Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
822/13.2TBEPS.G1
Relator: MOISÉS SILVA
Descritores: CHEQUE
TÍTULO EXECUTIVO
QUIRÓGRAFO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/06/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - O cheque é um título executivo nos precisos termos em que a Lei Uniforme do Cheque lhe confere tal eficácia
II - O art.º 46.º alínea c) do CPC alargou-lhe a validade executiva, como documento quirógrafo, mas desde que: nele ou no requerimento executivo esteja invocada a relação causal (a menos que para a relação causal seja exigida qualquer formalidade especial ali não cumprida), e, em qualquer caso, apenas no âmbito das relações imediatas em que o cheque é nominativo, excluindo as mediatas ou aquelas em que o cheque é ao portador.
Decisão Texto Integral:

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Processo n.º 822/13.2TBEPS.G1

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO

Apelante: Caixa de Crédito Agrícola Mútuo…, CRL (exequente).
Apelado: L… (executado).

Tribunal Judicial de Esposende – 1.º Juízo

1. Em 19 de novembro de 2013 foi proferido despacho que ao abrigo do disposto no art.º 812.º-E n.º 1, al. a) do CPC, julgou insuficiente o título executivo junto pela exequente e, consequentemente, indeferiu liminarmente o requerimento executivo.
2. Inconformada, veio a exequente interpor recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões que se transcrevem:
1.ª Os cheques dados à execução mostram-se, devida e regularmente, endossados (em branco), sendo a recorrente portadora legítima dos mesmos - vd. art.ºs 15.º, 16.º e 17.º LUCH.
2.ª A recorrente no requerimento executivo alegou a falsidade da "falta ou vício na formação de vontade" invocado pelo executado e, por isso, o tribunal "a quo" nunca poderia dar como certa uma tal habilidade, impedindo o portador legítimo dos cheques de os acionar - vd. art.º 19.º LUC.
3.ª Prescrita a ação cambiária, o portador legítimo dos cheques pode fazê-los valer como meros quirógrafos, desde que alegue a relação subjacente no requerimento executivo, o que sucede nestes autos - vd. al. c) n.º 1 art.º 46.º CPC e al. c) n.º 1 e art.º 703.º NCPC.
Em conformidade com as razões expostas deve conceder-se provimento à apelação, revogando-se o douto despacho proferido e determinando-se o prosseguimento da execução.
3. O executado contra-alegou e concluiu que o despacho recorrido deve ser mantido, conforme jurisprudência que junta e a qual vai no sentido de que o cheque prescrito só vale como documento particular, como quirógrafo, se o exequente alegar a relação material subjacente e estivermos no domínio das relações imediatas, entre o sacador do cheque e o portador imediato.

Colhidos os vistos, em conferência, cumpre decidir.

4. Do objeto do recurso
O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões das alegações formuladas (artigos 660.º n.º 2, 664.º e 684.º n.ºs 2, 3 e 4 do CPC) sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso.
A questão a decidir, decorrente das conclusões da apelante, consiste em apurar se um cheque ao portador, apresentado a pagamento após o prazo legal para o efeito, pode constituir título executivo se a exequente alegar no requerimento executivo a relação subjacente causal da sua emissão.

