Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
95/15.2GTBGC.G1
Relator: JORGE BISPO
Descritores: FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
FOTOCÓPIA
CARTA DE CONDUÇÃO
TERCEIRO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/20/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I) Da noção de documento retira-se que este tem de ser apto a provar facto juridicamente relevante, devendo constituir um meio de prova, ainda que só lhe seja conferido em momento posterior.
II) Não assume relevância jurídico-penal a conduta do arguido que a partir da fotocópia de uma carta de condução de terceiro, forjou uma fotocópia com aparência de uma carta de condução, contendo os seus elementos identificativos.
III) É o que sucede no caso dos autos, pois que tendo a alteração levada a cabo pelo recorrente tido como objeto uma simples fotocópia de uma carta de condução de terceiro, conclui-se que não se trata de documento suscetível de constituir objeto material do crime de falsificação de documento a que se reporta o artº 256º, nº 1, do Código Penal, por não se inserir na definição de documento dada pelo artº 255º, al. a) do mesmo diploma.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

1. No processo comum com intervenção de juiz singular com o NUIPC 95/15.2GTBGC, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Bragança, no Juízo de Competência Genérica de Mirandela - J1 (extinta Secção de Competência Genérica da Instância Local), foi proferida sentença, datada e depositada a 26-09-2016, com o seguinte dispositivo (transcrição):
«VI. DISPOSITIVO
Nestes termos, julgo a acusação parcialmente procedente, por provada, e em consequência decido:
A) ABSOLVO o arguido M. C., pela prática, em autoria material, na forma consumada de um crime de burla, p. e p. pelos art.ºs 202.º, al. a), 217.º, n.º 1, ambos do Código Penal.
B) CONDENO o arguido M. C., pela prática, em autoria material, na forma consumada de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. nos arts. 121.º nº 1, do CE e art.º 3°, n.º 2 do DL 2 / 98 de 3 de Janeiro, na pena de 80 dias de multa.
C) CONDENO o arguido M. C., pela prática, em autoria material, na forma consumada de um crime de “falsificação de documento”, p. e p. pelos art.ºs 255.º, al. a) e 256.º, n.º 1, al.a), d), e) e nº 3 todos do Código Penal, na pena de 180 dias de multa.

D) CONDENO em cúmulo jurídico o arguido M. C. pelos crimes referidos em B) e C) na pena única de 230 dias de mula à taxa diária de €5,00, o que perfaz o valor de €1150,00 (mil cento e cinquenta euros).

E) CONDENO o arguido M. C. nas custas do processo, fixando em 2 UC o valor da taxa de justiça devida e nos demais encargos a que a sua actividade deu causa (cfr. art. 3, nº 1, 8º, nº9, do RCP e Tabela III do mesmo, 513º, nº 1 e 514º nº 1 do CPP)


