Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
726/13.9TBEPS.G1
Relator: MARIA AMÁLIA SANTOS
Descritores: NE BIS IN IDEM
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
ESTADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÇÃO CÍVEL
Sumário: I – Alegando o A. ter sido submetido a dois processos judiciais, enquanto arguido, para investigação dos mesmos factos, a situação alegada integra o chamado erro in procedendo, previsto no artº 12º do RRCEE, instituído pela Lei nº 67/2007 de 31 de Dezembro;
II – Existe violação do princípio “ne bis in idem”, consagrado no artº 29º nº5 da Constituição da República Portuguesa, se o arguido é submetido a um duplo processo, no qual é investigado pelos mesmos factos duas vezes;
III – Os pressupostos da responsabilidade extra-contratual do Estado, prevista na Lei nº 67/2007 de 31 de Dezembro, são os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, pelo que, além da ilicitude e da culpa, há que averiguar os danos alegadamente sofridos pelo A, assim como o nexo de causalidade entre a ilicitude e os danos.
Decisão Texto Integral: Procº nº 726/13.9TBEPS
Comarca de Braga
Relatora: Maria Amália Santos
1ª Adjunta: Desembargadora Ana Cristina Duarte
2º Adjunto: Desembargador João Diogo Rodrigues
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Pedro M, divorciado, residente na Rua J, nº 82, 1.° Dto, Fânzeres, Gondomar, intentou a presente acção declarativa sob a forma de processo sumário, contra o ESTADO PORTUGUÊS, pedindo a sua condenação, nos termos da Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, a pagar-lhe uma indemnização pelos danos sofridos, no valor de € 5.000,00, assim como os justos honorários e despesas legais do seu mandatário, num valor nunca inferior a €1.500,00, e ainda uma indemnização por danos morais e pelo sacrifício, num valor nunca inferior a €1.500,00, tudo acrescido de juros de mora à taxa legal de 4 % ao ano, desde a citação até efectivo pagamento.
Alega para tanto ter sido sujeito, enquanto arguido, a um processo-crime que correu termos no 1.° Juízo do Tribunal Judicial de Esposende sob o nº 306/09, relativamente a factos sobre os quais havia sido já julgado anteriormente no 1.° Juízo do Tribunal Judicial de Valongo (processo nº 353/09, que foi sentenciado a 03/02/2011), sendo que apenas a 31/03/2011 foi concluído pelo Tribunal de Esposende que o A. estava a ser julgado duas vezes pela prática do mesmo crime, após o mesmo, no início da audiência de julgamento, a 09/03/2011, ter invocado esse facto.
Ou seja, não só o arguido tinha sido investigado e acusado duas vezes pela alegada comissão do mesmo crime, como foi sujeito a dois julgamentos, em duas comarcas diferentes, pelo mesmo alegado crime, em clara violação do princípio constitucional “ne bis in idem”, consagrado no artº 29º nº 5 da CRP, no artº 4º nº1 do Protocolo adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem e no artº 14º nº 7 do Pacto Internacional sobre direitos civis e políticos.
Mais alega que o facto de ser julgado duas vezes pelo mesmo crime lhe causou ansiedade, cansaço, incerteza, falta de sono, depressão, angústia, preocupações e aborrecimentos e que este segundo julgamento pelos mesmos factos, a nível do registo policial e judicial, se encontrava sinalizado como processo pendente e que podia ser utilizado num outro processo e penalizá-lo.
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Citado o R (com a representação do MºPº), veio o mesmo contestar, alegando não ter sido cometido qualquer erro judiciário, já que no processo 306/09, que correu termos no Tribunal de Esposende, não foi praticado qualquer ato ou proferida qualquer decisão inconstitucional, ilegal ou injustificada, atendendo aos elementos ou pressupostos de facto conhecidos na altura, tendo sido praticados os atos e proferidas as decisões que nos termos da lei se impunham, em função dos elementos de facto conhecidos.
Alega ainda o Mº Pº que o Autor teve sempre conhecimento dos factos que lhe foram imputados em ambos os processos, pelo que, não informando atempadamente os Tribunais Judiciais de Valongo e de Esposende acerca da pendência de dois processos criminais com o mesmo objecto, causou prejuízo ao Estado, dada a prática de actos e a prolação de decisões desnecessárias.
Além disso, não obstante ter tido total conhecimento da tramitação de ambos os processos, não se coibiu de intentar a presente acção, apesar de perfeitamente consciente da falta de fundamento da sua pretensão, tendo omitido, dolosa ou com negligência grave, factos relevantes para a decisão da causa.
Termina pedindo a sua absolvição do pedido e a condenação do Autor como litigante de má-fé, em multa e em indemnização ao Estado Português, nos termos dos arts. 542º e 543º do CPC.
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O Autor veio Responder à contestação do MºPº, refutando as alegações de litigância de má fé, pedindo que esse pedido seja liminarmente rejeitado.