II - FUNDAMENTAÇÃO

A) Fundamentação de facto
O despacho recorrido:
Melhor compulsados os autos, e tendo em conta o requerimento do aqui executado de 21-10-2013, verificamos que efetivamente existe insuficiência dos títulos executivos apresentados pela exequente.
Senão vejamos: tratam-se de dois cheques ao portador, uma vez que a aqui exequente não aparece identificada nos mesmos, o que significa que não se está no domínio das relações imediatas.
Também inexiste qualquer endosso.
Verifica-se ainda que esses títulos apresentados a pagamento em tempo útil foram devolvidos na compensação com fundamento em “revogação justa causa- falta ou vício na formação da vontade”.
Ora, quando tal sucede só o sacador e não o portador do cheque pode acioná-lo.
Acresce que, de acordo com o art.º 52.º da LUC prescreve no prazo de seis meses a ação do portador contra o sacador a contar do termo do prazo de apresentação, ou seja oito dias seguintes ao da data de emissão do cheque, nos termos do art.º 29.º da citada lei.
Donde, analisando as datas de emissão dos cheques dados à execução a que acresce o referido prazo de oito dias, conclui-se que o portador do cheque, aqui exequente, intentou a presente execução quando já estava manifestamente prescrita a acção cambiária.
O que significa que mesmo a aqui exequente que fosse adquirente por endosso do cheque, o que não sucede in casu nunca poderia usá-lo como título executivo, dado que só é possível alguém socorrer-se do reconhecimento unilateral de dívida (que o cheque também é, diz-se que vale como quirógrafo) nas relações imediatas credor originário/ devedor originário.
Nos termos do art.º 45.º n.º 1 do C. P. C., toda a execução tem por base um título, pela qual se determina o respetivo fim e os respetivos limites. Quer isto significar que é pelo seu conteúdo ou contexto intrínseco que se há-de determinar a espécie de prestação e da execução que lhe corresponde, o quantum ou teor dela e se fixará a legitimidade ativa e passiva para a ação executiva.
A prestação é exigível quando a obrigação se encontra vencida ou o seu vencimento depende, de acordo com estipulação expressa ou com a norma geral supletiva do art.º 771.º n.º 1 do CC, de simples interpelação ao devedor- cfr. Acção Executiva de Lebre de Freitas, 2.ª, p.70.
Em suma, a exequente não juntou documentos com força executiva bastante para poderem dirigir contra o executado L… a sua pretensão, o que conduz à manifesta falta de título executivo, pressuposto indispensável da ação executiva.
Pelo exposto, com o devido respeito, não tem a exequente título executivo suficiente para “executar” o executado uma vez que os títulos juntos não são dotados de força executiva.
A falta ou insuficiência do título constitui fundamento de recusa do requerimento inicial pela secretaria, nos termos do art.º 811.º n.º 1, al. b) do C. P. C. ou constitui motivo para a remessa do processo para despacho liminar pelo agente de execução, nos termos do art.º 812.º-D, al. e) do CPC.
Ao abrigo do disposto no art.º 6.º das disposições transitórias é aplicável aos autos o CPC revogado pela Lei n.º 41/2013, de 26/6.
Não o tendo sido, cumpre nos termos do art.º 812.º-E n.º 1, al. a) do CPC, julgar insuficiente o título executivo junto pela exequente e, consequentemente, indeferir liminarmente o requerimento executivo (fim de transcrição).
Os factos a ter em conta são os que constam da decisão recorrida, das alegações e ainda os seguintes que resultam dos autos:
No requerimento executivo a recorrente alegou, em síntese, o seguinte:
1. O executado emitiu e entregou 2 cheques a favor da sociedade "A…, Lda", para pagamento de animais, produtos e máquinas agrícolas.
2. Essa sociedade depositou esses cheques na conta de depósitos à ordem de que era titular na exequente, para amortizar parte do crédito concedido e disponibilizado pela recorrente em data anterior e no âmbito de um "crédito para descontos pré-datados" e de um "crédito em conta corrente".
3. Com o desconto desses cheques, a recorrente pagava-se, automaticamente, do valor que havia adiantado à referida sociedade.
4. O executado comunicou ao Banco sacado que esses cheques enfermavam de vício de vontade, revogando a ordem de pagamento, e, por isso, tais cheques foram devolvidos no serviço de compensação.
5. A "falta ou vício de vontade" é falsa, uma vez que foi o próprio executado que, de sua livre vontade, emitiu e entregou esses cheques à sociedade A…
6. A comunicação referida em 4) teve apenas o intuito de impedir que o Banco sacado efetuasse o pagamento dos cheques, descontado os valores correspondentes na conta do executado.
7. A exequente é legítima titular dos cheques dados à execução.
Resulta ainda dos autos que está assente o seguinte:
8. Os cheques dados à execução têm datas de 28.12.2004 e 25.02.2005 (fls. 4 e verso).
9. A ação executiva deu entrada em juízo em 09.07.2013 (fls. 8)

