 2 do C. Civil).
XVII) Na situação sub iudicio resulta claro, que o inventariado doou, com dispensa expressa de colação, a quantia de € 74.820,00, à ora recorrente.
XVIII) Por evidente se conclui, operada a atinente subsunção legal, que tal quantia não deve ser relacionada.
XIX) Não devia o Tribunal a quo basear-se apenas nas regras da experiência comum, mas também nas concretas circunstâncias do caso, nomeadamente, e ao contrário do que é entendido pelo Tribunal recorrido, nenhuma semelhança existe entre as assinaturas apostas na Declaração, nos cheques, nos testamentos e no Bilhete de identidade.
XX) De uma simples observação óptica verifica-se as discrepâncias entre as variadas assinaturas dos documentos juntos aos autos.
XXI) Nas assinaturas efectuadas pelo punho do inventariado, no nome, verifica-se não coloca o rasgo final curvo e descendente da barra final da assinatura.
XXII) O rasgo final curvo e descendente da barra final da assinatura demonstra que tal assinatura não foi feita pelo inventariado, porquanto em nenhum dos documentos juntos aos autos se verifica o referido rasgo final curvo.
XXIII) Só este facto seria suficiente para abalar a convicção do Tribunal a quo, quanto à veracidade da assinatura e do documento, no entanto, existem outros factos, que colocam em causa tal veracidade, nomeadamente, as declarações da testemunha Celeste Carvalho ouvida na audiência de discussão e julgamento.
XXIV) Foi afirmado pela testemunha, que a alegada Declaração seria um documento manuscrito, feito pelo punho do seu Pai, só ela conseguia traduzir, e que não viu de facto quem a assinou.
XXV) Certo é que essa alegada Declaração manuscrita não foi junta aos autos, para comparação com a Declaração feita a computador.
XVI) Mas mesmo assim para o Tribunal recorrido "...serviu ainda cormo auxiliar da formação da convicção, o depoimento da testemunha Celeste e do seu marido Manuel e da referida Declaração.
XXVII) Deve ser alterada a matéria de facto, não se podendo dar como provado que foi o inventariado quem assinou a Declaração, concluindo-se que desta forma que não é deve ser levada à colação para igualação de cada um dos herdeiros.
*
O Autor respondeu, oferecendo contra-alegações, onde pugna por que se mantenha a decisão proferida, negando-se provimento ao recurso, sustentando que deve manter-se, na íntegra, a matéria dada como provada, pois que a apelante confessou a matéria constante dos factos provados das alíneas e), f) e g) e que o fez no processo de inventário, conforme se pode verificar pelo teor do documento 8 que o recorrido juntou aos autos com a sua petição inicial, e que essa confissão foi reiterada pela recorrente no artigo 14 da sua contestação da presente ação, tendo, nessa sequência, o Tribunal a quo considerado como assentes esses factos, logo no despacho saneador.
*
Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO

- OBJETO DO RECURSO

Apontemos as questões objeto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações da recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.

Assim, as questões a decidir são as seguintes:

1ª- Da impugnação decisão da matéria de facto: se os factos provados constantes das alíneas e) a g), devem ser considerados não provados;

2ª- Da modificabilidade da fundamentação jurídica: se a doação, do pai da Ré à Ré (uma dos quatro filhos), foi efetuada por conta da quota disponível e se está dispensada de colação.
*
II. A - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Foram os seguintes os factos considerados provados pelo Tribunal de 1ª instância, com interesse para a decisão da causa:

a. No dia 07 de Maio de 1998, na freguesia e concelho de Vila Nova de Famalicão, faleceu Rosa, no estado de casada em primeiras núpcias de ambos e no regime da comunhão geral, com António C.;
b. Posteriormente, em 08 de Abril de 2013, na freguesia de …, concelho de Vila Nova de Famalicão, faleceu António C., no estado de viúvo da referida Rosa;
c. Tendo-lhes sucedido como únicos herdeiros, quatro filhos, Domingos C., Palmira C., Manuel C., Celeste;
d. Domingos C. foi instituído cabeça-de-casal das referidas heranças, por ser o filho mais velho;
e. O António C. doou à Ré, sua filha, a quantia de 15.000$00 (que corresponde a 74.820,00€);
f. Que lhe foi entregue em três cheques, nos valores de 4.200.000$00, 5.800.000$00 e 5.000.000$00, os dois primeiros datados de 27/10/2000 e o último sem data;
g. A Ré recebeu os referidos valores, que fez seus e utilizou como entendeu;
h. Em 29 de Agosto de 2013, o herdeiro Domingos C. instaurou ação de inventário na instância local de Vila Nova de Famalicão – comarca de Braga, sob o n.º 2645/13.0TJVNF que corre ainda termos no J-1;
i. O autor foi instituído cabeça de casal da herança do de cujus e procedeu ao relacionamento de todos os bens que compunham o acervo hereditário de ambas as heranças;
j. O autor relacionou como verba nº 12 do ativo da herança, a quantia de 74.820,00€, em dinheiro, quantia que foi doada em vida pelo de cujus à ré;
k. Notificada da relação de bens, aquela, na qualidade de interessada, reclamou requerendo a exclusão da verba nº 12, alegando que tal quantia lhe tinha sido doada por seu pai, para comprar uma casa;
l. A decisão da reclamação foi relegada por despacho judicial para os meios comuns.
*
II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

1ª - Da impugnação decisão da matéria de facto: se os factos provados constantes das alíneas e) a g) devem ser considerados não provados

Conclui a apelante que o Tribunal a quo fez uma errada interpretação, valoração e consideração da prova produzida em sede do presente processo ao ter dado como provados os factos constantes da base instrutória nas alíneas e), f) e g), que deviam, ao invés, ter sido dados como não provados.