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Considerando que o estado dos autos permitia decidir desde logo os mesmos, sem realização de Audiência de Julgamento - conforme comunicação feita às partes, dando-lhes a possibilidade de se pronunciarem quanto a tal intenção, ao abrigo do princípio do contraditório e da proibição das decisões surpresa -, foi proferida a seguinte decisão:
“Destarte e por todo o exposto, julgo totalmente improcedente por não provada a presente acção e, em consequência, absolvo o Réu do pedido. Custas pelo Autor”.
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Não se conformando com a decisão proferida, veio o A dela interpor o presente recurso de Apelação, apresentando Alegações e formulando as seguintes Conclusões (que reproduzimos integralmente):
“1ª - O aqui A., discorda totalmente das conclusões do Tribunal "a quo" que indeferiu a sua acção e correspondente pedido.
2ª - O Tribunal "a quo" mormente não concedeu ao aqui A., o seu "dia" em Tribunal no Fórum certo para requerer justiça.
3ª- O Tribunal "a quo", na nossa óptica de e forma errónea e salvo melhor entendimento, não considerou diversos factos que, apesar de necessitarem de prova em julgamento, obviamente, que a serem provados ainda que documentalmente, dariam razão ao aqui A., e levaria inexoravelmente à condenação do Estado Português.
4ª - "Maxime" o facto de o Sr., Procurador da República da Comarca da Maia - Dr. A ter pedido uma certidão, em 28/10/2009, ao processo nº 306/09.3GAEPS.
5ª - Pedido que foi acedido e essa certidão chegou ao processo 353/09.5PWPRT, como não reparou na identidade do objecto processo?
6ª - Como não reparou o procurador do M.P., de Esposende na identidade do objecto processual?
7ª - Assim, o Tribunal "a quo" ofendeu os direitos tutelados pela C.R.P., designadamente no artº 20° nº 4 da C.R.P., ao limitar o acesso do A., ao Direito e aos Tribunais quando não autorizou a continuação do presente processo para julgamento de forma a poder provar os seus argumentos jurídicos e a matéria de facto controvertida, nos termos do artº 595° nºI al., b),
8ª - A estatuição ínsita do artº 595° nº1 al., b) do N.C.P.C., é de utilização extraordinariamente rara pelos Tribunais de 1ª instância, sendo apenas na precisa medida em que existam excepções peremptórias, e sem necessidade de prova suplementar, só devendo ser utilizável e "aconselhável, a regra de que o juiz se abstenha de decidir enquanto no processo não estejam obtidos os pontos de facto articulados, necessários para as várias e plausíveis soluções da questão de Direito" - Ac., RI Coimbra de 29/10/91 in CJ, IV, pág., 124.
9ª - Fundamentalmente se afirma como se pode provar uma dada matéria controvertida a nível fáctico se o Tribunal "a quo" não deixa que se prove tal factualidade em sede própria? No julgamento, assim é impossível ter um acesso concreto aos Tribunais.
10ª - Deste modo impugna-se, em 1° lugar o facto de o Tribunal "a quo" não ter considerado como provado ou não a questão documentalmente inclusa no processo - o pedido de certidão do M.P. da Maia ao M.P., de Esposende que devia ter alertado os mesmos da duplicidade processual.
11ª - Em segundo lugar impugna-se, igualmente, a não autorização de comprovar em sede de julgamento a prova controvertida.
12ª - Para melhor compreensão do que se conclui veja-se o douto Ac., S.T.J., de 12/02/2004, processo nº 03b1414/itij/net - "o despacho saneador, conhecendo do mérito da causa em conformidade com a alínea b) do artº 510º do antigo C.P.C, e tendo neste caso o valor de sentença para todos os efeitos (nº 3), está necessariamente sujeito na sua elaboração, "mutatis mutandis", ao disposto do antigo artº 659º e ao julgamento de facto nele previsto (. . .) a discriminação dos factos que o juiz considera provados (. .. ) não se reduz a uma actividade mecânico-formal (. . .) antes devendo a mesma conceber-se como acto de exteriorização e expressão enunciativa do julgamento de facto. Acto que o Tribunal "a quo" não concretizou.
13ª - Esta limitação do acesso ao julgamento é muito frequente nos processos contra o Estado Português, mas não se acredita "in casu" que tal tenha acontecido.
14ª - Mas o aqui A., está obstinado a ir até às derradeiras instâncias para obter justiça!
15ª - O aqui A., requer a Tribunal da Relação que decida já a presente contenda, nos termos do artº 665° nºs 1 e 2 do N.C.P.C. pois considera que o Tribunal "a quo" já formou definitivamente a sua convicção, independentemente da eventual prova concretizada numa sessão de julgamento.
16ª - Noutro apontamento da matéria de Direito e em seguimento do 1º ponto, o Tribunal "a quo" não decidiu correctamente, na óptica do A., pois existem factos jurisdicionais lesivos dos direitos constitucionalmente titulados do mesmo, na óptica da violação do princípio "ne bis in idem".
