Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
604/05-2
Relator: MIGUEZ GARCIA
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/30/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I – Apesar de o Tribunal Colectivo ter dado como provado que o arguido se masturbou diante de duas menores com 10 anos de idade, fundamentando em que as ditas menores, «de maneira singela e com visível esforço no sentido de apenas descreverem aquilo de que tinham uma memória precisa e baseada na sua própria observação, afirmando que, por duas vezes, em frente à sua casa, viram um indivíduo no interior de uma carrinha - cuja matrícula uma das menores retirou - , que se masturbou perante elas», não é de ter tal matéria de facto como assente se as mesmas menores apenas disseram que o arguido «tirou o pénis de fora e começou a mexer nele», «estava com a pilinha de fora, pronto, estava a mexer na pilinha», «ele não estava a fazer xixi» e têm um depoimento recortado com monossílabos, pois mexer no pénis não é o mesmo que friccioná-lo, como se julgou.
II – Por outro lado, da prova produzida, nada autorizou o Colectivo a dar como provado que o arguido foi ao local com a intenção prévia de se masturbar por forma a ser visto pelas duas crianças nem que sabia que estava a ser visualizado por elas, sendo certo que o acto imputado, de masturbação, só teria características de exibicionista se praticado dolosamente perante criança menor de 14 anos e praticado perante outra pessoa, acresce a necessidade de importunar para conseguir o alcance típico do artº 171º do Código Penal, que, além disso, é um crime de natureza semi-pública e que exige a queixa do ofendido.
Decisão Texto Integral: Acordam em audiência no Tribunal da Relação de Guimarães


Miguel … foi submetido a julgamento na comarca de Fafe e condenado, com intervenção do Tribunal Colectivo, por cada um de dois crimes de abuso sexual de criança do artigo 172º, nº 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 8 meses de prisão, que em cúmulo jurídico resultou na pena única de um ano de prisão, que o Tribunal suspendeu por 3 anos, impondo condições.
Foram para tanto determinantes os seguintes factos, tidos como assentes:
a) C e A, ambas nascidas a 14 de Junho de 1992, residem na Travessa 9 de Dezembro, nesta cidade;
b) M… e M…, nascidas, respectivamente, a 23 de Junho de 1994 e a 15 de Novembro de 1992, residem também na referida travessa;
c) Nas férias escolares de Natal do ano 2003, cerca de uma semA antes do dia de Natal, por volta das 13,45 horas, o arguido parou o veículo que conduzia em frente da casa da C e da A e, de forma a que estas pudessem ver, pegou com uma mão num telemóvel, que colocou ao ouvido e, com a outra, tirou o pénis das calças e começou a friccioná-lo, masturbando-se.
d) A A alertou a sua mãe, que ainda não tinha saído para o trabalho, para o que estava a acontecer;
e) A Abela Silva, mãe das menores, constatando a veracidade do que a sua filha lhe contava, começou a chamar “badalhoco” ao arguido, dizendo-lhe para ir fazer aquilo para outro local.
f) O Miguel ... retirou então a sua viatura do referido local.
g) No dia 9 de Janeiro de 2004, cerca das 14 horas, o arguido voltou a parar o veículo que conduzia em frente da residência das menores C e A, o que fez com que estas, assustadas, tivessem fugido para casa de um vizinho, o José, pai das menores M e M.
h) O arguido conduzia nas duas referidas ocasiões o ligeiro de mercadorias com a matrícula UD, marca Citroên Berlingo, adquirido em sistema leasing pela firma A, L.da, para a qual o arguido trabalha, que lhe estava atribuído pela firma;
i) O arguido sabia perfeitamente que a C e a A não tinham, ainda catorze anos de idade, atento o seu porte e compleição física;
j) O arguido praticou o referido acto de índole sexual perante C e a A, levando-as, dessa forma, a presenciar actos que não queriam presenciar.
l) Agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas.
m) O arguido não tem antecedentes criminais.
n) O arguido tem namorada, vive com os pais e trabalha na empresa acima referida, onde aufere 700 € por mês.
o) Tem o 12º ano de escolaridade e frequentou a universidade;
p) O arguido é tido, no seu círculo familiar e de amigos, como pessoa com comportamentos adequados aos padrões socialmente vigentes.
Vem agora interposto recurso pelo indicado Miguel..., que a concluir diz o seguinte: (1) Foi violado o artigo 172º, nº 3, alínea a), pois tirar o pénis das calças não é acto sexual de relevo, não havendo intenção de exibir. (2) Ao fixar os pontos c), i) e l) da matéria de facto dada por provada, foi violado o artigo 410º, nº 2, alínea c) e os artigos 126º e ss. do CPP, pois as provas ouvidas não referem nenhum acto de friccionamento ou de masturbação, nem habilitam o tribunal a acreditar que o arguido viu ou sabia estar a ser visto. (3) O tribunal não descreveu o seu convencimento por forma lógica e perceptível dos eu raciocínio e não disse sequer estar convencido dos factos que firmou mas apenas não acreditar no arguido, o que deveria levá-lo a não fixar os factos por obediência ao princípio in dubio pro reo. (4) A conduta do arguido foi necessária, o arguido não pretendeu ser visto nem se apercebeu de ser visto, e não praticou qualquer acto exibicionista, devendo ser absolvido.
Na resposta, a Ex.ma Procuradora da República contraria a versão do recorrente. Nesta Relação, o Ex.mo Procurador Geral Adjunto emitiu parecer que encontra na fundamentação do acórdão vícios do artigo 410º, nº 2, alíneas a) e c), do CPP, que forçam ao reenvio do processo para novo julgamento. Em nova intervenção, o recorrente insiste em que da prova produzida e gravada resultam não provados os factos fixados sob os pontos que indicara nas alegações de recurso, o que conduz a que a absolvição deva ser declarada nesta Relação.
Colhidos os “vistos” legais, procedeu-se à audiência a que se refere o artigo 423º do Código de Processo Penal, com observância do formalismo respectivo.