A fim de fixar, definitivamente, a matéria de facto e de analisar da modificabilidade da fundamentação jurídica, antes de mais, cumpre decidir se a apelante/ impugnante observou os ónus legalmente impostos em sede de impugnação da decisão da matéria de facto, e que vêm enunciados no art. 640º, os quais constituem requisitos habilitadores para que o tribunal ad quem possa conhecer da impugnação e decidi-la.

Na verdade, no que se reporta à atividade jurisdicional que, quanto a tal, deve ser levada a cabo por este Tribunal de Segunda Instância, o nº1, do art. 640º, consagra que, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a)- os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b)- os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c)- a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (negrito nosso).

O n.º 2, do referido artigo acrescenta que:

a) … quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (negrito nosso).

Como resulta do referido preceito, e seguindo a lição de Abrantes Geraldes, quando o recurso verse a impugnação da decisão da matéria de facto deve o recorrente observar as seguintes regras:

a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; (negrito nosso)
b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exactidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos;(…)
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente; (1).

Com a reforma introduzida ao Código de Processo Civil pelos Decretos-Leis n.ºs 39/95, de 15/02 e 329-A/95, de 12/12, o legislador consagrou o registo da audiência de discussão e julgamento, com a gravação integral da prova produzida, e conferiu às partes duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto. O tribunal de segunda instância passou a fazer um novo julgamento da matéria impugnada, assegurando um efetivo duplo grau de jurisdição, sendo isto que resulta do estatuído no art. 662º, n.º 1 do CPC, quando nele se expressa que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento supervenientes impuserem decisão diversa.

Comparando o anterior regime com o atual (cfr. o art. 712º, do anterior CPC, com o art. 662º do atual), verificamos que a possibilidade de alteração da matéria de facto, que era excecional, passou a ser função normal do Tribunal da Relação, elevado a verdadeiro Tribunal de substituição, verificados os referidos requisitos legais. Conferiu-se, assim, às partes um duplo grau de jurisdição, por forma a poderem reagir contra eventuais e hipotéticos erros de julgamento, com vista a alcançar uma maior certeza e segurança jurídicas e a, desse modo, obter decisões mais justas, alcançando-se, assim, uma maior equidade e paz social, sempre buscadas pelo Estado, verdadeiro interessado na realização da justiça.

O duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto pressupõe novo julgamento quanto à matéria de facto impugnada e “somente será alcançado se a Relação, perante o exame e análise crítica das provas produzidas, a respeito dos pontos de facto impugnados, puder formar a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação das prova, sem estar limitada pela convicção que serviu de base à decisão recorrida, em função do princípio da imediação da prova, princípio este que tido por absoluto transformaria este duplo grau de jurisdição em matéria de facto, numa garantia praticamente inútil” (2).

Tendo o recurso por objeto a impugnação da matéria de facto, a Relação deve proceder a um novo julgamento, limitado à matéria de facto impugnada, procedendo à efetiva reapreciação da prova produzida, devendo nessa tarefa considerar os meios de prova indicados no recurso, assim como, ao abrigo do princípio do inquisitório, outros que entenda relevantes, apreciando livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto impugnado, exceto no que respeita a factos para cuja prova a lei exija formalidades especiais ou que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados por documento, acordo ou confissão (art. 607º, n.º 5 do Cód. Proc. Civil).

Contudo, o legislador, ao impor ao recorrente o cumprimento das referidas regras, visou afastar soluções que pudessem reconduzir-nos a uma repetição dos julgamentos, tal como foi rejeitada a admissibilidade de recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto, tendo o legislador optado por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências pelo recorrente. (3)

Não se consagra a possibilidade de repetição do julgamento e de reapreciação de todos os pontos de facto, mas, apenas e só, a reapreciação pelo tribunal superior e, consequente, formação da sua própria convicção (à luz das mesmas regras de direito probatório a que está sujeito o tribunal recorrido) quanto a concretos pontos de facto julgados provados e/ou não provados pelo tribunal recorrido. A possibilidade de reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver a reapreciação global de toda a prova produzida, impondo-se, por isso, ao impugnante, no respeito dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa-fé processuais, a observância das citadas regras. O Tribunal da Relação, sendo de 2ª instância, continua a ter competência residual em sede de reponderação ou reapreciação da matéria de facto (4), estando subtraída ao seu campo de cognição a matéria de facto fixada pelo tribunal a quo que não seja alvo de impugnação.

Em suma, deve, assim, o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, deixar expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, sendo que, como refere Abrantes Geraldes, esta última exigência (plasmada na transcrita alínea c) do nº 1 do art. 640º) vem reforçar o ónus de alegação imposto ao recorrente (…) por forma a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente, devendo ser apreciada à luz de um critério de rigor enquanto decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo (5).