17a - Com efeito, o despacho de acusação que é de certeza um acto jurisdicional pois o M.P., representa o Estado Português – artº 1° do Estatuto do M.P. - "Ministério Público representa o Estado"
18ª - Acresce à citação da excelente tese de doutoramento - "Sendo a acusação em sentido material o acto que procede a delimitação originária do objecto do processo, os limites objectivos do ne bis in idem correspondem não só a tudo o que foi conhecido no processo anterior mas ainda ao que podia ter sido conhecido naquele acto, tendo em conta um objecto processual unitário" - vd., Prof., Doutor Henrique Salinas em "os limites objectivos do "Ne bis in idem" - teses de doutoramento pág., 691.
19ª - Bem como existem diversas condenações do Estado português quando arguidos declarados inocentes em julgamento requerem o ressarcimento de danos emergentes de uma acusação infundada, numa interpretação extensiva do artº 225º do C.P.P.
20ª - Em segundo lugar o despacho de marcação de audiência nos termos do artº 313º do C.P.P., que já não existem dúvidas que é um acto jurisdicional.
21ª - Despacho esse que devia sanar questões incidentais e nulidades já existentes no processo e como já era óbvio a existência no processo do referido pedido de certidão do M.P., da Maia ao M.P., de Esposende já haveria "luzes" suficientes para a descoberta da duplicidade de processos e do início de um segundo julgamento.
22ª - Mas, e sobretudo, o preciso acto de abertura de audiência que consolidou em definitivo a violação do princípio "Ne bis in idem", pois o que o artº 29° nº 5 deseja realmente evitar não é a dupla condenação mas sim o cidadão ser julgado duas vezes pelo mesmo crime, factos e objecto processual, sendo, assim, irrelevante a absolvição nos dois processos.
23ª - Neste sentido, GOMES CANOTILHONITAL MOREIRA, Constituição da Republica Portuguesa Anotada, I, 2007, p. 497, com a seguinte fundamentação: "A Constituição proíbe rigorosamente o duplo julgamento e não a dupla penalização, mas é óbvio que a proibição do duplo julgamento pretende evitar tanto a condenação de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido pela prática da infracção, como a aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela pratica do mesmo crime" - em referência ao artº 29° n, ° 5 da C.R.P.
24ª - A nível jurisprudencial repare-se no douto e conciso Ac., de 22-03-2011, procº nº 5715/04.1TVLSB.Ll.S1, 6ª secção, Relator Azevedo Ramos, in dgsi.pt, na sua 10ª conclusão no sumário face à questão do erro grosseiro do Estado Português "É irrelevante, para tal qualificação, o facto do arguido, mais tarde, ter sido absolvido ou ter sido objecto de não pronúncia pelos crimes de que se encontrava acusado".
25ª - Ou seja, a simples abertura da audiência gera só por si danos recompensáveis pelo aqui R., de forma objectiva e por factos ilícitos nos termos da Lei nº 67/2007 e na C.E.D.H., no seu artº 4 nº 1 do Protocolo adicional àquela Convenção, bem como no artº 14°, nº 7 do Pacto Internacional sobre direitos civis e políticos e acessoriamente no preenchimento dos pressupostos no âmbito termos do artº 483° e ss., do Código civil.
26ª - Pois, na data da abertura da audiência de julgamento existiam plataforma informáticas do Ministério da justiça que realmente funcionavam e seria fácil detectar a duplicidade processual.
27ª - Deste modo se pode apenas concluir pela interpretação inconstitucional na dimensão constitucional/normativa supra referenciada e citada, mormente no comentário à C.R.P., de GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA - do Tribunal "a quo" faz do artº 1º, 12º e 14° da Lei 67/2007 de 31/12 no sentido de interpretar as mesmas de forma disforme ao artº 29° nº 5 da C.R.P., quando concluí que a abertura de audiência, despacho de recepção da acusação e marcação de julgamento e sobretudo o despacho de acusação não são actos jurisdicionais susceptíveis de serem considerados actos ilícitos no exercício da função jurisdicional.
28ª - Como pode, então, o Tribunal "a quo" concluir que uma acusação produzida por um organismo com poderes públicos - vd., artº 1° do Estatuto do M.P., feita a um arguido que já não pode ser acusado pelo crime que foi acusado na mesma não é causadora de danos materiais e morais nem muito menos considerar que é um acto ilícito jurisdicional? Nem sobretudo o acto de abertura de audiência que está constante na acta de julgamento.
29ª - Mais a mais o aqui arguido foi conduzido pelas autoridades policiais ao julgamento onde toda a Sociedade e população de Esposende reparou de forma pública ao vexame público que o A., sofreu por ser conduzido publicamente por as autoridades policiais e passar perante o público como já que mais presumível culpado pelos factos que veio acusado, como pode Tribunal "a quo" não considerar esta factualidade de vexame como um dano indemnizável?
Termos em que se requer a Vªs, Exas., que decidam, desde já, pela violação do princípio "ne bis in idem", nos termos supra descritos, pelo Estado Português, condenando-o pelo Pedido total, ou seja, os €8.000,00 mais juros à taxa legal de 4% ao ano desde citação até efectivo pagamento sobre as verbas peticionadas na acção ou caso não considerem que existam os dados suficientes para chegar a essa conclusão requer-se que se ordene a Baixa à 1ª instância para prosseguimento dos autos para julgamento”.