A lei processual penal autoriza — veja-se o artigo 431º, alínea b) — que a decisão do tribunal de 1º instância sobre matéria de facto seja modificada se havendo documentação da prova, como no presente caso acontece, esta tiver sido impugnada nos termos do artigo 412º, nº 3. A modificabilidade da decisão recorrida encontra-se no entanto prevista sem prejuízo do disposto no artigo 410º, cujo nº 2, nas diversas alíneas que o compõem, se reporta sucessivamente aos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova.
A impugnação do arguido apoia-se no que chama de erro notório na apreciação da prova, com expressa referência à violação do artigo 410º, nº 2, do CPP, mas convocando, nos seus resultados, a necessidade de alterar a matéria de facto dada por assente (“ao fixar os pontos c), i) e l) da matéria da facto dada por provada, o tribunal violou o artigo 410º, nº 2, alínea c)…”).
Ao acórdão recorrido aponta, por sua vez, o Ex.mo Procurador Geral Adjunto, para além de erro notório, o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, designando a situação, mais propriamente, de “insuficiência aquando da concretização do princípio da imediação”. E isto porque, começando pelo depoimento da menor C, que a acusação inclui nas vítimas de abusos sexuais do arguido, que descreve, “de imediato se constata que ele se construiu essencialmente apoiado em monossílabos de discordância e de concordância”. Quanto ao depoimento da outra menor, A, “ele evolui da mesma forma, se bem que denotando mais um pouco de desenvoltura e elaboração”.
E vendo bem, no depoimento da C, a que se chega pelas passagens transcritas a partir de fls. 218, se se pode identificar uma pequena desenvoltura inicial (“esse senhor chegou ao…, parou à porta da minha casa, tirou o pénis de fora e começou a mexer nele”), logo no momento seguinte torna-se clara a ausência de agilidade e fluência: a C passa a utilizar monossílabos e a fechar-se no invariável “é”, “sim”, “não”; no “contei”…”, aconteceu…”. Até que, lá mais para diante, à pergunta: “aquilo já acontecia há muito tempo? há muitos meses? ou só há pouco tempo?”, a C responde “não, não é bem meses, ele aparecia de vez em quando, depois aparecia outro; eu não sei se era o mesmo senhor, mas uma vez apareceu lá um, com carrinha verde”. Para imediatamente a seguir se voltar ao “foi”, “não”, “uma”, entrecortados por frases ligeiramente mais extensas, mas mesmo assim bem pouco esclarecedoras, do género: “eu vi um dia”, “eu não sei se é o mesmo senhor”, “era um carro verde”, “lembro-me que fazia a mesma coisa”, “fui eu [que tirei a matrícula da carrinha]”, “eu fui para casa de um vizinho e dei-lhe a matrícula e ele foi atrás deste”; “ele via-nos e eu também o vi a ele”.
O depoimento da outra menor, igualmente apontada como vítima de abusos, é de facto um pouco mais solto, mas também este, a todas as luzes, e como logo foi notado no parecer, “é orientado, é sugerido”.

