Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
228/19.0GAVVD-A.G1
Relator: PAULO CORREIA SERAFIM
Descritores: PERDA A FAVOR DO ESTADO DE ARMAS DE FOGO
AUSÊNCIA DE VERIFICAÇÃO DA PRÁTICA DE UM FACTO ILÍCITO E TÍPICO
RENOVAÇÃO DE LICENÇA DE USO E PORTE DE ARMA DE FOGO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - A declaração de perda de instrumentos prevista no art. 109º do CP pressupõe a verificação de dois pressupostos:
- Um pressuposto formal, impondo a utilização dos instrumentos na prática de um facto ilícito e típico, não sendo necessário que o crime se tenha consumado, nem que seja imputável ao arguido;
- Um pressuposto material, assente na perigosidade dos objetos, apreciada pelo julgador casuisticamente, atendendo à natureza intrínseca daqueles, ou seja, à sua especifica e conatural utilidade social, de modo a aquilatar se se mostram especialmente vocacionados para a prática criminosa, e/ou às “circunstâncias do caso”, relevando para este efeito, entre o mais, a relação em que se encontram os instrumentos com a pessoa que os possui ou detém e a natureza ocasional ou plúrima da ação criminosa.
II – In casu, soçobra desde logo o primeiro dos sobreditos pressupostos da perda, na medida em que não foi minimamente indiciado que o arguido, no âmbito de um denunciado crime de violência doméstica cujo procedimento terminou nos autos com o arquivamento, ou no imputado cometimento de um crime de ofensa à integridade física simples, cujo procedimento criminal veio a ser declarado extinto em audiência de julgamento, após homologação da desistência de queixa formulada pela queixosa, se tenha socorrido de arma de fogo para ameaçar ou atentar contra a integridade física ou a vida da ofendida ou que que alguma vez tivesse demonstrado intenção de o fazer.
III – Acresce que as armas de fogo pertencentes ao arguido que foram declaradas a favor do Estado pelo Tribunal a quo, tratando-se de duas espingardas de caça (armas de fogo longas), integrantes da Classe D, não são objetos em si mesmo perigosos, pois que a sua eventual perigosidade deriva da utilização que em concreto deles se faça. Aliás, facilmente se descortinam razões de cariz recreativo (por exemplo, a caça), socialmente toleradas, que podem justificar a sua aquisição e utilização, pelo que nunca se poderia considerar tais objetos como que “predestinados” ao cometimento de crimes. Tanto mais que o arguido é titular de carta de caçador e as preditas armas mostravam-se devidamente legalizadas à data da apreensão, pois que o seu possuidor, nessa altura, era titular da necessária licença de uso e porte de arma (e as armas encontravam-se manifestadas).
IV – Sucede que, as armas de fogo em questão não podem ser restituídas ao requerente em virtude de o mesmo não possuir, atualmente, licença de uso e porte de armas que o habitem legalmente a detê-las. Não se encontrando o requerente autorizado a deter aquelas armas, por falta de licença de uso e porte válida, a detenção por si daquelas armas é ilícita, e, como tal, não podia ser promovida, propiciada, pelo próprio tribunal (cf. arts. 8º, nº2, al. a) e 86º, nº1, al. c), da Lei nº 5/2006, de 23.02 - RJAM).
V - Contudo, cumpre ter presente o concreto circunstancialismo procedimental ocorrido nos autos, o qual permite afirmar que o Tribunal recorrido desconsiderou, injustificadamente, a comprovada ausência de responsabilidade do arguido, pelo menos, exclusiva, no retardamento da possível e previsivelmente viável obtenção da renovação da sua licença de uso e porte de arma junto das autoridades competentes para a sua emissão, desse modo frustrando as legítimas expetativas do recorrente em lograr a restituição das armas apreendidas nos autos.
VI – Não se olvida que o Tribunal a quo concedeu ao ora recorrente a possibilidade de, no prazo fixado, comprovar que possuía licença de uso e porte de arma válida. Todavia, tendo ele procedido diligentemente ao peticionar a renovação da licença antes de expirado o seu tempo de vigência, o respetivo procedimento, à data da decisão recorrida, encontrava-se ainda pendente a aguardar o resultado deste processo judicial, sem que o Tribunal tivesse comunicado (pelo menos atempadamente), como devia, ao competente NAE da PSP, a decisão que pôs termo ao processo, com cópia da mesma e da acusação pública deduzida, donde ressumava a não utilização de armas no alegado cometimento do imputado crime.
VII – Assim, não se mostra legalmente justificada a decisão que declarou perdidas a favor do Estado as armas de fogo apreendidas nos autos, cumprindo revogar o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que determine que os autos aguardem – pelo tempo que for entendido como adequado – pela decisão do procedimento administrativo concernente à requerida renovação da licença de uso e porte de arma, de que é titular o recorrente, mantendo-se até esse momento a apreensão das armas à ordem dos autos, informando-se o NAE da PSP e solicitando-lhe a oportuna comunicação da decisão que for tomada, decidindo-se então nos autos pela restituição das armas ao seu proprietário ou pela declaração da perda a favor do Estado.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – RELATÓRIO:
           