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O MºPº apresentou contra-alegações nas quais pugna pela manutenção da decisão recorrida.
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Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes (acima transcritas), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, a questão a decidir é apenas a de saber se o estado dos autos permitia, desde logo, conhecer do pedido.
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Foram dados como provados na 1ª instância os seguintes factos:
1 - O aqui A, foi sujeito, enquanto arguido, a um processo-crime que correu termos no Tribunal Judicial de Esposende - 1° juízo crime - com o nº de Processo 306/09.3GAEPS, tendo a investigação do apontado processo começado em 2009.
2 - A acusação foi concluída e assinada a 15/12/2009 e o A. foi notificado da acusação em 18/02/2010.
3 - Na fase de inquérito do processo 306/09.3GAEPS não foi possível localizar o ora Autor.
4 - Aquando da dedução de acusação no processo 306/09.3GAEPS, foi nomeada defensora oficiosa ao arguido, nomeação também notificada ao ora Autor em 18 de Fevereiro de 2010.
5 - O ora Autor foi notificado do despacho que recebeu a acusação e prestou novo TIR em 26 de Julho de 2010.
6 - Na mesma data, o ora Autor foi notificado de que a audiência de julgamento se realizaria em 20/10/2010 ou, em caso de adiamento, em 03/11/2010.
7 - Em 12 de Abril de 2010, o ora Autor, através da sua ilustre defensora oficiosa, apresentou contestação, tendo alegado somente que "1° O aqui contestante não praticou o crime pelo qual foi acusado pelo Ministério Público. 2° Em consequência, deverá a acusação ser julgada improcedente.".
8 - A audiência de julgamento designada para 20/10/2010 viria a ser adiada para 09/03/2011.
9 - A audiência de julgamento iniciou-se a 09/03/2011, tendo nessa precisa data o aqui A. invocado que estaria a ser julgado de novo pela comissão de um crime pelo qual já foi julgado e absolvido.
10 - O Tribunal de Julgamento diligenciou, então, e nessa mesma data, para que se inquirisse junto do Tribunal Judicial de Valongo, se efectivamente, o A., tinha ou não sido julgado pelos mesmos factos.
11 - Posteriormente, a 17/03/2011, chegou ao conhecimento do Tribunal de julgamento a sentença do 1° juízo crime do Tribunal Judicial de Valongo - Sentença do processo-crime nº 353/09.5 PWPRT, datada de 03/02/2011, onde o aqui A. foi absolvido da comissão pelo qual tinha sido acusado.
12 - O Tribunal Judicial de Esposende logo que tomou conhecimento da sentença absolutória proferida no processo 353/09.5PWPRT, transitada em julgado em 23/02/2011, decidiu declarar extinto o procedimento criminal movido contra o ora Autor no processo 306/09.3GAEPS, despacho esse proferido em 1 de Abril de 2010, notificado ao ora Autor em 5 de Abril de 2011.
13 - O Tribunal Judicial de Esposende não conheceu do objeto do processo 306/09.3GAEPS, não proferiu sentença a declarar provados ou não provados os factos de que o ora Autor estava acusado.
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Do enquadramento legal da questão:
Nos presentes autos veio o A pedir a condenação do R, o Estado Português, a pagar-lhe uma indemnização, no valor global de € 8.000,00 e respectivos juros de mora, pelos prejuízos por si sofridos, em virtude de ter sido investigado e submetido a julgamento em dois processos, pelos mesmos factos, em violação do princípio constitucional “ne bis in idem”, consagrado no artº 29º nº 5 da Constituição da República Portuguesa.
Mais concretamente, alega ter sido sujeito, enquanto arguido, a um processo-crime que correu termos no 1º juízo do Tribunal Judicial de Esposende sob o número 306/09, relativamente a factos pelos quais já tinha sido julgado noutro processo com o nº 353/09, que correu termos no 1º juízo do Tribunal Judicial de Valongo.
Na decisão recorrida concluiu-se, logo no despacho saneador, não assistir razão ao A, dado que o mesmo não foi submetido a um segundo julgamento, no tribunal de Esposende, dado que aquele tribunal, logo que tomou conhecimento da sentença proferida no Tribunal Judicial de Valongo, que absolveu o arguido dos factos pelos quais ali era acusado – e que eram os mesmos factos a serem apreciados no tribunal de Esposende –, ordenou a extinção do procedimento criminal contra o arguido, sem que tenha apreciado qualquer um dos factos constantes da acusação.
É contra esta decisão que o A. se insurge, pugnando pela procedência da acção e pela condenação do R. na indemnização solicitada.
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A questão está em saber, desde logo, se a matéria de facto alegada pelo Autor é susceptível de gerar responsabilidade civil extracontratual do Estado por alegada violação do principio do ne bis in idem, consagrado no artº 29º nº 5 da CRP e no artº 4 nº 1 do Protocolo adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, bem como o art. 14, nº 7, do Pacto Internacional sobre direitos civis e políticos.