2. Inconformado, recorreu o arguido, concluindo a sua motivação nos seguintes termos (transcrição):
«CONCLUSÕES
1/- O arguido foi absolvido pela prática, em autoria material, na forma consumada de um crime de burla, p. e p. pelos art.ºs 202.º, al. a), 217.º, n.º 1, ambos do Código Penal e condenado pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 121º, n.º 1 do CE e art.º 3º, n.º 2 do DL 2/98 de 3 de Janeiro, na pena de 80 dias de multa, à razão diária de €5,00 e em autoria material, na forma consumada de um crime de “falsificação de documento”, p. e p. pelos art.ºs 255º, al. a) e 256.º, n.º 1, al. a), d), e) e n.º 3 todos do Código Penal, na pena de 180 dias de multa, à razão diária de €5,00, em cúmulo jurídico pelos crimes de condução de veículo sem habilitação legal e falsificação de documento na pena única de 230 dias de multa à taxa diária de €5,00, o que perfaz o valor de €1150,00 (mil cento e cinquenta euros).
2/- O recurso limita-se á questão de direito no sentido de apurar se aquela matéria de facto integra ou não o crime de falsificação de documento.
3/ - Com efeito, o arguido em sede de audiência e julgamento confessou de forma livre, integral e sem reservas os factos pelo que veio acusado, o que fez de forma objectiva, sincera e espontânea, relatando os mesmos;
4/ - Na fundamentação da Douta sentença recorrida, em face aos elementos que objectivamente se provaram teve-se em consideração as regras de experiência comum quanto á intenção do arguido em praticar os factos que o tribunal deu como provados, e assim sendo foram dados como provados os factos atinentes aos elementos subjectivos tal como constava da acusação.
5/ - Para sustentar a condenação do arguido, o Tribunal a quo baseou-se na matéria dada como provada, - cfr. artigo 2.º, 5.º, 6.º, 8.º, 9.º - não tendo dúvidas de que com a conduta descrita nos factos provados, o arguido praticou um crime de falsificação previsto e punido pelas alínea a), d), e) do n.º 1 d n.º 3 do artigo 256.º do Código Penal, inexistindo qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, pelo qual deverá ser condenado.
6/ - No entanto, salvo o devido respeito, o Tribunal a quo não teve em conta toda a matéria dada como provada, com efeito mais se provou que:
“Pessoa não concretamente apurada enviou por fax, ao arguido, cópia do seu título de habilitação de condução em Espanha.
O arguido alterou os elementos identificativos, bem como a fotografia, do fax referido em 10) e tornou a fotocopiar o mesmo.”
7/ - Ora, se o tribunal tivesse tido em consideração estes factos provados, nunca poderia condenar o arguido pelo crime de falsificação de documento, a prova produzida impunha decisão diversa da obtida pelo Tribunal a quo pelas seguintes razões:
8/ - Entendeu aquele Tribunal que o arguido incorreu na prática do crime de falsificação porque falsificou um documento, ou seja, não foi tido em consideração os factos provados em 10.º e 11.º., “o arguido não fabricou ou elaborou um documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo”, ao arguido foi enviada uma cópia de um título de habilitação de condução de Espanha e este “alterou os elementos identificativos, bem como a fotografia, do fax referido em 10) e tornou a fotocopiar o mesmo
9/ - Não se pode incluir no âmbito da noção de documento consubstanciada no art.º 255.ºdo C. P. a fotocópia. O arguido não pode ser condenado pela utilização de documento falso uma vez que uma cópia simples não se pode considerar um documento para efeitos do crime previsto no art. 256º do C.P, a falsificação de fotocópia não constitui o crime de falsificação.
10/ - No caso em apreço a produção da fotocópia não resultou da manipulação do original.
11/ - Desde logo, temos de distinguir entre a falsificação de documento através de fotocópia e a falsificação de fotocópia. Quando se utiliza a fotocópia como meio que permite o objectivo que é a falsificação estamos perante um crime de falsificação, na medida em que a fotocópia foi produzida a partir do original e tem a aparência de original. Nos casos em que é a fotocópia que é falsificada e não o documento original não estamos perante um crime de falsificação, uma vez que relevante para o crime de falsificação é a declaração e não o suporte material da declaração. Na simples falsificação de fotocópia não se verifica a falsificação de um documento enquanto declaração.
12/- A falsificação de uma fotocópia é coisa distinta da falsificação do documento através da fotocópia. Neste segundo caso estamos a utilizar a fotocópia como meio técnico que nos permite a falsificação. O documento, em vez de ser falsificado através de impressão de um novo documento, é fotocopiado criando-se um documento distinto do original. Ou seja,
13/- A alteração do conteúdo de um documento, quer esta alteração se tenha verificado, porque o agente imprimiu um novo documento (com conteúdo distinto do documento original), ou porque o agente o fotocopiou, é irrelevante para efeitos penais. Na verdade, em todos os casos trata-se de uma falsificação material do documento. Na verdade, a uilização da fotocópia é a utilização do documento falsificado e neste sentido deve ser subsumível ao crime de falsificação de documento: sendo, no entanto,
14/- Necessário que a fotocópia tenha sido produzida a partir do original e que tenha a aparência do original. Situação distinta é a falsificação da fotocópia. Aqui não foi o documento original falsificado, foi sim a fotocópia. Uma vez que o documento para efeitos de direito penal é a declaração e não o objecto ou suporte material da declaração, a simples falsificação da fotocópia, do suporte do documento não constitui falsificação de documentos, pois não se verificou uma falsificação de um documento enquanto declaração.
15/- A falsificação de uma fotocópia não pode integrar um crime de falsificação pois que consubstancia uma declaração corporizada num suporte que não permite reconhecer o seu emitente, e em relação á qual fotocópia se encontram diluídos os interesses de credibilidade e segurança no tráfico jurídico.”
16/- Assim, no caso sub iudice, atento toda a matéria dada como provada (cfr. artigo 2.º, 5.º, 6.º, 8.º, 9.º, 10.º e 11.º) dúvidas não restam de que com a conduta descrita em todos os factos provados, o arguido não praticou um crime de falsificação p. e p. pelas alínea a), d, e) do n.º 1 e n.º 3 do art.º 256.º do Código Penal.
17/ - Em suma, nos presentes autos ficou cabalmente provado que o arguido não praticou o crime em que foi condenado, deverá, assim, ser revogada a douta sentença recorrida, pelo que deve ser absolvido do crime em que foi condenado.
Nestes termos, e nos mais de Direito, aplicáveis, deve ser provido o alegado e em consequência deve ser o recurso considerado totalmente procedente,
Fazendo-se, assim, a habitual e necessária justiça.»