B) Fundamentação de direito

A questão a decidir, decorrente das conclusões da apelante, consiste em apurar se um cheque ao portador, apresentado a pagamento após o prazo legal para o efeito, pode constituir título executivo se a exequente alegar no requerimento executivo a relação subjacente causal da sua emissão.
Prescreve o art.º 46.º n.º 1 alínea d) do CPC que à execução podem servir de base os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.
A Lei Uniforme relativa ao Cheque (LUC) prescreve que o cheque é título executivo quando for apresentado a pagamento no prazo de oito dias, começando a contar-se esse prazo a partir do dia indicado no cheque como data de emissão (art.º 29.º - parágrafos I e IV) e a ação venha a ser instaurada no prazo de seis meses contados do termo do prazo para a sua apresentação, sob pena de prescrição (art.º 52.º da LUC).
Está provado que os cheques foram emitidos em 28.12.2004 e 25.02.2005 e apresentados a pagamento em 30 de dezembro de 2004 e 01 de março de 2005, respetivamente.
Resulta claro que o executado foi acionado judicialmente passados vários anos após o termo do prazo de oito dias para pagamento.
Daí que não existem dúvidas de que estamos em presença de cheques prescritos, que deixam de valer como títulos cambiários, perdendo as caraterísticas que a autonomia, abstração e literalidade lhes conferiam.
Não podem, pois, valer como títulos executivos ao abrigo do disposto no art.º 46.º n.º 1 alínea d) do CPC.
Uma vez prescrita a ação cambiária, o cheque passa a ter o valor de um documento particular, como quirógrafo, e não afeta a obrigação fundamental (1).
Argumenta a apelante que o cheque pode ainda valer como título executivo ao abrigo da alínea c) do último artigo citado.
A doutrina e a jurisprudência maioritária entendem que o cheque prescrito pode valer como mero quirógrafo, documento assinado pelo devedor, que importe o reconhecimento de constituição de obrigações pecuniárias, embora tenha perdido as caraterísticas da autonomia, literalidade e abstração intrínsecos dos títulos cambiários - nada no título indica a relação fundamental ou causal da emissão do próprio cheque (como documento), por forma que o executado possa conhecer essa causa em ordem a uma conveniente defesa – pode ainda assim ser aproveitado como título executivo se o exequente alegou no requerimento executivo a relação fundamental ou causal da emissão do próprio cheque.
A apelante alega que o cheque foi entregue pelo executado a uma sociedade para pagamento de animais, produtos e máquinas agrícolas e que essa sociedade depositou esses cheques na conta de depósitos à ordem de que era titular na exequente, para amortizar parte do crédito concedido e disponibilizado pela recorrente em data anterior e no âmbito de um "crédito para descontos pré-datados" e de um "crédito em conta corrente" e com o desconto desses cheques, a recorrente pagava-se, automaticamente, do valor que havia adiantado à referida sociedade e que instaurou a execução em causa alegando que é legítima portadora do cheque.
Estamos, nesta hipótese, fora da relação cambiária, em virtude do cheque prescrito ter deixado de valer como tal, mas entra-se na valoração do documento assinado pelo devedor para valer como título executivo onde está constituída ou reconhecida uma obrigação pecuniária, e que a apresentante do referido documento indica essa causa na petição.
Todavia, o cheque foi emitido em nome de uma sociedade e o exequente é um portador mediato, pelo que não se pode falar em reconhecimento de dívida em relação à exequente, uma vez que o seu nome não consta nos títulos dados à execução (2).
A invocação da relação subjacente só seria suscetível de conferir eficácia executiva aos cheques se estes contivessem o nome da pessoa a favor de quem foram emitidos.
Ponderando a “ratio legis” e os interesses em conflito, a lei manteve os cheques como títulos executivos nos precisos termos em que a respetiva lei reguladora lhes confere tal eficácia e alargou-lhes a validade executiva como documento quirógrafo, desde que neles ou no requerimento executivo esteja invocada a relação causal, a menos que para a relação causal seja exigida qualquer formalidade especial ali não cumprida, e, em qualquer caso, apenas no âmbito das relações imediatas em que o cheque é nominativo, excluindo as mediatas ou aquelas em que o cheque é ao portador, como ocorre no caso dos autos.
Nestes termos, entendemos que foi efetuada correta interpretação e aplicação do direito, pelo que improcede a apelação e se mantém o despacho recorrido.

Sumário: o cheque é um título executivo nos precisos termos em que a Lei Uniforme do Cheque lhe confere tal eficácia e o art.º 46.º alínea c) do CPC alargou-lhe a validade executiva, como documento quirógrafo, desde que nele ou no requerimento executivo esteja invocada a relação causal, a menos que para a relação causal seja exigida qualquer formalidade especial ali não cumprida, e, em qualquer caso, apenas no âmbito das relações imediatas em que o cheque é nominativo, excluindo as mediatas ou aquelas em que o cheque é ao portador.

III – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação e manter o despacho recorrido.
Custas pela apelante.
Notifique.
(Acórdão elaborado e integralmente revisto pelo relator).

Guimarães, 06 de março de 2014.

Moisés Silva (relator)

Jorge Teixeira

Manuel Bargado

__________________________
(1) Serra, Vaz, RLJ, 101.º, p. 364.
(2) Geraldes, Abrantes, Themis, Revista da Faculdade de Direito da UNL, ano IV, n.º 7, A Reforma da Ação Executiva, 2003, p. 64, nota 65; Ac. RG, de 31.01.2013, processo n.º 210/11.5TBAMR-A.G1 e Ac. RG, de 28.02.2013, processo n.º 2323/12.7TBBRG-A.G1, em que foi relator o ora relator e adjunto o aqui 2.º adjunto.