Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
544/21.0GCBRG.G1
Relator: PAULO SERAFIM
Descritores: DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
PRESENÇA DO ARGUIDO
RECONSTITUIÇÃO DO FACTO
INTENÇÃO DE MATAR
PROVA PERICIAL
RELAÇÃO DE NAMORO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/17/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I – Ressuma da remissão não restritiva operada para o art. 271º do CPP pelo art. 24º, nº1, da Lei nº 130/2015, de 04.09, que à tomada de declarações para memória futura à vítima fundada nesta legislação especial aplica-se o disposto no art. 352º do CPP, ex vi do art. 271º, nº6, e, como tal, somente é imperiosa a presença na diligência do defensor do arguido, podendo o Tribunal determinar o afastamento do arguido, como sucedeu in casu.
II – A possibilidade de afastamento do arguido legalmente prevista equivale nestes casos à dispensa da sua presença no ato processual, pois que, distintamente do que sucede no contexto de audiência de julgamento a que se reporta o art. 352º do CPP, onde a presença do arguido é obrigatória (exceto nos casos especialmente previstos – cf. art. 332º, nº1, do mesmo diploma legal), o mesmo não ocorre na prestação de declarações para memória futura.
III – A ausência do arguido na tomada de prestação de declarações para memória futura, nos termos em que ocorreu nos autos, não consubstancia violação do princípio do contraditório (também na vertente de igualdade de armas), constitucionalmente consagrado no art. 32º, nº5, da Constituição da República Portuguesa.
IV – A realização do meio de prova «reconstituição do facto» em fase de inquérito depende de despacho do Ministério Público, a não ser que haja delegação de poderes aos órgãos de polícia criminal, caso em que, por não se tratar de um ato indelegável (cf. art. 270º do CPP), a efetuação da reconstituição do facto pode ser decidida, motu ensura, pela respetiva autoridade policial se a considerar pertinente para o apuramento do circunstancialismo de local e modo de execução dos factos denunciados, pois que não estamos perante diligência que comporte a tomada de depoimento ajuramentado ou tomada de declarações a arguido.
V – No caso concreto, existe competência legalmente atribuída à Polícia Judiciária para a investigação criminal do crime de homicídio, na forma tentada, decorrente do disposto no art. 7º, nºs 1, 2, al. a), e 5, da Lei nº 49/2008, de 27.08 (Lei de Organização da Investigação Criminal), pelo que não se verifica a arguida nulidade insanável da prova decorrente da realização da reconstituição do facto, por falta de promoção do Ministério Público.
VI – Não se mostra visível dos registos fotográficos obtidos no decurso da reconstituição do facto, nem perpassa do texto do respetivo auto, que o arguido se encontrasse algemado no decurso da diligência; ainda que assim fosse, tal circunstância não constituiria óbice à validade legal da reconstituição efetuada porquanto o disposto no art. 140º, nº1, do CPP, consagrando a regra de que o arguido deve encontrar-se livre na sua pessoa, sem algemas, encontra-se prevista para a tomada de declarações ao mesmo, o que, em bom rigor, não constitui o objeto da diligência efetuada.
VII – Ademais, a lei permite, excecionalmente, tal limitação, quando essa medida se mostre necessária a prevenir o perigo de fuga ou atos de violência (art. 140º, nº1, segunda parte). Ora, no caso vertente, atendendo ao facto de a diligência se desenrolar num terreno amplo, aberto, isto é, não confinado por barreiras físicas intransponíveis ou de difícil transposição, é sustentável a existência de perigo de fuga, ao que acresce a circunstância de o modo assaz violento com que o suspeito/arguido supostamente teria perpetrado os graves factos sob investigação permitir presumir a sua propensão para a prática de atos violentos sobre terceiros.
VIII – No contexto de apreciação de um crime de homicídio na forma tentada, os exames periciais médico-legais, nomeadamente de avaliação do dano corporal, mostram-se decisivos para auxiliar o Tribunal a determinar as lesões corporais e sequelas resultantes, de modo adequado e causal, da ação do agente para a saúde da vítima – aqui se incluindo as do foro psicológico/psiquiátrico; porém, o juízo sobre a existência ou não do subjacente desígnio de matar está reservado ao juiz, naturalmente fundado na base factual que resulte provada por força dos juízos técnico-científicos emitidos nos relatórios periciais (se não fundamentadamente afastados pelo julgador, nos estritos termos legais), não cabendo ao perito formulá-lo, sem extravasar as suas competências funcionais, na medida em que aquele propósito contende já com a culpa do autor dos factos, em sentido amplo, enquanto factualidade suscetível de preencher o elemento subjetivo do crime e, outrossim, a possibilidade de ensura-lo ético-juridicamente por tal conduta (a denominada consciência da ilicitude).
IX – Neste campo da comprovação da “intenção de matar” não estamos na presença de prova legal vinculada, pois que, por um lado, não resulta direta e especificamente da lei que tal facto apenas pode ser provado através de determinada perícia e, outrossim, não se trata de facto que, pela sua especificidade técnica ou científica, só possa ser provado por recurso a quem tenha especiais conhecimentos técnicos ou científicos (art. 151º do CPP).
X – No único ponto em que o Tribunal a quo se distanciou do juízo pericial lavrado nos autos, relativo a um concreto ponto da matéria de facto apurada, os Meritíssimos Julgadores fundamentaram tal divergência com o teor dos certificados de incapacidade temporária para o trabalho da assistente, bem como no depoimento prestado em audiência de julgamento pelo médico subscritor dos mesmos. Por conseguinte, o Tribunal não se refugiou em meras convicções ou juízos pessoais para não acolher a conclusão do relatório pericial relativamente ao período de afetação da capacidade para o trabalho, caso em que estaríamos perante flagrante violação do princípio da livre apreciação da prova, por injustificado desrespeito do valor especialmente reforçado da prova pericial (cf. arts. 127º, primeira parte, e 163º, nº1, ambos do CPP), antes considerou prova veiculada por pessoa que igualmente possui especiais conhecimentos técnicos, no caso de medicina, com competência legalmente atribuída pelo Estado para certificar situações de incapacidade temporária para o trabalho, tanto mais que avaliou a ofendida em momento mais atual, posterior ao da última observação realizada pelos Srs. Peritos e recolha de dados clínicos, isto é, perante uma base de facto distinta da que motivou aquele juízo pericial.
XI – Assim sendo, mostra-se suficientemente fundamentada a apontada divergência, que não coloca em causa a validade/qualidade do juízo técnico-científico emitido no relatório pericial, antes considera outro pressuposto, diferente base factual.
XII – A relação de namoro (atual ou transata), segundo a intenção do legislador expressa na norma em questão [art. 132º, nº2, al. b), na redação conferida pela Lei nº 16/2018, de 27.03], é suscetível de indiciar uma especial perversidade ou censurabilidade do agente porque aquele tipo de relacionamento, pressupondo uma proximidade, ainda que não avultadamente presencial, pelo menos existencial, de partilha, de afetuosidade, uma tendencial estabilidade, distinta de relações fortuitas, acarreta para os sujeitos envolvidos um conjunto de deveres, entre os quais o de respeito e confiança, pelo que o atentado à vida, à integridade física ou a outros relevantes bens de jaez pessoal perpetrado sobre um membro da relação pelo outro revela-se particularmente desvalioso, incrementando sensivelmente o grau de culpa do agente.
XIII – Constituindo a relação de namoro com a vítima uma circunstância suscetível de indiciar a especial censurabilidade ou perversidade do homicida (cf. art. 132º, nºs 1 e 2, al. b), do CP), cumpre que aquela relação seja materializada em factos concretos idóneos a integrá-la, tarefa que há de ser empreendida desde logo na acusação para que seja possível a sua demonstração probatória.
XIV – A partir do momento em que a «relação de namoro» foi consagrada na lei como um dos elementos típicos objetivos do crime de violência doméstica e, posteriormente, como circunstância qualificativa do crime de homicídio, transformou-se num conceito de dimensão normativa, mas não abandonou inteiramente a sua caraterização como conceito factual, ou seja, de expressão de uso frequente, corrente, quotidiano, apreensível facilmente pelo “homem médio”, sem necessidade de particulares conhecimentos técnicos. A expressão “relação de namoro” assume assim uma natureza mista, o que influi na apontada necessidade de, casuisticamente, se proceder à sua densificação factual e, concomitantemente, na medida concreta dessa concretização.
XV – Encontrando-se provado nos autos que «O arguido e a vítima AA mantiveram uma relação de namoro que se iniciou em Maio de 2021»; que a ofendida é «namorada» do arguido; que o arguido «conheceu AA, com quem em Maio de 2021 iniciou uma relação de namoro.» facto que decorre do relatório social e surge descrito como um dos relacionamentos afetivos que o arguido foi mantendo ao longo dos tempos; e que no período de ocorrência dos factos o arguido «convivia regularmente com a namorada AA e com amigos.», mostra-se suficientemente alegada e concretizada a matéria de facto suscetível de integrar o conceito “relação de namoro”.
XVI – Tanto mais que in casu a relação de namoro em causa foi voluntária e livremente assumida pela ofendida/assistente e pelo arguido nas declarações que prestaram, ela para memória futura e ele em audiência de julgamento, acrescendo que o arguido até pormenorizou que o início da relação de namoro ocorreu em data anterior à que constava da acusação.
XVII – Não se vislumbra inconstitucionalidade da norma do artigo 132º, nºs 1 e 2, al. b), do Código Penal, por prever a «relação de namoro» como circunstâncias qualificativa do homicídio, sem que exista uma definição legal e um regime legal que determine os deveres e os direitos conferidos aos parceiros dessa relação e, da mesma forma, por conferir um tratamento idêntico ao “namoro” e ao casamento ou à união de facto com coabitação ou sem coabitação.
Decisão Texto Integral:
Acordam, após audiência, os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – RELATÓRIO:
           
I.1 No âmbito do Processo Comum (Tribunal Coletivo) nº 544/21...., do Tribunal Judicial da comarca ... - Juízo Central Criminal ... – Juiz ..., por acórdão proferido e depositado em 12.10.2022 (referências ...22 e ...51), foi decidido:

“a) Condenar o arguido BB pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131.º, 132.º, n.º 1 e 2, als. b) e e), 22.º, n. º1 e n.º 2 al. b), 14.º, n. º1, todos do Código Penal, na pena de 7 (sete) anos de prisão.
b) Ordenar a recolha de amostra biológica para a base de perfis de ADN ao arguido.
c) Julgar o pedido de indemnização civil formulado pela demandante AA parcialmente procedente e, em consequência;

- Condenar o demandado arguido BB no pagamento à demandante da quantia de € 60.000,00 (sessenta mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da prolação do presente Acórdão e até efectivo e integral pagamento.
 - No demais, julgar o pedido de indemnização civil formulado pela referida demandante improcedente, nessa parte absolvendo o demandado do pedido contra ele formulado.
d) Julgar o pedido de indemnização civil formulado pelo demandante Hospital ... totalmente procedente e, em consequência, condenar o demandado arguido BB no pagamento ao referido Hospital, da quantia de € 1.802,97 (mil oitocentos e dois euros e noventa e sete cêntimos),
acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a notificação do pedido ao arguido/demandado, até efectivo e integral pagamento.
e) Condenar o arguido nas custas do processo crime, fixando em 3 UC’s a taxa de justiça, sem prejuízo do beneficio do apoio judiciário que lhe foi concedido (cfr. fls. 267)
f) Condenar o demandado/arguido nas custas do pedido de indemnização civil formulado pela demandante AA, na proporção de 37,5% (trinta e sete e meio por cento) do valor do pedido, sem prejuízo do beneficio do apoio judiciário que lhe foi concedido (cfr. fls. 267). A parte remanescente fica a cargo da demandante, a qual beneficia também de apoio judiciário, além do mais, na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo (cfr. fls. 719).
g) Condenar o demandado/arguido nas custas do pedido de indemnização civil formulado pelo Hospital ..., sem prejuízo do beneficio do apoio judiciário que lhe foi concedido (cfr. fls. 267).”

I.2 Inconformado com tal decisão, dela veio o arguido CC interpor o presente recurso, que, após dedução da motivação, culmina com as seguintes conclusões e petitório (referência ...60) - transcrição:

“1ª Vem o presente recurso interposto do acórdão proferido na 1ª instância que condenou o recorrente pela prática de um crime de homicídio qualificado na forma tentada na pena de 7 anos de prisão efectiva e ainda a indemnizar a lesada na quantia de 60.000 € a título de danos não patrimoniais.
2ª Os factos constantes do acórdão, designadamente do ponto 33, da matéria de facto são insuficientes para ter por preenchido o dolo da conduta, porquanto nenhuma referência há à representação da conduta ilícita, ou seja, que o arguido em momento anterior à conduta se determinou a cometer o crime.
3ª Daí que se entenda os factos não suportam o preenchimento do dolo em qualquer das suas modalidades (artº 14º do Código Penal), porquanto não se alegou ou deu como provado que o arguido, em momento anterior à sua conduta, se predispôs, representando os elementos objectivos típicos, a cometer o crime.
4ª A interpretação que se extraia do disposto no artº 14º nº1 e 131º do Código Penal no sentido de que o arguido pode ser punido pelo crime de homicídio na forma consumada ou tentada sem que na decisão condenatória seja dado como provado o elemento intelectual do dolo, no sentido da sua pré-existência relativamente à conduta, deve ser julgado inconstitucional por violação do princípio da legalidade na sua vertente da tipicidade, do princípio do acusatório e do contraditório (artºs 29º nº1 e 32º nº1 e 5 da Constituição).
5ª A alteração factual levada a efeito no ponto 24 da matéria de facto relativamente à acusação quanto a agressões após a ofendida se “fazer de morta” no sentido que este o fez “para ver se esta estava morta”, quando na acusação se diz que este abanou a ofendida/assistente, para confirmar se esta estava morta, levantou-se e pisou-lhe o rosto duas vezes, sem que a ofendida tivesse reagido. leva a concluir que o arguido ficou surpreendido e não acreditou que a ofendida estivesse morta ou suspeitou que esta se estivesse a fazer de morta e abanou-a e pisou-a na face para ver se esta reagia.
6ª E como esta não reagiu, fazendo-se de morta, não se mexendo e permanecendo com os olhos abertos, o arguido convenceu-se de que a ofendida estava morta, pelo que assim sendo, este agiu não se conformando com o resultado morte, mas convenceu-se que a ofendida estava morta, pelo facto de esta não reagir.
7ª Assim, independentemente da fórmula conclusiva constante do ponto 33 dos factos provados, tem de se concluir que os factos dados como provados não preenchem o tipo de crime de homicídio, mas antes o tipo de crime de ofensa à integridade física qualificada previsto no artº 145º nº1 al. a) do CP, porquanto como decorre dos sucessivos relatórios periciais juntos não resultou da conduta do arguido qualquer das circunstâncias agravantes das alíneas do artº 144º do CP.
8ª O Tribunal não podia ter determinado que a diligência de declarações da arguida para memória futura se fizesse na ausência do arguido, nem o Tribunal o podia dispensar ou afastar da diligência.
9ª O artº 24º nº1 e 2 da Lei 130/15 de 4/9 determina que o arguido tem de ser notificado para que possa estar presente, pelo que este tem direito a estar presente na diligência (cfr. o artº 24º nº2 da Lei 130/15 e 61º nº1 al. a) do CPP).
10ª A norma do artº 24º da Lei 130/15, ao contrário do que dispõe o artº 271º nº6 do CPP e o artº 33º nº5 da Lei 112/09 de 16/9, não prevê o afastamento do arguido da diligência, nos termos do disposto no artº 352º do CPP.
11ª Por outro lado, não podia ser aplicada a norma do artº 352º do CPP, uma vez que a norma do artº 24º da Lei 130/15 se trata de uma norma excepcional que não comporta aplicação analógica – artº 11º do Código Civil – e não prevê o afastamento do arguido.
12ª Mas, mesmo que se entendessem aplicáveis as normas dos artºs 271º nº6 do CPP e 33º nº5 da Lei 112/09 e se entendesse que o arguido podia ser afastado da diligência, havia de ser proferido despacho nesse sentido, nos termos do artº 352º nº1 do CPP e este tinha, da mesma forma, direito a estar presente na mesma e, por consequência, devia ser aplicada a norma do artº 332º nº7 aplicável ex vi do artº 352º nº2 do CPP, uma vez que para se afastar o arguido, este tem que estar presente.
13ª O arguido faltou à diligência, mas não estava nas suas mãos estar presente, dado que estando este preso preventivamente devia ser requisitado e transportado para o Tribunal – artº 332º nº2 do CPP.
14ª Mas, ainda que se entenda que podia estar presente e ser afastado, o cumprimento do disposto no artº 332º nº7 do CPP, aplicável por via do disposto no artº 352º nº2 do CPP, visa, entre o mais, conceder ao próprio arguido a faculdade de requerer que sejam colocadas perguntas ao depoente (ou de este as solicitar ao seu defensor), razão pela qual as testemunhas e declarantes não podem ser dispensados antes do Tribunal cumprir o disposto no artº 332º nº7 do CPP – cfr. neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 4ª edição actualizada, pág. 907.
15ª Faculdade que o arguido não pôde exercer, pelo que foi cometida a nulidade insanável do artº 119º al. c) do CPP.
16ª A interpretação que se extraia do disposto nos artºs 24º nº2 da Lei 130/15, 33º nº5 da Lei 112/09 e 271º nº6 do CPP em conjugação com o disposto no artº 61º nº1 al. a), 332º nº2 e nº7, aplicável ex vi do artº 352º nº2 do CPP no sentido de que o arguido pode ser afastado da diligência ou ser a diligência de prestação de declarações para memória futura realizada na sua ausência, é inconstitucional por violação do disposto no artº 32º nº1, 5 e 6 da Constituição.
17ª Os antecedentes da diligência de reconstituição do facto apontam para o seguinte:
- A GNR foi chamada às 2.54 h do dia 5/9/21 e chegou ao local às 3.00 horas (fls. 4 e 5), tendo o recorrente sido imediatamente detido, ou seja, às 3.00 horas (fls. 34);
- O recorrente foi constituído arguido às 4.00 horas (fls. 28);
- Foi realizado exame de alcoolemia ao arguido às 4.20 h (fls. 117);
- Exame às roupas e fotos do detido às 6.15 h (fls. 74); - A PJ entrou em contacto com o detido pelas 7.00 horas (tendo em conta que estava no Hospital ... pelas 6.15 h – fls. 12 e 13);
- O detido foi entregue à PJ às 8.00 horas (fls. 35);
- Foi realizado o exame às roupas do detido às 9.25 h (fls. 69);
- A hora desconhecida foi lavrado um termo de consentimento pelo arguido, redigido pela PJ (fls. 53) no qual constava que este declarava que “(…) de livre vontade e consciente da minha qualidade de arguido, cujos direitos me foram explicados, espontaneamente me prontifico para a reconstituição do facto, com a presença de elementos da Polícia Judiciária, tendo em vista esclarecer as circunstâncias do crime ocorrido hoje, entre as 2.00 e as 2.45, na via pública, concretamente nas imediações das casas de banho na ..., em B....
Mais consinto que a presente “reconstituição do facto” seja efectuado com o registo de imagens fotográficas que autorizo.
- Às 16.30 h teve início a diligência de reconstituição do facto, na qual:
- informalmente confessou a autoria dos factos;
- de livre e espontânea vontade voluntariou-se a acompanhar a PJ ao local;
- prestou as declarações aí constantes que se dão aqui por integralmente reproduzidas.
- Das fotos juntas aos autos consta:
A fls. 59 uma foto do arguido de costas com as mãos colocadas à frente da barriga (foto 1);
A fls. 60 nova foto de perfil com as mãos na mesma posição com uma toalha azul por cima das mesmas;
A fls. 61 duas fotos do arguido de costas com as mãos na mesma posição;
A fls. 62 duas fotos sendo uma de frente e outra de costas com as mãos na mesma posição e com a mesma toalha azul;
Mais duas fotos de frente a fls. 63 com as mãos na mesma posição com a dita toalha azul;
A fls. 64 nova foto de costas com a mesma posição e fls. 65 mais uma foto de frente e uma de perfil mostrando as mãos na mesma posição e a dita toalha;
- A diligência terminou às 17.30, sendo que as fotos foram tiradas durante a reconstituição do facto;
- Em todas as fotos referidas estavam inúmeras pessoas no local;
- A prova por reconstituição do facto com reportagem fotográfica de fls. 54 a 66 constava da acusação como meio de prova a usar contra o arguido, tendo o depoimento das testemunhas da PJ incidido sobre o mesmo;
- Pelo menos as fotografias de fls. 58 e ss tiradas durante tal reconstituição do facto foram levadas em conta para a formação da convicção do Tribunal (acórdão a fls. 1047 verso).
18ª Da conjugação destes meios de prova conclui-se que o recorrente estava animado de uma taxa de álcool de 1,20 g/l pelas 4.20 horas; que, se dormiu entre a hora da detenção e a hora da reconstituição, dormiu tempo insuficiente para se dizer que estava na plena posse das suas capacidades pela hora da reconstituição; e que o arguido estava algemado e notoriamente constrangido por assim se apresentar perante variadas pessoas, sem embargo do pano azul que por cima das suas mãos colocaram.
19ª Era este o estado do recorrente quando “voluntária e espontaneamente” participou na reconstituição e prestou as declarações que aí constam.
20ª A conclusão que se deve tirar das fotos do arguido juntas com o auto de reconstituição é a de que este esteve algemado durante toda a diligência de reconstituição do facto, tendo prestado as declarações constantes do auto na também algemado.
21ª Do auto de reconstituição não consta que o arguido estivesse algemado ou a razão de este assim estar, o que viola os artºs 99º nº3 e 275º nº1 do Código de Processo Penal, pelo que quod non est in actis non est in mundo e, portanto, a diligência em causa violou o artº 140º nº1 do CPP.
22ª Apesar de a reconstituição do facto estar sujeita à livre apreciação da prova, a entidade que à diligência preside, tem de fazer constar o modo em que as declarações foram prestadas e as circunstâncias em que o foram e, designadamente, para o que aqui interessa o modo como as fotografias foram tiradas e as circunstâncias em que o foram.
23ª A diligência de reconstituição está sujeita ao princípio da necessidade da diligência e nenhuma necessidade existia para se fazer a reconstituição do facto, uma vez que o próprio arguido confessava a agressão e disse-o às testemunhas que já tinham sido ouvidas pela PJ a partir das 8 da manhã.
24ª O que consta do processo são depoimentos e fotografias do arguido “maquilhados” de reconstituição, o que constitui fraude à lei violadora do princípio da lealdade processual.
25ª Daí que se entenda que foi violado o nº1 e as als. a), b) e c) do nº2 do artº 126º do CPP, pelo que tal prova é nula e não poderia servir para formar a convicção do Tribunal.
26ª Acresce que, a reconstituição do facto, por não enquadrável em qualquer das medidas cautelares dos artºs 249º a 252º do CPP, tinha que ser precedida de despacho do MP nesse sentido – artº 150º nº2 do CPP – com indicação sucinta do seu objecto, do dia, da hora e local em que ocorrerão as diligências e da forma da sua efectivação, eventualmente com recurso a meios audiovisuais.
27ª Mesmo que se entenda que a reconstituição do facto pode ser feita pelo OPC sponte sua, sempre tal diligência tem de ser validada pelo MP, o que também não aconteceu (cfr. António Latas, in Comentário Judiciário ao Código de Processo Penal, tomo III, 1ª edição, pag. 781 supra citado.
28ª Daí que, a referida diligência se deva considerar nula por falta de promoção do MP (artº 119º al. b) do CPP).
29ª No ponto 28 da matéria de facto diz-se que as testemunhas foram ao encontro da ofendida, tendo-a localizado, pelo que se pressupõem que estas sabiam onde esta se encontrava. E para saberem onde esta se encontrava, apenas o arguido lhes poderia dar tais indicações, uma vez que era este que tinha estado com a mesma, sendo que não foi dado como provado que as testemunhas tenham estado à procura da vítima e, na afirmativa, quanto tempo estiveram, o que indicia que foi assim mesmo que aconteceu.
30ª E assim sendo, o próprio arguido disse onde estava a vítima, o que afasta a conclusão de que o arguido não tenha tentado obter socorro para a vítima, no entanto, tal matéria não foi averiguada pelo Tribunal, o que se afigurava importante para a descoberta da verdade material.
31ª Se o arguido diligenciou pela chamada da GNR ao mesmo tempo diligenciou pela chamada de uma ambulância, pois a GNR sempre o faria, sendo que não se apurou, se não foi o arguido a tentar obter socorro chamando o INEM, quem foi que o fez e era importante que o fizesse porque concluindo-se o contrário também não se poderia ter por fixada a parte final do ponto 33 e o ponto 34 da matéria de facto.
32ª Tanto se pode extrair dos factos provados que o arguido tinha intenção de matar porque chamou a GNR em vez do INEM, após os factos, como se pode concluir que este se convenceu, após a agressão, que a ofendida estava morta, aliás, como esta queria que este se convencesse ao “fazer-se de morta”, não se mexendo e permanecendo com os olhos abertos – ponto 23 da matéria de facto.
33ª O Tribunal não afasta este segundo entendimento que é verosímil e que está de acordo com os factos e com as regras da experiência comum, pelo que esta possibilidade também devia ser investigada.
34ª Daqui decorre que o Tribunal incorre no vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto prevista no artº 410º nº2 al. a) do Código de Processo Penal.
35ª A alteração factual que se empreendeu nos pontos 28 e 33 do acórdão, desde o requerimento de aplicação da medida de coacção não alteram a qualificação jurídica que se deve fazer dos factos.
36ª Não se poderia dar como provado que o arguido previu que com tais condutas a poderia matar, resultado com o qual se conformou e quis, pois que, ou o arguido previu e quis com tais condutas dar a morte à ofendida ou previu que com tais condutas poderia resultar a morte, conformando-se com o resultado, porque é contraditório indiciando uma parte o dolo directo e outra o dolo eventual.
37ª Na decisão que aplicou a prisão preventiva e no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 16/12/21 (constante de fls. 303 e ss do apenso A dos presentes autos, proferido no recurso interposto pelo arguido da medida de coacção de prisão preventiva) deu-se como indiciada, com a mesma construção factual o dolo eventual.
38ª Os factos constantes do acórdão (pontos 33 e 34) são, como se disse, inconciliáveis, tendo em conta que encerram em si duas qualificações do dolo: directo e eventual (artºs 14º nº1 e 3 do Código Penal).
39ª Pelo exposto, o acórdão recorrido incorreu em contradição insanável entre os factos prevista no artº 410º nº2 al. b) do Código de Processo Penal.
40ª Quanto aos pontos 20 do acórdão deu-se como provada matéria não constante da acusação ou do despacho que determinou a alteração não substancial dos factos, dado que neste último, dizia-se que AA a certa altura começou a gritar, chamando por Deus, momento em que o arguido para a impedir de gritar pegou em terra e erva seca, encheu-lhe a boca com tais elementos e colocou una mão em cima da boca e do nariz da ofendida/assistente, impedindo-a de respirar normalmente, afirmando, repetidamente, “vou-te matar” – (parágrafo 10º do referido despacho, correspondente ao ponto 18 da acusação e ponto 20 da matéria de facto provada).
41ª No acórdão recorrido o ponto 18 da acusação, correspondente ao ponto 20 dos factos provados sofreu uma “ligeira alteração”, dando-se como provado que: AA a certa altura começou a gritar, chamando por Deus, momento em que o arguido, obstando a que ela gritasse, pegou em terra e erva seca e encheu-lhe a boca com tais elementos e colocou uma mão em cima da boca e do nariz da ofendida/assistente, assim a impedindo de respirar normalmente, afirmando, repetidamente, “vou-te matar”.
42ª No ponto 33 da matéria de facto (que não sofreu alterações com o despacho supra descrito e que corresponde ao ponto 28 da acusação) diz-se: O arguido agiu com o propósito de tirar a vida a AA, sua namorada, atingindo-a diversas vezes, predominantemente na zona da cabeça, cara, nariz e colocando-lhe terra e erva seca no interior da boca para a sufocar, prevendo que com tais condutas a poderia matar, resultado com o qual se conformou e quis, só o não logrando obter por a vítima ter fingido que estava morta e ter sido assistida atempadamente e, assim, consequentemente, por circunstâncias alheias à sua vontade.
43. Da leitura literal do ponto 20 dos factos provados parece (embora com dúvidas quanto à interpretação do trecho do acórdão) que aí não se espelha a intenção do arguido ao colocar terra e erva seca no interior da boca da ofendida, deixando a descrição da intenção do arguido ao empreender tal conduta para o ponto 33 dos factos provados (para a sufocar), ao contrário do que expressamente sucede com o ponto 18 da acusação e com o parágrafo 10º do despacho que determinou a alteração não substancial (para a impedir de gritar).
44ª Se assim se entender, o douto acórdão é nulo por alteração substancial dos factos, uma vez que se trata de um acto de execução do crime tentado (artº 359º nº1 e 379º nº1 al. b) do Código de Processo Penal).
45ª Se se entender que com a alteração dos factos constantes do despacho e a alteração dos factos empreendida no acórdão no ponto 20 se mantém a interpretação de que o arguido colocou a terra e a erva seca para a ofendida não gritar e ao dar-se como provado no ponto 33 que o arguido colocou a terra e a erva seca na boca da ofendida para a sufocar, nesse caso existe contradição insanável entre os factos prevista no artº 410º nº2 al. b) do Código de Processo Penal que deve ser decretada.
46ª Dos pontos 23 e 24 da matéria de facto extrai-se que o arguido, após a ofendida se fingir de morta, não se mexer e abrir os olhos, o arguido ainda a abanou e pisou-lhe a cara duas vezes, ou seja em momento posterior a esta não ter reacção, pelo que resulta inconciliável com tais pontos de facto dar-se como provado no ponto 29 que este só parou de agredir a vítima nos termos descritos quando a mesma deixou de ter qualquer reacção e por achar que já a mesma estava morta.
47ª Aliás, na fundamentação do acórdão recorrido dá-se como argumento para se concluir pela intenção de matar exactamente o facto de o arguido ter agredido a vítima depois de esta se ter fingido de morta – cfr. 9º parágrafo de fls. 1052 – e logo no parágrafo seguinte dá-se como argumento para se concluir pela intenção de matar a circunstância de o arguido só ter parado de agredir a vítima quando esta deixou de ter qualquer reacção e por achar que estava morta – parágrafo 10º de fls. 1052.
48ª Pelo exposto, o acórdão recorrido incorreu no vício de contradição insanável entre os factos provados, entre os factos provados e a fundamentação e na fundamentação, prevista no artº 410º nº2 do CPP que deve ser decretado.
49ª Os pontos 21, 23 e 24 chocam com os dados da experiência comum, porquanto uma pessoa que está a começar a sufocar não consegue ao mesmo tempo “fazer-se de morta”, não se mexer e deixar os olhos abertos, uma vez que as dificuldades que tem em respirar impelem-na a tossir, ter espasmos, fechar os olhos enquanto o faz e, se estiver deitada, a pôr a cabeça de lado para expelir o que a impede de respirar.
50ª Por outro lado, atenta da mesma forma contra as regras da experiência comum que uma pessoa – ainda para mais depois de ter sido agredida da forma como descreve o acórdão nos pontos antecedentes – já marcada na face pelas agressões de que foi vítima consiga não reagir ao ser abanada e pisada por duas vezes na cara – local onde foi agredida.
51ª Na verdade, as dores impeliriam a ofendida a reagir fugindo com a cara, sendo certo que esta estava desperta e consciente, tendo em conta que, como forma a furtar-se a continuar a ser agredida, de forma consciente e lúcida teve a ideia de se fazer de morta, não se mexer e abrir os olhos.
52ª Ao dar como provados os factos constantes dos pontos 21, 23 e 24 o acórdão recorrido incorreu em erro notório na apreciação da prova que deve ser decretada (artº 410º nº2 al. c) do Código de Processo Penal).
53ª No ponto 34 da matéria assente diz-se que o arguido actuou com calma, quando da restante matéria de facto assente, designadamente dos pontos 12 a 24 conclui-se exactamente no sentido inverso.
54ª Tal conclusão derivaria, desde logo do facto de este ter tido uma discussão com a vítima – ponto 12 da matéria de facto – e quando se tem uma discussão com razão ou sem ela, não se está, naturalmente, calmo.
55ª Da leitura deste trecho da factualidade dada como provada extrai-se que o Tribunal concluiu que o arguido agiu por ciúmes através do depoimento do arguido e da ofendida e que o arguido actuou calmo, tendo em conta o depoimento da testemunha DD – cabo da GNR.
56ª Mesmo que se considere credível o depoimento do referido agente da GNR, a testemunha em causa chegou ao local cerca de meia hora após os factos, pelo que da eventual postura do arguido após as agressões, não se pode concluir que este agiu com calma.
57ª Dar-se como provada uma discussão entre duas pessoas, seguida de uma agressão e ao mesmo tempo dar-se como provado que o agiu durante essas agressões calmo, com base no depoimento de uma testemunha que compareceu no local após a discussão e as agressões, revela a ocorrência do vício de erro notório na apreciação da prova (artº 410º nº2 al. c) do CPP) que deve ser decretado.
58ª O Tribunal considerou as declarações da assistente como completas, desinteressadas e coerentes e as declarações do arguido incompletas e interessadas. No entanto, não se diz o porquê de o Tribunal ter chegado a tal convicção, ou seja, o porquê de se terem por completas, desinteressadas e coerentes e as declarações do arguido incompletas e interessadas.
59ª Se se pode perceber o porquê de se ter concluído que as declarações da assistente foram coerentes (eventualmente porque coonestadas pela testemunha EE em conjugação com as regras da experiência comum que a seguir analisaremos), já não se percebe, porque não se diz na fundamentação, porque é que se consideraram completas e desinteressadas, sendo certo que algum interesse teria a ofendida na demanda, tendo em conta que se constituiu assistente e deduziu pedido de indemnização civil, o que, naturalmente, quer dizer que estava interessada na condenação do arguido e, não menos naturalmente, na obtenção de uma indemnização.
60ª Por sua vez, o depoimento da testemunha EE terá sido calmo, sereno e seguro, nesta parte, sendo que o Tribunal também não afirma o porquê de assim ter entendido.
61ª Quanto às declarações do arguido já não se consegue perceber o porquê de estas terem sido julgadas incompletas e interessadas, quando o arguido confessou a agressão e, do seu ponto de vista, não tinha qualquer interesse em divulgar que tinha sido traído, quando, na verdade, nem o teria sido.
62ª O acórdão diz que não acreditou no arguido quando este disse que a testemunha e a ofendida estavam a ter relações sexuais, porque ainda esteve um tempo a conversar com a ofendida antes de a agredir, pelo que se tivesse visto partiria logo para a agressão.
63ª Ora, a conversa referida na fundamentação não consta dos factos provados e não provados. O que consta da fundamentação é que o arguido encetou uma discussão e que a determinada altura começou a agredi-la, o que é bem diferente e inconciliável.
64ª Dos pontos 9 a 13, o que decorre do acórdão é que a explicação da ofendida para o que estava a fazer com o referido EE já foi dada quando a agressão já tinha começado, pelo que não era inócuo enumerar-se o facto de o arguido e a ofendida terem conversado antes da discussão e quanto tempo estiveram a conversar.
65ª Daí que se entenda que existe, nesta parte uma fundamentação deveras insuficiente não demonstrando o Tribunal o percurso lógico-racional de que partiu para concluir por aquele exame crítico dos depoimentos, por um lado e que não enumerou todos os factos que entendeu como provados, pelo que se deve entender que nesta parte o acórdão enferma do vício de falta de fundamentação (artºs 374º nº2 e 379º nº1 al. a) do CPP).
66ª O Tribunal baseia-se nas regras da experiência comum para afirmar que as referidas relações sexuais não ocorreram porque os intervenientes tinham mais de 40 anos, estava próximo um local onde podiam fazer as coisas às escondidas.
67ª Essas não são regras da experiência comum, mas antes o que o Tribunal hipoteticamente faria na mesma situação, o que não se coaduna com o circunstancialismo apurado, porquanto - o arguido, a ofendida e a testemunha EE estavam numa festa de aniversário que durava desde as 11 da manhã de um sábado – 4/9/21 -, sendo que o arguido e a ofendida chegaram durante a tarde (ponto 5 da matéria de facto);
- Os factos ocorreram entre as 2:00 e as 2.30 horas do dia 5/9, o que se extrai dos pontos 7, 8, 26 e 27 da matéria de facto assente, sendo que depois das 2:00 horas:
- o arguido e a ofendida percorreram 150 metros até à casa de banho – pontos 7 e 8 -;
- o arguido fez mais 150 metros quando regressou ao sítio onde decorria a festa, durante os quais conversou com o FF, o GG e um grupo de pessoas angolanas – ponto 8.
- o arguido fez mais 150 metros para chegar novamente às casas de banho onde “surpreendeu” a ofendida e a testemunha, o que se extrai da conjugação dos pontos 7, 9 e 10; e
- o arguido fez mais 150 metros quando saiu da beira da ofendida e chegou ao local onde se desenrolava a festa – os mesmos pontos de facto e o ponto 27.
- Ou seja, o arguido fez cerca de 600 metros entre as 2:00 e as 2:30 horas, durante os quais conversou com duas pessoas e um grupo e terá estado ainda algum tempo – presume-se – junto das restantes pessoas, quando regressou da casa de banho, o que coloca a hora da prática dos factos mais próximo das 2.30 horas do que das 2:00.
- A ofendida e o arguido chegaram à festa durante a tarde, pelo que, mesmo que se entenda que chegaram pelas 19 horas, já lá estavam há mais de 7 horas, quando ocorreram os factos.
- Numa festa de aniversário come-se e bebe-se (esta sim, uma regra retirada da experiência comum), sendo que, apesar de não constar dos factos provados ou não provados, se o auto de notícia se considerar prova válida, o arguido era portador de uma taxa de alcoolemia de 1,20 g/l – fls. 4 dos autos.
- A ofendida e o EE estiveram a beber também, sendo que a ofendida, pelo menos desde as 19 horas, e o EE desde as 20 ou 21 horas – horas a que cada um chegou à festa -, ou seja, bebiam pelo menos há mais de 7 horas a ofendida e, pelo menos, há mais de 5 horas o referido EE, o que se retira das regras da experiência comum e do facto que também não foi dado como provado ou não provado, mas que releva para o caso, de terem sido encontradas duas cervejas ... no local – fls. 83.
68ª O Tribunal não pode julgar os outros como se fosse o próprio, tem, naturalmente, que ter em conta o concreto circunstancialismo em que decorreram os factos, a mentalidade e forma de agir dos intervenientes e os seus hábitos, o que não aconteceu.
69ª A ofendida e a testemunha são brasileiros, têm vivências e mundividências totalmente diferentes dos portugueses, existindo estudos citados na motivação que apontam para um crescimento do consumo de bebidas alcoólicas e alterações de hábitos, quando os brasileiros saem do seu país, mas esses factores tal como os supra enumerados não foram levados em conta nas alegadas “regras da experiência comum”
70ª Como afirma o acórdão do TC de 1/7/97, publicado in DR IIª Série de 12/1/08), citando Castanheira Neves “A liberdade do juiz é um critério de justiça que não prescinde da verdade histórica das situações nem do contributo de dados psicológicos, sociológicos e científicos para a certeza da decisão.”
71ª Por outro lado, a reacção que cada pessoa tem ao álcool é muito diversa, podendo-a levar a empreender condutas totalmente inusitadas e inesperadas, como assinala o estudo supra citado, sendo certo que dúvidas não restam que quer a ofendida, quer a testemunha estiveram a beber.
72ª No entanto, ainda que assim não fosse de entender, o Tribunal, pelo menos, deveria:
- dar como provado ou não provado o facto de o arguido possuir uma taxa de álcool de 1,20 g/l;
- investigar se a testemunha e a ofendida estiveram a beber,
Antes de afoitamente lançar mão de uma regra de experiência comum que não se coaduna com as circunstâncias especiais do caso em julgamento.
73ª Lido o acórdão não fica esclarecido porque é que a ofendida e a testemunha se encontraram imprevistamente nas traseiras da casa de banho, uma vez que é um local no mínimo inusitado para alguém se encontra de forma imprevista e para ter uma conversa…
74ª Não fica esclarecido do acórdão, por que razão se deu como provado que a testemunha e a ofendida foram surpreendidos pelo arguido e por que razão este ficou desagradado com a situação.
75ª Se apenas estavam a conversar e sabiam que o arguido estava no local, nenhuma surpresa poderia haver pela presença do arguido, antes devendo ser encarada como uma circunstância normal.
76ª Por outro lado, não se percebe do acórdão se o arguido ficou desagradado com a situação porque ficava sempre desagradado quando a ofendida falava com pessoas do sexo masculino ou só dessa vez ou se era normal o arguido reagir violentamente de cada vez que a ofendida falava com uma pessoa do sexo masculino, agredindo-a. Não se deu como provado tal facto, nem qualquer outro quanto a esta matéria.
77ª Não se compreende porque é que a ofendida teve a necessidade de dizer que a testemunha apenas estava a conversar com ela, quando o arguido viu que era só uma conversa, embora o Tribunal não diga qual era.
78ª Também não se compreende da leitura do acórdão por que razão o arguido ripostou dizendo que era uma “traição” se era o que fazia sempre que via a ofendida a falar com pessoas do sexo masculino ou se foi só dessa vez.
79ª O Tribunal também não esclarece se apesar de não ter havido “traição” o arguido ficou convencido que houve e que a testemunha e a ofendida mantiveram relações sexuais ou contactos de cariz sexual.
80ª Na fundamentação do acórdão relativa ao depoimento da testemunha EE diz-se que este depois de uma troca de palavras com o arguido e com a ofendida saiu do local. Mas não se diz que “troca de palavras” foi essa, designadamente se, logo nesse momento, o arguido disse que estariam a ter relações sexuais ou a conversa foi de outro teor.
81ª Também não se explica por que razão a ofendida referiu à PJ, apresentando queixa por tais factos, que quando “(…) não tinha mais forças para resistir, o BB lhe meteu a mão dentro dos calções e colocou os dedos com força dentro da vagina” – fls. 20 (relatório da PJ), 138 (requerimento do MP para aplicação das medidas de coacção) e 147 e seguintes (despacho que aplica a prisão preventiva) – e depois quando depõe a 12/10/21 (cfr. fls. 318) já afirma que afinal o arguido não colocou os dedos dentro da vagina e disse não querer procedimento criminal quanto a esse facto ou porque não foi sujeita a exame ginecológico por causa desses factos
82ª Teria a ofendida concluído que teriam que fazer um exame ginecológico, temendo que pudessem descobrir que, afinal, a ofendida teve mesmo relações sexuais com a testemunha EE
83ª A nenhuma destas questões nos responde a matéria de facto ou a fundamentação do acórdão recorrido.
84ª E não se diga que era indiferente aquilatar da motivação do arguido, pois que ter existido ou o arguido ter suspeitado de que teria ocorrido uma infidelidade por parte da ofendida constitui a motivação, o móbil do crime, sendo que a darem-se como provados tais factos estes não se podem reconduzir apenas ao ciúme conclusivamente aposto no ponto 34 da matéria de facto.
85ª Na verdade, não se pode qualificar o tipo de crime de homicídio pelo facto de o agressor namorara com a vítima em face dos deveres que esta relação cria e, ao mesmo tempo, considerar que um desses deveres não é o de fidelidade e considerar desnecessário aquilatar de tal facto.
86ª A resposta a todas estas questões era importante para a descoberta da verdade material, sendo que o Tribunal devia investigar tais factos, por forma a chegar à verdade material, mas não o fez.
87ª O acórdão recorrido ao não expor as razões pelas quais deu como credíveis os depoimentos da testemunha e da ofendida e não credível o depoimento do arguido incorreu em nulidade por falta de fundamentação; ao ponderar uma regra da experiência comum que não se coaduna com o circunstancialismo apurado e que não passa de uma regra da experiência do próprio tribunal, incorreu em erro notório na apreciação da prova e ao não investigar as questões que antes se enumeram incorreu em insuficiência para a decisão da matéria de facto, vícios que devem ser decretados com as consequências legais.
88ª O acórdão funda o ponto 42 da matéria de facto de forma confusa, contraditória e violadora do artº 163º do Código de Processo Penal, uma vez que num local diz que se fundou em testemunhas noutro no conteúdo dos certificados de incapacidade temporária acima mencionados sob a al. h) do acervo da prova documental).
89ª O julgador não fundamentou a divergência para com o relatório pericial, apenas invocando os certificados de incapacidade para o trabalho como meio de prova que infirma o relatório pericial que dá 45 dias de incapacidade para o trabalho à ofendida.
90ª Por outro lado, independentemente da importância da fixação de tal matéria de facto, esta não vem alegada na acusação ou no pedido de indemnização civil (o artº 30º do pedido cível remete apenas para os documentos).
91ª Ao não fundamentar ou ao fundamentar deficientemente a divergência com o relatório pericial o tribunal olvida o valor da prova vinculada, submetendo-a ao princípio da livre apreciação da prova, o que determina a ocorrência de erro notório na apreciação da prova. (Neste sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21/6/10, relatado por Maria Augusta e publicado in www.dgsi.pt e o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 7/1/04, publicado in CJ XXIX, tomo I, 39 supra citados e transcritos.
92ª No ponto 2 dos factos provados o Tribunal deu como assente que o arguido passou a ter um comportamento possessivo e ciumento com AA, exigindo que fosse submissa e que lhe obedecesse, principalmente à frente dos seus amigos, mas não diz quando, em que circunstâncias de tempo e lugar ou o porquê quais os factos que subjazem à consideração do arguido como pessoa possessiva.
93ª A indefinição temporal e circunstancial, impede o efectivo e eficaz contraditório de tal matéria, colidindo com o direito à contra argumentação, enquanto parte integrante do direito de defesa constitucionalmente tutelado pelo arº 32º nº1 da CRP.
94ª As imputações genéricas não são factos, violam os direitos de defesa do arguido, violam igualmente, por isso, o princípio do processo equitativo, resultando daqui que não podem sustentar uma acusação e, muito menos, uma condenação penal.
93ª O ponto 2 da matéria de facto não é ou não foi irrelevante para o Colectivo, pois que se assim acontecesse certamente que o Colectivo não o levaria ao rol de factos provados e, por outro, tal facto serve para “encorpar” e adensar a conclusão de que a motivação do crime foi o ciúme.
94ª Não deixa de ser demonstrativo da credibilidade do depoimento da ofendida que o seu discurso quanto a esta matéria – tal como relativamente ao alegado abuso sexual - se tenha alterado totalmente ao longo do processo.
95ª Com efeito, no relatório de diligências iniciais da PJ de fls. 12 e seguintes (concretamente fls. 20) afirma-se que a queixosa afirmou aos elementos dessa Polícia que “(…) o BB nunca tinha demonstrado ser ciumento antes (…).”
96ª Mas no acórdão (cfr. fls. 1049 verso) já se afirma que a prova do facto nº2 derivou do depoimento da assistente e até do que a assistente havia relatado a terceiros: A prova do ponto 2. dos factos provados emergiu essencialmente da conjugação das declarações prestadas pela ofendida (que, no geral, foram sentidas, vívidas, expressivas, providas de indubitável razão de ciência e coerentes), com os depoimentos de HH (que declarou que a assistente uma vez lhe tinha comunicado que o arguido era ciumento) e EE (que declarou que a ofendida/assistente lhe comunicou que o arguido não lhe dava espaço).
96ª Ou seja, independentemente de se verificar que no acórdão se fizeram juízos conclusivos, certo é que os depoimentos da ofendida quanto a tal matéria foram contraditórios e não credíveis.
97ª Nos pontos 1, 2, 33 e 81 dos factos provados e na al. a) dos factos não provados fala-se numa relação de namoro, sendo que As alterações levadas a cabo pela Lei nº 16/2018 de 27/3 no artº 132º nº2 al. b) do CP – e antes dela pela Lei 19/13 que introduziu “a relação de namoro” no tipo da violência doméstica -tornaram o “namoro” num conceito de direito que tem que ser densificado ou pela lei ou pela jurisprudência e pela doutrina, mas seguramente através de factos que constem na acusação.
98ª Para se concluir pela existência de uma relação de namoro têm que ser dados como provados factos nesse sentido (cfr. os supra citados acórdãos).
99ª O Colectivo não deu como provados ou não provados quaisquer factos de onde derive a conclusão de que o recorrente e a ofendida mantivessem uma relação de namoro, designadamente não há qualquer facto de onde derive, como se diz no acórdão recorrido, que a relação do recorrente e da arguida desfrutava de uma intimidade estável e continuidade, distinta de relações fortuitas, aludindo a um conjunto de deveres e proximidade entre os sujeitos envolvidos, confiança e dever de respeito que também não concretiza factualmente.
100ª Daí que, não tendo a decisão recorrida concretizado os factos em que se consubstancia o conceito de namoro fez uso de factos conclusivos.
101ª Os factos constantes do ponto 2 e a “relação de namoro”, sendo um “não facto”, ou seja, sendo um conceito de direito e conclusivo deve ser tido por não escrito, nos termos dos acórdãos supra citados.
102ª Pelo exposto, devem tais “factos” ser dados como não escritos, pelo que o arguido deve ser absolvido do crime de homicídio qualificado na forma tentada pelo qual foi condenado.
103ª A norma do nº1 do artº 132º do Código Penal lança mão de conceitos imprecisos e indeterminados e o nº2 al. b) da mesma norma, lança mão precisamente dos mesmos conceitos, pelo que nem um complemente o outro, nem o primeiro determina o segundo.
104ª Uma relação de namoro, por muito que fosse concretizada factualmente – e não o é - não é substancialmente idêntica a um casamento ou a uma união de facto.
105ª Nenhuma razão, seja ela legal, social ou histórica leva a que se considere o namoro como uma situação substancialmente análoga ao casamento ou à união de facto, muito menos nos tempos que correm.
106ª Pelo exposto, o artº 132º n 1 e 2 al. b) do Código Penal ao fazer depender a qualificação do homicídio de uma relação de namoro, sem que exista uma definição legal e um regime legal que determine os deveres e os direitos conferidos aos parceiros dessa relação e da mesma forma por conferir um tratamento idêntico ao “namoro” e ao casamento ou à união de facto com coabitação ou sem coabitação, punindo o crime de homicídio qualificado com a mesma pena num e noutro caso, é inconstitucional por violação do disposto no artº 2º, 13º, 18º nº2 (princípio da proporcionalidade), 20º nº4, e 29º nº1, 3 e 4 110º nº1 e 111º da Constituição, designadamente do princípio da culpa, da legalidade, da tipicidade e da necessidade da lei penal.
107ª Da mesma forma, o artº 132º n 1 e 2 al. b) do Código Penal interpretado no sentido de que a relação de namoro constitui uma situação substancialmente análoga à do casamento ou da união de facto para efeito da qualificação do homicídio, sem que exista uma definição legal e um regime legal que determine os deveres e os direitos conferidos aos parceiros dessa relação e da mesma forma por conferir um tratamento idêntico ao “namoro” e ao casamento ou à união de facto com coabitação ou sem coabitação, punindo o crime de homicídio qualificado com a mesma pena num e noutro caso, é inconstitucional por violação do disposto no artº 2º, 13º, 18º nº2 (princípio da proibição do excesso ou da proporcionalidade), 20º nº4 e 29º nº1, 3 e 4, 110º nº1 e 111º da Constituição, designadamente do princípio da culpa, da legalidade, da tipicidade e da necessidade da lei penal.
108ª Por outro lado, o artº 132º n 1 e 2 al. b) do Código Penal ao considerar a relação de namoro uma situação de facto que reveste especial censurabilidade e perversidade que leva à consideração do crime de homicídio sobre o parceiro como qualificado, é inconstitucional por violação do disposto no artº 2º, 13º, 18º nº2 (princípio da proibição do excesso ou da proporcionalidade), 20º nº4 e 29º nº1, 3 e 4, 110º nº1 e 111º da Constituição, designadamente do princípio da culpa, da legalidade, da tipicidade e da necessidade da lei penal.
109ª O dolo (representação e vontade) deve abranger todos os elementos típicos do crime incluindo os elementos qualificativos e agravativos do tipo de crime.
110ª Quer isto dizer que para que se pudesse entender que os factos da acusação e constantes do acórdão preenchiam o tipo de crime de homicídio qualificado teria que se alegar e provar que o arguido sabia que mantinha uma relação de namoro com a vítima, que agia movido pelo ciúme e que tais factos tornavam a sua conduta especialmente censurável, mas ainda assim não se absteve de empreender tal conduta, sem o que não se pode considerar que a conduta descrita é qualificada.
111ª Mesmo aqueles que entendem que as circunstâncias qualificativas do crime não fazem parte do tipo, defendem que o dolo deve abranger tais circunstâncias qualificativas (Neste sentido, Teresa Vaz Serra, in ... e Medida da Pena, Almedina, 1990, pág. 77
112ª Pelo exposto, não tendo sido alegada na acusação ou dada como provada a factualidade concernente ao dolo das circunstâncias qualificativas do homicídio, deveria o arguido ser condenado pelo crime de homicídio simples na forma tentada.
113ª O ciúme não constitui motivo torpe para efeito de qualificação do crime de homicídio e também no caso concreto não serve (neste sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido no Proc. nº 1069/16.1JABRG.G1 datado de 9 de abril de 2018, relatado por Jorge Bispo, publicado in www.direitoemdia.pt: o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-04-2016 – Proc nº 830/09.8PBCTB.C1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt, o acórdão do STJ proferido no Proc. nº 111/12.0 PTLRS.L1.S1 de 19/12/19, relatado por Margarida Blasco, publicado in www.direitoemdia.pt e o acórdão do STJ de 2/2/22, proferido no Proc. nº 74/21.0 GBRMZ.S1, relatado por Lopes da Mota, publicado in www.dgsi.pt:
114ª Deve o acórdão recorrido ser revogado nesta parte, designadamente não considerando o homicídio qualificado por motivo torpe ou fútil.
115ª O acórdão padece manifestamente de falta de fundamentação quanto à ocorrência da especial perversidade e censurabilidade.
116ª Apesar de se ter feito a destrinça entre especial perversidade e especial censurabilidade não se afirma como se qualifica a conduta do recorrente.
117ª Da mesma sorte, tendo por assente que não basta o preenchimento de um dos exemplos padrão para o preenchimento do tipo de crime, também não se explica o porquê de se entender que a conduta preenche os pressupostos da especial perversidade ou censurabilidade, designadamente quais os factos que em concreto nesse sentido apontam.
118ª Também se fica sem perceber porque é que tal motivo indicia a especial perversidade ou censurabilidade prevista no nº 1 do artº 132º do CP ou quais os factos em que assenta para assim concluir, sendo que da mesma forma o acórdão recorrido não indica se se encontra prova a especial perversidade ou a especial censurabilidade.
119ª Daí que, também nesta parte o acórdão recorrido é nulo, por violação do disposto nos artºs 374º nº2 e 379º nº1 al. a) do Código de Processo Penal.
120ª A pena aplicada ao arguido a pena aplicada ao arguido sempre deveria ser pouco superior ao mínimo legal.
121ª Não se levou em conta que:
a) houve uma discussão entre a vítima e o arguido;
b) o recorrente foi movido por ciúme;
c) a vítima e o arguido encontravam-se alcoolizados por força de todo um dia a beber.
122ª O modo de execução do crime não foi especialmente desvalioso, uma vez que o arguido não se muniu de qualquer instrumento contundente para alegadamente dar a morte à ofendida.
123ª Todos estes factos levam a um menor grau de censura quanto à conduta do arguido que não se compaginam com a pesada pena de 7 anos de prisão que lhe foi aplicada.
124ª O juízo de prognose a fazer é o de que o arguido não está preparado para manter uma conduta desconforme ao Direito e que o ciúme de que o arguido foi acometido e o facto de este e a ofendida terem ingerido álcool influenciou a sua conduta.
125ª No acórdão compara-se a conduta do arguido que agrediu a ofendida com as próprias mãos à conduta de quem agrediu com ácido sulfúrico (10 anos), uma faca (7 anos) e com uma moto-serra (9 anos) para concluir que era ajustada a pena de 7 anos.
126ª O arguido apenas usou as suas mãos, as lesões causaram um período de incapacidade de 45 dias para a cura, sendo que as repercussões permanentes na vida da ofendida têm que ver com cefaleias, ao contrário das vítimas de todos os acórdãos citados na motivação, nos quais, evidentemente, as vítimas ficaram com um dano estético assinalável e até privadas dos sentidos e de membros.
126ª Pelo exposto, satisfaria as necessidades de prevenção geral e especial a aplicação ao arguido de uma pena de 3 anos suspensa na sua execução por igual período com regime de prova frequentando o arguido curso da DGRS para controlar a violência e para a sua dissuasão, o que seria suficiente para afastá-lo da prática de crimes.
127ª A demandante constituída assistente foi notificada do despacho de acusação, através do seu patrono, no dia 7/3/22 – carta expedida a 2/3, cfr. fls. 566 dos autos -, pelo que o prazo para deduzir pedido de indemnização civil até ao dia 17/3/22.
128ª Sucede que, a demandante apresentou pedido de indemnização civil no dia 22/3/22 (cfr. fls. 655 dos autos) e, portanto, extemporaneamente.
129ª Daí que deva ser julgado não apresentado o pedido de indemnização civil.
130ª Os pontos 37 a 59 da matéria de facto assente reflectem o julgamento que foi feito por parte do Tribunal relativamente ao pedido de indemnização civil, mas lida a fundamentação do acórdão não se encontra rasto da fundamentação da prova de tais factos, com excepção para o ponto 42 da matéria de facto.
131ª Assim, o Tribunal não indica os meios de prova de que se serviu para fixar a matéria de facto ou faz o exame crítico de tais meios de prova, pelo que se deve considerar que o acórdão é nulo por falta de fundamentação nesta parte (artº 374º e 379º nº1 al. a) do Código de Processo Penal).
132ª A perícia médico legal levada a efeito nos presentes autos é lacunosa, tendo em conta que o Colectivo nunca proferiu despacho a ordenar a perícia e, por consequência, elaborou quesitos quanto a tal matéria – artº 154º nº1 do CPP. Tal facto levou o Tribunal a dar como assentes factos que dependem, em absoluto, da comprovação por perícia médico-legal com base em depoimentos testemunhais (uns de testemunhas que de medicina nada sabiam e outros cujos conhecimentos em medicina legal se desconhece, como sejam o médico que passou os certificados de baixa da ofendida – Dr. II – e o médico neurocirurgião que assistiu a ofendida quando esta foi levada para o Hospital na data dos factos – o Dr. JJ) e ainda a divergir do relatório pericial final de fls. 1012 e ss (com base no depoimento do primeiro dos médicos referidos).
133ª Por outro lado, apesar de o juízo pericial sobre a intenção de matar constituir um juízo de probabilidade sobre essa intenção, por assim o entender a doutrina e a jurisprudência – cfr. neste sentido Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal – 4ª edição actualizada, pag. 458 -, é entendimento do recorrente que tal juízo de probabilidade era importante para a descoberta da verdade material.
134ª De facto, a constatação sobre se os actos praticados pelo arguido são idóneos a produzir o resultado típico – artº 22º nº2 al. b) do CP – só pode ser extraída através de perícia.
135ª Assim, o Tribunal deu como provada a matéria dos pontos 41 a 43, 47 e 52 a 58 que não poderia ser dada como provada sem que fosse feita uma perícia médico-legal à mesma destinada.
136ª Os pontos 32, 33, 41, 42, 52, 54 e 55 deram-se como provados factos (a intenção de matar, o perigo para a vida, a ajuda de terceira pessoa, as dores, os ataques de ansiedade) que dependiam de uma perícia médico-legal relativa ao dano corporal, uma vez que tal prova depende de um juízo técnico e científico que não pode ser feito pelo juiz de julgamento.
137ª Os pontos 43, 47, 52, 56 a 58 para serem dados como provados deveriam ser alvo de perícia do campo da Psicologia que não foi realizada.
138ª O julgador por muitos méritos que se lhe reconheçam não tem conhecimentos para se abalançar no julgamento de tais factos, por um lado e, por outro, as testemunhas ouvidas, mesmo as médicas, não são da especialidade exigida para formar a convicção do Tribunal (o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Maio de 1990, publicado no B.M.J. 397, pág. 349)
139ª A convicção do tribunal não pode fundar-se em convicções interiores do julgador e, como tal, não sujeitas a qualquer contraditório, tem de revelar-se através da prova produzida em audiência de julgamento ou noutros meios de prova admissíveis e previstos no Código de Processo Penal, não indo a livre apreciação da prova pelo Tribunal tão longe quanto foi no acórdão recorrido, violando frontalmente o princípio do contraditório.
140ª Assim, deve considerar-se a douta sentença proferida nula, por falta de fundamentação, nos termos do disposto no artº 379º n.º1 al. c) do Código de Processo Penal.
141ª Mesmo que assim não se entenda porque não se realizou tal perícia violou-se o artº 340º nº1 do Código de Processo Penal e resultou um erro de julgamento.
142ª No acórdão recorrido não se diz de que forma os factores referidos no artº 494º do Código Civil afectaram a fixação da indemnização ou sequer como esta foi fixada de acordo com juízos de equidade.
143ª E o acórdão não fixou a situação económica do recorrente, designadamente quanto este aufere pelo seu trabalho, o que determina a nulidade do acórdão por violação do disposto nos artºs 374º nº2, 377º nº1 e 379 nº1 al. a) do Código de Processo Penal.
144ª O valor fixado pelo acórdão é muito próximo daquele que os tribunais actualmente fixam pelo dano morte, sendo que a ofendida sofreu 45 dias de incapacidade e ficou com sequelas permanentes, embora não desprezíveis, diminutas em face de casos idênticos, pelo que uma indemnização fixada em 20.000 € satisfaria as exigências de equidade, reprovação e compensação do mal sofrido.
145ª O acórdão recorrido violou ou fez errada aplicação do disposto nas normas citadas nas conclusões e motivação que aqui se dão por reproduzidas para todos os efeitos legais brevitatis causa, não podendo, pois, manter-se.

Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas. No que o patrocínio se revelar insuficientes deve ser concedido provimento ao recurso e o arguido absolvido do crime pelo qual foi condenado, por só assim se fazer JUSTIÇA!”

Na primeira instância, o Digno Magistrado do Ministério Público, notificado do despacho de admissão do recurso apresentado pelo arguido, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, apresentou douta resposta em que defende seja negado provimento ao recurso (referência ...20).
Formulou as seguintes conclusões (transcrição):
“1. O Tribunal da Relação só pode modificar a decisão recorrida em termos de facto quando a prova imponha decisão diversa daquela que foi tomada pelo tribunal recorrido.
2. Se a prova indicada no recurso permitiria, eventualmente, uma decisão diversa da recorrida mas não a impõe, o recurso não pode merecer provimento, por não poder o Tribunal de recurso, em casos destes, bulir na decisão recorrida.
3. A perspectiva que o recorrente traz da prova, admitindo-se como defensável, não é única; e não o sendo, não impõe decisão diversa da recorrida.
4. O acórdão recorrido nenhuma censura merece no que à apreciação da prova feita em audiência de discussão e julgamento e no que aos factos de tal prova retirados respeita.
5. Em todo o caso, o recorrente, não obstante discordar da avaliação da prova efectuada pelo Tribunal a quo, não indica, como lhe competia nos termos do disposto no artigo 412º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal, os elementos probatórios que no seu entender impunham decisão diversa, neste caso de absolvição ou de diferente enquadramento jurídico-penal.
6. Considerando o manancial fáctico provado, temos por certo ter o arguido BB praticado o crime de homicídio tentado (tipo fundamental ou matricial) de cuja prática se encontra acusado, em virtude de estarem verificados todos os seus requisitos, a nível objectivo e volitivo.
7. Cumpre atentar à forma de actuação do arguido descrita nos factos provados e às lesões sofridas pela ofendida em consequência da conduta do arguido, descritas nos pontos 31., 32., 37., 38. e 39. dos factos provados, sendo que, pelo menos a lesão descrita em 32. lhe provocou perigo para a vida nos termos ali identificados.
8. O propósito de tirar a vida à ofendida, sua namorada, decorre da circunstância de a ter atingido diversas vezes, predominantemente na zona da cabeça, cara, nariz e lhe ter colocado terra e erva seca no interior da boca para a sufocar, prevendo que com tais condutas a poderia matar, resultado com o qual se conformou, só o não logrando obter por a vítima ter fingido que estava morta e ter sido assistida atempadamente e, assim, consequentemente, por circunstâncias alheias à sua vontade.
9. Os factos apurados e dados como provados, levam à conclusão inequívoca que o arguido actuou com dolo directo.
10. A sequência de actos praticados pelo arguido são de modo a concluir que o mesmo persistiu na realização do acto, tendo praticado actos de execução do tipo legal de homicídio.
11. Por outro lado, os actos praticados são adequados a produzir o resultado típico: a morte de outra pessoa, no caso, sua então namorada.
12. Porém, apesar de tal acção, o resultado não se chegou a verificar, por facto independente da vontade do arguido.
13. Os actos praticados pelo arguido subsumem-se a actos de execução, integradores da tentativa de um crime de homicídio.
14. As condutas apuradas integram as qualificativas previstas no artigo 132º, n.º 1 e n.º 2, alíneas b) e e), do Código Penal.
15. No que respeita à relação de namoro não se percebe as objecções ora apresentadas pelo recorrente. O arguido admitiu nas suas declarações em sede de audiência de julgamento que mantinha, desde Maio de 2021, tal relação com a ofendida, na senda do que lhe vinha imputado na acusação.
16. O conceito de namoro não é originariamente jurídico mas social.
17. A relação de namoro, pressupõe uma intimidade estável e continuidade, distinguindo-se de relações fortuitas e trazendo consigo um conjunto de deveres e proximidade entre os sujeitos envolvidos.
18. A relação com a ofendida admitida pelo arguido é, naturalmente, uma relação alicerçada numa ligação íntima afectivo-amorosa, com um grau considerável de estabilidade e continuidade. Basta atentar que a relação se iniciou em Maio de 2021 e os factos correram em Setembro de 2021.
19. Por outro lado, também se verifica um motivo fútil, dado que o arguido adoptou as referidas condutas como reacção ao facto de ter presenciado a sua então namorada a conversar com o seu amigo EE, nos termos descritos em 9.
20. Constitui um motivo de “importância mínima”, demonstrando-se uma inequívoca desproporção entre o motivo e a extrema reação homicida.
21. Ao contrário da pretensão do recorrente, a matéria de facto apurada e dada como assente não permite concluir pela sua integração no crime de ofensa à integridade física qualificada, precisamente porque se demonstrou o dolo inerente ao crime de homicídio.
22. Encontram-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivo do tipo legal do crime de homicídio qualificado na forma tentada imputado ao arguido, ora recorrente.
23. Considerando os critérios estabelecidos no artigo 71º do Código Penal, afigura-se como correcta e adequada (quando muito, benevolente) a pena de 07 anos de prisão fixada no acórdão recorrido, atendendo ao grau de culpa revelado, à intensidade do dolo e grau de ilicitude, bem como às exigências de prevenção geral e especial que ao caso se fazem sentir.
24. A ausência do arguido durante a prestação das declarações da ofendida para memória futura não colocam em causa os direitos de defesa do mesmo, nomeadamente o direito ao contraditório.
25. Os seus direitos de defesa encontram-se devidamente acautelados pelo seu defensor, cuja presença na referida diligência é obrigatória, nos termos do disposto no artigo 271, n.º 3, do Código de Processo Penal.
26. A tomada de declarações nessas circunstâncias não constitui qualquer tipo de invalidade.
27. O arguido participou voluntariamente na reconstituição dos factos, sendo documentado o que o mesmo entendeu esclarecer.
28. Em todo o caso, tal diligência probatória não assume relevância no acervo probatório coligido nem sequer foi invocada no acórdão recorrido na fundamentação da matéria de facto.
29. Quando muito, foi levada em conta como circunstância favorável ao arguido quando aí se valora o facto do mesmo “ter colaborado com as autoridades policiais”.
30. A decisão recorrida não violou qualquer normativo legal, nomeadamente os invocados pelo recorrente.
31. Nada há, por isso, a censurar à decisão recorrida.”Igualmente respondeu ao recurso a assistente AA, pugnando primeiramente pela inadmissibilidade do mesmo, atenta a extensão das conclusões, que considera serem mera reprodução do texto da motivação e, subsidiariamente, pela sua improcedência (referência ...53).  