É entendimento doutrinal e jurisprudencial uniforme que, nas conclusões das alegações, que têm como finalidade delimitar o objeto do recurso (cfr. nº4, do art. 635º, do CPC) e fixar as questões a conhecer pelo tribunal ad quem, o recorrente tem de delimitar o objeto da impugnação de forma rigorosa, indicando os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados, sob pena de rejeição do recurso, como a lei adjetiva comina no nº1, do art. 640º.

Não obstante o NCPC proceder, como vimos, ao alargamento e reforço dos poderes da Relação no domínio da reapreciação da matéria de facto, deve ser rejeitado o recurso, no atinente a tal ponto, quando o recorrente não cumpra os ónus impostos pelos nº1 e 2, a), do art. 640º (6). E impõe-se a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto quando ocorra:

a) falta de conclusões sobre a impugnação da matéria de facto (art. 635º, n.º 4 e 641º, n.º 2, al. b);
b) falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640º, n.º 1, al. a);
c) falta de especificação (que pode constar apenas na motivação), dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) falta de indicação exata, (que pode constar apenas na motivação), das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) falta de posição expressa, (que pode constar apenas na motivação), sobre o resultado pretendido a cada segmento da impugnação” (7).

Conclui a apelante que os factos correspondentes ao vertido nos artigos 8, 9 e 10 da Petição inicial, constantes da base instrutória nas alíneas e), f) e g), deviam ter merecido a resposta de “não provados”.

Ora, desde logo, como bem refere o apelado, nenhuma base instrutória existiu, onde tivessem sido elaborados quesitos.

Na verdade (como se pode verificar de fls 49-50) os factos em causa foram considerados assentes. E foram-no em função da posição assumida pelas partes nos articulados e dos documentos juntos a fls 17, verso (não impugnados).

Acresce que, para além do que a Ré confessa no artigo 14, da contestação, - que, em 27-10-2000, o seu pai, António C. lhe doou, para que pudesse comprar uma habitação, a quantia de 15 mil contos (74.820,00 €) - se verifica que a mesma não impugnou os documentos 4, 5 e 6, juntos a fls 17, verso.

E o Tribunal a quo, na sentença, deu como provados os referidos factos valorando a prova produzida em sede de audiência final, que analisou de forma conjugada com a prova documental junta aos autos e de acordo com as regras de experiência comum, considerando os documentos de fls. 17, a prova pericial produzida (cfr fls 109 e segs), da qual resulta ser “provável que a escrita suspeita da assinatura aposta no doc. 1 seja da autoria de António C.” e os depoimentos prestados, explicando e analisando, com presença da imediação e oralidade, que:

Celeste, irmã da ré e do cabeça de casal, referiu de forma objetiva que sua irmã Palmira e o marido desta viveram com os pais na casa destes até 2000/1, data em que saíram por decisão do pai.
No dia seguinte à saída da sua irmã o pai disse à testemunha para, juntamente com a sua família, irem viver para sua casa, o que veio a ocorrer.

Referiu que o seu pai lhe disse que tinha emprestado dinheiro à sua irmã Palmira para que esta saísse de casa porque segundo dizia aquela “lhe dava mau viver” e que não tinha intenção de a beneficiar por isso tinha feito uma declaração, que lhe mostrou.

Viveu com o seu pai até à morte deste, durante 13 anos, nunca recebeu qualquer montante em troca dos cuidados que lhe prestou.
Prestou declarações Manuel, marido da Celeste e cunhado da ré e do cabeça de casal Domingos.
Referiu a testemunha de forma absolutamente desinteressada e isenta que viveu com o sogro durante 13 anos e desde que a Palmira saiu da casa.
Referiu ainda que em conversa o sogro lhe disse que deu dinheiro à Palmira para sair de casa e que a doação era por “conta do herdo”, esclarecendo que nunca viu a declaração em papel.
Referiu ainda que os irmãos têm e sempre tiveram mau relacionamento entre eles, e que nunca o assunto da doação do dinheiro do sogro à Palmira foi falado em família.(…)

Análise critica:

O tribunal valorou o resultado da perícia acerca da assinatura aposta no documento junto a fls. 68 ser do punho do pai da ré que conclui ser provável, resultado que conjugou com as declarações prestadas pela testemunha Celeste que revelaram de forma isenta e desinteressada conhecimento dos factos através do doador e em vida deste.
Já ao invés a testemunha da ré, Bernardo, ex marido apresentou-se ao tribunal “ferido”, com um discurso motivado e interessado, sempre num tom agressivo, que nos pareceu superar o seu tom de feitio e a roçar o tom injurioso (…)” (negrito nosso).

Cada elemento de prova de livre apreciação, designadamente os depoimentos de testemunhas, não podem ser considerados de modo estanque e individualizado. Há que proceder a uma análise crítica, conjunta e conjugada dos aludidos elementos probatórios, para que se forme uma convicção coerente e segura. Fazendo essa análise crítica, conjunta e conjugada, e considerando os documentos juntos aos autos a fls 17, frente e verso, e a prova pericial produzida, de natureza eminentemente técnica da qual resultou a probabilidade da assinatura ser do falecido, não pode este Tribunal divergir do juízo probatório efetuado pelo Tribunal a quo, que para além do referido atendeu ao depoimento credível, convincente e esclarecedor das testemunhas Celeste e Manuel, que, como supra referido, revelaram conhecer a intenção do falecido.
Tanto basta para considerar que o Tribunal Recorrido decidiu de uma forma acertada quando considerou a referida factualidade como provada.