A responsabilidade civil extracontratual do Estado e pessoas colectivas de direito público encontra-se atualmente regulada na Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, diploma que aprovou o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas (RRCEE), em vigor desde 30 de Janeiro de 2008, disciplinando, como refere o seu artigo 1º, nº 1, o regime jurídico da responsabilidade por danos resultantes do exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa.
Com a Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, surge então um novo regime de responsabilização do Estado, num plano tríplice: administrativo, jurisdicional e legislativo.
Tratou-se, por um lado e no plano interno, de dar efectividade plena ao artigo 22º da Constituição da República Portuguesa e, por outro lado e no plano externo, de ir ao encontro das exigências da jurisprudência comunitária no que toca à responsabilidade dos Estados-membros por violação do Direito Comunitário.
A ideia fundamental é a de que nada do que acontece em nome do Estado e no suposto interesse da colectividade, mediante as acções ou omissões das suas instituições, pode ser imune ao dever de reparar os danos provocados aos particulares.
Reconhece-se, assim, pela primeira vez na lei portuguesa um regime geral para a responsabilidade civil emergente do facto jurisdicional, já que, até então, esta responsabilidade era apenas regulada por normas dispersas previstas no Código de Processo Penal, nos artigos 225º e 226.° para a injusta privação da liberdade e 461.° e 462.° para o erro judiciário em sentença condenatória penal.
O capítulo III da aludida lei trata, assim, da responsabilidade civil do Estado por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional, determinando a aplicação do regime da responsabilidade do Estado pela função administrativa à responsabilidade do Estado pela administração da justiça (artº 12º) e consagrando a existência de uma responsabilidade pelo exercício administrativo da função jurisdicional que inclui quer a violação do direito a uma decisão judicial num prazo razoável quer a responsabilidade pela função jurisdicional propriamente dita, que se traduz no acto de julgar, abrangendo o erro judiciário (artº 13º).
Efetivamente, o actual regime legal deu, finalmente, enquadramento à responsabilidade por erro judiciário, nos termos constantes do artigo 13.° do RRCEE, mesmo mantendo intocada a aplicação dos regimes especiais avulsos e, pela primeira vez consagrou legalmente a responsabilidade civil do Estado por deficiente funcionamento da administração da Justiça, a pensar em factos só formalmente jurisdicionais, praticados in procedendo e não in judicando, remetendo parte substancial do seu regime para as normas da responsabilidade civil pela função administrativa do Estado (artigo 12.° do RRCEE).
Ou seja, trata o Capítulo III da citada Lei 67/2007 da responsabilidade civil do Estado por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional, ou, de forma mais simples, a responsabilidade do chamado Estado-Juiz (neste sentido, Guilherme da FONSECA, - A responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional, JULGAR - N.º 5 – 2008).
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Perante estas considerações de ordem geral, cremos que o enquadramento jurídico da questão suscitada nos autos pelo A. demanda a norma do artº 12º da citada Lei 67/2007 (e não o artº 13º, como erradamente se faz na decisão recorrida).
Prevê-se naquele artigo 12.º, intitulado “Regime geral”, que “Salvo o disposto nos artigos seguintes, é aplicável aos danos ilicitamente causados pela administração da justiça, designadamente por violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável, o regime da responsabilidade por factos ilícitos cometidos no exercício da função administrativa.”
E prevê-se no artigo 13.º da mesma lei, intitulado “Responsabilidade por erro judiciário”, no seu nº 1 que “Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto”, acrescentando o nº 2 que “O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.”
Ora, como decorre da alegação do A - quer na p.i., quer na resposta à contestação -, os factos por ele invocados, que integram a causa de pedir na acção, não prevêm a responsabilidade civil do Estado em virtude de uma concreta decisão (uma decisão jurisdicional manifestamente inconstitucional ou ilegal ou injustificada por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto); os factos alegados pelo A. pressupõem uma actividade jurisdicional ilegal, consistente na existência de um segundo processo, que correu termos no tribunal judicial de Esposende, no qual foram investigados factos pelos quais o A., enquanto arguido, havia já sido investigado e julgado no tribunal judicial de Valongo.
O artigo 12º do RRCEE diz respeito ao regime regra, aplicável aos danos ilicitamente causados pela administração da justiça, remetendo a sua aplicação para o regime da responsabilidade por factos ilícitos cometidos no exercício da função administrativa, de que se ocupa o Capítulo, responsabilidade que, aliás, é alargada à «responsabilidade civil dos titulares de órgãos, funcionários e agentes públicos por danos decorrentes de acções ou omissões adoptadas no exercício das funções administrativa e jurisdicional e por causa desse exercício» (n.º 3 do mesmo artigo 1.º).