Todavia, é a própria norma, o artigo 410º, nº 2, que ao prever a relevância dos vícios da decisão recorrida os limita à compreensão e análise do próprio texto donde emergem. Os vícios, todos eles, vêm referidos ao esqueleto natural da estrutura discursiva: o recurso pode tê-los como fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. A contradição, por exemplo, implica que dados os antecedentes como premissas verdadeiras os consequentes devam ser derivados lógicos. Na constituição do texto, o próprio erro releva unicamente se for notório — aquele, portanto, que não passa despercebido... As ausências de coerência e de coesão do discurso decisório podem aliás surpreender-se na chamada insuficiência para a decisão da matéria de facto, definida correntemente como correspondendo à falta de elementos que, podendo e devendo ser julgados (porque foram alegados ou resultaram da discussão da causa), são necessários para se formular um juízo seguro de condenação ou absolvição.
Este tipo de controlo, porque é ademais oficioso, isto é: independente do fundamento do recurso e de quem o interponha, impõe-se perante a manifesta ilogicidade da sentença — em expressão igualmente corrente, como se viu, há-de surpreender-se no texto da decisão recorrida.
É além disso um tipo de controlo que precede o das eventuais provas que imporiam “decisão diversa” nos termos do artigo 412º, nº 3. De maneira que o tribunal da Relação tem de conhecer de tudo (a partir da fundamentação da sentença) antes de conhecer do ‘ponto de facto’ “e de sobre ele poder decidir” (Damião da Cunha). O próprio artigo 431º parece sugerir isso mesmo, pondo a análise dos vícios de ilogicidade no lugar cimeiro da reapreciação a cargo do tribunal superior. Nem isso é de admirar, já que a apelação, que no nosso direito se limita a um juízo de censura crítico, supõe necessariamente uma decisão ‘válida’ proferida em 1ª instância.
No caso, a coerência do discurso do Colectivo, graças ao seu enfoque textual, fica ao abrigo de qualquer censura. Não vemos despontar nele insuficiência para a decisão da matéria de facto provada: o acórdão enumera todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito alvo da subsunção que teve por acertada. Não descortinamos contradições nem erro que seja notório.