I.1 No âmbito do Processo Comum (Tribunal Singular) nº 228/19...., a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo Local Criminal ..., no dia 30.04.2022, foi proferido o seguinte despacho (referência ...18) - transcrição:
“AA veio requerer a entrega das armas apreendidas à ordem dos autos, tendo o Ministério Público promovido que sejam os mesmos declarados perdidos a favor do Estado.
Notificado o requerente para juntar comprovativo de ter obtido licença que lhe permita deter as armas, não o fez.
Sob a epígrafe de perda de instrumentos e produtos, dispõe o artigo 109º, nº 1 do Código Penal que são declarados perdidos a favor do Estado os objetos que tenham servido para a prática de um facto ilícito típico, que estavam destinados a servir a prática de um facto ilícito típico ou os que foram produzidos por facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou circunstâncias do caso ponham em perigo a segurança das pessoas ou a moral ou a ordem pública ou ofereçam sérios riscos de serem utilizados para o cometimento de novos crimes.
Ora, os objetos em causa põem em perigo a segurança das pessoas, atenta a sua natureza e não podem ser devolvidos, dado que o seu possuidor não tem licença que lhe permita deter tais objetos - neste sentido se pronunciou o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24-05-2017, consultado no endereço eletrónico da dgsi:
http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/2c7aa2a0406804fc8025813a004b4e82?OpenDocument
Pelo exposto, determina-se que as armas apreendidas sejam declaradas perdidas a favor do Estado, ao abrigo do disposto no artigo 109.º, n.º 1 e n.º 2, do Código Penal.
Notifique o Ministério Público e o arguido e entregue os objetos à PSP nos termos e para o efeito do artigo 78.º da Lei n.º 5/2006, de 23-2.
*
Atenta a decisão final proferida no processo, determino o levantamento da apreensão sobre a carta de caçador de folhas 111.
Notifique, sendo o arguido nos termos do artigo 186.º do Código de Processo Penal.”

I.2 Inconformado com tal decisão, dela veio o arguido AA interpor o presente recurso, que, após na motivação culmina com as seguintes conclusões e petitório (fls. 343 a 350/fls. 42 a 49 da certidão para instrução do recurso)[1] - transcrição:
           
“a) O arguido concluí discordando do despacho proferido pelo tribunal a quo que determinou a perda das suas armas de fogo a favor do estado, porque é nulo por falta de fundamentação.
b) Conclui-se que o tribunal a quo solicitou, mal, a apresentação ao arguido da licença de uso e porte de arma que bem sabia que o mesmo não tinha em virtude de o processo de renovação ter ficado e decidiu mal ao determinar que as armas apreendidas fossem declaradas perdidas a favor do Estado, ao abrigo do disposto no artigo 109.º, n.º 1 e n.º 2, do Código Penal errou.
c) Resulta dos arts 374º, nº 3, al. c) e 186.º do CPP que a sentença é o momento e lugar para decidir do destino dos objectos apreendidos no processo.
d) Conclui-se que nos presentes autos na sentença não foi proferida ali tal decisão, e tratando-se de matéria que substancialmente não integra o objecto do processo no que respeita ao seu núcleo essencial, a lei não proíbe que o perdimento de objectos apreendidos não possa ser decretado posteriormente, assegurado que seja o contraditório e o direito ao recurso.
e) Conclui-se que o douto despacho não apresenta uma fundamentação de facto, como estipula o número 5 do artigo 97º do Código de Processo Penal.
f) Conclui-se que o tribunal a quo no douto despacho não identificou de forma circunstanciada os factos e as circunstâncias com base nas quais ajuizou e concluiu para serem declarados os objectos apreendidos e examinados nos autos, perdidos a favor do Estado, limitando-se a reproduzir o texto do nº 1 do artigo 109º do Código Penal e a invocar o nº2 do referido artigo,
g) Conclui-se assim violando o disposto no número 5 do artigo 97º do Código Processo Penal não enunciando quaisquer motivos de facto que permitissem subsumir ao caso concreto o disposto no artigo 109º do código Penal,
h) Conclui-se que tal falta de fundamentação de facto do despacho determina a sua nulidade.
i) Conclui-se ainda que, tal decisão viola o Principio do processo equitativo, e do ponto de vista da justiça material, a decisão do douto despacho apresenta-se desnecessária, desadequada e desproporcional,
j) O despacho ora em crise viola os artigos 186. ° e 374. °, nº 3, alínea c) do Código de Processo Penal.
k) Conclui-se que não está verificado o pressuposto material exigido pelo art. 109° do Código Penal para a perda de bens aí regulada.
l) Não se pode admitir tal conclusão, pois com o devido respeito, é completamente exagerada e desadequada ao caso em concreto.
m) Assim, os objectos apreendidos nos presentes autos devem ser restituídos ao Recorrente nos termos do disposto no artigo 186º do Código Processo Penal.
n) Uma vez que o douto despacho que declarou os bens apreendidos perdidos a favor do Estado violou o disposto no artigo 109 º do Código Penal e o artigo 186º do Código Processo Penal.
Termos em que e nos demais de Direito, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele ser revogado o despacho que agora se recorre e ser o mesmo substituindo por outro que determine a restituição ao Recorrente dos objectos apreendidos nos termos do disposto no artigo 186º do Código Processo nos presentes autos.
Decidindo deste modo, farão Vossas Excelências, aliás como sempre, um acto de Inteira e Sã JUSTIÇA”
      