Trata-se de aceitar que aqueles que pagam os serviços da justiça têm o direito de exigir do Estado que esta funcione razoavelmente. Na medida em que tal não aconteça, devem os particulares poder ressarcir-se dos prejuízos que lhes forem causados pelo seu funcionamento deficiente. O legislador, compreensivelmente, resolve o problema, determinando a extensão a estes casos do regime da responsabilidade civil decorrente de factos ilícitos praticados no exercício da função administrativa (artigo 12.º).
Aliás, nem se compreenderia que os cidadãos pudessem exigir o regular funcionamento dos serviços públicos em geral e não tivessem idêntico direito relativamente aos tribunais, que são os serviços públicos da justiça.
Ora, como se disse, o A, quer na petição, quer na resposta à contestação, não ataca verdadeiramente uma decisão concreta proferida, dizendo, muito genericamente, que foi investigado duas vezes pelos mesmos factos, o que constitui violação do princípio do "ne bis in idem”, princípio constitucionalmente garantido e que por violação desse princípio fica o Estado responsável pelos danos que lhe causou e que ele indica.
A alegação do A enquadra, assim, a situação, no artº 12º - erro in judicando – e não no artº 13º - erro in decidendu - já que não é atacada, em concreto, nenhuma decisão proferida (sendo apenas em desespero de causa e para atacar a fundamentação jurídica da sentença recorrida, que o recorrente vem defender que a acusação é uma verdadeira decisão, nos termos e para os efeitos previstos no artº 13º da Lei, o mesmo defendendo para os vários atos praticados pelo tribunal, como o despacho de designação de dia para julgamento e o ato de abertura da audiência).
O ato atacado pelo recorrente, em sentido amplo, é a investigação que foi levada a cabo contra si por factos relativamente aos quais havia já sido investigado e julgado (e pelos quais viria mesmo a ser absolvido).
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Assente que está o enquadramento jurídico da questão – e para o qual este tribunal da Relação tem poderes, nos mesmos termos do tribunal da 1ª instância, já que se trata da qualificação jurídica dos factos alegados –, verifiquemos agora se existe responsabilidade do Estado, por danos causados ao A., decorrentes da (deficiente) administração da justiça.
Como se disse, invoca o A. danos por si sofridos, que descreve, por ter sido sujeito, por duas vezes, a uma investigação pelos mesmos factos, situação que é da responsabilidade do MºPº enquanto investigador, e do Estado enquanto entidade que superintende aquele órgão, na Administração da Justiça.
Invoca no fundo o A. a violação, pelo tribunal de Esposende, do princípio do “ne bis in idem” ou da proibição do duplo julgamento pelos mesmos factos.
Defende-se na sentença recorrida (e é também essa a tese do MºPº) que nos termos do disposto no artº 29.°, nº 5 da Constituição da República Portuguesa, o princípio do ne bis in idem, cuja violação é invocada pelo recorrente, pressupõe que alguém seja julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime, o que nem sequer chegou a acontecer, uma vez que o recorrente apenas foi julgado no processo nº 353/09, que correu termos no 1º juízo do Tribunal Judicial de Valongo, não tendo sido julgado no tribunal de Esposende, julgando, assim, improcedente a acção, logo no despacho saneador.
Ou seja, partindo da letra da lei – da redacção do artº 29º nº 5 da CRP – concluiu o tribunal recorrido que não ocorrendo segundo julgamento, não há violação do princípio consagrado naquela norma.
Mas, salvo o devido respeito, não pode ser esse apenas o sentido da norma.
A regra do «ne bis in idem» (ou «non bis in idem») é um princípio clássico do processo penal, já conhecido do direito romano, segundo o qual «ninguém pode ser perseguido ou punido penalmente pelos mesmos factos». Esta regra, que responde a uma dupla exigência de equidade e de segurança jurídica, é reconhecida e aplicada na ordem jurídica interna por um conjunto de países respeitadores do Estado de direito.
A Constituição da República Portuguesa consagra, no nº 5 do seu artigo 29.°, o referido princípio "ne bis in idem" dizendo que «ninguém pode ser julgado mais de uma vez pela prática do mesmo crime". Desta enunciação do princípio decorre a proibição de aplicar mais de uma sanção com base na prática do mesmo crime e também a de realizar uma pluralidade de julgamentos criminais com base no mesmo facto delituoso.
Ora, como resulta da matéria de facto provada e é considerado na sentença recorrida, no caso em apreço, é manifesto que se verificou a pendência de dois processos contra o aqui Autor, com base nos mesmos factos, até ao momento em que foi proferida, num deles, no tribunal judicial de Valongo, decisão final absolutória, prosseguindo os autos no tribunal de Esposende até ser neles julgado extinto o procedimento criminal contra o arguido.
No entanto, considerou-se na decisão recorrida que mal ficou demonstrada a existência de tal situação, ou seja, que o arguido estaria a ser julgado segunda vez pelos mesmos factos, foi imediatamente extinto o procedimento criminal, não chegando a ocorrer um segundo julgamento, já que o Tribunal Judicial de Esposende não conheceu do objeto do processo, isto é, neste processo não proferiu sentença a declarar provados ou não provados os factos de que o ora Autor vinha acusado.