3. A Exma. Procuradora-Adjunta na primeira instância respondeu ao recurso, no sentido de lhe dever ser negado provimento, por entender, em suma, que o arguido, ao alterar, colocando o seu nome e fotografia, na carta de condução de outra pessoa, que lhe foi enviada por fax, cometeu, no plano jurídico-penal, falsificação de documento, porque decorreu de manipulação do original, cujo conteúdo foi alterado através da montagem da sua digitalização, constituindo sempre uma alteração do documento original e, como tal, se inscreve nos elementos constitutivos do crime de falsificação previsto no art. 256º, n.º 1, al. a), do Código Penal.
4. Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer em que, perfilhando o entendimento manifestado pelo arguido no recurso, entende que este merece provimento.
5. No âmbito do disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não houve resposta.
6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c) do citado código.


II. FUNDAMENTAÇÃO

1. QUESTÕES A DECIDIR
Em conformidade com o disposto no art. 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões extraídas da motivação pelo recorrente, não podendo o tribunal de recurso conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (cf. art.s 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, e 410º, n.º 2, al.s a), b) e c), do mesmo código)(1).
Assim, no presente recurso a única questão a decidir consiste em saber se uma fotocópia se integra no conceito de documento para efeitos de constituir objeto material do crime de falsificação previsto no art. 256º, n.º 1, do Código Penal.

2. DA SENTENÇA RECORRIDA
É a seguinte a decisão do tribunal recorrido sobre a matéria de facto (transcrição):
«A) FACTOS PROVADOS:
1. Da prova produzida em audiência de discussão e julgamento resultaram provados os seguintes factos, com relevo para boa decisão da causa:

(a) Sobre os Factos descritos na acusação pública.

1.º O arguido M. C. não era detentor de licença/carta de condução ou documento equivalente que o habilitasse a conduzir veículos com motor emitido pelas autoridades competentes em Espanha – DGT – nem por qualquer outra.

2.º Não obstante, ele ou alguém a seu mando e no seu interesse, com o intuito de ludibriar as autoridades policiais competentes, caso lho solicitassem, elaborou o documento constante a fls. 8.

3.º Assim, no dia 06-11-2015, pelas 10:30horas, na EN 315, ao km 30,200, Mirandela, o arguido munido do referido documento, conduziu o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula …, propriedade de L. B.

4.º Quando foi intercetado pelos militares do Destacamento de Trânsito da GNR de Bragança, foram-lhe solicitados os documentos de identificação bem como licença/carta de condução ou documento equivalente que o habilitasse a conduzir tal veículo.