Assim, tendo-se procedido a nova análise dos articulados e da prova oferecida, e ponderando, de uma forma conjunta e conjugada, os meios de prova produzidos, que não foram validamente contraditados por quaisquer outros meios de prova, pode este Tribunal concluir que o juízo fáctico efetuado pelo Tribunal de 1ª Instância, no que concerne a esta matéria de facto, se mostra conforme com a prova, de livre apreciação, produzida, não se vislumbrando qualquer razão para proceder à alteração do ali decidido, que se mantém, na íntegra.
Na verdade, e não obstante as críticas que lhe são dirigidas pela Recorrente, não se vislumbra, à luz dos meios de prova invocados qualquer erro ao nível da apreciação ou valoração da prova produzida – sujeita à livre convicção do julgador –, à luz das regras da experiência, da lógica ou da ciência.
Ao invés, a convicção do julgador tem, a nosso ver, apoio nos ditos meios de prova produzidos, sendo, portanto, de manter a factualidade provada, tal como decidido pelo tribunal recorrido.
Não resultando os pretensos erros de julgamento tem de se concluir pela improcedência da apelação, nesta parte.
*

2ª- Modificabilidade da fundamentação jurídica: se a doação, do pai da Ré à Ré (uma dos quatro filhos), foi efetuada por conta da quota disponível e se está dispensada de colação.

Sendo pacífico entre as partes que o de cujus doou à Ré (uma dos quatro filhos) o equivalente a 74.820,00 €, discute-se a que título o fez e o dever de sujeição a colação, para igualação dos herdeiros.
Nenhuma alteração tendo sido feita à matéria de facto, cumpre, agora, analisar se não é de levar a doação à colação, como pretende a apelante.
Ora, a relacionação de bens no inventário alcança todos os bens móveis, imóveis, semoventes, direitos e ações, créditos e dívidas do autor da herança que desta não devam excetuar-se, inclusive, havendo herdeiros legitimários, os bens doados, compreendendo aquela genérica atribuição as benfeitorias (8).

Assim, o cabeça de casal deve relacionar:

a) os bens em poder da herança;
b) os bens da herança em poder de quaisquer co-herdeiros que estivessem na posse deles à data da morte do de cujus;
c) os bens doados pelo autor da herança, havendo herdeiros legitimários (9).

Define o referido nº1, do artigo 940º, doação como sendo “o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente”.
Deste modo, a doação surge, desde logo, como um contrato nominado e típico, a que se aplica o regime consagrado nos artigos 940º a 979º.
A “doação reveste, em regra, natureza contratual, pressupondo, para a sua formação, o mútuo consentimento das partes contratuais (doador e donatário). A formação do acordo pode ocorrer através de uma sucessão de proposta contratual e aceitação, a que se aplicará o regime especial dos arts. 945º e 969º (10), o que no caso resulta provado ter ocorrido, pois que se provou que António C. doou à Ré, sua filha, a quantia de 15.000$00 - que lhe foi entregue através de três cheques - e a Ré recebeu os referidos valores, que fez seus e utilizou como entendeu.

A doação pressupõe “a reunião de 3 elementos constitutivos que se extraem do art. 940º. São eles: a produção de uma vantagem patrimonial a favor do donatário; a verificação de uma desvantagem patrimonial relativamente ao doador e, ainda, a inspiração do ato por um espírito de liberalidade por parte do doador. Os dois primeiros elementos têm uma natureza objetiva, aferindo-se a sua verificação através da consideração dos efeitos que o ato produz na esfera jurídica de cada um dos contraentes. O último elemento apresenta um caráter subjetivo, demandando a apreciação do estado psicológico em que uma das partes (doador) se encontra quando pratica o ato” (11) (“animus donandi”).
E o nº2, do artigo 947º, estatui, quanto à doação de coisas móveis, que “não depende de formalidade alguma externa, quando acompanhada de tradição da coisa doada; não sendo acompanhada de tradição da coisa, só pode ser feita por escrito” (12).
Deste modo, “a doação é, em princípio, um negócio formal, podendo, em certas situações, em alternativa, ser um contrato real quoad constitutionem. Assim, a regra é a de que as declarações negociais do doador e do donatário devem revestir forma especial, escapando à aplicação da regra geral do art. 219º. (…) Se a doação tiver por objeto uma coisa móvel, deve, em princípio, ser celebrada por escrito, nos termos da parte final do art. 947º, nº2. Ressalva-se apenas, quanto aos móveis, a situação de, concomitantemente à aceitação, se verificar tradição da coisa para o donatário. Nesse caso, a tradição, sendo considerada um elemento constitutivo do contrato, torna dispensável a forma exigida. Estas doações de móveis – denominadas doações manuais – constituem contratos reais quoad constituionem. (…) A razão da exigência de forma ou de tradição da coisa servem o propósito idêntico de garantir a devida ponderação do doador, quanto ao ato que vai celebrar.
A falta de observância do disposto no art. 947º dita a nulidade do contrato de doação (art. 220º)” (13) (14).
A doação tem como efeitos essenciais a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito, a obrigação de entregar a coisa e a assunção da obrigação, quando for esse o objeto do contrato (art.º 954º). Na doação ocorre, por isso, sempre, uma atribuição patrimonial geradora de um enriquecimento que advém de uma transferência do doador para o donatário, esta transferência pode ser de um direito de propriedade, de um direito real, ou mesmo de um direito de crédito e pode a transferência resultar do pagamento ou assunção de dívida do donatário.
Estatui o nº1, do art. 2104º que “Os descendentes que pretendam entrar na sucessão do ascendente devem restituir à massa da herança para igualação da partilha, os bens ou valores que lhes foram doados por este: esta restituição tem o nome de colação”.
Pretende, porém, a apelante que se considere que a doação que lhe foi efetuada pelo pai se encontra dispensada de colação.