Na primeira instância, a Digna Magistrada do Ministério Público, notificada do despacho de admissão do recurso apresentado pelo arguido, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, apresentou douta resposta em que pugna pela improcedência do recurso e consequente manutenção da decisão recorrida (fls. 355 a 358/fls. 54 a 57 da certidão para instrução do recurso).
Formulou as seguintes conclusões:
A) “No caso vertente, cabe atender, desde logo, ao teor do invocado artigo 97º, nº5, do Código de Processo Penal, em sede do qual se refere que “os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”;
B) Visando “a fundamentação evidenciar as razões da bondade da decisão e dar satisfação á exigência da sua total transparência, facultando aos seus destinatário imediatos e á comunidade compreensão dos juízos de valor e de apreciação levados a cabo pelo julgador, e viabilizando o controlo da actividade decisória pelo tribunal de recurso designadamente, no que respeita á validade da prova, á sua valoração, e á impugnação da matéria de facto, não pode esquecer-se que não existem fórmulas sacramentais para a sua explicitação. Ela variará, necessariamente, em função, designadamente, do maior ou menor poder de síntese do julgador e da melhor ou menos boa capacidade de expressão do mesmo, bastando-se a lei processual com uma possibilidade efectiva de compreensão do raciocínio exposto”;
C) Contrariamente ao referido pelo arguido e ora recorrente, consideramos que o despacho recorrido se encontra devidamente fundamentado, em termos de facto e de direito. Tendo em sede do mesmo se referido que, por um lado, “notificado o arguido/requerente para juntar comprovativo de ter obtido licença que lhe permita deter as armas, não o fez” e, por outro, que “os objectos em causa põem em perigo a segurança das pessoas, atenta a sua natureza e não podem ser devolvidos, dado que o seu possuidor não tem licença que lhe permita deter tais objectos”;
D) Resultando, de tal despacho, claramente justificada (e como tal fundamentada) – em termos fáticos-, a decisão de declarar a perda a favor do Estado das mencionadas armas de fogo que se encontravam apreendidas à ordem dos autos. A saber, a circunstância de aquando da sua prolação, o arguido e ora recorrente já não possuir qualquer licença de uso e porte de arma de fogo e/ou de detenção no domicílio que lhe permitisse deter na sua posse tais armas de fogo, sendo certo que tal devolução sempre comportaria a facilitação ao arguido e ora recorrente, da prática de um ilícito criminal, decorrente da detenção, ilegítima, de armas de fogo, subsumíveis ao tipo legal de crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86º, nº1, da Lei nº5/2006, de 23 de Fevereiro;
E) Como tal, tendo o citado quadro fáctico por subjacente, encontrava-se legalmente justificada – nos termos e para os efeitos do artigo 109º, nº1 e 2, do Código Penal-, a declaração de perda a favor do Estado das aludidas armas de fogo e, por conseguinte, o despacho recorrido. Isto porquanto tal como salientado pelo despacho recorrido (citando para o efeito o douto aresto da Relação do Porto de 24 de Maio de 2017) “os objectos em causa põem em perigo a segurança das pessoas, atenta a sua natureza e não podem ser devolvidos, dado que o seu possuidor não tem licença que lhe permita deter tais objectos”;
Consequentemente, o despacho recorrido limitou-se, correctamente, a efectuar uma estrita aplicação do regime legal vigente, devendo, por conseguinte, ser o mesmo confirmado;”

I.3 Neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, emitiu douto parecer em que, diferentemente da posição assumida pelo Ministério Público em primeira instância, sustenta que o recurso do arguido merece provimento (referência ...41).[2]
Cumprido o disposto no Artº 417º, nº 2, do C. P. Penal, o arguido não apresentou resposta ao sobredito parecer.
Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir.
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II – ÂMBITO OBJETIVO DO RECURSO (Thema decidendum):

É hoje pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do Código de Processo Penal (ulteriormente designado, abreviadamente, CPP)[3].

Assim sendo, no caso vertente, as questões que importa resolver são:
- Saber se o despacho recorrido enferma de nulidade por falta de fundamentação;
- Saber se, no caso concreto, se verificam os pressupostos de que o art. 109º do Código Penal faz depender a declaração de perda das armas de fogo apreendidas nos autos ao arguido.
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III – APRECIAÇÃO:    
           
III.1 – Resenha dos atos processuais praticados nos autos cujo teor revela para a decisão das questões suscitadas no recurso ora em apreciação [conforme sinopse já operada pela Exma. PGA no douto parecer que emitiu nos autos, e que retrata fielmente o respetivo processado – cfr. certidão para instrução do recurso, com referência ...44]:

1) Os presentes autos foram iniciados com um auto de noticia da GNR, de 4 de Julho de 2019, dando conta da eventual prática do crime de violência doméstica, de que era vitima BB, e autor, o arguido AA.
2) Em 17 de Dezembro de 2019, no Posto da GNR onde se procedia ao seu interrogatório, foi o arguido questionado sobre se entregava voluntariamente as armas de caça de que era possuidor e respectivos documentos, ao que o mesmo anuiu.
3) Nessa sequência, nessa mesma data, o arguido entregou as seguintes armas no Posto da GNR ...;
- 1 arma de fogo, uma de tipo caçadeira, de marca ..., de calibre 12mm, com o n.º de série ...81; 1 arma de fogo de tipo caçadeira, de marca ..., de calibre 12mm, com o n.º de série ...91.
4) Mais foram entregues pelo arguido os documentos referentes ao manifesto de ambas as armas e a sua carta de caçador.
5) Por despacho de 19 de Dezembro de 2019, o Ministério Público validou a apreensão efetuada, nos termos do artigo 178.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, determinando que as armas permanecessem na PSP nos termos do artigo 80.º, n.º 2, da Lei 5/2006, na sua atual redação.
6) Em 16 de Janeiro de 2020, o Núcleo de Armas e Explosivos da PSP de ... remeteu aos autos e-mail informando que o arguido é titular da licença de uso e porte de arma n.º 36431/2009, válida até 16 de Janeiro de 2020.
7) Em 6 de Julho de 2020, o Núcleo de Armas e Explosivos da PSP de ... remeteu aos autos e-mail informando que o arguido requerera, em 7 de Janeiro de 2020, a renovação da licença de uso e porte de arma n.º 36431/2009, estando o processo a aguardar o resultado do Processo n.º 228/19.... (ou seja, dos presentes autos).
8) Em 27 de Junho de 2020 foi proferido despacho final no inquérito tendo sido proferido despacho de arquivamento relativamente ao crime de violência doméstica e deduzida acusação contra o arguido pelo crime de ofensa à integridade física, p. e p. no art.º 143.º n.º 1 do Código Penal.
9) De tal despacho decorre que não foi imputada ao arguido, por qualquer forma e em quaisquer circunstâncias, o uso das armas de fogo apreendidas nos autos.
10) No âmbito da audiência de julgamento realizada em 11 de Fevereiro de 2022, a ofendida desistiu da queixa apresentada, sendo a mesma homologada e o procedimento criminal declarado extinto.
11) O arguido, por requerimento de 11 de Fevereiro de 2022, veio requerer a entrega das armas apreendidas à ordem dos autos,
12) Perante tal requerimento, o M. P., tendo em vista a aferição do requerimento apresentado pelo arguido, promoveu que se oficiasse ao Núcleo de Armas e Explosivos da PSP de ... e se solicitasse informação sobre se, actualmente, o mesmo era titular de alguma licença de uso e porte de arma de fogo ou de detenção no domicílio válida.
13) O que o Mmº Juiz ordenou;
14) Em 14 de Março de 2022, o NAEPSP informou que, em nome do arguido, não foram encontrados licenciamentos.
15) Em 14 de Março de 2022, o M. P. promoveu o seguinte:
De acordo com o artigo 86º, n.º1, c), da Lei n.º 5/2006 de 23 de Fevereiro, as mesmas, atenta a ausência de qualquer licença por parte do requerente AA. decorre da informação antecedente do Núcleo de Armas e Explosivos da PSP de ...), tratam-se de armas proibidas, sendo por conseguinte a sua detenção ilegal.
Para além do exposto, a manutenção da apreensão da mesma mostra-se já inútil, atento o arquivamento dos presentes autos.
Por seu turno, atenta a natureza ilícita das armas em questão e à ínsita perigosidade das mesmas, existe assim o sério risco de que seja utilizada para o cometimento de factos ilícitos típicos, nos termos do artigo 109º do Código Penal
Consequentemente, nos termos do disposto nos artigos 109º, nºs. 1 a 3 do Código Penal e 268º, nº 1, al. e) do Código de Processo Penal, desde já promovo o indeferimento do requerido por AA e, que, consequentemente:
- Pelos fundamentos acima expostos, se declare a perda a favor do estado de tais objectos e se determine a subsequente manutenção do depósito das armas supra referidas à guarda da P.S.P., a qual promoverá, posteriormente, o seu destino (artigo 109º, n.º 3, parte final, do Código Penal e artigo 78º, n.º1 da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro).
16) Em 24 de Março de 2022, o Mmª Juiz ordenou se notificasse o arguido, para, no prazo de trinta dias, juntar comprovativo da obtenção de licença que lhe permita deter as armas apreendidas.
17) Em 7 de Abril de 2022, o arguido apresentou requerimento onde invocou que:
…sempre foi titular e portador de licença de uso de porte de arma de caça (vulgo categorias C e D).
Que tal licença só não foi renovada na devida altura porque os presentes autos começaram por ser autuado como violência doméstica, o que determinou a apreensão daa armas de fogo quer possuía devidamente legais, como ainda determinou a suspensão da renovação,
Que no entanto se encontra em curso e que só aguardava o fim dos presentes autos. Vide docs 1,2 e 3. E que assim, cumpre só a PSP emitir a renovação da respetiva licença e o arguido já estará em condições de proceder ao levantamento das armas de que é proprietário.
18) Na sequência de tal requerimento, em 30 de Abril de 2022, foi proferido o despacho recorrido.
19) Em 2 de Junho de 2022, o NUAPSP dirigiu e-mail ao processo solicitando informação sobre o ponto de situação do Processo N...: 228/19...., em virtude de o requerente (do processo de renovação de LUPA) AA, nascido a .../.../1967, titular do Cartão de Cidadão n.º ..., ter associado ao seu historial interveniente neste processo. Mais se solicitou que caso já tenha havido decisão, fosse fornecida cópia da mesma para melhor esclarecimento e decisão.

III.2 – Análise das concretas questões suscitadas no recurso formulado pelo requerente AA:
 
III.2.1 – Nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentação:
Defende o recorrente que o despacho recorrido é nulo, por falta de fundamentação, pois que não apresenta uma fundamentação de facto, como estipula o nº5 do artigo 97º do Código de Processo Penal. Assim, aduz, o tribunal a quo não identificou de forma circunstanciada os factos e as circunstâncias com base nas quais ajuizou e concluiu para serem declarados perdidos a favor do Estado os objetos apreendidos e examinados nos autos, limitando-se a reproduzir o texto do nº 1 do artigo 109º do Código Penal e a invocar o nº2 do referido artigo.
Vejamos:

Conforme o estatuído no art. 97º, nºs 1, alínea b), e 5, do CPP, os despachos judiciais decisórios, que, não sendo de mero expediente, conheçam de qualquer questão interlocutória, devem ser sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão. 
Assim, a lei ordinária portuguesa, como corolário do disposto no art. 205º, nº1, da Constituição da República Portuguesa, consagra expressamente o dever de fundamentação dos atos decisórios dos tribunais.
Resumidamente, tal dever de fundamentação impõe ao decisor que explicite os motivos factuais e jurídicos que suportam o raciocínio subjacente à decisão tomada, assim permitindo aos destinatários da mesma apreenderem as razões que, do ponto de vista do tribunal, o conduziram a tal decisão, e, em caso de recurso, permitindo ao Tribunal ad quem sindicar o mérito do decidido por aferência do ajuste ou desacerto dos argumentos esgrimidos.
A motivação não tem de ser extensa, exaustiva e pormenorizada. Basta que seja razoável, aceitável, do ponto de vista do normal e da suficiência, o que sucederá sempre que do seu conteúdo se consiga extrair as razões subjacentes à decisão tomada pelo julgador.
No caso vertente, entendemos que, contrariamente ao defendido pelo recorrente, o Tribunal a quo fundamentou no despacho recorrido a decisão de declarar perdidas a favor do Estado as armas pertencentes ao então arguido apreendidas nos autos.
Com efeito, ressuma do teor da decisão recorrida – integralmente transcrita no Ponto I do presente aresto –, que o Tribunal a quo, convocando o preceituado no art. 109º, nºs 1 e 2 do Código Penal, estribou a deliberação tomada no facto de o requerente, não obstante ter sido notificado para juntar comprovativo de ter obtido licença que lhe permita deter as armas, não o fez e, bem assim, na consideração operada de que os objetos em causa põem em perigo a segurança das pessoas, atenta a sua natureza, e não podem ser devolvidos, dado que o seu possuidor não tem licença que os permita deter.
Ora, a discordância jurídica manifestada pelo recorrente é questão diversa da suscitada invalidade por falta de fundamentação do despacho recorrido, contendendo antes com o mérito da decisão proferida.  
Não obstante ser sucinta, a motivação aduzida pelo Tribunal a quo apresenta-se como suficiente para que se compreendam as razões de facto e de direito subjacentes à decisão prolatada. Se tal decisão encontra ou não arrimo legal é questão decidendi distinta, que infra se abordará.      
Inexiste, destarte, a invocada nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentação.

III.2.2 – Sobre o mérito da decisão recorrida:

O recorrente funda, em síntese, a sua discordância face ao decidido pelo Tribunal a quo no despacho proferido a 30.04.2022, que determinou a perda a favor do Estado das armas apreendidas nos autos, propriedade daquele, por, no seu entendimento, não devia ter solicitado ao arguido a apresentação da licença de uso e porte de arma pois bem sabia que o mesmo não a tinha em virtude de o processo de renovação ter ficado suspenso a aguardar a decisão dos presentes autos, e decidiu mal ao determinar que as armas apreendidas fossem declaradas perdidas a favor do Estado, ao abrigo do disposto no artigo 109.º, n.º 1 e n.º 2, do Código Penal, por não se verificarem os respetivos requisitos de que depende tal perda.

Apreciando:  

Estatui o art. 186º, nº2, do Código de Processo Penal, que “Logo que transitar em julgado a sentença, os animais as coisas ou os objetos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado.”
Preceitua o art. 109º do Código Penal (CP) – redação da epígrafe e do art. introduzida pela Lei nº 30/2017, de 30.05, com entrada em vigora a 31.05.2017:

“Perda de instrumentos
1 - São declarados perdidos a favor do Estado os instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico todos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática.
2 - O disposto no número anterior tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz.
3 - Se os instrumentos referidos no n.º 1 não puderem ser apropriados em espécie, a perda pode ser substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A.
4 - Se a lei não fixar destino especial aos instrumentos perdidos nos termos dos números anteriores, pode o juiz ordenar que sejam total ou parcialmente destruídos ou postos fora do comércio.”.
A perda de bens ou de objetos relacionados com o crime tem uma natureza preventiva[4], isto é, sempre que aqueles bens coloquem “em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou [ofereçam] sério risco de serem utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos” (art. 109.º, do CP) devem ser declarados perdidos a favor do Estado. O que pode ocorrer independentemente da punição de uma pessoa — nos termos do art. 109.º, n.º 2, do CP, a perda de instrumentos e produtos do crime pode ter “lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto”: casos em que pode ser declarada ainda que tenha havido despacho de arquivamento, por exemplo, ou ainda que tenha ocorrido uma absolvição.
Como menciona Conde Correia, «o que está em causa é remover um perigo, não aplicar uma sanção qualquer. Se não fosse assim, seria (...) uma clara violação da presunção de inocência (artigo 32.º, n.º 2, da CRP), por aplicação de uma determinada sanção penal, sem a prévia verificação da culpabilidade»[5].
Quanto à natureza deste instituto, também Paulo Pinto de Albuquerque [ob. cit., p. 310] observa que a perda de objetos «Não se trata de uma pena acessória, porque não tem qualquer relação com a culpa do agente, nem de um efeito da condenação, porque não depende sequer da existência de uma condenação. Embora não sendo também uma medida de segurança, pois não se baseia na perigosidade do agente, a perda de objetos é uma medida sancionatória análoga à medida de segurança, pois baseia-se na necessidade de prevenção do perigo da prática de crimes decorrente do objeto».
Esta perigosidade das coisas, que fundamenta a perda de bens a favor do Estado, deve ser avaliada objetivamente, a partir da perigosidade dos bens em si, ou subjetivamente, sempre que sejam considerados perigosos tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, atenta, por exemplo, a utilização que deles se fez ou fará.
 Apelando, uma vez mais, às palavras de Conde Correia [ibidem, pp. 70-72]:
«As circunstâncias do caso concreto complementam a natureza objetiva da coisa, cerceando ou delimitando ainda mais o campo da aplicação da norma. O critério utilizado pelo legislador nacional é, assim, um critério misto, que parte das características objetivas da coisa, mas não esquece a natureza específica do caso concreto. Os dois critérios conjugam-se e articulam-se por forma a definir rigorosamente o caráter perigoso da coisa e a limitar os casos em que ela pode ser, por esta via preventiva, confiscada.»
Ademais, a lei exige que os bens “[tenham] servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por estes tiverem sido produzidos” (art. 109.º, n.º 1, do CP). Isto é, torna-se necessário que o material ou os utensílios tenham sido utilizados para a realização de uma conduta que seja ilícita e típica — «ou, dito de forma explícita: torna-se necessária a verificação de todos os elementos de que depende a existência de um crime, com ressalva dos requisitos relativos à culpa do agente» (Figueiredo Dias, ob. cit., § 985, p. 619).
Em suma, estamos perante um instituto que depende de uma perigosidade dos bens, objetiva ou subjetiva, presente ou futura, e que não depende da culpa do agente. E depende da prática de um facto típico e ilícito.
Havendo a declaração de perda, esta tem uma «eficácia real, com transferência para o Estado da propriedade, sobre a coisa, no momento em que transite em julgado a decisão»[6].
Na jurisprudência, acolhendo, integralmente, o entendimento supra exposto, vide, a título exemplificativo, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 25.03.2019, processo nº 182/15.7GAMLG-B.G1, e de 17.05.2010, processo nº 3/08.7FIVCT.G1; do Tribunal da Relação do Porto de 25.03.2015, processo 1202/11.0JAPRT-A.P1; do Tribunal da Relação de Coimbra de 18.03.2015, processo nº 28/14.3GBSTR-A.C1; do Tribunal da Relação de Évora de 26.02.2013, processo nº 99/11.4EAEVR-A.E1, e de 07.04.2015, processo nº 8/14.9GDPTG.E1; do Tribunal da Relação de Lisboa de 31.03.2004, processo nº 903/2004-3, todos disponíveis em www.dgsi.pt, e do TRL de 11.02.2014, este em CJ, 2014, TI, p. 146.
Ressuma do exposto que a declaração de perda de instrumentos prevista no art. 109º do CP pressupõe a verificação de dois pressupostos:
- Um pressuposto formal, impondo a utilização dos instrumentos na prática de um facto ilícito e típico, não sendo necessário que o crime se tenha consumado, nem que seja imputável ao arguido;
- Um pressuposto material, assente na perigosidade dos objetos[7], apreciada pelo julgador casuisticamente, atendendo à natureza intrínseca daqueles, ou seja, à sua especifica e conatural utilidade social, de modo a aquilatar se se mostram especialmente vocacionados para a prática criminosa[8], e/ou às “circunstâncias do caso”, relevando para este efeito, entre o mais, a relação em que se encontram os instrumentos com a pessoa que os possui ou detém e a natureza ocasional ou plúrima da ação criminosa.  
No caso sub judicio, a Mma. Juiz fundamentou a decisão recorrida, genericamente, nas circunstâncias de o recorrente não ter comprovado dispor, à data, de licença de uso e porte das armas que lhe foram apreendidas, e de tais objetos colocarem em perigo a segurança das pessoas, atenta a sua natureza, concluindo que os mesmos não podem ser devolvidos por o seu possuidor não ter licença que os permita deter.
Entendemos, porém, que o despacho recorrido que, ao abrigo do disposto no art. 109º, nºs 1 e 2 do CP, declarou perdidas a favor do Estado as armas de fogo apreendidas nos autos ao arguido, não se pode manter, por carecer de fundamento legal que o sustente.
Com efeito, como infra exposto, não está demonstrado que os objetos em causa serviram ou estavam destinados a servir para a prática de facto ilícito típico e não se vislumbra perigosidade intrínseca, inerente a esses objetos, quer pela sua natureza quer pelas circunstâncias do caso, suscetível de colocar em risco a segurança das pessoas e/ou de potenciamento do cometimento de novos factos ilícitos típicos. 
As armas de fogo pertencentes ao arguido que foram declaradas a favor do Estado pelo Tribunal a quo tratam-se de duas espingardas de caça (armas de fogo longas), integrantes da Classe D, e mostravam-se devidamente legalizadas à data da apreensão, pois que o seu possuidor, nessa altura, era titular da necessária licença de uso e porte de arma (as armas encontravam-se manifestadas e o arguido possui carta de caçador) – cfr. auto de apreensão de fls. 109 e 110 – junto a fls. 2 e 3 da certidão para instrução do recurso – e informação prestada a 16.01.2020 pelo Núcleo de Armas e Explosivos da PSP de ....
In casu, soçobra desde logo o primeiro dos sobreditos pressupostos da perda, na medida em que não foi minimamente indiciado que o arguido, no âmbito de um denunciado crime de violência doméstica cujo procedimento terminou nos autos pelo arquivamento[9], ou no imputado cometimento de um crime de ofensa à integridade física simples, cujo procedimento criminal veio a ser declarado extinto, em audiência de julgamento, após homologação da desistência de queixa formulada pela queixosa, se tenha socorrido de arma de fogo para ameaçar ou atentar contra a integridade física ou a vida da ofendida ou que que alguma vez tivesse demonstrado intenção de o fazer.