Parecendo à primeira vista que não, a impugnação, sem a referir expressamente, segue a via autorizada pelo artigo 412º, nº 3, do CPP. Especifica ‘os pontos de facto’ que considera incorrectamente julgados; simultaneamente reconduz-se à falta de prova, e nessa lógica é esta falta de prova que, para dar satisfação ao nº 3 do preceito, ainda que sem o nomear, ‘impõe decisão diversa da recorrida’.
Vejamos então se realmente é caso de modificar a matéria de facto.
O Tribunal recorrido não deixa de nos advertir que, para sua convicção, deu especial relevância, entre outros, “aos depoimentos das menores C e A”. E mais: que “a C e a A Mota, de maneira singela e com visível esforço no sentido de apenas descreverem aquilo de que tinham uma memória precisa e baseada na sua própria observação, afirmaram que, por duas vezes, em frente à sua casa, viram um indivíduo no interior duma carrinha – cuja matrícula a própria A retirou – que, na primeira dessas ocasiões, nas circunstâncias já referidas pela mãe de ambas, se masturbou perante elas, esclarecendo ambas que não podiam confirmar se o referido indivíduo era ou não o arguido e que na segunda ocasião – em que fugiram para casa da M e da M e falaram sobre o assunto com o pai destas – tão pouco viram o que ele estava a fazer”.
Ora, para concluir que as duas irmãs afirmaram que “em frente de sua casa, um indivíduo … se masturbou perante elas”, o Tribunal parece ter-se contentado com bem pouco, já que, de facto, de nenhum dos depoimentos ouvidos se extrai a menção concreta a qualquer acto de “friccionamento”, que na expressão do Colectivo aparece como elemento definidor da masturbação. No que toca à C, ainda se colhe o esclarecimento inicial de ter “esse senhor” parado “à porta da minha casa, tirou o pénis de fora e começou a mexer nele”, mas sem mais explicações. A irmã A . fica-se por um lacónico “sim”, inteiramente solidário com a pergunta: “estava com a pilinha de fora? pronto, e estava a mexer na pilinha? tu viste isso? pronto, tens de me dizer sim ou não”. A pequena — como seria de esperar — disse sim…
Não obstante todas estas deficiências, há-de notar-se que o Tribunal contou ainda com o depoimento da mãe das duas menores, mas esta também não concorreu de modo definitivo para esclarecer esse mesmo ponto concreto: “eu estava na casa de banho e a miudita [A .] veio chamar e disse: ó mãe anda lá fora que está ali um senhor com a pila de fora; ele não está a fazer xixi, está…”; “eu ainda lhe disse, ó seu porco…”; “vim imediatamente cá fora… quando me viu ainda mais alterou o pénis; estava dentro da carrinha, sentado [no banco do condutor], com a porta fechada, assim com o telemóvel, mas com os olhos virados para a minha casa, para a sacada e com a outra mão a fazer aquelas cenas; via-se de fora, que a minha casa é no segundo andar, é alta, e ele estacionou à berma da estrada, do outro lado, e virado para a minha casa; ele estava a fazer cenas tristes cenas feias; ele uma das mãos tinha o telemóvel, a outra mão estava…”.
Da conjugação de tais fragilidades não vemos que se possa chegar à conclusão segura de que o arguido… tirou o pénis das calças e começou a friccioná-lo, masturbando-se (ponto c) da matéria de facto). São inteiramente ajustadas as objecções do recorrente, bem complementadas pelas seguras críticas do ilustre Procurador Geral Adjunto. No que toca sobretudo aos “esclarecimentos” prestados pelas duas menores não há a mínima fluidez, são, na sua generalidade, produto de um interrogatório orientado.
Só a primeira parte desse fragmento dos factos provados se poderá pois manter (o arguido tirou o pénis das calças), quanto muito aditado com a afirmação de que começou a mexer-lhe, o que não é o mesmo que começar a friccioná-lo, como se julgou.

Quanto a ter-se posto o arguido de forma a que a C e a A o “pudessem ver”, que é igualmente parte da matéria tida por averiguada, também nós acompanhamos a impugnação do recorrente e o lúcido parecer junto aos autos.
É matéria que tem a ver com o dolo e com o que nas alíneas i), j) e l), se apresenta igualmente como produto da convicção do Colectivo: “i) O arguido sabia perfeitamente que a C e a A não tinham, ainda, catorze anos de idade, atento o seu porte e compleição física; j) O arguido praticou o referido acto de índole sexual perante C e a A, levando-as, dessa forma, a presenciar actos que não queriam presenciar; l) Agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas”. Neste contexto, ter-se-á presente que para o Colectivo passou a ser “indubitável” que as duas crianças — face à descrição de ambas e ao relato da mãe — “eram visíveis ao arguido enquanto ele se masturbava, sabendo ele que, no momento em que assim procedia, estava a ser visualizado pelas menores”. Ademais, “ficou excluída a possibilidade de ser atribuída ao arguido qualquer outra conduta que tivesse por alvo as mesmas C e A”.