Formulou as seguintes conclusões:

“1- O douto acórdão recorrido condenou o arguido pela prática de um crime de homicídio qualificado na forma tentada a 7 anos de prisão, bem como ao pagamento de uma indemnização no valor de €60.000,00 (sessenta mil euros). O arguido interpôs recurso alegando que o mesmo padece de inúmeras contradições, erro notório na apreciação da prova e de insuficiência para a decisão da matéria de facto.
2- Sucede, porém, que o recurso apresentado não deve ser admitido, porquanto os 145 artigos (!) das conclusões constituem uma simples reprodução, mediante copy past, do texto da motivação, pelo que, “não vale como conclusões a simples reprodução, mediante copy past, do texto das alegações; o recorrente deve terminar as suas alegações de recurso com as conclusões sintéticas; “equivalendo à falta de conclusões deve o recurso ser rejeitado”- cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, processo número 413/15.3T8VRL.G1 e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo número 18625/18.6T8PRT.P1, texto integral in www.dgsi.pt.
Sem prescindir, e se assim não se entender,
3- Alega o arguido que os factos não suportam o preenchimento de qualquer das modalidades do dolo, porquanto não se provou que, em momento anterior à sua conduta, se predispôs a cometer o crime, faltando o preenchimento do elemento intelectual. O dolo é constituído pelo elemento intelectual -“resume-se à representação ou previsão pelo agente do facto ilícito com todos os elementos integrantes e, por outro lado, à consciência de que esse facto é censurável - e emocional ou volitivo - integra a intenção, os acto de execução do crime” - cfr. Simas Santos e Leal Henriques in Noções Elementares de Direito Penal, 2.ª Edição, pág. 76.
4- Provou-se que o arguido agiu com o propósito de matar a ofendida, só não logrando obter por circunstâncias alheias à sua vontade e que actuou de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. Se o arguido não se predispusesse a matar a assistente não teria colocado terra e erva seca na boca e colocado a mão em cima da boca e nariz, impedindo-a de respirar, quando, previamente, já a tinha agredido de forma homicida.
5- Se o arguido não tivesse a intenção de matar a assistente, e se conformasse com o resultado, teria ficado “apenas” pelas agressões provocadas, o que não ocorreu: o arguido tinha na sua mente matar a assistente e só se tranquilizou quando teve a firme certeza que estava morta. “Diz-se praticado com dolo directo aqueles casos em que a realização do tipo objectivo constitui o verdadeiro fim da conduta do agente” – cfr. Acórdão de Fixação de Jurisprudência número 1/2015 do Supremo Tribunal de Justiça, processo número 504/14.8JDLSB.S1.
6-Alega o arguido que “o tribunal não podia ter determinado que as declarações para memória futura da assistente ocorressem na sua ausência” - o que não aconteceu. Foi concedido à assistente o estatuto de vítima especialmente vulnerável, ao abrigo do disposto na norma do artigo 21.º, n. º1, al. d) e 24.º da Lei n.º 130/2015 e deferido o pedido de afastamento do arguido na tomada de declarações, porquanto a presença do mesmo inibia a vítima de relatar os factos e prejudicava a descoberta da verdade material, ao abrigo do disposto na norma do artigo 15.º, n.º 2 e 21.º, n.º 1 al. c) daquela Lei e do artigo 351.º do CPP.
7- Assim, por despacho datado de 03-12-2022, o Juiz de Instrução Criminal deferiu tais pedidos, constando do mesmo a notificação do arguido e do seu defensor para aquelas declarações. Dispõe o artigo 24.º, n.º 2 da citada lei que o Ministério Público, o arguido, o defensor e os advogados constituídos no processo são notificados da prestação do depoimento para estarem presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.
8- Tal preceito circunscreve a obrigatoriedade de comparência ao Ministério Público e ao defensor, não sendo para o arguido, ainda que obrigatoriamente notificado, o que sucedeu. Neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo número 382/15.0T9MTS.P1, disponível em www.dgsi.pt: “é obrigatória a notificação do arguido já constituído no processo e do seu defensor para comparecerem à tomada de declarações para memória futura; a presença do defensor nesse acto é obrigatória e a do arguido facultativa; quer a falta de notificação, quer a falta do defensor no acto constitui uma nulidade insanável nos termos do art.º 119. al c) do CPP”.
9- A falta de notificação do arguido, do defensor e a ausência deste – esta sim – constitui uma nulidade insanável; porém, não foi isto que aconteceu, o arguido foi regularmente notificado, bem como o defensor que esteve presente na diligência. Porém, ainda que tal pudesse constituir um vício, sempre seria uma mera irregularidade, arguida nos termos dos 123.º do CPP, encontrando- sanada.
10- Quanto à prova por reconstituição dos factos, alega o arguido que “a mesma deve ser considerada nula por violação do artigo 126.º, n.º 1 e 2, al. a), b), c) e que carecia de validação do Ministério Público, devendo, ainda, retirar-se a conclusão de que o arguido esteve algemado durante a diligência”. Não resulta que o arguido estivesse algemado durante a diligência, no entanto, estava detido à ordem dos autos, tinha acabado de cometer o crime e tem nacionalidade ..., o que constituem razões suficientes para a existência do elevado perigo de fuga; a considerar, seria uma mera irregularidade, arguida nos termos do artigo 123.º do CPP, encontrando-se sanada.
11- Também não assiste razão quando invoca a violação da norma do artigo 126.º, n.º 1 e 2, als. a, b, c. Tal preceito diz respeito aos métodos proibidos de prova, aplicável quando a prova é recolhida mediante a submissão a alguma das situações ali descritas, o que não foi o caso. O arguido fez o teste do álcool às 4h20 e a reconstituição de facto aconteceu às 16h30 – 12 horas após; o arguido não foi colocado perante qualquer situação que conduzisse a uma perturbação da sua capacidade de memória ou de avaliação, nem submetido à utilização da força, pelo que, improcede a nulidade invocada.
12- Do mesmo modo, não procede a nulidade quanto à necessidade da validação da diligência pelo Ministério Público, uma vez que, as diligências de investigação, nelas se incluindo a reconstituição de factos, são realizadas por órgãos de polícia criminal, por força da delegação de competências (artigo 270.º, n. º4 do CPP).Tal faculdade é exercida através da Directiva n.º 1/2002, de 11/3/2002 e pelo artigo 4.º da Lei n.º 21/2000, a que corresponde o artigo 7.º da Lei 49/2008 e do n.º 2 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 275-A/2000, de 9 de Novembro, onde consta o crime de tentativa de homicídio – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, processo número 1111/17.99JABRG-A-G1., disponível em www.dgsi.pt.
13- Quanto ao ponto 20 da matéria de facto provada, refere o arguido que “há uma alteração substancial dos factos e, por outro lado, uma contradição insanável, uma vez que. parece que aí não se espelha a intenção do arguido matar a ofendida ao colocar-lhe terra e erva seca no interior da boca, deixando a descrição da intenção do arguido para o ponto 33 dos factos provados”. Provou-se que a assistente começou a gritar, momento em que o arguido, obstando a que ela gritasse, pegou em terra e erva seca e encheu-lhe a boca com tais elementos e colocou uma mão em cima da boca e do nariz, assim impedindo-a de respirar normalmente, afirmando, repetidamente, “Vou-te matar”.
14- O ponto 33 dos factos provados refere que “o arguido agiu com o propósito de tirar a vida a AA,            sua namorada,           atingindo-a diversas vezes, predominantemente na zona da cabeça, cara, nariz e colocando-lhe terra e erva seca no interior da boca para a sufocar, prevendo que com tais condutas a poderia matar, resultado com o qual se conformou e quis, só o não logrando obter por a vítima ter fingido que estava morta e ter sido assistida atempadamente e, assim, consequentemente, por circunstâncias alheias à sua vontade”.
15- Que intenção se retira de alguém que, após uma pessoa estar a ser agredida e começar a gritar, coloca terra e erva seca no interior da boca, coloca uma mão em cima da boca e do nariz, impedindo-a de respirar? A resposta será obvia: a intenção é matar a pessoa. À luz das regras da experiência comum, o que se espera que aconteça a alguém nestas circunstâncias? A resposta será, igualmente, obvia: a pessoa deixará de respirar e sufoca.
Com efeito, impedir de respirar normalmente constitui um sinónimo da palavra sufocar – cfr. https://dicionario.priberam.org/sufocar- pelo que, não pode o arguido alegar tais vícios apenas porque o tribunal adotou uma formulação sinónima.
16- Relativamente aos pontos 21, 23 e 24 dos factos provados, alega o arguido que “os mesmos chocam com os dados da experiência comum, porquanto, uma pessoa que está a começar a sufocar não consegue fingir-se de morta, não se mexer e deixar os olhos abertos e não é crível que uma pessoa já marcada na face pelas agressões de que foi vítima consiga não reagir ao ser abanada e pisada por duas vezes na cara”.
17- Mais uma vez, o arguido faz um raciocínio ilógico e extrai conclusões que não se retiram da prova. O que nos dirão as regras da experiência comum perante os seguintes factos: o arguido desferiu inúmeros socos, pontapés e cotoveladas no corpo da vítima, principalmente na zona da cabeça, do nariz e da cara; o arguido agarrou no cabelo da ofendida e atirou-a para o chão, em seguida, desferiu vários socos na cabeça, nariz e boca.
18- Nessa sequência a vítima começou a engolir sangue; o arguido pegou em terra e erva seca e encheu a boca da assistente com tais elementos e colocou uma mão em cima da boca e do nariz, assim a impedido de respirar normalmente, afirmando, repetidamente, “vou-te matar”.
O que se espera de um ser humano que, após estas agressões, ainda é abanada e pisada duas vezes na cara?
19- Espera-se que esteja sem reacção, como, aliás, aconteceu com a ofendida, conforme se apurou pelos depoimentos de EE, ... e dos vários elementos clínicos que constam dos autos. “Os vícios do artigo 410.º, n.º 2 do CPP não podem ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos” - cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo número 08P3781- razão pela qual improcede o alegado vício.
20- Quanto aos pontos 23, 24 e 29 da matéria de facto, afirma o arguido que “ao dar-se como provados os factos supra, o tribunal incorre num vicio de contradição insanável”. Olhando para a cronologia dos factos provados verifica-se que enquanto decorriam as agressões, a ofendida pensou que ia morrer, então, optou por se fingir de morta; o arguido, por seu turno, abanou-a e pisou-lhe o rosto duas vezes, sem que aquela tivesse reação.
21- Assim, permite concluir que, efectivamente, o arguido só parou de agredir a vítima e regressou ao grupo quando achou que estava morta; razão pela qual não se vislumbra qualquer contradição insanável entre factos provados.
22- Quanto ao ponto 28 da matéria de facto afirma o arguido que “as testemunhas ao irem ao encontro da ofendida, tendo-a localizado, pressupõe-se que sabiam onde estava e que apenas o arguido lhes poderia dar tais indicações, uma vez que tinha estado com esta; o que afasta a conclusão de que não tenha tentado obter socorro para a vítima.”
23- Uma vez mais, o arguido retira de um facto conclusões e presunções que não fazem parte de um raciocínio lógico-dedutivo: provou-se que não foi o arguido que encontrou a ofendida, nem foi ele que indicou o caminho até onde aquela se encontrava – cfr. depoimento da testemunha ..., EE e declarações da assistente.
Assim, não decorre daqui que foi o arguido que encontrou a ofendida, pelo que, improcede o vicio de insuficiência para a decisão da matéria de facto.
24- Relativamente aos pontos 1, 2, 33 e 81 dos factos provados, alega o arguido que “não resulta provado que tenha mantido com a ofendida uma relação de namoro e não há nenhuma razão legal, social ou histórica que leve a que se considere como uma situação análoga ao casamento, por esse motivo, não integram a alínea b), do artigo 132.º, devendo ser absolvido.”
25- Provou-se que o arguido e a assistente mantiveram uma relação de namoro desde o início de Maio de 2021, foi o próprio arguido que a localizou e as testemunhas EE e .... Por outro lado, a relação de namoro foi introduzida pela Lei n.º 16/2018, de 27-03, reforçando a protecção jurídica da relação, pelo que não assiste razão ao arguido – cfr. parecer do Conselho Superior da Magistratura e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo número 3622/17.7JAPRT, disponível em www.dgsi.pt., devendo integrar-se na referida alínea.
Por outro lado, mas no mesmo sentido,
26- Refere o arguido que “o ciúme não constitui um motivo torpe/fútil para efeito de qualificação do crime de homicídio, devendo o acórdão recorrido serve revogado, não considerando o homicídio qualificado por motivo torpe ou fútil.” Efectivamente, não constitui, porém, não é isso que está em discussão nos presentes autos; não é o ciúme enquanto motivo torpe ou fútil, antes, a reacção homicida que o arguido teve ao encontrar a vítima a conversar com um amigo.
27- O motivo fútil “é, pois, fútil o motivo frívolo, leviano, o que revela uma inteira desproporção entre o motivo e a reacção homicida. Para além da desproporção notória, deve acrescer a insensibilidade moral, que tem a sua manifestação mais alta na brutal malvadez ou na insignificância ou frivolidade.” – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo número 74/21...., Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo 5009/20.....
28- Provou-se que o arguido acompanhou a ofendida à casa de banho das mulheres, após o que se deslocou em direcção ao local onde se realizava a festividade; provou-se também que depois de ter saído das instalações das respectivas casas de banho, a ofendida e EE encontraram-se, sem que o tivesse previsto, tendo ficado a conversar.
29- Passados poucos minutos a ofendida e EE foram surpreendidos pelo arguido, que ficou desagradado com a situação. Desta feita, EE ausentou-se do local e dirigiu-se para o local onde se encontravam todos a festejar, permanecendo no mesmo sítio o arguido e a ofendida.
30- Após o arguido encetou uma discussão com a assistente e a determinada altura: desferiu inúmeros socos, pontapés e cotoveladas no corpo da vítima, na zona da cabeça, boca e nariz; agarrou no cabelo da ofendida e atirou-a para o chão; desferiu vários socos na cabeça, nariz e boca; Nessa sequência a vítima começou a engolir sangue; pegou em terra e erva seca e encheu a boca da assistente com tais elementos e colocou uma mão em cima da boca e do nariz, assim a impedido de respirar normalmente, afirmando, repetidamente, “vou-te matar”; abanou-a e pisou-lhe o rosto duas vezes, sem que aquela tivesse reação.
Seguidamente, regressado ao local onde se encontrava o grupo, ensanguentado, dirigiu-se a EE, agarrou-o pelas costas e disse “Vai lá ver o corpo da ...”.
31- Conforme referido supra, o motivo é fútil quando, pela sua insignificância ou frivolidade, é notavelmente desproporcionado, do ponto de vista do homo medius e em relação ao crime. Impõe-se a questão seguinte: do ponto de vista de um homo medius será proporcional encontrar a namorada a conversar com um amigo (conhecido do arguido) e ter uma reacção como a descrita?
Claramente não, razão pela qual actuou o arguido por motivo torpe/ fútil, circunstância geradora da especial censurabilidade e perversidade, devendo manter-se a condenação.
32- Quanto ao ponto 34 da matéria de facto, alega o arguido que “o tribunal incorreu num erro notório de apreciação da prova quanto a este facto porque não é compatível com os factos das agressões dadas como provadas – ponto 12 a 24 – e não se pode concluir do depoimento da testemunha ... – GNR que o arguido tenha agido com calma porque chegou ao local cerca de meia hora após os factos.”
33- Quando o tribunal refere que o arguido actuou com calma e total indiferença, bem sabe o arguido que se refere ao modo de execução do crime praticado. Com efeito, que conclusão se retira de alguém que agiu com a escalada de violência descrita? Demonstra, claramente, que o arguido actuou e executou sem qualquer preocupação e respeito e, por isso calmo, pelo estado em que deixou a ofendida.
34- A corroborar vem o depoimento do Guarda DD que, chegado ao local trinta minutos após os factos, constatou que o arguido não se encontrava preocupado com o estado em que tinha deixado a assistente- quase morta- não manifestava qualquer arrependimento, tristeza ou choro.
35- Relativamente aos pontos 37 a 59 da matéria de facto provada, alega o arguido que “não se encontra fundamentação da prova de tais factos, sendo nulo por falta de fundamentação; a perícia é lacunosa e não resulta dela que os actos praticados são idóneos a produzir o resultado típico.” Quer dos vários testemunhos, quer dos médicos, dos polícias, das técnicas da APAV e dos elementos clínicos, resulta que a ofendida foi vítima dos danos peticionados, não existindo qualquer falta de fundamentação.
36- Por outro lado, importa referir que a perícia foi autorizada por despacho, bem como a junção do relatório de exame pericial com registo fotográfico (fls. 74-102), a perícia de avaliação de dano corporal (fls. 234-236 e 524-526) e exame pericial (fls. 495-497); resulta do relatório pericial que “os elementos permitem admitir o nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano, bem como, a existência de uma perturbação de stress pós-traumático, com repercussões na autonomia pessoal, social e profissional.”
37- Aliás, a conclusão extraída está ao nível de conhecimento de uma criança: agredir alguém desta forma leva a ferimentos irreversíveis; colocar terra na boca e erva seca de alguém e colocar a mão por cima, leva a que deixe de respirar e sufoque. Porém, para o arguido, nem ao nível de um juízo técnico.
Assim os factos praticados produziram o dano peticionado – e todo aquele não demonstrável à luz da perícia, que o decurso do tempo se encarrará de demonstrar
38- O tribunal julgou as declarações do arguido incompletas e interessadas; por seu turno, julgou as declarações da assistente como completas, desinteressadas e coerentes. Afirma o arguido que o tribunal não fundamenta o porquê de tal convicção. Para tal, considerou, designadamente, o seguinte: alega o arguido que “encontrou a assistente a ter relações sexuais com EE”, porém, se assim fosse, estando ambos numa festa em que o arguido poderia aparecer a qualquer momento, tê-las-iam naquele local? Não é crível, por um lado, porque se encontravam perto de campos de milho, com altura suficiente para que pudessem “pular a cerca” e ter relações sem que arguido pudesse aparecer.
39- Por outro lado, o arguido admitiu que, mesmo depois de ter encontrado a ofendida e EE, estiveram a falar, e o mesmo sucedeu após a saída de EE: o arguido não encontrou a assistente a ter relações sexuais, nem foi isso que motivou as agressões.
A corroborar tal prevalência vai o depoimento da assistente e da testemunha EE e das testemunhas ... e HH
40- A factualidade provada e conjugada com todos estes elementos permitiram ao tribunal concluir pela prevalência das declarações da assistente em relação ao arguido que, desde logo, confessou determinados factos e negou outros, não detalhou com circunstancialismo o sucedido o que, em face da prova produzida e confrontada e à luz das regras da experiência comum, não se coadunam.
41- Por último, alega o arguido que “o pedido de indemnização civil deve ser julgado não apresentado, em virtude de ter sido deduzido extemporaneamente.” O pedido foi legal e tempestivamente admitido por despacho do Juiz, tendo o arguido sido notificado para contestar; a existir algum vício que obstasse à admissão, seria uma mera irregularidade, obrigatoriamente arguida nos termos do artigo 123.º do CPP, o que não sucedeu, transitado em julgado a decisão que admitiu tal pedido.”

I.3 Colhidos os vistos legais, realizou-se audiência com observância do formalismo legal (nos termos conjugados dos arts. 421º e 423º, ambos do Código de Processo Penal) - cf. ata com referência -, cumprindo, pois, conhecer e decidir.