Vejamos se o está.

O instituto da colação visa a igualação dos descendentes na partilha do de cujus, mediante a restituição fictícia à herança dos bens que foram doados em vida por este a um deles (15). A colação é a restituição pelos descendentes, em regra pelo valor, dos bens ou valores que os ascendentes lhes doaram, constitui condição de participação na sucessão destes e visa a igualação na partilha do descendente do donatário com os demais descendentes (16).
“A colação é um instituto supletivo: o autor da sucessão pode dispensar de colação. (… ) Em caso de dispensa de colação, conclui-se que o autor da sucessão quis avantajar o descendente e então a imputação não é feita na sua legítima subjetiva mas pelo contrário na quota disponível e só se a extravasar será feita na quota indisponível. (17)
“Inoficiosidade é a ofensa da legítima dos herdeiros legitimários por via de liberalidades do autor da herança que excedam o âmbito da sua quota disponível, e é susceptível de abranger as que ocorram entre vivos - doações - ou por morte – legados” (18).
A colação assenta na presunção de que o de cujus, fazendo em vida alguma liberalidade a um seu herdeiro legitimário, não quis avantajá-lo em relação aos restantes, mas tão só antecipar a transferência da legítima que viria a competir-lhe (19).
Trata-se de presunção iuris tantum, que pode ser afastada pelo doador no ato da doação ou posteriormente – cfr. nº1, do art. 2113º.
Assim, a colação reveste-se de caracter facultativo, porque pode ser afastada pelo de cujus ou pode ser evitada pelo descendente, não entrando na sucessão (cfr. Oliveira Ascensão in “Direito Civil Sucessões” 1987, pág. 493) (20).
“A dispensa de colação não se presume: a sua dispensa pelo doador há-de resultar de uma declaração positiva do mesmo – expressa ou tácita (mas concludente) – e feita pela mesma forma que assumiu a doação”. (21)
De referir, contudo, que a colação se presume, efetivamente, sempre dispensada nas doações manuais e nas remuneratórias.
Doação manual são as doações verbais de coisas móveis acompanhadas da sua tradição manual, isto é, da transmissão da sua posse, da entrega pelo doador ao donatário da(s) coisa(s), entrega essa que nada obriga que seja contemporânea da própria declaração verbal do doador, e que não necessitam de ser provadas por documento (22).
Doações manuais, cuja dispensa de colação a lei presume, são, por exemplo, aquelas em que o tradens, com animus donandi, entrega dinheiro ao accipiens que, pelo recebimento, revela a vontade de aceitação” (23).
Havendo uma doação manual sempre que a propriedade do objeto da doação haja sido transmitida por força da sua entrega direta ao donatário, ou seja, naquelas doações em que se verifique a traditio brevi manu. (24)
“Legítima é, na expressão da lei, a porção de bens de que o testador não pode dispor, por ser legalmente destinada aos herdeiros legitimários (artigo 2156º ). É uma reserva hereditária, designada por quota legítima ou legitimária, que a lei estabelece a favor dos herdeiros legitimários, por isso fora do poder de disposição do autor da herança, variável em função do vínculo dos herdeiros em relação a ele, do seu número e da respectiva posição jurídica (artigo 2027º).
A legítima do cônjuge e dos filhos, em caso de concurso, é de dois terços da herança, e, não havendo cônjuge sobrevivo, a legítima dos filhos é de metade ou dois terços da herança, conforme exista um só filho ou existam dois ou mais (artigo 2159º).
Para o cálculo da legítima - e da quota disponível - deve atender-se ao valor dos bens existentes no património do autor da sucessão à data da sua morte, ao valor dos bens doados, às despesas sujeitas a colação e às dívidas da herança (artigo 2162º).
Assim, a herança para efeitos do cálculo da legítima compreende, além do mais que aqui não releva, os bens existentes no património do de cujus à data do seu decesso e os que daquele foram distraídos em vida do autor da sucessão por via de doação.
Entre os herdeiros legítimos contam-se o cônjuge e os parentes, são chamados em primeiro lugar o cônjuge e os descendentes, estes preferem às classes imediatas e, dentro de cada uma, os parentes de grau mais próximo preferem aos de grau mais afastado e os de cada classe, em regra, sucedem por cabeça, em partes iguais (artigos 2132º e 2133º, nº 1, alínea a), 2134º, 2135º e 2136º).
A partilha entre o cônjuge e os filhos faz-se por cabeça, dividindo-se a herança em tantas partes quantos forem os herdeiros; mas a quota do cônjuge não pode ser inferior a uma quarta parte da herança; e se o autor da sucessão não deixar cônjuge sobrevivo, a herança divide-se pelos filhos em partes iguais (artigo 2139º).
A proteção legal da quota legítima dos herdeiros legitimários é estabelecida, além do mais, na lei por via do normativo que qualifica de inoficiosas as liberalidades entre vivos ou por morte que ofendam a legítima dos herdeiros legitimários (artigo 2168º).
Assim, a inoficiosidade consubstancia-se na ofensa da legítima dos herdeiros legitimários por via de liberalidades do autor da herança que excedam o âmbito da sua quota disponível, sendo susceptível de abranger as que ocorram entre vivos, como é o caso das doações, ou por morte, como é o caso dos legados (artigo 2168º).
Em concretização da mencionada protecção, prescreve a lei que as liberalidades inoficiosas são redutíveis, a requerimento dos herdeiros legitimários ou dos seus sucessores, em tanto quanto for necessário para que a legítima seja preenchida (artigo 2169º).
Assim, a sanção de redução aplicável às liberalidades inoficiosas não é oficiosa, certo que só é susceptível de operar a requerimento dos herdeiros legitimários que sejam afectados.
A referida redução abrange, em primeiro lugar, as disposições testamentárias a título de herança, em segundo lugar os legados e, por último, as liberalidades que hajam sido feitas em vida do autor da sucessão (artigo 2171º )” (25).
A colação pode, porém, nos termos do nº1, do art. 2113º, ser dispensada pelo doador no ato da doação ou posteriormente, sendo que, nos termos do nº2, do referido artigo, se a doação tiver sido acompanhada de alguma formalidade externa, só o pode ser pela mesma forma ou por testamento.