A nosso ver, há pelo menos dois tipos de acções: as que unicamente constam de uma actividade (saudar outra pessoa, passear) e as que constam de uma actividade a que acresce algo, uma consequência (abrir uma porta, partir os vidros de uma janela, comer uma maçã). Frequentemente, é este resultado final, ou consequência de uma acção simples ou complexa, aquilo que “temos em mente”. Deste modo, quando alguém abre uma porta dificilmente pensa em que está a mover o braço ou a mão de um certo modo, o que quer, e provavelmente pensa, é que a porta se abra de modo a permitir-lhe a passagem.
Aqui e agora interessam-nos sobretudo os casos em que as intenções se formam previamente à acção , aqueles em que o agente tem a intenção de realizar a acção antes da realização da própria acção, quando, por exemplo, ele sabe o que vai fazer porque já tem a intenção de o fazer.
Ora, como há partes dos nosso actos que podem ser altamente ambíguas, temos de, frequentemente, atribuir um significado a estruturas de expressão observáveis. Compreendemos o que alguém “faz” somente se pudermos interpretar uma actividade como uma determinada acção, como uma acção que é acompanhada de certas características.
Isto implica reconstruirmos (ou não) uma intenção assumida. As intenções podem reconstruir-se mediante a informação de quem observou a execução da actividade, partindo do pressuposto que o agente a levou a cabo segundo um plano. Quer isto dizer que nos casos em que o agente actua com base na sua intenção prévia tem de haver uma conexão estreita entre essa intenção prévia e a actividade observada — no momento a seguir, o nosso esforço converge, inevitavelmente, na explicação dessa mesma conexão. ( Em geral, sobre noções da “teoria da acção”, pode ver-se Teun A. van Dijk, Texto y contexto, tradução espanhola de “Text and context”, Madrid, 1998; John Searle, Intencionalidade, Relógio D’Água, 1999, e Mente, cérebro e ciência, Edições 70; e G. Anscombe, Intención, Ed. Paidós, 1991.)