II – ÂMBITO OBJETIVO DO RECURSO (QUESTÕES A DECIDIR):

É hoje pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do Código de Processo Penal (doravante designado, abreviadamente, CPP e diploma legal a que nos referimos na falta de indicação em contrário) [1].

Assim sendo, no caso vertente, as questões que importa decidir reportam-se a:

A – Arguida nulidade insanável da prova produzida mediante declarações da ofendida para memória futura por ausência do arguido a tal diligência (cf. art. 119º, alínea c), do CPP).
B - Alegada nulidade insanável da prova decorrente da “reconstituição do facto” por falta de promoção do Ministério Público, seja por falta de despacho prévio do Ministério Público a determiná-la seja por falta da sua validação posterior (art. 119º, al. b), do CPP).
C – Saber se na realização da “reconstituição do facto”, atento o circunstancialismo em que decorreu, ocorreu violação do princípio da lealdade processual, tendo sido violado o nº1 e as alíneas a), b) e c) do nº2 do artº 126º do CPP, o que gera a nulidade de tal prova, pelo que não poderia servir para o Tribunal formar a sua convicção.
D – Arguida nulidade do acórdão recorrido por alteração substancial dos factos, derivada da alteração do alegado no art. 18º da acusação operada no ponto 20 dos factos provados (conjugado com o inalterado ponto 33, correspondente ao art. 28º da acusação), por contender com um acto de execução do crime tentado (artº 359º, nº1 e 379º nº1, alínea b), do CPP).
E – Alternativamente, caso se entenda que, com a alteração dos factos constantes do despacho que comunicou a alteração e com a alteração dos factos empreendida no acórdão no ponto 20, se mantém a interpretação de que o arguido colocou a terra e a erva seca na boca da ofendida para esta não gritar e ao dar-se como provado no ponto 33 que o arguido agiu dessa forma para a sufocar, saber se existe contradição insanável entre os factos, prevista no artº 410º, nº2, alínea b), do CPP.
F – Arguida nulidade da decisão recorrida por insuficiência/falta de fundamentação (cf. art. 379º, nº1, alínea a), com referência ao art. 374º, ambos do CPP) – por não explicitação da razão para ter concedido credibilidade às declarações prestadas pela assistente e ao testemunho prestado pela testemunha EE e descredibilizado as declarações prestadas pelo arguido; por não se referir ao motivo da atuação do arguido; por não fundamentar a especial censurabilidade ou perversidade do agente; por não indicação dos meios de prova de que se serviu para fixar a matéria de facto provada constante dos pontos 37 a 41 e 43 a 59 e ausência de exame crítico de tais meios de prova; por ter dado como provada a factualidade vertida nos pontos 31, 32, 41 a 43, 47 e 52 a 58 sem realização das imprescindíveis perícias médico-legais; por não referir a forma como os factores referidos no artº 494º do Código Civil afetaram a fixação da indemnização ou sequer como esta foi fixada de acordo com juízos de equidade; por não ter fixado a situação económica do recorrente, designadamente quanto este aufere pelo seu trabalho.
G - Invocado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artº 410º, nº2, alínea a), do CPP), em virtude de o Tribunal a quo não ter averiguado, como devia, se o arguido tentou obter socorro para a vítima, nomeadamente chamando o INEM, ou, não tendo sido ele, quem o fez – circunstancialismo que o recorrente considera relevante para afastar a factualidade dada por provada na parte final do ponto 33 e no ponto 34 – e qual a concreta motivação/móbil do crime.
H – Invocado vício de contradição insanável da fundamentação (art. 410º, nº2, alínea b), do CPP), designadamente entre os pontos 33 e 34 dos factos provados, dado encerrarem em si duas qualificações inconciliáveis do dolo: directo e eventual (artºs 14º nº1 e 3 do Código Penal). 
I – Invocado vício de contradição insanável entre os factos provados – cotejo entre o descrito nos pontos 23 e 24 e o que consta do ponto 29 – e entre tal factualidade e a fundamentação da decisão de facto (artº 410º, nº2, alínea b), do CPP).
J – Invocado vício de erro notório na apreciação da prova no que tange ao julgamento dos pontos 21, 23 e 24 dos factos provados, por violação das regras de experiência comum (artº 410º, nº2, alínea c), do CPP).
L - Invocado vício de erro notório na apreciação da prova no que tange ao julgamento do ponto 34 dos factos provados e quanto à motivação subjacente ao cometimento do crime, por violação das regras de experiência comum (artº 410º, nº2, alínea c), do CPP).
M – Erro notório na apreciação da prova (art. 410º, nº2, alínea c), do CPP) por violação do disposto no art. 163º do CPP no que tange à fundamentação do ponto 42 da matéria de facto provada (inerente violação do princípio da livre apreciação da prova).
N – Indefinição temporal e circunstancial contida no ponto 2 dos factos provados, no que concerne à caraterização do arguido como pessoa possessiva, o que impede o efetivo e eficaz contraditório (consagrado no art. 32º/1 da CRP), violando ainda os direitos de defesa do arguido e o princípio do processo equitativo. 
O – Saber se os factos descritos nos pontos 1, 2, 33 e 81 dos factos provados e na alínea a) dos factos não provados, reportando-se a «relação de namoro», são conclusivos e encerram matéria de direito e, como tal, devem ser considerados como não escritos.
P - Alegada inconstitucionalidade do artº 132º, nºs 1 e 2, al. b), do Código Penal, atendendo a que ao fazer depender a qualificação do homicídio de uma relação de namoro, sem que exista uma definição legal e um regime legal que determine os deveres e os direitos conferidos aos parceiros dessa relação e, da mesma forma, por conferir um tratamento idêntico ao “namoro” e ao casamento ou à união de facto com coabitação ou sem coabitação, punindo o crime de homicídio qualificado com a mesma pena num e noutro caso, viola do disposto no artº 2º, 13º, 18º nº2 (princípio da proporcionalidade), 20º nº4, 29º nº1, 3 e 4, 110º nº1 e 111º da Constituição, designadamente do princípio da culpa, da legalidade, da tipicidade e da necessidade da lei penal. Inconstitucionalidade da predita norma penal igualmente derivada da violação dos aludidos preceitos constitucionais, em virtude de considerar a relação de namoro uma situação de facto que reveste especial censurabilidade e perversidade que leva à consideração do crime de homicídio sobre o parceiro como qualificado.
Q - Alegada insuficiência da factualidade dada por provada, designadamente da constante do ponto 33, para o preenchimento do dolo do tipo de crime em questão, nomeadamente quanto ao seu elemento intelectual.
R – Não preenchimento pela factualidade provada do dolo relativo às circunstâncias qualificativas do homicídio.
S – Não preenchimento da circunstância qualificativa do crime de homicídio «motivo torpe ou fútil», por em tal descrição do tipo não caber o «ciúme».  
T -  Saber se os factos dados como provados não preenchem o tipo de crime de homicídio, mas antes o tipo de crime de ofensa à integridade física qualificada previsto no artº 145º nº1 al. a) do CP.
U - Da excessividade da medida da pena.
V – Em caso de redução da pena para medida não superior a cinco anos, da reclamada suspensão da execução da pena, subordinada a regime de prova.
X – Invocada extemporaneidade do pedido de indemnização civil formulado nos autos pela assistente.
Z – Violação do disposto no art. 340, nº1, do CPP e erro de julgamento no que concerne à factualidade dada como provada nos pontos 41 a 43, 47 e 52 a 58. 
AA – Da excessividade do quantum indemnizatur fixado.
 
*

III – APRECIAÇÃO: 

III.1 – Dada a sua relevância para o enquadramento e decisão das questões suscitadas pelo ajuizado recurso, importa verter aqui a factualidade que o Tribunal a quo deu como provada e não provada e, bem assim, a sua fundamentação para tal decisão da matéria de facto.
O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos (transcrição):

Da acusação pública.
1. O arguido e a vítima AA mantiveram uma relação de namoro que se iniciou em Maio de 2021.
2. Na decorrência da relação de namoro, o arguido passou a ter um comportamento possessivo e ciumento com AA, exigindo que fosse submissa e que lhe obedecesse, principalmente à frente dos seus amigos.
3. A ofendida já tinha comunicado ao arguido e a amigos que ia fazer uma viagem ao ... em Setembro de 2021, não tendo este concordado com a realização dessa viagem.
4. No dia 4 de Setembro de 2021, o arguido e a ofendida deslocaram-se até à Praia Fluvial de ..., sita em B..., onde, juntamente com outros amigos, estiveram a comemorar o aniversário de um deles e com o intuito de ali ficarem acampados.
5. Tal festividade iniciou-se pelas 11h00, e o arguido e a ofendida aparecerem durante a tarde, sendo que pelas 20h00/21h00 surgiu EE, amigo da ofendida e a convite desta, com o conhecimento do arguido.
6. A determinada a altura AA e EE começaram a dançar.
7. Pelas 02h00 do dia 5 de Setembro de 2021, EE dirigiu-se ao quarto de banho dos homens que dista a cerca de 150 metros do local onde decorria a festividade.
8. Por volta do mesmo dia e hora, o arguido acompanhou a ofendida/assistente à casa de banho das mulheres, após o que se deslocou em direcção ao local onde se realizava a festividade, percurso durante o qual encontrou amigos (primeiro o FF, depois o GG) com quem conversou, tendo ainda conversado com um grupo de pessoas de nacionalidade ... que nesse percurso encontrou.
9. Entretanto, depois de terem saído das instalações das respectivas casas de banho a ofendida/assistente e EE encontraram-se, sem que o tivessem previsto, numa zona situada nas traseiras do local onde se situam as casas de banho, após o que ficaram a conversar.
10. Passados poucos minutos a ofendida/assistente e EE foram surpreendidos pelo arguido, que ficou desagradado com a situação.
11. Desta feita, EE ausentou-se do local e dirigiu-se para o local onde se encontravam todos a festejar, permanecendo no mesmo sítio o arguido e a ofendida/assistente.
12. Após o arguido encetar uma discussão com a ofendida/assistente, a determinada altura apertou-lhe, com força, o pescoço, arrastou-a até aquela bater com as costas numa cerca, enquanto lhe perguntava o que estava ali a fazer com o EE, momento em que a ofendida reagiu e tentou libertar-se.
13. A ofendida explicou ao arguido que apenas estavam a conversar, porém, o arguido disse-lhe que aquilo era uma traição e, com a mão fechada, começou a esmurrar a ofendida com murros na cara e no peito, tendo também segurado os cabelos desta com força atirando-a para o chão.
14. Acto seguido, quando a ofendida/assistente se encontrava no chão com as costas viradas para o solo e a parte da frente do corpo virada para o arguido, o arguido agarrou-a pelos cabelos e começou a bater com cabeça da ofendida no chão.
15. Em seguida, o arguido, com toda a força, desferiu, violentamente, vários socos na cabeça, nariz e boca da ofendida/assistente.
16. Na sequência destas agressões a ofendida/assistente começou a engolir sangue.
17. O arguido ia intercalando os murros na boca e no nariz com pancadas na cabeça da ofendida/assistente no chão e agarrando-lhe os cabelos, ao mesmo tempo que AA tentava afastar os braços daquele, sem qualquer efeito dada a diferença de envergadura física entre ambos e porque se encontrava fisicamente por cima da ofendida, tendo a maior parte do tempo as pernas dobradas sobre as pernas da ofendida/assistente e pontualmente colocado uma perna sobre o peito desta e, por outra vez, sobre seus braços, assim impedindo que esta tentasse resistir.
18. Nessas agressões, o arguido atingiu também os ombros da ofendida/assistente.
19. Enquanto a agredia, o arguido dizia repetidamente “Vou-te matar…vou-te matar”, ao mesmo tempo que a ofendida implorava para a deixar e lhe dizia que queria ver as suas filhas.
20. AA a certa altura começou a gritar, chamando por Deus, momento em que o arguido, obstando a que ela gritasse, pegou em terra e erva seca e encheu-lhe a boca com tais elementos e colocou uma mão em cima da boca e do nariz da ofendida/assistente, assim a impedindo de respirar normalmente, afirmando, repetidamente, “vou-te matar”.
21. Após, o arguido voltou a desferir socos à ofendida/assistente, sendo que esta começou a sufocar.
22. Enquanto decorriam as agressões supra descritas e por força delas a ofendida/assistente pensou que ia morrer naquele tempo e local.
23. Então AA optou por se fingir de morta, não se mexendo e permanecendo com os olhos abertos.
24. O arguido ainda abanou a ofendida/assistente, para ver se esta estava morta, levantou-se e pisou-lhe o rosto duas vezes, sem que aquela tivesse reagido.
25. A ofendida perdeu os sentidos e só voltou a si quando ali já se encontrava o EE, juntamente com outras pessoas.
26. Desde que o arguido abandonou o local onde estavam todos a festejar para acompanhar AA decorreram cerca de trinta minutos.
27. Quando regressou ao local onde se encontrava o grupo o arguido, ensanguentado, dirigiu-se a EE, agarrou-o pelas costas e disse “Vai lá ver o corpo da ...”, o que foi ouvido por algumas pessoas que ali se encontravam.
28. Alarmados foram ao encontro da ofendida/assistente, localizando-a perto das traseiras do quarto de banho, atrás de um arbusto, próximo de um campo de milho.
29. O arguido só parou de agredir a vítima nos termos descritos quando a mesma deixou de ter qualquer reacção e por achar que já a mesma estava morta.
30. Quando foi encontrada, foram prontamente accionados os meios de socorro, sendo a vítima transportada às Urgências do Hospital ....
31. Em consequência da conduta do arguido, a ofendida sofreu na face equimoses arroxeadas periorbitárias bilateralmente, com periferia amarelada nas regiões infraorbitárias; edema periorbitário à direita, hemorragia subconjutival à direita; edema do dorso do nariz com múltiplas escoriações dispersas, milimétricas; escoriação na região malar direita, medindo cerca de 4 cm de diâmetro; duas escoriações no lábio inferior, de maior eixo horizontal, medindo cerca de 2x0,5cm e 1x0,5cm, com edema do lábio associado. Equimose arroxeada na mucosa do lábio inferior, medindo cerca de 1,5cm de maior dimensão. Escoriação na região perioral inferior, horizontal, medindo cerca de 1,5 cm de comprimento. Escoriação na região mentoniana, à esquerda da linha média, de maior eixo horizontal, medindo cerca de 4x1cm. No pescoço equimoses avermelhadas na face anterolateral esquerda do pescoço e região supracalviar ipsilateral, a maior com cerca de 1 cm de maior dimensão, dispersas numa área de maior eixo vertical, medindo cerca de 10x4cm. No tórax, escoriação na face posterior do hemitórax esquerdo, horizontal, medindo cerca de 1 cm de comprimento. No membro superior direito, equimose acastanhada na face posterior do terço distal do antebraço, de maior eixo oblíquo inferior e medial, medindo cerca de 3,5cmx5cm; equimose acastanhada na face posterior do terço proximal do antebraço, medindo cerca de 1 cm de diâmetro. No membro superior esquerdo, equimose, acastanhada, ténue, na face lateroposterior do ombro, medindo cerca de 7 cm de diâmetro. No membro inferior direito, várias escoriações na face anterior do joelho e terço proximal da perna, dispersas numa área de maior eixo vertical, medindo cerca de 16x8cm. No membro inferior esquerdo, várias escoriações na face anterior do joelho, a maior com cerca de 0,5cm de maior dimensão e a menor punctiforme. Por força da conduta do arguido a ofendida assistente ficou ainda a padecer de Stress pós-traumático. A consolidação médico-legal das lesões é fixada em 19-10-2021.
32. Em consequência da conduta do arguido a ofendida/assistente sofreu também hematoma subdural agudo e hemorragia subaracnóide, hemorragia esta que também lhe provocou perigo para a vida.
33. O arguido agiu com o propósito de tirar a vida a AA, sua namorada, atingindo-a diversas vezes, predominantemente na zona da cabeça, cara, nariz e colocando-lhe terra e erva seca no interior da boca para a sufocar, prevendo que com tais condutas a poderia matar, resultado com o qual se conformou e quis, só o não logrando obter por a vítima ter fingido que estava morta e ter sido assistida atempadamente e, assim, consequentemente, por circunstâncias alheias à sua vontade.
34. Actuou o arguido com calma e total indiferença e desprezo pelo estado em que deixava a ofendida, motivado por ciúmes.
35. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Pedido de indemnização civil de AA.

36. A ofendida/assistente nasceu em .../.../1978.
37. Em consequência da conduta do arguido a ofendida/assistente sofreu um traumatismo crânio encefálico e maxilofacial, edema acentuado em toda a face, com limitação da abertura ocular e do discurso, sendo este limitado pelo edema.
38. Também em consequência da conduta do arguido a ofendida/assistente padeceu de fractura com depressão da parede anterior do seio maxilar direito, com hemossinus; fractura com depressão dos ossos próprios do nariz que se prolonga posteriormente, com desalinhamento do septo nasal.
39. A ofendida/assistente sofreu também de uma subluxação dos dentes 11 e 21, tendo necessidade de adoptar uma dieta mole pelo período de 4 semanas.
40. Em virtude das agressões perpetradas pelo arguido, a assistente teve necessidade de internamento hospitalar no Hospital ..., desde o dia .../.../2021 até ao dia 10-09-2019.
41. Tendo necessitado de ajuda de terceira pessoa até 06-10-2021.
42. A assistente esteve incapacitada para o trabalho de 05-09-2021 até 27-02-2022.
43. Em virtude do evento traumático provocado pelas agressões do arguido, a ofendida/assistente necessita de apoio psicológico, emocional e social que lhe tem sido providenciado pelos serviços do Gabinete de Apoio à Vítima de B....
44. A assistente tem parca rede familiar em Portugal, contando no momento da ocorrência dos factos com a ajuda de uma amiga, principal fonte de apoio.
45. Devido ao impacto vivido, as filhas da ofendida/assistente viajaram para Portugal, deixando o seu contexto e rede de apoio informal, com vista a auxiliar a mãe.
46. A ocorrência dos factos provocou na assistente sérias alterações no seu quotidiano, sofrimento a nível pessoal, social e profissional.
47. A assistente, pelo menos até ao início de Março de 2022 não foi capaz de estar/passar com pessoas com características físicas similares às do arguido.
48. Evitando sair de casa sozinha e andar sozinha, carecendo de acompanhamento por uma das figuras de apoio.
49. E isolando-se, dada a vergonha sentida, estando unicamente com as suas filhas e a amiga com quem coabita.
50. Os factos praticados acarretam para a ofendida/assistente um medo atroz, impedindo-a de descansar, tendo constantes pesadelos e culpabilizando-se pelo sucedido.
51. A ofendida/assistente desenvolveu ainda um sentimento de insegurança constante, quer pelo receio de ser novamente atacada pelo arguido, quer pelo receio de sair, revisitando o dia das agressões.
52. Aquando das primeiras saídas da habitação, mesmo que acompanhada, a ofendida/assistente tinha ataques de ansiedade, sentindo-se incapaz de controlar o medo que sentia, obrigando-a a que regressasse de imediato à residência.
53. Por força da conduta do arguido a ofendida/assistente teve e tem necessidade de fazer medicação.
54. A ofendida/assistente sente que não tem o domínio sobre a própria vida, estando impedida de regressar à sua normalidade, face ás dores que ainda sente.
55. Na presente data a ofendida continua a sentir fortes dores de cabeça e tonturas.
56. Apresenta dificuldades devido à existência de memórias traumáticas, sentindo-se humilhada, ameaçada, com inúmeros episódios de ansiedade e diminuída na sua dignidade.
57. Apresenta ainda dores constantes, sofrimento e agonia, revivendo diariamente o dia das agressões e o momento em que “viu a morte à sua frente” e a perda das suas filhas.
58. A ofendida/assistente sente que não consegue voltar a ter a sua intimidade, sentindo-se incapaz de ter um companheiro.
59. A assistente vive em casa de uma amiga, não auferindo quaisquer rendimentos.
 
Pedido de indemnização civil do Hospital ..., EPE.

60. O Hospital ... é uma entidade pública empresarial que presta cuidados de Saúde integrado no Serviço Nacional de Saúde.
61. No dia 5 de Setembro de 2021 AA deu entrada no Serviço de Urgência do Hospital de B..., EPE.
62. A ofendida/assistente recebeu tratamento no Hospital ... nos dias 5 a 10 Setembro de 2021 e 13 e 14 de Outubro de 2021, que consistiu em assistência médica e utilização dos respectivos procedimentos e terapêutica adequada.
63. As agressões que reclamaram essa assistência foram perpetradas pelo arguido.
64. Os encargos dos tratamentos prestados à assistida importaram em € 1.802,97 (cfr. factura de fls. 634, cujo teor se dá aqui por integrado e reproduzido para os devidos e legais efeitos).

Da contestação.

65. Depois a vítima ter sido encontrada, nos termos descritos em 28., o arguido diligenciou pela chamada das autoridades policiais.
66. O arguido nunca ofereceu resistência e, no dia em que foi detido, colaborou com as autoridades policiais.
67. A assistente fez uma viagem para a República ... entre 03-03-2022 e 06-06-2022.

Condições pessoais, sociais e económicas do arguido.