Assim, cumpre ao cabeça de casal relacionar todos os bens da herança que hão de figurar no inventário, ainda que a respetiva administração lhe não pertença, compreendendo-se no acervo hereditário todos os bens, direitos e obrigações que não sejam considerados intransmissíveis que o inventariado possuía ao tempo do seu falecimento.

Sendo a regra geral que resulta da noção de sucessão, constante do artigo 2024º, a de que todos os bens pertencentes à herança, e só esses, devem ser relacionados, e daí que o não deveriam ser, em princípio, os bens doados em vida pelo de cujus, porquanto, à data do seu óbito, já não se encontravam na respetiva titularidade, não sendo, portanto, objeto de sucessão mortis causa, a questão que se coloca é a de saber se a doação em causa deve ser objeto de relacionação.

Porque, como vimos, importa preservar a observância das quotas disponíveis e a igualação da partilha, é necessário, no processo de inventário, organizar, igualmente, uma relação de bens doados, sendo caso disso, que, não fazendo já parte da herança, como a recorrente afirma, são relacionados, exclusivamente, com vista à eventual redução por inoficiosidade ou à mera igualação da partilha, aplicando-se, para o efeito, na falta de disposição específica quanto aos bens doados, as regras próprias da relação de bens da herança (26).

Dispensar a colação ou doar por conta da quota disponível são afirmações que se equivalem, havendo, nesse caso, apenas que considerar a redução por inoficiosidade. Apesar de poder haver dispensa de colação e não obstante verbas doadas não integrarem o acervo hereditário, a respetiva integração na relação de bens em inventário é necessária a fim de verificar a eventual inoficiosidade das doações e prevenir a ofensa do interessado não beneficiado”. (27)

In casu, provou-se que o falecido pai da Ré e esta celebraram um contrato, um acordo de vontades, de doação de quantias em dinheiro, o primeiro na posição jurídica de doador e a última na posição jurídica de donatária (artigo 940º), não resultando ter a referida doação sido uma doação manual, em que o tradens, com animus donandi, entrega dinheiro ao accipiens que, ao recebê-lo revela a vontade de aceitação da liberalidade, pois que o que foi entregue foram títulos de crédito (cheques).
Resulta demonstrado que, por via de contrato, se transmitiu para a filha Ré o direito de propriedade sobre o dinheiro que os cheques entregues pelo de cujus titulavam.
A “colação presume-se dispensada nas doações manuais, como é o caso da entrega de dinheiro, com base na ideia de que quem doa dinheiro a descendentes dessa forma não pretende a sua imputação na respectiva quota hereditária (artigo 2113º, nº 3)”, presunção inilidível, no entender de uns, pois que a lei estatui que a colação se presume sempre dispensada nas doações manuais (cfr. Ana Prata (Coord.) Código Civil Anotado, volume II, 2017, Almedina, pág. 1019 e seg) e ilidível, no entender de outros, pois que tal não corresponde ao espírito de legislador, já que poderia criar desigualdades graves entre herdeiros legitimários (28).
Não tendo a doação à Ré sido manual, por força do estatuído no nº1, do art.º 2104, esta, como descendente do falecido, a pretender entrar na sucessão do pai tem de restituir à herança, para igualação da partilha, o valor da doação, na medida em que, expressa ou tacitamente o doador, nem no acto da doação, nem posteriormente dispensou a colação (nº1, do art.ºs 2108 e nº3, do art.º 2109).
Só assim não seria, como vimos, se estivéssemos perante uma doação manual ou remuneratória, como a lei expressamente ressalva (nº2, do art.º 2113), o que não resultou verificar-se.