No presente caso, o que ao menos implicitamente se retira da tese sustentada pela acusação, a que o Colectivo acabou por aderir, é que o arguido foi ao local com a intenção prévia de se masturbar por forma a ser visto pelas duas crianças.
Ainda assim, na fundamentação oferecida o acórdão não chegou a formar juízo aproximado de que isso tenha acontecido, não se deixou a mínima constância da concretização da prática de acto de carácter exibicionista. É bem verdade que o Colectivo o dá como provado. Diz mesmo, aparentemente sem ter que arredar qualquer dúvida, na alínea c) dos provados, que o arguido parou o veículo em frente da casa da C e da A e de forma a que estas pudessem ver — o que tudo supõe a intencionalidade de que falávamos — tirou o pénis das calças e começou a friccioná-lo, masturbando-se. Mas o acórdão não se explica minimamente quanto ao bem fundado da convicção a que chegou. No texto da decisão há, por outro lado, referências aos relatos das duas pequenas e ao da mãe, mas destes não se retira sequer, cabalmente — já o dissemos — a realidade do acto de masturbação dentro da carrinha e a identificação do arguido como autor de um tal acto. A mais disso, o acórdão faz-se eco de relatos sobre a posição da carrinha, mas não avança uma única palavra que justifique esse outro ponto essencial, ou seja, que o arguido, deliberadamente, se colocou ali por forma a que as duas crianças o pudessem ver (ou mesmo só que, tendo ali chegado, “aproveitou” a oportunidade que constatou oferecer-se-lhe para se exibir perante as duas crianças).
A necessidade dessa explicação, como já se foi adiantando, não constitui uma trivialidade: o acto imputado, de masturbação, só teria características de acto exibicionista se praticado dolosamente perante criança (é ilícito se for praticado perante menor de 14 anos, como se diz na alínea a) do nº 3, do artigo 172º do CP). Praticado perante outra pessoa que não seja criança, acresce a necessidade de importunar para conseguir o alcance típico do artigo 171º que além disso, por ser crime de natureza semipública, exige a queixa do ofendido (artigo 178º, nº 1). O acto de alguém que se masturba dentro de uma carrinha estacionada na via pública é em si mesmo uma acção ambígua — pode até acontecer que esteja desacompanhado dos ingredientes que fazem dele um crime. A ambiguidade existe quando um acto apresenta vários sentidos e é susceptível de ser interpretado de diversas maneiras. Para desfazer essa ambiguidade torna-se necessária uma tarefa de interpretação que escapou à lógica da indagação do Tribunal.
Quer isto significar, em termos práticos, que o esforço de averiguação relativamente ao que fazia afinal o arguido dentro da carrinha estacionada não foi cumprido. Não se averiguou se as menores foram o pretexto da presença do arguido no local e mesmo da sua ida ali; ou até se as menores foram vítimas da sua própria curiosidade. A exacta compreensão da actividade observada pelas duas menores (masturbação? simples aplicação de um lenitivo?) convocava complementarmente o dever de indagar (e explicar…) se o arguido sabia que estava a ser visto pelas menores, o que inclui a possibilidade de ser visto por qualquer delas.
Voltando à transcrição, não deixa aliás de surpreender que quando a pequena A, às tantas, à pergunta “achas então que ele sabia que tu estavas ali, na varanda?”, se limitou a responder “se calhar”, o Tribunal não tenha aproveitado a oportunidade para ir mais além na tentativa de esclarecer questão essencial, que seria afinal a de saber se o arguido se colocou ali para ser visto. Mas a isto nem mesmo o MP reagiu. E é ao MP que, no julgamento, de modo especial compete (artigo 53º, nº 2, alínea c), do CPP) sustentar efectivamente a acusação. Deitadas as contas, não se desfazem dúvidas com toda esta passividade. Se o Tribunal não se explicou quanto ao convencimento a que chegou, também é bem difícil assegurar que em cumprimento do dever de objectividade da procura da verdade (princípio da verdade material) todas as diligências tenham sido levadas a cabo para esclarecer esse concreto ponto, essencial à própria definição de acto exibicionista. Só mesmo um tal conjunto de diligências, exemplarmente descritas pelo ilustre Procurador Geral Adjunto, poderia ter aberto as portas à questão de saber se no interior da carrinha houve uma conduta que só seria típica, nos termos em que o Tribunal a tomou, se simultaneamente se encontrasse em averiguada conexão com o dolo do agente, facto interno que no acórdão efectivamente se teve por demonstrado, mas sem todavia explicar os caminhos que se abriram à sua compreensão, o que, do mesmo passo, abre a porta ao receio de que o terá feito com base em suposições ou em simples conjecturas, que não valem como critério de apreciação por conduzirem a resultados arbitrários — como o será sempre a mera impressão gerada no espírito do julgador a partir de um qualquer meio de prova.

E porque é na falta de prova apontada pelo recorrente que afinal tudo converge, não nos é lícito tomar como boa a proposta do ilustre Procurador Geral Adjunto de reenvio do processo para novo julgamento. Só a ilogicidade da sentença daria azo a um tal expediente. Mas a condenação do arguido não teve a precedê-la a existência de um dos vícios expressamente referidos no artigo 410º, nº 2. A não aceitabilidade da decisão proferida encontra apoio, não no seu próprio texto, mas na circunstância de efectivamente haver pontos de facto incorrectamente julgados — e se essa circunstância determina, por um lado, a modificação da decisão em matéria de facto, no sentido requerido pelo arguido, por outro, impõe que se decrete a absolvição. Perante as alterações nela introduzidas, a conduta é afinal atípica, como em termos que supomos suficientemente claros se deixou já expendido.

Nestes termos, acordam em conceder provimento ao recurso de Miguel... em matéria de facto, absolvendo-o por último da correspondente imputação.

Não são devidas custas.

Guimarães,