E, ainda que assim não fosse, como é, impõe-se concluir que uma espingarda de caça não é um objeto em si mesmo perigoso, pois que a sua eventual perigosidade deriva da utilização que em concreto dela se faça.
As espingardas apreendidas não constituem, de per si, pela sua intrínseca natureza, num contexto de análise em que se prescinda da sua concreta utilização ou manejamento, um objeto em si mesmo perigoso[10].
Aliás, facilmente se descobrem razões de cariz recreativo (por exemplo, a caça), socialmente toleradas, que podem justificar a sua aquisição e utilização, pelo que nunca se poderia considerar tais objetos como que “predestinados” ao cometimento de crimes. Tanto mais que o arguido é titular de carta de caçador.
Acresce que não resulta das circunstâncias do caso concreto o perigo de utilização das mesmas para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
Posto isto, urge averiguar se colhe o outro fundamento aduzido na decisão recorrida para a declarada perda a favor do Estado das armas em questão, consubstanciado na asserção de que as armas não podem ser restituídas ao requerente em virtude de o mesmo não possuir, atualmente, licença de uso e porte de armas que o habitem legalmente a detê-las.   
Na verdade, não se encontrando o requerente autorizado a deter aquelas armas, por falta de licença de uso e porte válida, a detenção por si daquelas armas é ilícita, e, como tal, não podia ser promovida, propiciada, pelo próprio tribunal (cf. arts. 8º, nº2, al. a) e 86º, nº1, al. c), da Lei nº 5/2006, de 23.02 - RJAM)[11].
Todavia, cumpre ter presente o concreto circunstancialismo procedimental ocorrido nos autos, o qual nos permite afirmar que o Tribunal recorrido desconsiderou, injustificadamente, a comprovada ausência de responsabilidade do arguido, pelo menos, exclusiva, no retardamento da possível e previsivelmente viável obtenção da renovação da sua licença de uso e porte de arma junto das autoridades competentes para a sua emissão, desse modo frustrando as legítimas expetativas do recorrente em lograr a restituição das armas apreendidas nos autos.     
Como é sabido, a licença de uso e porte de arma é uma licença temporária, sujeita a um prazo de validade, cuja atribuição e renovação está subordinada a determinados requisitos legais. É um acto administrativo incluído na categoria dos actos permissivos que permite a alguém a prática de um acto ou o exercício de uma actividade relativamente proibidos.
A caducidade traduz-se, juridicamente, na cessação de produção de efeitos, pelo que uma licença caducada deixa de titular a produção dos efeitos jurídicos respectivos.
A lei dispõe que a renovação da licença de uso e porte de arma deve ser requerida até ao termo do seu prazo (artigo 28.º, nº1, do RJAM).
Entendeu-se no citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30-09-2010, que «Não sendo a espingarda de caça um objecto em si mesmo perigoso, não deve ser declarada perdida a favor do Estado a espingarda de caça que tenha sido apreendida por a validade da licença de uso e porte da arma ter expirado há mais de 180 dias, sem previamente se conceder ao dono da arma apreendida a oportunidade de apresentar licença válida de uso e porte de arma».
Parece ter sido esta jurisprudência que em primeira instância foi seguida para dar a possibilidade ao ora recorrente de, no prazo fixado, comprovar que possuía licença de uso e porte de arma válida.
No caso, o então arguido, ora recorrente, procedeu diligentemente, peticionando a renovação da licença antes de expirado o seu tempo de vigência.
Sucede que, como se extrai da informação há muito prestada pelo NAE da PSP de ... (em 06/07/2020), a solicitação do Tribunal, o procedimento atinente à renovação da licença de uso e porte de arma de que era titular o então arguido, da competência daquela entidade, encontrava-se pendente, a aguardar o resultado deste processo judicial.
Anteriormente, em 27.06.2020, por despacho do Ministério Público, foi arquivado o procedimento relativamente ao denunciado crime de violência doméstica e foi deduzida acusação contra o arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art. 143º, nº1, do CP, sendo que, em 11.02.2022, a ofendida desistiu da queixa apresentada, desistência que foi judicialmente homologada e declarado extinto o respetivo procedimento criminal.
Contudo, o Tribunal a quo não comunicou (pelo menos atempadamente), como devia, ao NAE da PSP de ..., a decisão que pôs termo ao processo, com cópia da mesma e da acusação pública deduzida, donde ressumava a não utilização de armas no alegado cometimento do imputado crime, bem sabendo – porque disso já havia sido informado – que dependia do desfecho dos autos a decisão a tomar sobre o requerimento de renovação da licença de uso e porte de arma tempestivamente apresentado por AA.
Por conseguinte, como sagazmente observa a Exma. Procuradora-Geral Adjunta no douto parecer que lavrou nos autos, «(…) se é verdade que competirá ao arguido juntar documento comprovativo de que pode deter as armas em causa – situação que, conforme o despacho recorrido, ainda não acontecera – não podemos olvidar os pedidos de informação do Núcleo de Armas e Explosivos da PSP de ... a pedir informações sobre o estado dos autos – inclusive, já após a prolação do despacho recorrido - e que dão conta da suspensão do processo onde esse pedido de renovação tinha sido formulado pelo arguido.
Igualmente se terá de relevar que a renovação das licenças de uso e porte de arma de caça, implica a junção de CRC, sendo, efectivamente, a pendência de um processo crime um potencial obstáculo a essa renovação.
Como tal, não é inequívoco que a falta de junção da almejada licença seja imputável ao arguido, tudo levando a concluir que existe uma qualquer falta de informação/comunicação à entidade competente do já prolatado despacho de extinção do procedimento criminal contra o arguido nestes autos (seja, porque este não requereu a necessária extração de certidão necessária a esse efeito, seja porque não foi dada directamente resposta ao NAEPSP ao pedido formulado nesse sentido, nomeadamente, ao e-mail referido no facto n.º 19 elencado supra).
Nada impedirá, no entanto, que – mercê da inexistência dos pressupostos previstos no art.º 109.º do Código Penal – e perante este incidente relacionado com a renovação da licença, o Tribunal levante a apreensão das armas à ordem destes autos e determine que as mesmas permaneçam à ordem da PSP até que se ultrapasse (ou não) a formalidade da renovação da licença, seguindo-se aí o procedimento previsto no art.º 29.º da Lei nº 5/2006, de 23.02.»
Conclui-se, destarte, que não se mostra legalmente justificada a decisão que declarou perdidas a favor do Estado as armas de fogo apreendidas nos autos, pertencentes ao ora recorrente AA.
Apenas divergimos do sobredito douto parecer na parte em que promove o levantamento da apreensão das armas em causa, embora com a manutenção da sua guarda pela autoridade policial, até à decisão do procedimento administrativo relativo à renovação da licença de uso e porte de arma, porquanto, salvo o devido respeito e melhor opinião, julgamos que a lei processual é unívoca ao determinar que ou existe declaração de perda a favor do Estado dos objetos apreendidos à ordem dos autos, ou terá de ocorrer a restituição dos mesmos ao respetivo possuidor.       
Por conseguinte, urge considerar parcialmente procedente o recurso interposto por AA e, consequentemente, revogar o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que determine que os autos aguardem – pelo tempo que for entendido como adequado – pela decisão do procedimento administrativo concernente à requerida renovação da licença de uso e porte de arma nº 36431/2009, de que é titular o recorrente, mantendo-se até esse momento a apreensão das armas à ordem dos autos, informando-se o NAE da PSP de ... e solicitando-lhe a oportuna comunicação da decisão que for tomada, decidindo-se então nos autos, conforme o que ali for deliberado e neste aresto é expendido, pela restituição das armas ao seu proprietário ou pela declaração da perda a favor do Estado.
*