Considerou-se, assim, com base nessa factualidade, que no caso em apreço o erro judiciário não se chegou a verificar; o mesmo foi evitado ao ter-se julgado extinto o procedimento criminal, sendo que este só não foi julgado extinto anteriormente porque não houve notícia, nem na fase de inquérito, nem na fase de julgamento (até ao momento referido supra nos factos provados), de que pendia outro processo contra o mesmo arguido.
Concluiu-se, pois, pela não verificação do alegado facto ilícito praticado pelo Estado Português no âmbito da sua função jurisdicional.
Não nos parece, no entanto, que assim possa ser considerado, de forma tão lapidar.
O princípio do ne bis in idem tem por finalidade obstar a uma dupla submissão de um indivíduo a um mesmo processo, tendo em vista, por um lado, assegurar a sua paz jurídica e configurando, de outro passo, uma limitação ao poder punitivo do Estado (Henrique Salinas, em Os Limites Objectivos do ne bis in idem (Dissertação de Doutoramento,Fevereirode2012,página686,emhttp://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/10124 e Ac RL, de 13-04-2011, em www.dgsi.pt.)
Ancorado na estrutura acusatória do processo que enforma o nosso processo penal, a proibição da dupla apreciação significa, numa primeira leitura, que ninguém pode ser julgado mais de uma vez e não, como por vezes é referido, que ninguém pode ser punido mais de uma vez (Ac RL, de 08-03-2006, www.dgsi.pt)
Por isso, esta garantia constitucional deve ser vista como da proibição da dupla perseguição penal do indivíduo, estendendo-se, portanto, não apenas ao julgamento em sentido formal (quer tenha conduzido à condenação, quer à absolvição do acusado, naturalmente) mas, também, a qualquer outro acto processual que signifique uma definitiva assunção valorativa por parte do Estado sobre determinado facto penal, como seja o arquivamento do inquérito pelo Ministério Público ou a decisão de não pronúncia pelo Juiz de Instrução Criminal (Henrique Salinas, ob. cit. página 688.9) e a declaração judicial de extinção da responsabilidade criminal por amnistia, por prescrição do procedimento criminal ou por desistência da queixa (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-03-2006, no processo n.º 05P4403, publicado em http://www.dgsi.pt.)
Nesta perspectiva, a delimitação do objecto do processo pela acusação tem ainda como efeito que a garantia conferida pelo princípio ne bis in idem implique que se proíba a investigação e o posterior julgamento não só do que foi mas também do que poderia ter sido conhecido no primeiro processo.
Na verdade, como refere Henrique Salinas (ob citada), «a preclusão, contudo, não diz apenas respeito ao que foi conhecido, pois também abrange o que podia ter sido conhecido no processo anterior. Para este efeito, teremos de recorrer aos poderes de cognição do acto que procedeu à delimitação originária do processo, a acusação em sentido material, tendo em conta um objecto unitário do processo. Desde logo, como neste acto não existe qualquer limitação à qualificação jurídica dos factos no mesmo descritos, pode concluir-se que não é possível a instauração de novo processo que os tenha por objecto, diversamente qualificados. De igual modo, neste acto podiam ter sido conhecidos factos que traduzem uma alteração, substancial ou não substancial, dos que nele foram incluídos, uma vez que, em qualquer dos casos, estamos ainda dentro dos limites do mesmo objecto processual. Por esta razão, não é possível a instauração de novo processo que os tenha por objecto.»
O que se proíbe é, no fundo, que um mesmo e concreto objecto do processo possa fundar um segundo processo penal, entendendo-se aqui por crime não um certo tipo legal abstractamente definido como crime mas, outrossim, um comportamento espácio-temporalmente determinado, um determinado acontecimento histórico, um facto naturalístico concreto ou um pedaço de vida de um indivíduo já objecto de uma sentença ou decisão que se lhe equipare, mas independentemente do nomem iuris que lhe tenha sido ou venha a ser atribuído, no primeiro ou no processo subsequentemente instaurado. Quer dizer, o que verdadeiramente interessa é o facto e não a sua subsunção jurídica.
Como se defendeu também em recente ac. da RC, de 9.3.2016 (disponível em www.dgsi.pt), o princípio ne bis idem, expresso no artigo 29º n.º 5 da CRP proíbe que os factos imputados a um cidadão, num processo penal e em qualquer fase do processo, sejam avaliados mais do que uma vez. A lei é unívoca, ao impedir nova apreciação dos mesmos factos, seja qual for a qualificação jurídica que lhes é atribuída.
Refere-se no citado acórdão que “O caso julgado tem uma função de garantia do cidadão que se traduz na certeza, que se lhe assegura, de não poder voltar a ser incomodado pela prática do mesmo facto - Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, 1992, pág. 226. Ou, como assinala Eduardo Correia, «verdadeiramente, pois, o fundamento central do caso julgado radica numa concessão prática às necessidades de garantir a certeza e a segurança do direito. Ainda mesmo com possível sacrifício da justiça material, quer-se assegurar através dele aos cidadãos a sua paz jurídica, quer-se afastar definitivamente o perigo de decisões condenatórias. Uma adesão à segurança com um eventual detrimento da verdade, eis assim o que está na base do instituto»”.