5.º Nessas circunstâncias de tempo e lugar, apresentou ao militar da GNR C. V. o documento referido em 2).

6.º O arguido sabia que aquele documento referido em 2) não correspondia à verdade e mesmo assim decidiu criá-lo, bem sabendo não estar legalmente habilitado para a condução de veículos a motor na via pública, não obstante fê-lo naquelas circunstâncias referidas em 3).

7.º Ao apresentá-lo às autoridades policiais competentes do modo descrito visou convencê-las que era detentor de título válido de condução em Espanha com o qual poderia igualmente conduzir neste País, criando desse modo a falsa aparência de que os elementos nele constantes correspondiam à verdade, o que bem sabia não acontecer.

8.º Tal como sabia que a sua atuação punha em causa a fé pública, a veracidade e a confiança de que gozam tais documentos.

9.º Atuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.

(b) Das condições sócio-economicas.

10.º O arguido é agente comercial encontrando-se desempregado, não recebendo qualquer subsídio/apoio.

11.º É casado em tem três filhos de 4, 5 e 11 anos.

12.º A mulher é professora e encontra-se desempregada.

13.º Paga de renda de casa cerca de €225,00 (duzentos e vinte e cinco euros).

14.º Tem o 6.º ano de habilitações literárias.

(c) Dos antecedentes criminais.
15.º Inexistem.
Mais se provou que:
16.º Pessoa não concretamente apurada enviou por fax, ao arguido, cópia do seu titulo de habilitação de condução em Espanha.
17.º O arguido alterou os elementos identificativos, bem como a fotografia, do fax referido em 16.º e tornou a fotocopiar o mesmo.
18.º O arguido desde 27.11.2015 que é titular de carta de condução.

B) FACTOS NÃO PROVADOS:

Inexistem.»