68. O arguido nasceu em .../.../1988.
69. BB é natural de ..., país onde decorreu o seu processo de desenvolvimento junto do agregado de origem, monoparental, que partilhou com a mãe e com a irmã germana, em virtude do pai ter emigrado para Portugal antes do nascimento do arguido.
70. A gestão do quotidiano familiar foi orientada pela mãe, com os meios que obtinha da agricultura e pecuária em terras de família.
71. O arguido não conheceu o pai, o qual faleceu em Portugal à data dos seus dez anos de idade.
72. O arguido frequentou o ensino em ..., revelando um percurso escolar com bom desempenho até se habilitar com o 12.º ano, quando optou por prosseguir os estudos em Portugal, sendo admitido na Universidade ..., na Licenciatura de Engenharia Electrotécnica e de Computadores, beneficiando de uma das vagas disponibilizadas para estudantes cabo-verdianos e de um Bolsa, no valor de 270€/mensais. Em Coimbra ficou durante algum tempo  alojado numa residência universitária e posteriormente, num quarto arrendado.
73. Decorridos dois anos, a frequentar o 2.º ano da referida Licenciatura, com registos de insuficiente aproveitamento escolar (cadeiras em atraso), deixou de beneficiar da referida prestação económica (bolsa), pelo que, procurou actividade laboral em part-time.
74. Trabalhou no ..., em média cerca de 4horas, algumas noites por semana.
75. Continuando os estudos, transitou para o 3.º ano, igualmente com disciplinas em atraso, quando, com significativas dificuldades de sobrevivência, e, entretanto, em situação ilegal no país por não conseguir manter todos os critérios exigidos para tal, de 2009 a 2014 aceitou o acolhimento de dois primos residentes no ....
76. Nessa época, passou trabalhar na ..., em tarefas de reparação de interiores de barcos e, posteriormente, numa empresa de empacotamento de produtos de marketing turístico, e logo que lhe foi possível, matriculou-se na Universidade ... em ....
77. Ao retomar os estudos superiores, por opção própria, considerou profícuo matricular-se novamente no 1.º ano do curso de engenharia electrotécnica. Porém, o seu aproveitamento escolar nesta universidade foi idêntico ao anterior; passou de níveis, com disciplinas em atraso, e durante a frequência do 3.º ano, voltou a abandonar os estudos, não chegando a concluir o curso.
78. Em 2014 arrendou um quarto na ... (...), período em foi contratado pela Embaixada de ... para a realização de um trabalho informático, de duração aproximadamente quatro meses, a auferir o salário mínimo nacional.
79. Depois surgiu uma oportunidade de trabalho em B..., para onde se mudou em 2016, passando a trabalhar para a I..., Ldª.
80. A nível de relacionamentos afectivos, e entre diversas amizades que manteve ao longo dos últimos anos, e que não são por si valorizadas, em B... iniciou uma          relação            afectiva em união de facto com KK, profissionalmente activa, coabitação que terminou em Setembro de 2020. No entanto, continuaram a manter amizade.
81. Posteriormente conheceu AA, com quem em Maio de 2021 iniciou uma relação de namoro.
82. Tendo por referência o período da ocorrência dos factos, BB residia numa habitação arrendada, que partilhava com um amigo, numa zona populacional do centro urbano de B....
83. As rotinas do arguido centravam-se na sua actividade profissional, a trabalhar na I... Ldª, como agente imobiliário e na realização de todas as tarefas que se revelassem necessárias.
84. A subsistência de BB era assegurada com o seu vencimento mensal, no valor do salário mínimo nacional acrescido de comissões.
85. O arguido apresentava então como despesas fixas mensais, a renda de casa no valor de 300€, acrescida das despesas relativas a gastos com consumos na habitação.
86. Como ocupação dos tempos livres, o arguido praticava a modalidade desportiva de futebol na Associação ..., como jogador e ultimamente, como treinador, e convivia regularmente com a namorada AA e com amigos.
87. No seu meio de residência o arguido é pouco conhecido, sendo, no entanto, referenciado como pessoa discreta e de contactos interpessoais cordiais.
88. Em contexto de entrevista, o arguido revelou dispor de competências pessoais que lhe permitem compreender as normas e regras do funcionamento da vida em sociedade. Apresentou capacidade para em abstracto perceber e identificar a ilicitude das problemáticas criminais em causa e suas consequências.
89. Face à existência dos presentes autos, o arguido manifesta uma atitude de consciencialização sobre a gravidade da situação jurídico-penal.
90. No Estabelecimento Prisional ..., BB tem revelado uma conduta de acordo com o normativo institucional, aceitou actividade laboral em meio prisional, beneficia da visita de amigos e de contactos telefónicos com a mãe e com a irmã.
91. Os factos do presente processo tiveram alguma visibilidade através dos meios de comunicação social.
92. O arguido confessou parcialmente os factos e verbalizou arrependimento.
93. O arguido não tem antecedentes criminais registados.”

Por outro lado, considerou como não provada a seguinte factualidade (transcrição):

“Com interesse para a correcta decisão da causa, não resultaram provados quaisquer factos (não se considerando aqui considerações fácticas ou jurídicas, por exemplo, a referida no artigo 29.º da acusação e traduzida na actuação por “motivo torpe”) diferentes e/ou contrários dos que especificamente foram dados como provados, designadamente, que:

a) A relação de namoro referida em 1. dos factos provados apenas se tivesse iniciado em Julho de 2021.
b) A ofendida/assistente tivesse repetido na madrugada de 05-09-2021 que iria fazer uma viagem ao ... e que o arguido tivesse então dito que a ia buscar, caso se ausentasse de Portugal.
c) O arguido se tivesse mostrado desagradado com o facto descrito em 6.
d) O quarto de banho dos homens dista a cerca de 300 metros do local onde decorria a festividade.
e) Com ambas as mãos, o arguido agarrou os cabelos da ofendida e levantou-a e de imediato atirou-a, com força, ao chão, caindo então em cima dela.
f) AA apenas tenha tentado gritar.
g) Nas circunstâncias descritas em 20. o arguido tivesse fechado, à força, a boca da ofendida.
h) O arguido tivesse desferido cotoveladas à ofendida/assistente e lhe tivesse colocado um joelho na cabeça.
i) Nas circunstâncias aludidas em 23. a ofendida/assistente tivesse permanecido com os olhos fechados.
j) Após o facto descrito em 23. o arguido tivesse cessado as agressões.
k) O arguido, nas circunstâncias descritas em 27., tivesse dito “Vai lá ver o que fiz com ela”, o que foi ouvido por todos os que ali se encontravam.
l) A ofendida/assistente tivesse sido encontrada num local relvado.
m) O arguido tivesse colocado um joelho sobre a cabeça da ofendida.
n) A ofendida actualmente não consiga sair de casa.
o) A ofendida permaneça numa situação de isolamento total.
p) A ofendida actualmente não consiga exercer qualquer actividade profissional.
q) Na presente data a ofendida se mostre incapaz de voltar ao trabalho e financeiramente dependente de terceiros.
r) A assistente permanece incapaz de conduzir, não consegue estar dentro de um carro muito tempo, nem circular com movimento, não consegue entrar em túneis, nem edifícios com elevadores.
s) Não consegue ir à casa de banho e fechar a porta, sentindo que vai morrer.
t) Actualmente sempre que vai a uma casa de banho pública a ofendida tem que ser acompanhada por alguém, não sendo capaz de estar sozinha na casa de banho.
u) Uma das filhas da ofendida/assistente careça do seu sustento e apoio.
v) Foi o arguido que ordenou a chamada de emergência para os Bombeiros/INEM.
w) A assistente não trabalha porque não quer.
x) A viagem que a ofendida/assistente fez para o ... entre 03-03-2022 e 06-06-2022 tenha sido para férias.
y) A assistente passeia-se na rua, sem que se note qualquer marca ou aparente qualquer doença.
z) Frequenta discotecas e bares.
aa) Convive com pessoas de raça negra tal como convivia anteriormente.
bb) O comportamento da assistente foi o gerador das agressões, por não se ter “comportado”.
cc) A ofendida/assistente e EE estivessem a ter relações ou contactos de cariz sexual quando foram encontrados pelo arguido.
dd) O arguido, na data dos factos, também trabalhasse para a ....”

E motivou a decisão de facto nos seguintes termos (transcrição):

“Teve-se em consideração, a respeito da apreciação da prova, ao disposto no artigo 127.º do CPP.
O critério fundamental observado por este Tribunal quanto ao standard probatório foi o que corresponde ao principio da assunção da prova para além de toda a duvida razoável.
Como refere José Mouraz Lopes in Comentário Judiciário do CPP, t. II, 3.ª ed., Almedina, p. 85: “Trata-se de conseguir, através deste principio, a possibilidade de condenar alguém apenas quando se tenha alcançado a ‘certeza’ da sua culpabilidade, devendo ser absolvido sempre que existam dúvidas razoáveis. O conceito, «para além da dúvida razoável» tem sido entendido como a hipótese, probatoriamente admissível, frente à qual a hipótese antagónica (ou apresentada como contrária) tem apenas uma remote probability (probabilidade remota) de ter acontecido. Não constitui, no entanto, um critério assente na exclusão da «sombra de dúvidas»”.
A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do Tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida ligeira, meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, argumentada, coerente, razoável (cfr., nestes sentido, Jean-Denis Bredin, Le Doute et L’intime Conviction, Revue Française de Théorie, de Philosophie e de Culture Juridique, Vol. 23, (1996), p. 25., citado no Ac. da R.C. de 09-05-2012 in www.dgsi.pt., proc. n.º 347/10.8PATNV.C1).
A convicção do tribunal, relativamente à matéria de facto objecto deste processo, baseou-se na análise e ponderação crítica, à luz das regras da experiência, do conjunto da prova produzida, devidamente conjugada entre si.
Refira-se, agora, que a apreciação da prova testemunhal – actividade que se processa segundo as regras da experiência comum e o princípio da livre convicção – tendo em vista a carga subjectiva inerente, não dispensa um tratamento a nível cognitivo por parte do julgador, mediante operações de cotejo com os restantes meios de prova – com os quais deve ser confrontada e criticamente analisada –, sendo que todos os meios de prova, como toda a prova (indiciária) de qualquer outra natureza, podem e devem ser objecto de deduções e induções, as quais partindo da inteligência, hão-de basear-se na correcção de raciocínio, mediante a utilização das regras de experiência (cfr. Ac. da R.G. de 09-02-2012 in www.dgsi.pt., proc. n.º Proc. 4328/09.6TBBRG-B.G1).
A propósito da regra da experiência comum, afirmou-se no Ac. do S.T.J. de 12-12-2018 in www.dgsi.pt., proc. n.º 119/16.6SHLSB.L1.S1 que: “A máxima de experiência é uma regra de comportamento que exprime aquilo que acontece na maior parte dos casos (id quod plerum que accidit); mais precisamente, essa é uma regra que é dedutível de casos similares ao facto anotado. A experiência pode permitir formular um juízo de relação entre factos; ocorre essa relação quando se deduz que uma categoria de factos se acompanha de outra determinada categoria de factos. Raciocina-se com base neste princípio: ‘em casos similares, ocorre um idêntico comportamento’. Este razoamento permite conferir/verificar a existência de um facto histórico obviamente não com certeza, mas com uma probabilidade mais ou menos ampla”.
No caso dos autos, a convicção do Tribunal alicerçou-se, genéricamente, na valoração critica da prova pericial e documental junta aos autos, nas declarações do arguido e da assistente – esta em sede de declarações para memória futura que prestou em 20-12-2021 (cfr. fls. 432 e ss.) -, e bem assim dos depoimentos das testemunhas inquiridas, tudo concatenado com as regras da experiência comum.

Assim, desde logo, o Tribunal considerou os seguintes elementos:

a) Auto de notícia de fls. 23 e ss.;
b) Fotografias de fls. 58 e ss. e de fls. 75, 76, 77, 78 (esta com especial destaque, por retratar a situação da vítima, ainda no local dos factos), 80 a 101;
c) Autos de Apreensão de fls. 67 e 68; d) Auto de Exame Directo de fls. 69 e 70; e) Elementos Clínicos de fls. 345 a 351;
f) Guia de Depósito de Objectos de fls. 498 e Termo de Entrega de fls. 532;
g) Informação da APAV de fls. 535 a 536;
h) Certificados de Incapacidade Temporária para o Trabalho de AA, para o período que mediou entre 17-01-2022 a 27-02-2022 (cfr. fls. 539 e ss.).
i) Consulta de bases de dados da Segurança Social referente à pessoa de AA, da qual deriva, designadamente, que em Agosto de 2021 foi declarado pela ofendida um vencimento mensal de € 777 (cfr. fls. 770).
j) Extracto de remunerações da ofendida junto da Segurança Social, constante de fls. 784.
k) Print inerente à viagem de avião da ofendida/assistente entre ... (...) e ... (Portugal, no dia 04-06-2022) constante de fls. 773, e informação de fls. 774 (subscrita pelo Ilustre Advogado da ofendida/assistente) de que aquela se encontrou na sua cidade natal desde o dia .../.../2022. Estes elementos foram relevantes na demonstração da factualidade descrita em 67. dos factos provados.
l) Factura do Hospital ..., que consta de fls. 634.
Por outro lado, quanto à autoria dos factos em discussão o Tribunal atendeu ao teor do relatório pericial de 74 a 102 e 495 a 497, onde se conclui, designadamente, que se obteve um perfil único ou de maior contribuidor de vestígios de sangue de AA na T-Shirt, nos calcões e nos chinelos do arguido.