In casu, seria de considerar ocorrer dispensa de colação do mencionado dinheiro doado e a sua imputação na quota disponível do doador (artigo 2114º, nº 1), avantajando, assim, a donatária face aos demais (29) herdeiros, caso se provasse ter ocorrido uma doação manual, doação de bem móvel acompanhada de tradição da coisa.
Porém, António C. doou à Ré, sua filha, a quantia de 15.000$00 (que corresponde a 74.820,00€), mediante a entrega de três cheques, nos valores de 4.200.000$00, 5.800.000$00 e 5.000.000$00, os dois primeiros datados de 27/10/2000 e o último sem data e que a Ré recebeu os referidos valores, que fez seus e utilizou como entendeu.
Não se provou, pois, a existência de doação manual, doação de bem móvel com tradição da coisa, mas sim a entrega de três cheques nos referidos valores.
Pela doação transmitiu-se “a propriedade dos bens doados como mero efeito desse contrato de disposição gratuita e desde a data em que o mesmo teve lugar, cfr. art.°s 940.° n.° 1, 947,° n.º 1 e 954.° al. a), todos do C. Civil. Mas tal transmissão não evita que o donatário-descendente do doador deva restituir à massa da herança daquele, para igualação da partilha, os bens ou valores recebidos em doação, para, assim, poderem entrar na sucessão do ascendente, cfr. art.°s 2104° n.° 1, 2105.°, 2106.° e 2113.° todos do C. Civil, é o que se designa por colação.
Tal instituto do direito sucessório tem por fundamento o significado social que é atribuído às doações em vida feitas a presuntivos herdeiros legitimários do doador, considerando-as como meras antecipações da herança. Ou seja, a lei faz assim presumir que qualquer doação feita em vida pelos pais apenas a um ou a alguns dos seus filhos não visa afectar ou lesar os demais filhos, prejudicando-os em relação aos beneficiados” (30).
A entrega, pelo falecido, dos cheques não consubstancia uma pura entrega da coisa doada, feita pelo doador ao beneficiário, acompanhada da tradição do bem, que é o que caracteriza a doação manual. A doação foi feita pelo pai da recorrente, por escrito, pois entregou-lhe três cheques, não tendo sido manual, com tradição da coisa, pois que não foi entregue o dinheiro, mas sim cheques, documentos que constituem ordens (escritas) de pagamento dadas a uma instituição bancária. Não resultando a existência de dispensa de colação deve ser relacionada, no processo de inventário, a importância doada.
A “emissão de um cheque à ordem do portador a quem é entregue corresponde a uma ordem de pagamento feita pelo respectivo titular ao banco onde tem o dinheiro depositado, a favor do portador do cheque. Com a emissão do cheque o sacado obriga-se a garantir que o sacador venha a obter a entrega do correspondente montante em dinheiro.

“Daí resulta que a entrega gratuita de um cheque a outra pessoa, feita com espírito de liberalidade, para que esta levante da sua conta o dinheiro correspondente, se caracterize como contrato de doação, na modalidade de assunção de obrigação, contrato este regulado nos artigos 940º e seguintes do Código Civil” (31), não podendo, contudo ser considerada uma doação manual pois que a entrega dos cheques não traduz entrega do dinheiro.

Deste modo, a existência de herdeiros legitimários implica a obrigatoriedade de relacionar a importância que o inventariado doou, para efeitos de colação, mandando a lei considerar os valores da doação em dinheiro “atualizados nos termos do artigo 551º” (cfr. nº3, do art. 2109º). Deve, pois, ser levado à relação de bens o dinheiro doado, atualizado por aplicação dos índices de preços no consumidor periodicamente divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (32)), o qual tem de ser considerado para efeitos de determinar o valor global do património hereditário, designadamente para efeitos de apurar a inoficiosidade da doação ou calcular a legítima, tendo a colação de ser feita pelo valor atualizado da doação.
*
Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo violação de qualquer normativos invocados pela apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.
*
III. DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
*
Custas pela apelante, pois que ficou vencida – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.
*
Guimarães, 28 de junho de 2018