O que o artigo 29º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, proíbe, é, no fundo, que um mesmo e concreto objecto do processo possa fundar um segundo processo penal.
Referindo-se a Constituição da República apenas a “julgamento”, poderia considerar-se que a questão do caso julgado se coloca apenas relativamente a decisões proferidas nessa fase e não também relativamente às proferidas em fases processuais anteriores. Porém impõem-se a sua aplicação não só à sentença, como a outras decisões finais.
Com efeito, vigorando o princípio da instrumentalidade do processo em relação ao direito substantivo (cfr. F. Dias, Direito processual Penal, ed. de 1974, p. 33) e o princípio da adequação da lei adjectiva ao direito substantivo da proibição do duplo julgamento decorre a impossibilidade de duplo processo com o mesmo objecto.
Até porque, além de pôr em causa elementares princípios de segurança jurídica, constituiria um acto inútil abrir um segundo processo precisamente com o mesmo objecto de um outro, anterior, quer esteja ainda a correr termos quer tenha sido já objecto de decisão final.
Assim, o art. 29º, n.º 5 da CRP, ao proibir o mais - duplo julgamento – proíbe o menos, ou seja, a existência de um duplo processo, uma dupla acusação ou pronúncia do mesmo arguido, pelos mesmos factos.
A proibição de ne bis in idem tem, efectivamente, uma intenção de garantia do arguido exactamente como proibição do «duplo processo» (sobre o mesmo facto) - DAMIÃO DA CUNHA, em O Caso Julgado Parcial, Publicações da UC, 2002, p. 485-486.
Por outro lado, a proibição do duplo julgamento envolve a proibição do “duplo processo”, sendo o duplo julgamento constituído não só pela sentença como pelo despacho de arquivamento que se pronuncie sobre o objecto do processo, rebus sic stantibus.
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A situação descrita nos autos é, precisamente, a da duplicação de processos contra o arguido com base nos mesmos factos (ou da mesma “concreta e hipotética acção jurídico-penal”) e a questão colocada prende-se, por conseguinte, com a legalidade do processo instaurado em 2.º lugar – em Esposende.
Ora, à luz das considerações anteriores, tendo a mesma concreta e hipotética acção jurídico-penal sido novamente participada, dando origem a novo inquérito, estamos perante a violação do princípio constitucional de “ne bis in idem”.
Como salienta o Prof. Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, II, pag. 102), o Código “não considera a busca da verdade como um valor absoluto e, por isso não admite que a verdade seja procurada através de quaisquer meios, mas só através de meios justos, ou seja, de meios legalmente admissíveis”.
“A verdade processual não é absoluta ou ontológica, mas uma verdade judicial, prática e, sobretudo, não é uma verdade obtida a todo o preço mas processualmente válida (cf. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Vol. I, pag.194).
Concluímos, assim do exposto, que existe ilicitude na atuação do Estado – por intermédio dos seus agentes judiciais na administração da justiça -, na instauração de dois processos contra o mesmo arguido, sujeitando-o a dois atos de investigação.
Os pressupostos da responsabilidade civil extra-contratual do Estado são, no entanto, mais vastos, havendo que apurar ainda, além da ilicitude, a culpa do Estado (presumida, nos termos do artº 7º da Lei 67/2007), os danos alegadamente sofridos pelo A, assim como o nexo de causalidade entre a ilicitude e os danos – uma vez que os pressupostos da responsabilidade civil do Estado são os que se conhecem no âmbito do direito das obrigações (artigos 483º e seguintes do Código Civil).
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Para apuramento dos demais pressupostos da responsabilidade extra-contratual do Estado (cujo conhecimento o tribunal recorrido considerou prejudicado), deverão prosseguir os autos.
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Sumário do acórdão:
I – Alegando o A. ter sido submetido a dois processos judiciais, enquanto arguido, para investigação dos mesmos factos, a situação alegada integra o chamado erro in procedendo, previsto no artº 12º do RRCEE, instituído pela Lei nº 67/2007 de 31 de Dezembro;
II – Existe violação do princípio “ne bis in idem”, consagrado no artº 29º nº5 da Constituição da República Portuguesa, se o arguido é submetido a um duplo processo, no qual é investigado pelos mesmos factos duas vezes;
III – Os pressupostos da responsabilidade extra-contratual do Estado, prevista na Lei nº 67/2007 de 31 de Dezembro, são os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, pelo que, além da ilicitude e da culpa, há que averiguar os danos alegadamente sofridos pelo A, assim como o nexo de causalidade entre a ilicitude e os danos.
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DECISÃO:
Pelo exposto, Julga-se procedente a Apelação e revoga-se a decisão recorrida, ordenando-se o prosseguimento dos autos para apuramento dos demais pressupostos da responsabilidade extra-contratual do Estado.
Custas (da Apelação) pela parte vencida a final.
Notifique.
Guimarães, 15.9.2016