No que respeita à avaliação do Dano na pessoa da ofendida/assistente AA o Tribunal atendeu aos relatórios periciais que constam de fls. 234 a 236 (intercalar), 524 a 526 (intercalar), 988 e ss. (relatório da especialidade de psiquiatria forense) e 1027 e ss. (relatório final). Evidentemente que tratando-se no caso dos autos, além do mais, de discutir as sequelas na pessoa da ofendida/assistente do comportamento do arguido, estes relatórios periciais foram, de um modo geral, erigidos como principal matriz que norteou o Tribunal na resposta às questões factuais a esse propósito suscitadas nos autos.
Os relatórios periciais   produzidos      nos autos mostram-se suficientemente fundamentados, tendo sidos produzidos por organismo oficial, com reconhecida competência para o efeito e que nenhum interesse tem no desfecho da lide.
No caso, inexistem quaisquer elementos que imponham soluções diferentes das que foram apontadas pelos Srs. Peritos nos seus relatórios periciais (com excepção do que se apurou no ponto 42., em virtude, designadamente, do conteúdo dos certificados de incapacidade temporária acima mencionados sob a al. h) do acervo da prova documental).
As citadas características dos relatórios periciais produzidos nos autos fizeram, pois, que se elevasse o seu valor probatório no confronto com os demais elementos probatórios e, especialmente, com a prova pessoal que com eles se mostrou incoerente.
Como foi dito, em sede de prova pessoal o Tribunal valorou criticamente as declarações do arguido (que o tribunal se abstém de reproduzir uma vez que se encontram gravadas), as declarações da ofendida/assistente (a valoração destas declarações fundou-se no Ac. de Fixação de Jurisprudência de 10-11-2017, in www.dgsi.pt., proc. n.º 895/14.0PGLRS.L1-A.S1, publicado no DR, I SÉRIE, Nº 224, 21 DE NOVEMBRO DE 2017, P. 6090 - 6113) e os depoimentos das testemunhas ... (amiga do arguido há cerca de 1 ano e conhecida da ofendida/assistente, que no dia dos autos se encontrava na Praia Fluvial de ... no grupo de pessoas em que estavam inseridos o arguido e a ofendida e que, posteriormente às agressões, se deslocou para o local onde se encontrava a assistente, encontrando-a, asseverando ainda que o arguido lhe entregou o telemóvel dele a fim de serem alertadas as autoridades policiais, no caso, a
GNR), HH (amiga do arguido há 4 ou 5 anos e conhecida da ofendida, que no dia em questão também estava na Praia Fluvial de ... integrada no conjunto de pessoas em que também estavam inseridos o arguido e a ofendida e que, depois das agressões à ofendida, foi ao encontro desta juntamente com ... e EE), EE (amigo da ofendida/assistente há cerca de dois anos e conhecido do arguido que se deslocou para a Praia Fluvial de ... no dia 04-09-2021 ao início de noite e que, mais tarde, depois de ir à casa de banho encontrou a ofendida/assistente, com quem ficou alguns minutos no local onde esta estava, surgindo posteriormente o arguido. Depois, após troca de palavras com este e com a ofendida, EE saiu do local onde o arguido e assistente se encontravam e dirigiu-se para o sítio onde decorria a festividade. Mais tarde o arguido dirigiu-se para o local onde a testemunha se encontrava e onde decorria a festividade e tentou agredi-lo e deu a entender que tinha feito mal à ofendida. A testemunha deslocou-se então para o local onde se encontrava a ofendida/assistente, vindo a encontrá-la inconsciente, ali tendo, designadamente, retirado terra e erva do interior da boca de AA), ... (Inspector da Polícia Judiciária ..., que relatou, além do mais, que a GNR retirou fotografias no local dos autos que posteriormente foram remetidas à Polícia Judiciária, mais adiantando que foram seus colegas que fizerem a recolha das roupas do arguido), LL (também inspectora da Policia Judiciária, que na sequência dos factos se deslocou ao local com o arguido, acrescentando que o seu colega MM fez registo fotográfico que consta dos autos), II (médico assistente da ofendida desde Janeiro de 2022, subscritor dos Certificados de Incapacidade Temporária de fls. 539 e ss., que transmitiu também ter avaliado a ofendida em consulta), DD (Cabo da GNR, subscritor do auto de noticia de fls. 23 e ss., que confirmou, além do mais, que foi NN, também militar daquela Guarda que tirou a fotografia de fls. 78), JJ (médico neurocirurgião no Hospital ..., que acompanhou a situação da ofendida/assistente aquando do seu internamento de urgência e posteriormente, sendo subscritor de relatório clínico constante dos autos – cfr. fls. 350 -), OO (psicóloga e técnica da APAV que se encontra a fazer o acompanhamento da ofendida e assistente), PP (mestre em direito e gestora de gabinete da APAV que tem também feito o acompanhamento da situação da ofendida/assistente), QQ (ex-companheira do arguido, que no dia dos factos descritos da acusação se encontrava na festividade na Praia Fluvial de ..., embora se encontrasse a dormir quando ocorreram as agressões), RR (amigo do arguido que no dia da festividade esteve no local, tendo dali saído antes da ocorrência), GG (amigo do arguido há 5 anos, que estava no local da festividade aquando das agressões, estava perto de EE quando o arguido voltou para ali e tentou “entrar numa briga” com aquele. A testemunha posteriormente deslocou-se para a zona onde estava o corpo de AA, tendo ficado mais perto do arguido até à chegada da GNR. Segundo a testemunha, esteve ainda com a ofendida, pouco depois de esta ter alta do Hospital, em casa de uma amiga e ela estava bem, não tendo reparado na existência de qualquer marca, tendo conversado com ela como se nada tivesse acontecido. Acrescentou que também a viu numa discoteca, o que terá ocorrido no início de 2022), SS (amigo do arguido e seu sócio desde meados de 2021, conhecendo a ofendida por ter sido namorada deste. Além do mais, adiantou esta testemunha que quando a filha da ofendida chegou foram tomar café perto do escritório da testemunha, sendo que também a viu numa festa de amigos comuns, que terá ocorrido em Março de 2022. Depôs ainda no sentido de que a ofendida/assistente estava a andar com a vida para a frente), TT (amiga do arguido há 1 ano e meio, tendo sido amiga da ofendida. Relatou que, depois do sucedido, em Dezembro de 2021, viu a ofendida numa pastelaria), UU (que declarou ter vivido com o arguido durante 5 anos, sendo o seu depoimento “meramente” abonatório da sua personalidade), VV (tia do arguido, que abonou a sua personalidade), declarações e depoimentos esses que o Tribunal se abstém de reproduzir, uma vez que se encontram gravados.
Na avaliação critica da referida prova pessoal o Tribunal atendeu a uma multiplicidade de factores, que têm que ver com razões de ciência, espontaneidade dos depoimentos/declarações, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto-sócio cultural, a linguagem gestual, inclusive a dos olhares (estas no caso da prova pessoal prestada em audiência), a interpretação das pausas e silêncios dos declarantes e testemunhas, para poder perceber e aquilatar quem estará a falar a linguagem da verdade.
Assim, quanto ao ponto 1. dos factos provados, a convicção positiva do Tribunal alicerçou-se essencialmente nas declarações do arguido e da assistente (sempre em sede de declarações para memória futura), sendo que o arguido, de forma firme, localizou o início dessa relação de namoro em Maio de 2021.
A prova do ponto 2. dos factos provados emergiu essencialmente da conjugação das declarações prestadas pela ofendida (que, no geral, foram sentidas, vívidas, expressivas, providas de indubitável razão de ciência e coerentes), com os depoimentos de HH (que declarou que a assistente uma vez lhe tinha comunicado que o arguido era ciumento) e EE (que declarou que a ofendida/assistente lhe comunicou que o arguido não lhe dava espaço).
A prova do ponto 3. dos factos provados derivou, no essencial, da conjugação das declarações da ofendida/assistente, com o testemunho de EE.
A prova do ponto 4. dos factos provados resultou das declarações do arguido que admitiu tal factualidade nas suas declarações, sendo essa admissão coerente com a demais prova produzida.
A prova do ponto 5. da factualidade apurada emergiu, desde logo, do depoimento da testemunha HH (cujo depoimento foi no sentido de que chegou ao local ainda antes das 11.00 horas da manhã do dia 04-09-2021, sendo que EE ali compareceu cerca das 20.30 horas), das declarações do arguido (que admitiu que, acompanhado da ofendida, compareceram no local da festividade entre as 13 e as 14.00 horas) e das declarações de ... (que asseverou que EE chegou ao local entre as 20.00 e as 21.00 horas).
A prova do ponto 6. dos factos provados emergiu das declarações do arguido (que admitiu essa factualidade), conjuntamente com os depoimentos de ... e HH.
A prova do ponto 7. dos factos provados derivou da globalidade da prova produzida (sendo que o arguido admitiu que EE se dirigiu ao quarto de banho dos homens; EE confirmou que foi à casa de banho dos homens).
A prova do ponto 8. dos factos provados emergiu, essencialmente, da conjugação das declarações do arguido e da assistente, sendo que a distância entre o local onde estava o grupo a festejar e o local onde se situa a casa de banho dos homens também se infere do teor das fotografias aéreas juntas aos autos. Assim, quanto ao ponto 1. dos factos provados, a convicção positiva do Tribunal alicerçou-se essencialmente nas declarações do arguido e da assistente (sempre em sede de declarações para memória futura), sendo que o arguido, de forma firme, localizou o início dessa relação de namoro em Maio de 2021.
A prova do ponto 2. dos factos provados emergiu essencialmente da conjugação das declarações prestadas pela ofendida (que, no geral, foram sentidas, vívidas, expressivas, providas de indubitável razão de ciência e coerentes), com os depoimentos de HH (que declarou que a assistente uma vez lhe tinha comunicado que o arguido era ciumento) e EE (que declarou que a ofendida/assistente lhe comunicou que o arguido não lhe dava espaço).
A prova do ponto 3. dos factos provados derivou, no essencial, da conjugação das declarações da ofendida/assistente, com o testemunho de EE.
A prova do ponto 4. dos factos provados resultou das declarações do arguido que admitiu tal factualidade nas suas declarações, sendo essa admissão coerente com a demais prova produzida.
A prova do ponto 5. da factualidade apurada emergiu, desde logo, do depoimento da testemunha HH (cujo depoimento foi no sentido de que chegou ao local ainda antes das 11.00 horas da manhã do dia 04-09-2021, sendo que EE ali compareceu cerca das 20.30 horas), das declarações do arguido (que admitiu que, acompanhado da ofendida, compareceram no local da festividade entre as 13 e as 14.00 horas) e das declarações de ... (que asseverou que EE chegou ao local entre as 20.00 e as 21.00 horas).
A prova do ponto 6. dos factos provados emergiu das declarações do arguido (que admitiu essa factualidade), conjuntamente com os depoimentos de ... e HH.
A prova do ponto 7. dos factos provados derivou da globalidade da prova produzida (sendo que o arguido admitiu que EE se dirigiu ao quarto de banho dos homens; EE confirmou que foi à casa de banho dos homens).
A prova do ponto 8. dos factos provados emergiu, essencialmente, da conjugação das declarações do arguido e da assistente, sendo que a distância entre o local onde estava o grupo a festejar e o local onde se situa a casa de banho dos homens também se infere do teor das fotografias aéreas juntas aos autos.
Relativamente aos pontos 9. a 11 e 12. (na parte inicial, isto é, na parte em que se refere que existiu uma discussão entre arguido e ofendida) dos factos provados impõe-se afirmar, desde logo, que as versões apresentadas pelo arguido e pela assistente não foram uniformes e compatíveis quanto ao que estavam EE e a assistente a fazer, na parte traseira do local onde se situam as casas de banho, quando o arguido os encontrou.
Nas declarações prestadas pelo arguido em audiência este afirmou que a ofendida e a testemunha EE se encontravam a ter relações sexuais quando ali foram encontrados pelo arguido. Já as declarações da ofendida e o testemunho de EE foram no sentido de que ali se encontraram, de forma fortuita, e que estavam ali a conversar há poucos minutos quando surgiu o arguido.
Dentre as versões apresentadas pelo arguido, por um lado, e pela assistente, pelo outro, o Tribunal deu preferência à versão apresentada por esta, uma vez que as suas declarações se mostram mais completas, desinteressadas e coerentes (quando analisadas de per si e quando conjugadas com as regras da experiência comum) quando confrontadas com as declarações incompletas e interessadas do arguido.
Por outro lado, o Tribunal notou que as declarações da assistente, nesta sede, foram consonantes, no essencial, com o depoimento, nesta parte calmo, sereno e seguro, de EE.
Ademais, a versão apresentada pela assistente é a que melhor se coaduna com as regras da experiência comum.
Sabe-se, desde logo, que a assistente se queixava que arguido era ciumento. Ora, atendendo a essa característica pessoal do arguido e dada a relativa proximidade do local onde decorria a festividade e (mais ainda) do local onde se situam as instalações da casa de banho e de um café/bar ali também existente (como emerge, designadamente, do depoimento da testemunha ...), certamente a assistente e a testemunha EE (pessoas já experimentadas na vida, o que se deduz das suas idades – ambos com mais de 40 anos da idade -), caso efectivamente quisessem ter tido relações sexuais, não deixariam de melhor esconder tais relações do arguido e dos demais conhecidos que porventura ali os pudessem encontrar, escolhendo melhor sítio para o efeito, o que até era relativamente simples na data e local dos autos (como decorre, especialmente, das fotografias de fls. 62 – fotografia n.º 6 - e 66, a planta do milho, naquela altura do ano e nos campos que estão para lá da cerca que, a sul, veda a Praia Fluvial de ..., estava alta, verde e com folha, pelo que bastaria à assistente e a EE, em sentido físico, pular a cerca e ter as relações sexuais com toda a privacidade, caso esse efectivamente fosse a sua vontade, o que manifestamente não fizeram).
A isto acresce que o próprio arguido admitiu que, mesmo depois de o EE ter saído do local onde se encontravam os três (EE, assistente e o entretanto chegado arguido), esteve algum tempo a conversar com a ofendida/assistente, antes de começar a agredi-la, o que que constitui um indício de que ele não os encontrou a ter relações sexuais, nem foi esse (indemonstrado) facto – que o arguido encontrou a assistente e a testemunha EE a terem relações sexuais - que motivou as agressões.
No sentido da prevalência da versão da assistente sobre a versão do arguido quanto à realidade por este percepcionada quando encontrou a ofendida e EE nas traseiras da casa de banho milita ainda a conduta posterior deste. Efectivamente, EE ausentou-se daquele local e, em vez de, por exemplo, ir embora e/ou dizer aos outros elementos do grupo o que tinha sucedido (caso efectivamente tivesse tido relações sexuais com a ofendida/assistente e tivessem sido descobertos no acto pelo arguido), dirigiu-se ao local onde estavam a decorrer as festividades e continuou a desfrutar da companhia dos outros membros do grupo (a testemunha ..., de modo, nesta parte isento e credível, afirmou que EE, depois de se ter ausentado, chegou ao local onde estava grupo e interagiu normalmente; A testemunha HH relatou, de forma que neste âmbito se considerou firme e desinteressado, que quando EE voltou ao grupo vinha “normal”). Ainda nesta sede, refira-se que EE, logo no local onde se encontrava o grupo e decorriam as festividades, quando confrontado pelo arguido com o facto de ter tido relações sexuais com a ofendida, mostrou-se surpreendido e prontamente negou essa factualidade (o que decorre do testemunho de HH; o depoimento de ... foi no sentido de que EE, logo no momento, negou a imputação que lhe foi ali efectuada pelo arguido).
Estes elementos, devidamente conjugados, permitiram ao Tribunal concluir, com a necessária segurança no sentido da verificação da matéria factual dada como provada sob os n.ºs 9. a 11 e 12 (na parte inicial, isto é, quanto á existência da falada discussão).
A matéria de facto dada como provada sob os n.ºs 12 (a partir de “(…) ofendida/assistente (…)”), 13., 14., 15., 16., 17., 18., 19., 20., 21., 22., 23., 24., 25., 29. e 63. fundou-se, sobretudo, nas declarações (para memória futura) prestadas pela assistente que, neste conspecto, se mostraram sólidas, sentidas, sustentadas em sólida razão de ciência e coerentes (nomeadamente, com as lesões apresentadas pela ofendida, verificadas clinica e/ou pericialmente nos autos; consonantes ainda com a prova documental – destacando-se aqui a impressiva fotografia de fls. 78 –; as declarações da assistente foram, além do mais, concordantes com as declarações de EE, na parte em que este afirmou que quando chegou ao local onde se encontrava a assistente ela estava inconsciente, tendo, designadamente, enfiado os dedos na boca dela e do seu interior retirado sangue com terra e relva), assim convencendo o Tribunal. Nesta sede o Tribunal atendeu ainda ao teor das declarações do arguido quando foram concordantes com a factualidade dada como provada (por exemplo, o arguido admitiu que desferiu murros na cara e no peito da ofendida, referiu que lhe pode ter puxado os cabelos, admitiu que a ofendida caiu de costas, confirmou que esteve sentado em cima das pernas da assistente de modo a que ela não mexesse as pernas, admitiu que a arguida gritou, admitiu que a ofendida estava de olhos abertos), por lhe ser desfavorável nessa parte e, também nessa sede, ser coerente com as regras da experiência comum.
Já na parte em que as declarações do arguido foram em sentido diferente do que provado se encontra nos citados pontos da factualidade dada como provada, elas em nada convenceram o Tribunal, dado que se trata de declarações interessadas, contrariadas por prova que o Tribunal considerou sólida e segura em sentido contrário (por exemplo, as declarações do arguido foram no sentido de que quando abandonou a assistente no local após as agressões não notou que a vítima tivesse dificuldade em respirar. Ora, estas declarações, além de frontalmente contrariadas pela ofendida/assistente, foram também negadas pelo testemunho de EE – que neste conspecto relatou que quando encontrou a ofendida inconsciente [depois do sucedido] tentou ouvir a respiração dela e não ouvia nada, sendo que só após lhe tirar terra da boca e de a ter sacudido é que a ofendida, com muita dificuldade, disse algo. Também a testemunha ... afirmou que quando viu a ofendida pela primeira vez depois do sucedido ela estava sem reacção, pensando que estaria inconsciente). Ademais, as declarações do arguido nessa sede são negadas pela sua posterior conduta; a) em primeiro lugar salienta-se a afirmação por si proferida e que consta do ponto 27. dos factos provados, o que aponta no sentido de que o arguido pensou que deixou a ofendida já sem vida; b) em segundo lugar, notou-se que a prioridade do arguido, após os factos e já depois de alguns membros do grupo terem localizado a ofendida, foi diligenciar pelo chamamento, através de chamada de telemóvel, das autoridades policiais, e não pela ajuda médica - como emerge do depoimento, neste âmbito isento e provido de válida razão de ciência, de ... que referiu que o arguido lhe entregou o telemóvel com a chamada para a GNR já a decorrer [observando-se que, caso o arguido também pretendesse auxilio médico para a ofendida, em vez de ligar para a GNR, bastar-lhe-ia ligar para o n.º 112, número único de emergência, que permitiria, no caso, que com uma única chamada se solicitasse assistência médica urgente e a presença das forças de segurança] -.).
A demonstração dos factos identificados sob os n.ºs 26. e 27 resulta da globalidade da prova produzida concatenada com as regras da experiência e, em especial, do teor dos depoimentos de ... e HH (cfr. essencialmente as respostas de HH ao Ilustre Defensor do arguido no que tange à concreta expressão então verbalizada pelo arguido), que aqui se mostraram, no importante, concordantes e sustentadas em conhecimento directo dos factos.
A prova da matéria do ponto 28. e 30. fundou-se, especialmente, nos testemunhos de ... e HH, concatenados com os elementos documentais do Hospital ..., de fls. 345 a 351 e 634.
A prova da matéria do ponto 32. resultou, essencialmente, do teor de fls. 350 e do testemunho, calmo, sereno, seguro e isento de JJ.
A prova da matéria dos pontos 31., 36., 37., 38., 39., 40., 41., 42.,43., 44., 45., 46., 47., 48., 49., 50., 51., 52., 53., 54., 55., 56., 57., 58., 59., emerge da globalidade da prova produzida e, especialmente, da conjugação dos elementos clínicos do Hospital ..., dos relatórios periciais constantes dos autos, da informação da APAV supra identificada, das declarações da ofendida/assistente e dos testemunhos de II, OO e PP que se mostraram serenos, firmes e consonantes com as regras da experiência comum.
Quanto ao elemento subjectivo, no que concerne à intenção com que o arguido actuou, “dado que o dolo pertence à vida interior de cada um e é, portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão, só é possível captar a existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, com maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode, de facto, comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência” (cf. Ac. da Relação do Porto de 23-02-1983, BMJ, n.º 324, p. 620).
Os factos do tipo subjectivo que integram o dolo, os actos interiores ou internos, resultam frequentemente dos factos externos e, por respeitarem à vida psíquica, raramente se provam directamente.
Na ausência de confissão, em que o arguido reconhece ter sabido e querido os factos do tipo objectivo, a prova do dolo far-se-á por ilações, retiradas de indícios, e também de uma leitura de um comportamento exterior e visível do agente.
Ora, face a tudo o exposto, os factos externos apurados, consubstanciado nas concretas actuações objectivas demonstradas, com base nos meios de prova referidos e com base nas regras de experiência, permitiram ao Tribunal, com consistência, presumir o facto interno e alcançar convicção positiva, sobre a evidente e directa intenção do arguido BB de actuar daquela forma nos moldes provados.
Com efeito, o dolo e intenção com que o arguido BB agiu, tendo este negado a sua verificação, inferem-se dos aspectos objectivos em que se materializou a sua acção e do significado que os mesmos têm e revelam de acordo com as regras da experiência comum.
Para essa conclusão, no caso dos autos, o Tribunal atendeu:
- À circunstância de o arguido ter, de forma violenta (violência essa que resultam também das projecções do sangue da vítima ilustradas a fls. 82, 87 e 88), agredido fisicamente a ofendida/assistente, sua então namorada, por forma e em partes do corpo susceptíveis de lhe tirar a vida (cfr. matéria de facto dada como provada sob os n.ºs 1., 12., 13., 14., 15., 16., 17., 21. e 24);
- Ao facto de o arguido ter enchido a boca e o nariz da ofendida/assistente com terra e erva seca e ter colocado uma mão em cima da referida boca e do assinalado nariz da assistente, assim a impedindo de respirar normalmente;
- À persistente verbalização do arguido durante as agressões (afirmando ele, de forma repetida e dirigida à assistente, “vou-te matar”);
- Ao facto de, mesmo depois de a ofendida se fingir de morta o arguido ter abanado a mesma, ter-se levantado e pisado o rosto por duas vezes;
- À circunstância de o arguido só ter parado de agredir a vítima quando a mesma deixou de ter qualquer reacção e por achar que a mesma já estava morta;
- Ao estado em que o arguido deixou o corpo da vítima e em especial na parte da cabeça e cara (cfr. especialmente a marcante fotografia de fls. 78 e relatórios médicos de fls. 345 e ss.), causando-lhe inclusivamente, perigo para a vida;
- Ao comportamento adoptado pelo arguido após as agressões (especialmente, a verbalização assinalada em 27. dos factos provados e a circunstância de espontaneamente o arguido não ter diligenciado pela ajuda médica à vítima).
Todos estes factos, devidamente perspectivados à luz das regras da normalidade conduzem inelutavelmente à conclusão de que o arguido, ao actuar como actuou, quis efectivamente tirar a vida à ofendida/assistente, o que apenas não ocorreu por circunstâncias alheias à sua vontade.
A factualidade vertida em 34. resultou da globalidade da prova produzida, perspectivada sob as regras da experiência comum (salientando-se que das declarações do arguido emerge que ele actuou por ciúmes, o mesmo derivando das declarações para memória futura prestadas pela ofendida/assistente; o testemunho, aqui isento e nesta parte credível, de DD, Cabo da G.N.R. que se deslocou ao local no após a ocorrência, foi no sentido de que o arguido se mostrou sempre calmo, nada perturbado, parecendo não ser nada com ele).
A prova da matéria factual descrita nos pontos 61., 62. e 64. adveio da consideração da globalidade da prova produzida em audiência e, especial, da factura junta com o pedido aliada à comprovada prestação dos cuidados de saúde reclamados pelo estado da ofendida/assistente (cfr. por exemplo, fotografias de fls. 94 e ss., informação clínica de fls. 345 e ss. e testemunho de JJ).
A demonstração da factualidade identificada em 65. resulta já da fundamentação supra descrita.
A facticidade descrita em 66. emergiu da globalidade da prova produzida e, especialmente, dos documentos de fls. 53 e 58 e ss. e dos testemunhos de ..., HH, de ..., LL, DD e GG.
Ainda em sede de análise critica da prova produzida, refira-se que o Tribunal conferiu muito pouco relevo probatório aos testemunhos de GG, SS e TT quando analisados de per si, uma vez que se trata de depoimentos claramente parciais em favor do arguido (de quem as testemunhas são amigas), muito pouco desenvolvidos e pormenorizados (por exemplo; a) o depoimento de GG foi no sentido de que esteve com a ofendida/assistente em casa de uma amiga numa festa, poucos dias depois de a vítima ter tido alta hospitalar, sendo que ela conversou como se nada tivesse acontecido. Este depoimento foi ainda no sentido de que no início do ano de 2022 viu a ofendida/assistente numa discoteca; b) o depoimento de SS foi no sentido quando chegou a filha da ofendida/assistente até foram tomar um café num sitio perto do escritório da testemunha, não se recordando, todavia, do nome da filha da ofendida, nem da data em que tal ocorreu. Este depoimento foi ainda no sentido de ter havido uma festa comum em Março de 2022 em que a ofendida compareceu [observando-se que a prova dos autos permite concluir que no dia 03-03-2022 – portanto, uma quinta-feira - a ofendida partiu para o ... -; c) O depoimento de TT foi no sentido de que em Dezembro de 2021/Janeiro de 2022 viu a ofendida numa pastelaria com uma pessoa que seria o novo namorado), desprovidos de quaisquer corroborações periféricas externas indubitavelmente válidas e, em boa medida, contrariados por prova que se considerou credível (por exemplo, os relatórios periciais constantes dos autos que, além do mais, permitem afirmar a existência de perturbação de stress pós-traumatico na pessoa da ofendida, as declarações para memória futura prestadas pela ofendida, os testemunhos de OO e PP).
No que tange aos antecedentes criminais do arguido, tomou-se em consideração o teor do seu CRC, que consta de fls. 104 e 841.
Quanto ás condições pessoais, sociais, familiares e laborais do arguido, atendeu-se ao conteúdo do relatório social de fls. 902 e ss. e aos testemunhos de QQ, RR, UU e VV, na medida em que concordantes com o teor daquele relatório social.
A matéria de facto dada como não provada funda-se na falta de elementos seguros que a permita comprovar ou na prova de factos com ela incompatível.
Foi do contexto da prova produzida, apreciada criticamente nos sobreditos termos, que resultou a matéria de facto dada como provada e não provada.”
*

III.2 – Análise das sobreditas questões suscitadas pelo arguido no douto recurso, segundo uma lógica sequencial em que se confere primazia às que, sendo de cariz processual e suscetíveis de colocar a causa a validade da decisão recorrida, procedendo, interferem potencialmente com o conhecimento das demais:

III.2.1 – Da alegada extemporaneidade do pedido de indemnização formulado pela assistente:

Entre o mais por si peticionado, o arguido/recorrente BB defende que deve ser julgado como não apresentado o pedido de indemnização civil deduzido nos autos pela lesada/assistente AA.
Alega, para tanto, que a demandante constituída assistente foi notificada do despacho de acusação, através do seu patrono, no dia 7/3/22 – carta expedida a 2/3, cfr. fls. 566 dos autos -, pelo que o prazo para deduzir pedido de indemnização civil até ao dia 17/3/22. Sucede que, a demandante apresentou pedido de indemnização civil no dia 22/3/22 (cfr. fls. 655 dos autos) e, portanto, extemporaneamente - cf. conclusões 127ª a 129ª.

Vejamos.

Por despacho judicial proferido a 13.01.2022, a ofendida AA foi admitida a intervir nos autos como assistente (fls. 457).

Preceitua o art. 77º do Código de Processo Penal, na parte que ora releva:

“1 - Quando apresentado pelo Ministério Público ou pelo assistente, o pedido é deduzido na acusação ou, em requerimento articulado, no prazo em que esta deve ser formulada.
2 - O lesado que tiver manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização civil, nos termos do n.º 2 do artigo 75.º, é notificado do despacho de acusação, ou, não o havendo, do despacho de pronúncia, se a ele houver lugar, para, querendo, deduzir o pedido, em requerimento articulado, no prazo de 20 dias.
3 - Se não tiver manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização ou se não tiver sido notificado nos termos do número anterior, o lesado pode deduzir o pedido até 20 dias depois de ao arguido ser notificado o despacho de acusação ou, se o não houver, o despacho de pronúncia.”

Informada, nos termos do art. 75º do CPP, da possibilidade de deduzir pedido de indemnização civil (fls. 322 e 323), a lesada não manifestou, até ao encerramento do inquérito, o propósito de o fazer, razão pela qual não foi notificada da acusação com a expressa menção de, querendo, poder deduzir aquele pedido, em requerimento articulado, no prazo de 20 dias.
Assim, em conformidade com o preceituado no art. 277º, nº3 do CPP, ex vi art. 283º, nº5, ambos do CPP, a assistente foi notificada do despacho de acusação proferido nos autos por notificação enviada no dia 02.03.2022, por via postal simples com prova de depósito (fls. 565), e o seu ilustre patrono foi notificado por via postal registada enviada no mesmo dia (fls. 566).
Conforme decorre do disposto no art. 113º, nº10, do CPP, o prazo para a prática de ato processual subsequente conta-se a partir da data da notificação efetuada em último lugar, ou seja, a realizada na pessoa da assistente, ocorrida em 09.03.2022, correspondente ao 5º dia posterior à data da declaração do depósito do aviso postal simples, em 04.03.2022 (fls. 627).
Donde, o prazo de 10 dias de que a assistente dispunha para deduzir pedido de indemnização civil findou no dia 21.03.2022.
Na verdade, sendo a demandante civil simultaneamente assistente nos autos, rege, no caso, sobre o prazo processual de dedução do pedido de indemnização civil o disposto no n.º 1, do art. 77º, em conjugação com o disposto no art. 284º, n.º 1, ambos do CPP, ressumando da concatenação dos preditos normativos que a assistente devia ter formulado o pedido no prazo de 10 dias após ter sido notificada da acusação do Ministério Público.[2]
A assistente AA apresentou o pedido de indemnização civil no dia 22.03.2022 (fls. 655 a 661), ou seja, um dia após o termo do prazo ordinário legalmente previsto.
O prazo para dedução de pedido de indemnização é um prazo processual preclusivo do exercício do respetivo direito, pelo que, decorrido o mesmo, o acto não pode ser praticado, pelo menos no processo penal (cfr. art. 71º do CPP).
Contudo, a lesada ainda poderia atempadamente formular o seu pedido de indemnização civil nos três dias úteis subsequentes ao terminus do prazo, mediante o pagamento da respetiva multa, no caso, no montante de 0,5 UC – cf. art. 107º-A, al. a), do CPP.
Vigora ainda para a situação em apreço o disposto no art. 139º, nº6, do Código de Processo Civil (ex vi art. 107º-A, do CPP, sendo certo que o preceituado no art. 145º, nºs 5 a 7 do CPC passou a ter consagração legal no art. 139º, face ao novo Código aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26.06):
“praticado o ato em qualquer dos três dias úteis seguintes sem ter sido paga imediatamente a multa devida, logo que a falta seja verificada, a secretaria, independentemente de despacho, notifica o interessado para pagar a multa, acrescida de uma penalização de 25 % do valor da multa, desde que se trate de ato praticado por mandatário.”
Sucede que, no caso vertente, a Secretaria da primeira instância não deu cumprimento ao preceituado no sobredito normativo legal, certamente por não se ter apercebido da falta de pagamento imediato da multa devida pela demandante.
Ora, estatui o art. 157º, nº6, do CPC, aplicável por força do disposto no art. 4º do CPP, que “os erros e omissões dos atos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes.”   
Assim sendo, entendemos que da mencionada falta de atuação da secretaria judicial não pode resultar prejuízo para a demandante civil no que concerne à sua pretensão indemnizatória, ainda assim veiculada em momento processual suscetível de ser considerado tempestivo, desde que a multa devida fosse liquidada pelo Tribunal, como impunha a lei, e paga pela demandante.
Tanto mais que o pedido de indemnização civil formulado pela assistente, nas condições supra expostas, foi admitido pelo Tribunal a quo, que o considerou legal e tempestivo (cf. despacho de fls. 759, proferido em 06.04.2022).     
Tal conclusão é imposta pelo princípio da lealdade vigente em processo penal.
Deste entendimento não decorre qualquer violação do princípio do processo equitativo e do asseguramento das garantias de defesa do arguido, porquanto, por um lado, reitera-se, o pedido de indemnização em causa não é absoluta e impreterivelmente extemporâneo e, por outro lado, o demandado teve oportunidade de o contestar, como aliás sucedeu (cf. contestação de fls. 793 a 795).
Ademais, ainda que assim não fosse – como entendemos que é –, estávamos perante o cometimento de uma mera irregularidade que não contende com a validade intrínseca do ato praticado e, como tal, devia ter sido arguida pelo demandado nos três dias após a sua notificação do despacho judicial que admitiu o pedido de indemnização civil (cf. art. 123º, nº1, do CPP). Não tendo acontecido tal arguição, a irregularidade mostra-se sanada e esse despacho transitou em julgado – este entendimento é igualmente perfilhado pela assistente/recorrida na douta resposta que formulou ao recurso.
Soçobra, pois, o douto recurso quanto a este fundamento.     
      