IV - DISPOSITIVO:

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em conceder parcial provimento ao recurso interposto por AA e, consequentemente, revogar o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que determine que os autos aguardem – pelo tempo que for entendido como adequado – pela decisão do procedimento administrativo concernente à requerida renovação da licença de uso e porte de arma nº 36431/2009, de que é titular o recorrente, mantendo-se até esse momento a apreensão das armas à ordem dos autos, informando-se o NAE da PSP de ... e solicitando-lhe a oportuna comunicação da decisão que for tomada, decidindo-se então nos autos, conforme o que ali for deliberado e neste aresto é expendido, pela restituição das armas ao seu proprietário ou pela declaração da perda a favor do Estado.

Sem tributação (arts. 513, nº1 do CPP, a contrario).
*
Guimarães, 2 de maio de 2023,

                                                                                                        Paulo Correia Serafim (Relator) 
[assinatura eletrónica]
Pedro Freitas Pinto (Adjunto)
[assinatura eletrónica]
Fátima Sanches (Adjunta)
[assinatura eletrónica]

(Acórdão elaborado pelo relator e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos – cfr. art. 94º, nº 2, do CPP)


[1] Na sequência de despacho de convite ao aperfeiçoamento prolatado pelo ora relator, nos termos do art. 417º, nº3, do CPP [referência ...70], o recorrente apresentou novas conclusões do recurso [referência ...49].
[2] Tal parecer foi reiterado pela Exma. PGA após notificação da junção aos autos das aperfeiçoadas conclusões de recurso [cfr. referência ...26].
[3] Cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, UCE, 2008, anot. 3 ao art. 402º, págs. 1030 e 1031; M. Simas Santos/M. Leal Henriques, in “Código de Processo Penal Anotado”, II Volume, 2ª Edição, Editora Reis dos Livros, 2004, p. 696; Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2018, pág. 335; o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que ainda hoje mantém atualidade.
[4] Vide, entre outros, Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português (As consequências jurídicas do crime)”, Lisboa: Ed. Notícias/Æquitas, 1993, § 979 (p. 616); Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal”, UCE, anotação 1 ao art. 109º, pp. 310 e 311; Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, in “Código Penal Anotado e Comentado”, 2ª Edição, Quid Juris, anot. 3 ao art. 109º, p. 325.
[5] “Da proibição do confisco à perda alargada”, INCM/PGR, 2012, p. 69.
[6] Figueiredo Dias, ob. cit., § 999, p. 628; igualmente, Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., anot. 16 ao art. 109º, p. 313.
[7] Perigo para a segurança pública, a moral ou ordem públicas, ou de cometimento de novos factos ilícitos típicos.
[8] Cfr. Figueiredo Dias, ob. cit. p. 621.
[9] Cfr. despacho do MP de arquivamento/acusação e ata de audiência de julgamento constantes de fls. 4 a 6 e 8, respetivamente, da certidão para instrução do recurso.
[10] Assim também se considerou no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30.09.2010, CJ, 2010, Tomo IV, p. 137.
[11] Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24.05.2017, citado no sítio www.pgdlisboa.pt em anotação ao art. 109º do CP: «Não é possível devolver ao possuidor, que não tem licença para a sua detenção, uma arma não registada, que por isso deve ser declarada perdida a favor do Estado, independentemente da verificação dos requisitos do artº 109º CP, por ser arma fora do comércio jurídico e insuscetível de ser possuída por particulares.»