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO
3.1 - No presente recurso está apenas em causa saber se a conduta do arguido dada como provada assume relevância jurídico-penal, preenchendo os elementos constitutivos do crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo art. 256º, n.ºs 1, al.s a), d) e e), e 3, por referência ao art. 255º, al. a), pelo qual foi condenado na primeira instância.
Este é um crime comum, de perigo abstrato e de mera atividade, que tutela o bem jurídico segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório(2) e que tem como elementos constitutivos do respetivo tipo:
- Que o agente fabrique ou elabore documento falso (al. a) do n.º 1 do art. 256º), falsifique ou altere documento (al. b), abuse da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento (al. c), faça constar falsamente de documento facto juridicamente relevante (al. d), use documento falsificado ou contrafeito (al. e) ou, por qualquer meio, faculte ou detenha documento falsificado ou contrafeito (al. f);
- O dolo genérico, ou seja, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade; e
- O dolo específico, a intenção de causar prejuízo a terceiro, de obter para si ou outra para pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime.
In casu, face aos factos provados, a ação típica traduziu-se em o recorrente, tendo recebido por fax a cópia da carta de condução de terceira pessoa, nela alterou os elementos identificativos e a fotografia, de modo a fazê-los coincidir com os seus, e tornou a fotocopiá-la, dando origem à folha junta a fls. 8, que posteriormente apresentou ao militar da GNR que o intercetou a conduzir na via pública, pretendendo, dessa forma, fazer-lhe crer que estava legalmente habilitado a tal, o que não sucedia.
Sustenta o recorrente que, tendo essa folha (junta a fls. 8 dos autos) sido elaborada a partir de uma mera fotocópia de uma carta de condução, a qual não é idónea a provar o facto a que se refere, não pode ser abrangida na definição de documento constante do art. 255º, al. a), do Código Penal, entendimento este igualmente sufragado pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto no seu parecer.
Vejamos se com razão.
3.2 Aquele preceito define documento para efeitos penais como “a declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta”.
Enquanto objeto material do crime de falsificação, exige-se que o documento tenha as seguintes funções: - de perpetuação, referida à manutenção da declaração de vontade num suporte capaz de fixá-la no tempo e de torná-la cognoscível para outras pessoas, distintas do emissor; - probatória, que permite demonstrar processualmente a existência da declaração de vontade do seu emissor; - e de garantia, pela qual se garante a imputação do declarado ao autor da declaração(3).
Diferentemente do direito civil, em que documento é o objeto no qual se incorpora uma declaração, para efeitos penais documento é a declaração de um pensamento humano que deverá estar corporizada num objeto que possa constituir meio de prova, só assim se compreendendo que o bem jurídico protegido pela incriminação do crime de falsificação de documento seja a segurança e a confiança do tráfico jurídico, especialmente do tráfico probatório, relacionada com os documentos.
3.3 - No caso vertente, a partir da fotocópia de uma carta de condução de terceiro, o recorrente forjou uma fotocópia com aparência de uma carta de condução, contendo os seus elementos identificativos.
A questão que se coloca é, pois, a de saber se o crime de falsificação de documento pode ter como seu objeto material uma fotocópia, ou seja, se esta integra o conceito jurídico-penal de documento.
Expressamente a este respeito, refere Helena Moniz que importa distinguir entre a falsificação de uma fotocópia e a falsificação de um documento através de fotocópia, escrevendo que “neste segundo caso estamos a utilizar a fotocópia como meio técnico que nos permite a falsificação. O documento em vez de ser falsificado através de impressão de um novo documento, é fotocopiado criando-se um documento distinto do original. Ou seja, a alteração do conteúdo de um documento, quer esta alteração se tenha verificado porque o agente imprimiu um novo documento (com conteúdo distinto do documento original), ou porque o agente o fotocopiou, é irrelevante para efeitos penais - na verdade, em todos os casos trata-se de uma falsificação material do documento. Na verdade, a utilização da fotocópia é a utilização do documento falsificado e neste sentido deve ser subsumível ao crime de falsificação de documentos; sendo, no entanto, necessário que a fotocópia tenha sido produzida a partir do original e que tenha a aparência, do original (…). Situação distinta é a falsificação da fotocópia. Aqui não foi o documento original falsificado foi sim a fotocópia. Uma vez que o documento para efeitos de direito penal é a declaração e não o objeto ou suporte material da declaração, a simples falsificação da fotocópia, do suporte do documento não constitui falsificação de documentos, pois não se verificou uma falsificação de um documento enquanto declaração…”(4).
Naquela situação, de falsificação de documento através do meio técnico que é a fotocópia, verifica-se a adulteração de um documento original, mediante utilização de fotocópia que o incorpore ou substitua, conduta que é punível como falsificação desde que a fotocópia tenha a aparência do original e se apresente como tal, pois com ela são frustradas as funções de perpetuação, de prova e de garantia do documento, enquanto declaração.
Nestes casos, o próprio ato de produção da fotocópia é feito através da manipulação do original fotocopiado, cujo conteúdo é alterado por essa forma.
Tal alteração, que pode ser efetuada através da montagem do texto original ou da sua digitalização, constitui sempre uma alteração do documento original que está a ser fotocopiado, pelo que integra o crime de falsificação de documento. Esta traduz-se no ato de fotocopiar ou digitalizar um documento, atingindo, através das alterações então produzidas, as funções de garantia e prova do documento original que está a ser fotocopiado.
Daí que, no caso de falsificação de fotocópia, se esta for certificada ou autenticada, já a conduta é penalmente relevante em termos idênticos à falsificação do original, uma vez que comunga das características dos documentos originais, ou seja, cumpre eficazmente àquelas funções do documento enquanto declaração, com a consequente violação do bem jurídico-penal que se pretende tutelar - a segurança e a confiança do tráfico jurídico, especialmente probatório.
Com efeito, a fotocópia de documento com o valor probatório do original, fruto de a sua conformidade com este se encontrar certificada ou atestada, constitui meio de prova, enquanto objeto material do crime de falsificação de documentos.
Já no caso de simples fotocópia, quer de documento autêntico, quer particular, cuja conformidade com o original não se encontre certificada ou atestada, não pode a mesma considerar-se um documento para efeitos jurídico-penais, não cabendo na definição legal contida no art. 255º do Código Penal.
Com efeito, a fotocópia reproduz (como imagem) uma declaração corporizada num escrito, mas não certifica o seu emissor, pelo que não é possível reconhecer-lhe, sem mais, a função de garantia da fidelidade do seu conteúdo, própria de todo o documento. Nela estão claramente diluídos os interesses de credibilidade e de segurança do tráfico jurídico probatório.
Da noção de documento retira-se que este tem de ser apto a provar facto juridicamente relevante, devendo constituir um meio de prova, ainda que só lhe seja conferido em momento posterior.
Uma vez que o documento é a declaração e não o objeto ou suporte material da mesma, a falsificação da fotocópia não se traduz na falsificação do documento enquanto declaração, pelo que não integra o crime previsto no art. 256º, n.º 1, do Código Penal.
Em suma, alterar uma fotocópia não é alterar um documento, embora o documento assim alterado possa ser um instrumento idóneo para enganar e, assim, de praticar um crime de burla, desde que verificados os restantes elementos do respetivo tipo penal.
Neste sentido se tem pronunciado a jurisprudência dos tribunais superiores(5).
Em face do exposto, no caso em apreço, tendo a alteração levada a cabo pelo recorrente tido como objeto uma simples fotocópia de uma carta de condução de terceiro, conclui-se que não se trata de documento suscetível de constituir objeto material do crime de falsificação de documento a que se reporta o art. 256º, nº 1, do Código Penal, por não se inserir na definição de documento dada pelo art. 255º, al. a), do mesmo diploma.
Na medida em que a alteração foi operada numa mera fotocópia a qual, por si, não tem natureza probatória igual ao respetivo original, o documento que o recorrente falsificou não era apto a provar facto juridicamente relevante.
Assim, ainda que censurável em termos morais, a sua atuação não é criminalmente punida.
Impõe-se, pois, absolvê-lo do crime de falsificação de documento, p. e p. pelos art.ºs 255º, al. a), e 256º, n.ºs 1, al.s a), d), e), e 3, ambos do Código Penal, pelo qual foi punido com a pena de 180 dias de multa, ficando consequentemente sem efeito o cúmulo jurídico efetuado com o crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. nos arts. 121º n.º 1, do Código da Estrada, e 3º, n.º 2, do DL n.º 02/98, de 3 de janeiro, pelo qual foi igualmente condenado, subsistindo apenas esta última condenação, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco euros).

III. DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em conceder provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida, na parte em que condenou o recorrente M. C. pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelos art.ºs 255º, al. a), e 256º, n.ºs 1, al.s a), d), e), e 3, ambos do Código Penal, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa.
Consequentemente, fica sem efeito o cúmulo jurídico efetuado entre essa condenação e a relativa ao crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. nos arts. 121º n.º 1, do Código da Estrada, e 3º, n.º 2, do DL n.º 02/98, de 3 de janeiro, pelo qual o recorrente foi igualmente condenado, subsistindo apenas esta última condenação, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco euros), o que perfaz € 400 (quatrocentos euros).

Sem tributação (art. 513º, n.º 1, a contrario, do Código de Processo Penal).
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(Texto elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP)
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Guimarães, 20 de fevereiro de 2017
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(Jorge Bispo)
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(Pedro Cunha Lopes)

(1) - Cf. acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I Série, de 28-12-1995.
(2) - Vd. Helena Moniz, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, pág. 680.
(3) - Neste sentido, vd. Enrique Bacigalupo, Documentos Electrónicos y Delitos de Falsedad Docuemntal in Revista Electrónica de Ciência Penal e Criminologia, acessível em http://criminet.ugr.es/recpc, e também Helena Moniz, in ob. cit., pág. 667.
(4) - In ob. cit. pág. 670, § 21.
(5) - Vd. Acórdãos do STJ de 20-12-2006 (processo n.º 06P3663), do TRE de 06-02-2007 (processo n.º 2736706-1), do TRC de 19-11-2014 (processo n.º 338/12.4TACTB.C1), todos disponíveis em http//www.dgsi.pt.