Eugénia Marinho da Cunha
José Manuel Alves Flores
Sandra Melo



1. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª Edição, pags 155-156
2. Ac. STJ. de 14/02/2012, Proc. 6823/09.3TBRG.G1.S1, in base de dados da DGSI.
3. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª Edição, 2017,pag. 153
4. Ibidem, pág. 153.
5. Ibidem, pags 155 e seg e 159
6. Ac. da Relação do Porto de 18/12/2013, Processo 7571/11.4TBMAI.P1.dgsi.Net
7. Abrantes Geraldes, idem, pags 155-156
8. João Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, 4ª edição, volume I, Almedina pág 429 e segs.
9. Abílio Neto, Direito das Sucessões e Processo de Inventário Anotado, Outubro/2017, Ediforum, pág 754
10. Ana Prata (Coord.), Código Civil Anotado, volume I, 2017, Almedina, pág. 1156
11. Ibidem, pág 1157.
12. Cfr Acórdãos da Relação Lisboa de 28/5/2015, processo 207/11.5TBVFC-B.L1-8 e de 15/11/12, processo 1241/10.8TJLSB-B.L1-2, ambos acessíveis in dgsi.net, onde se decidiu que a doação de coisas móveis não depende de qualquer formalidade externa quando acompanhada da tradição da coisa doada; não sendo, só pode ser feita por escrito.
13. Ana Prata (Coord.), idem, págs 1171 e seg.
14. Acórdão do STJ de 16/6/2016, processo 865/13.6TBDL.L1.S1, in dgsi.net, cujo relator foi o Senhor Juiz Conselheiro Tomé Gomes onde se refere que “A validade de doação verbal de coisa móvel depende da prova de que essa doação foi acompanhada da entrega da coisa doada, nos termos do artigo 947º,nº2, 1ª parte do CC.”.
15. Ac. da Relação de Lisboa de 2/7/2009, processo 11687/06.0TBOER-A.L1-8, acessível in dgsi.net
16. Acórdão do STJ de 3/11/2015, processo 05B3239, acessível in dgsi.net
17. Ana Prata (Coord.), Código Civil Anotado, volume II, 2017, Almedina, pág. 1019
18. Referido Acórdão do STJ de 3/11/2015
19. Ac. da Relação de Lisboa de 11/2/2016, processo 1286/10:dgsi.net
20. Cfr. Ac. da Relação do Porto de 3/7/2008, processo 0832820.dgsi.net
21. Ibidem
22. Abílio Neto, Direito das Sucessões r Processo de Inventário Anotado, Outubro de 2017, Ediforum,pág 266-267.
23. Acórdão do STJ de 3/11/2015, processo 05B3239, acessível in dgsi.net
24. Ana Prata (Coord.), Código Civil Anotado, volume II, 2017, Almedina, pág. 1019
25. Acórdão do STJ de 3/11/2015, processo 05B3239, relatado pelo Senhor Juiz Conselheiro Salvador da Costa, acessível in dgsi.net
26. Ac. da Relação de Coimbra de 11/5/2004, processo 1201/04, acessível in dgsi.net, cujo relator foi o Senhor Juiz Desembargador Hélder Roque, onde se refere Não obstante o bem doado estar sujeito a colação em valor, deverá ser objecto de relacionação separada, exclusivamente, com vista à eventual redução por inoficiosidade ou à mera igualação da partilha. Também no Acórdão da Relação do Porto de 27/1/2015, processo 2727/09.2TBVCD-A.P1, acessível in dgsi.net, se decidiu que não obstante as doações manuais e as doações remuneratórias se presumirem dispensadas de colação quer umas, quer outras, devem ser relacionadas para efeitos de cálculo da legítima.
27. Acórdão da Relação do Porto de 22/4/2008, processo 0822226, , acessível in dgsi.net
28. Cfr. Abílio Neto, idem 267, onde se refere “O nº3 deste artigo, sobretudo na parte em que usa o termo “sempre”, tem suscitado na doutrina divergências quanto ao seu sentido e alcance. Na falta de norma paralela no Cód. Civil de 1867, a doutrina dominante e mais credenciada expressava uma forte tendência para admitir, especialmente nas doações manuais, e salvo circunstâncias muito particulares, a presunção da dispensa de colação, sobretudo naqueles casos em que não se deu, ou até se procurou evitar, a publicidade ou o conhecimento por parte dos herdeiros legitimários da concretização da doação, por ser essa a indiscutível intenção normal do doador (vid. ABRANCHES FERRÃO, Das Doações, vol. II, p.183; LICURGO AUGUSTO DOS SANTOS, Colação, p.52; PIRES DE LIMA, em RLJ, 95º-345 e s, e 100º, 250 e s; Ac. STJ, de 27.3.1962: RLJ, 341). Assim, o nº3 do art. 2113º do Cód. Civil de 1966, assumiria a natureza de norma interpretativa, e, daí, que haja que apurar, em cada caso concreto, se há factos de onde se possa deduzir se foi ou não, intenção do doador dispensar a colação, intenção essa que pode ser expressa ou tácita. Discordamos, pois, de BATISTA LOPES, Doações, p. 207, o qual entende que o advérbio “sempre” leva a considerar esta presunção iuris et de iure, por conduzir a que as doações manuais e remuneratórias nunca seriam sujeitas a colação, o que não foi, nem é, seguramente o espírito do legislador, e é susceptível de criar desigualdades graves entre herdeiros legitimários (v.g. o doador. Pela apontada via, estabelece uma distinção entre “filhos” e “enteados”. No mínimo consideramos aplicável a doutrina firmada no Ac. RP, de 22.4.2008, no ponto III.”
29. Ana Prata (Coord.) Código Civil Anotado, volume II, 2017, Almedina, pág. 1019
30. Acórdão da Relação do Porto de 2/10/2010, processo 4179/07.2TBPRD.P1, in dgsi.net
31. Acórdão da Relação de Lisboa de 16/2/2006, processo 279/2006-6, in dgsi
32. Acórdão do STJ de 3/11/2005, Processo 05B3239, in dgsi.net