III.2.2 – Das arguidas nulidades do acórdão recorrido:

III.2.2.1Sobre a arguida nulidade insanável da prova produzida através de declarações da ofendida para memória futura:

Neste conspecto, alega o arguido/recorrente BB, resumidamente [cfr. conclusões 8ª a 16ª]:

- O Tribunal não podia ter determinado que a diligência de declarações da ofendida – a referência a arguida que se faz na conclusão 8ª trata-se, notoriamente, de lapso de escrita – para memória futura se fizesse na ausência do arguido, nem o Tribunal o podia dispensar ou afastar da diligência.
- O artº 24º nº1 e 2 da Lei 130/15 de 4/9 determina que o arguido tem de ser notificado para que possa estar presente, pelo que este tem direito a estar presente na diligência (cfr. o artº 24º nº2 da Lei 130/15 e 61º nº1 al. a) do CPP), sendo que, ao contrário do que dispõe o artº 271º nº6 do CPP e o artº 33º nº5 da Lei 112/09 de 16/9, aquela norma da Lei nº 130/15 não prevê o afastamento do arguido da diligência, nos termos do disposto no artº 352º do CPP. Trata de uma norma excecional que não comporta aplicação analógica – artº 11º do Código Civil.
- Mas, mesmo que se entendessem aplicáveis as normas dos artºs 271º nº6 do CPP e 33º nº5 da Lei 112/09 e se entendesse que o arguido podia ser afastado da diligência, havia de ser proferido despacho nesse sentido, nos termos do artº 352º nº1 do CPP e este tinha, da mesma forma, direito a estar presente na mesma e, por consequência, devia ser aplicada a norma do artº 332º nº7 aplicável ex vi do artº 352º nº2 do CPP, uma vez que para se afastar o arguido, este tem que estar presente.
- O arguido faltou à diligência, mas não estava nas suas mãos estar presente, dado que estando este preso preventivamente devia ser requisitado e transportado para o Tribunal – artº 332º nº2 do CPP.
- Mas, ainda que se entenda que podia estar presente e ser afastado, o cumprimento do disposto no artº 332º nº7 do CPP, aplicável por via do disposto no artº 352º nº2 do CPP, visa, entre o mais, conceder ao próprio arguido a faculdade de requerer que sejam colocadas perguntas ao depoente (ou de este as solicitar ao seu defensor), razão pela qual as testemunhas e declarantes não podem ser dispensados antes do Tribunal cumprir o disposto no artº 332º nº7 do CPP – cfr. neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 4ª edição atualizada, pág. 907.
- Faculdade que o arguido não pôde exercer, pelo que foi cometida a nulidade insanável do artº 119º al. c) do CPP.
- A interpretação que se extraia do disposto nos artºs 24º nº2 da Lei 130/15, 33º nº5 da Lei 112/09 e 271º nº6 do CPP em conjugação com o disposto no artº 61º nº1 al. a), 332º nº2 e nº7, aplicável ex vi do artº 352º nº2 do CPP no sentido de que o arguido pode ser afastado da diligência ou ser a diligência de prestação de declarações para memória futura realizada na sua ausência, é inconstitucional por violação do disposto no artº 32º nº1, 5 e 6 da
Constituição.
Conhecendo.
Nos termos do art. 119º, alínea c), do Código de Processo Penal, “Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais (…) a ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respetiva comparência.”  

Estipula o art. 271º do Código de Processo Penal:

“1 - Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
2 - No caso de processo por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior.
3 - Ao Ministério Público, ao arguido, ao defensor e aos advogados do assistente e das partes civis são comunicados o dia, a hora e o local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.
4 - Nos casos previstos no n.º 2, a tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo o menor ser assistido no decurso do acto processual por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento, previamente designado para o efeito.
5 - A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados do assistente e das partes civis e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.
6 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 352.º, 356.º, 363.º e 364.º
7 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e a acareações.
8 - A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.”

Cumpre ainda chamar à colação a regulamentação jurídica vertida na Lei nº 130/2015, de 04.09 – que aprovou o Estatuto da Vítima, transpondo a Diretiva 2012/29/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25.12.2012, que estabelece normas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade -, porquanto nos autos foi concedido à ofendida AA o estatuto de vítima especialmente vulnerável (fls. 320 a 323) e foi mediante requerimento da mesma que foi deferida pelo Exmo. Juiz de Instrução Criminal a tomada de declarações para memória futura (fls. 377 a 379 e fls. 406, respetivamente).
Nos termos do art. 21º, nºs 1 e 2, al. d) da aludida Lei, um dos direitos das vítimas especialmente vulneráveis, visando a sua proteção, é a prestação de declarações para memória futura, nos termos do art. 24º.

Por seu turno, estatui o art. 24º:

“1 - O juiz, a requerimento da vítima especialmente vulnerável ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 271.º do Código de Processo Penal.
2 - O Ministério Público, o arguido, o defensor e os advogados constituídos no processo são notificados da hora e do local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.
3 - A tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas.
4 - A tomada de declarações é efetuada, em regra, através de registo áudio ou audiovisual, só podendo ser utilizados outros meios, designadamente estenográficos ou estenotípicos, ou qualquer outro meio técnico idóneo a assegurar a reprodução integral daquelas, ou a documentação através de auto, quando aqueles meios não estiverem disponíveis, o que deverá ficar a constar do auto.
5 - A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados constituídos e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais, devendo a vítima ser assistida no decurso do ato processual por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento, previamente designado pelo tribunal.
6 - Nos casos previstos neste artigo só deverá ser prestado depoimento em audiência de julgamento se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.”

Assim, salvo o devido respeito, contrariamente ao pugnado pelo recorrente, ressuma da remissão não restritiva operada para o art. 271º do CPP pelo art. 24º, nº1, da Lei nº 130/2015, de 04.09, que à tomada de declarações para memória futura à vítima fundada nesta legislação especial aplica-se o disposto no art. 352º do CPP, ex vi do art. 271º, nº6, e, como tal, somente é imperiosa a presença na diligência do defensor do arguido, podendo o Tribunal determinar o afastamento do arguido, como sucedeu in casu.
A possibilidade de afastamento do arguido legalmente prevista equivale nestes casos à dispensa da sua presença no ato processual, pois que, distintamente do que sucede no contexto de audiência de julgamento a que se reporta o art. 352º do CPP, onde a presença do arguido é obrigatória (exceto nos casos especialmente previstos – cf. art. 332º, nº1, do mesmo diploma legal), o mesmo não ocorre na prestação de declarações para memória futura.
O arguido – à semelhança do que sucedeu com o seu ilustre defensor (fls. 411) – foi pessoalmente notificado no E.P. Regional ... da data da realização da diligência e que a mesma seria realizada na sua ausência, pelo que estava dispensado de estar presente (fls. 414 e 428).
Por conseguinte, ainda que o arguido não estivesse em absoluto privado de se deslocar ao Tribunal – no sentido de local edificado – no dia e hora designado para realização da diligência, desde que fosse assegurada a ausência de contacto visual entre si e a ofendida (cf. art. 24º, nº2, al. c), da Lei nº 130/2015), não está nos autos minimamente indiciado que ele tivesse manifestado tal vontade ao estabelecimento prisional onde estava preso preventivamente para que os serviços prisionais procedessem ao seu transporte.
A tomada de declarações para memória futura da “vítima”, constituindo uma exceção ao princípio da imediação, na medida em que se permite que a prova assim produzida sob o controlo jurisdicional de um juiz (de instrução) distinto do que preside ao julgamento possa ser tomada em conta no julgamento e na decisão final, consubstancia, pois, uma antecipação parcial do julgamento, pelo que a lei acentua a necessidade de assegurar o contraditório, exigindo a presença na diligência do Ministério Público e do defensor do arguido. Mas o mesmo não sucede relativamente ao arguido, cuja presença pode e deve ser dispensada se tal for reclamado por motivos ponderosos, no caso, a necessidade de garantir a proteção da vítima.  
Acresce que a ausência do arguido à tomada de prestação de declarações para memória futura, nos termos em que ocorreu nos autos, não consubstancia violação do princípio do contraditório (também na vertente de igualdade de armas), constitucionalmente consagrado no art. 32º, nº5, da Constituição da República Portuguesa.
Como vimos, a decisão tomada no despacho judicial prolatado pelo Mmo. JIC de determinar a não presença do arguido aquando da tomada de declarações à ofendida, alegadamente vítima de um crime de homicídio qualificado, encontra arrimo legal no disposto no art. 352º, nº1, alínea a), do CPP – ex vi do art. 271º, nº6 –, constituindo essa ausência do arguido uma exceção à regra geral consagrada no art. 61º, nº1, al. a), do mesmo diploma legal.
Esta norma excecional, prevendo a possibilidade de afastamento do arguido da tomada de declarações, visa assegurar que as declarações a prestar por determinadas pessoas, nomeadamente as especialmente vulneráveis, decorram sem inibição, intimidação ou qualquer outra perturbação ou condicionamento, bem como acautelar a integridade física e psíquica daquelas depoentes. Encontra cobertura constitucional no disposto no art. 32º, nº6, da Constituição da República Portuguesa, onde se prevê que “A lei define os casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado a atos processuais, incluindo a audiência de julgamento”.  
O Ilustre defensor do arguido esteve presente na dita tomada de declarações para memória futura, podendo formular livremente as questões que entendesse pertinentes para a defesa do seu constituinte, acrescendo que as declarações ali prestadas pela ofendida foram gravadas através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no tribunal (cf. auto de fls. 432-434), dessarte ficando acessíveis à audição pelos sujeitos processuais interessados.
Ademais, como constitui jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, «As declarações para memória futura, prestadas nos termos do art. 271º do CPP, não têm de ser obrigatoriamente lidas em audiência de julgamento para que possam ser tomadas em conta e constituir prova validamente utilizável para a formação da convicção do tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 355º e 356º, nº2, al. a), do mesmo Código.» - cf. Acórdão do STJ nº 8/2017, de 10.11.2017, publicado no Diário da República, nº 224, I Série, de 21.11.2017.
Tal jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça mostra-se consonante com o decidido pelo Tribunal Constitucional no acórdão nº 367/2014, publicado no D.R., Série II, de 27.11.2014, onde se decidiu: «Não é inconstitucional o nº8 do art. 271º do CPP, no segmento segundo o qual não é obrigatória, em audiência de discussão e julgamento, a leitura das declarações para memória futura».
O mesmo Tribunal vincou tal posição no acórdão nº 399/2015, proferido no Processo nº 172/2015, 1ª Secção, disponível in www.tribunalconstitucional.pt, julgando não inconstitucionais as normas constantes dos artigos 271.º, n.ºs 6 e 8, 355.º, n.ºs 1 e 2 e 356.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, quando interpretadas no sentido segundo o qual se não exige a leitura em audiência de julgamento de um depoimento prestado para memória futura, quando o Ministério Público prescindiu da sua leitura e, ou, a defesa a requereu, para que as mesmas possam constituir prova validamente utilizável para a formação da convicção do tribunal.
O sobredito entendimento perfilhado pelos Tribunais superiores de que a não obrigatoriedade da leitura em audiência dos depoimentos prestados para memória futura não encerra qualquer violação do princípio do contraditório encontra fundamento na circunstância de este princípio não impor para a sua efetivação o contraditório direto em “cross examination” – neste sentido, vide ainda, a título exemplificativo, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.11.2007, CJ (STJ), 2007, tomo III, p. 242, e do Tribunal da Relação de Coimbra de 11.01.2012, processo nº 689/11.5PBPDL-3, disponível em www.dgsi.pt.
Refira-se ainda que em sede de audiência de julgamento a defesa do arguido beneficiou sempre da possibilidade de requerer ao Tribunal a presença da ofendida/assistente para inquirição, caso justificasse tal pretensão (nos termos do art. 340º do CPP) e a mesma se revelasse fundada, faculdade que em momento algum exerceu.
Por conseguinte, cumpre concluir que não se verifica a arguida nulidade insanável prevista no art. 119º, alínea c), do CPP e, outrossim, que não se revela inconstitucional, por violação do estatuído no art. 32º, nºs 1, 5 e 6 da CRP, a interpretação extraída do disposto nos artºs 24º nº2 da Lei 130/15, 33º nº5 da Lei 112/09 e 271º nº6 do CPP em conjugação com o disposto no artº 61º nº1 al. a), 332º nº2 e nº7, aplicável ex vi do artº 352º nº2 do CPP, de que o arguido, nos termos supra expostos, pode ser afastado da diligência ou ser a diligência de prestação de declarações para memória futura realizada na sua ausência. 

Pelo exposto, improcede, quanto a este fundamento recursório, o douto recurso.

III.2.2.2 – Sobre a arguida nulidade insanável da prova decorrente da “reconstituição do facto”:

Neste segmento recursório, o arguido/recorrente, convocando a norma contida no art. 119º, alínea b), do CPP, argui a nulidade insanável da prova decorrente da “reconstituição do facto”, por falta de promoção do Ministério Público (MP), seja por falta de despacho prévio do MP a determiná-la, seja por falta da sua validação posterior [cf. conclusões 26ª a 28ª).  

Para tanto, alega, em súmula:

- A reconstituição do facto, por não enquadrável em qualquer das medidas cautelares dos artºs 249º a 252º do CPP, tinha que ser precedida de despacho do MP nesse sentido – artº 150º nº2 do CPP – com indicação sucinta do seu objecto, do dia, da hora e local em que ocorrerão as diligências e da forma da sua efetivação, eventualmente com recurso a meios audiovisuais;
- Mesmo que se entenda que a reconstituição do facto pode ser feita pelo OPC sponte sua, sempre tal diligência tem de ser validada pelo MP, o que também não aconteceu.

Apreciando.

Preceitua o art. 150º do CPP, sob a epígrafe “Da reconstituição do facto – pressupostos e procedimento”:

“1. Quando houver necessidade de determinar se um facto poderia ter ocorrido de certa forma, é admissível a sua reconstituição. Esta consiste na reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo.
2. O despacho que ordenar a reconstituição do facto deve conter uma indicação sucinta do seu objeto, do dia, hora e local em que ocorrerão as diligências e da forma da sua efetivação, eventualmente com recurso a meios audiovisuais. No mesmo despacho pode ser designado perito para execução de operações determinadas.
3. A publicidade da diligência deve, na medida do possível, ser evitada.”

Conforme se expende no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.01.2005, proferido no Processo nº 04P3267, disponível in www.dgsi.pt – num quadro legal em tudo idêntico ao vigente após a entrada em vigor das alterações introduzidas ao C.P.P. pela Lei 48/2007 -, «A reconstituição do facto, autonomizada como um dos meios de prova típicos, uma vez realizada e documentada em auto ou por outro modo (v.g. em registo audiovisual), vale como meio de prova, processualmente admissível, sobre os factos a que se refere, isto é, como meio válido de demonstração da existência de certos factos, a valorar, como os demais meios, nos termos do disposto no art. 127º do CPP, ou seja, segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador.» 

A reconstituição do facto, embora não imponha nem dependa da intervenção do arguido, também não a exclui, sempre que este se disponha a participar na reconstituição, e tal participação não tenha sido determinada por qualquer forma de condicionamento ou perturbação da vontade, seja por meio de coação física ou psicológica, que se possa enquadrar nas fórmulas referidas como métodos proibidos enunciados no art. 126º do CPP.

Assim, desde que realizada em conformidade com os pressupostos e procedimentos legais, aquele meio de prova autonomiza-se das contribuições individuais de quem tenha participado e das informações e declarações que tenham codeterminado os termos e o resultado da reconstituição, e as declarações (ou melhor, as informações) prévias ou contemporâneas que tenham possibilitado ou contribuído para recriar as condições em que se supõe ter ocorrido o facto, diluem-se nos próprios termos da reconstituição, confundiu-se nos seus resultados e no modo como o meio de prova for processualmente adquirido.

E, como também se adverte no sobredito aresto – asserção com a qual concordamos plenamente – «o privilégio contra a autoincriminação, ou direito ao silêncio, significa que o arguido não pode ser obrigado, nem deve ser condicionado a contribuir para a sua própria incriminação, isto é, tem o direito a não ceder ou fornecer informações (ou elementos) que o desfavoreçam, ou a não prestar declarações, sem que do silêncio possam resultar quaisquer consequências negativas ou ilações desfavoráveis no plano da valoração probatória”, mas já estão fora do círculo de proteção desse direito “as contribuições probatórias, sequenciais e autónomas, que o arguido tenha disponibilizado ou permitido, ou que informações prestadas tenham permitido adquirir, possibilitando a identificação e a correspondente aquisição probatória, ou a realização e a prática de atos processuais com formato e dimensão própria na enumeração dos meios de prova, como é a reconstituição do facto».

Em conformidade, realizada a reconstituição do facto nos sobreditos termos, os órgãos de polícia criminal que tenham acompanhado a reconstituição podem prestar declarações sobre os modos e termos em que decorreu; tais declarações reportam-se a elementos que ganham autonomia, e como tal diversos das declarações do arguido ou de outros intervenientes no ato, não estando abrangidas na proibição do art. 356º, nº7 do CPP.

De igual modo, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.06.2006, proferido no Processo nº 06P1574, disponível in www.dgsi.pt, se decidiu que «a circunstância de o arguido ter participado na reconstituição dos factos não tem o efeito de fazer corresponder esse ato a declarações suas para se concluir pela impossibilidade de valoração daquele meio de prova, ponto é que só sejam valorados como provas os depoimentos das testemunhas sobre o que observaram e não as revelações feitas durante a realização dessas diligências».

A realização deste meio de prova em fase de inquérito depende de despacho do Ministério Público, a não ser que haja delegação de poderes aos órgãos de polícia criminal, caso em que, por não se tratar de um ato indelegável (cf. art. 270º do CPP), a efetuação da reconstituição do facto pode ser decidida, motu proprio, pela respetiva autoridade policial se a considerar pertinente para o apuramento do circunstancialismo de local e modo de execução dos factos denunciados, pois que não estamos perante diligência que comporte a tomada de depoimento ajuramentado ou tomada de declarações a arguido.[3]

No caso vertente, temos que foi realizada no dia 05.09.2021, pelas 16h30, diligência de “reconstituição do facto”, com a participação do arguido BB, que, à data já havia sido constituído como tal, para a qual este assinou termo de consentimento, e que foi acompanhada pela defensora entretanto nomeada ao arguido (cf. termo de consentimento de fls. 53 e auto de fls. 54 a 57).

Compulsados os autos, constata-se ainda que a sobredita diligência foi realizada por iniciativa do Departamento de Investigação Criminal de ... da Polícia Judiciária, dado que não se vislumbra ter existido despacho do Ministério Público a determiná-la.   
O arguido, como vimos, atenta a falta de despacho do Ministério Público a ordenar a realização da “reconstituição de facto”, veio invocar a nulidade insanável da prova decorrente desse meio de prova, nos termos do art. 119º, alínea b), do CPP.
Nos termos do aludido art. 119º, alínea b), “Constituem nulidade insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que tal forem cominadas em outras disposições legais […] a falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48º, bem como a sua ausência a atos relativamente aos quais a lei exigir a respetiva comparência”.  
Assim, a falta de promoção do processo pelo Ministério Público concerne, essencialmente, à falta de dedução de acusação por aquele sujeito processual relativamente a crimes de natureza pública ou semi-pública e, correlativamente, nestes casos, à dedução de acusação pelo assistente. 
Por outro lado, não decorre da lei, designadamente do disposto no art. 150º do CPP, que o Ministério Público tenha imperiosamente de estar presente na realização da reconstituição do facto.
Por conseguinte, é notória a falta de aplicabilidade da citada norma legal ao caso que nos ocupa.
Por outro lado, a existir a alegada ilegalidade – que como infra veremos, inexiste –, estaríamos perante uma mera irregularidade uma vez que não integra o elenco taxativo das nulidades vertido no art. 120º do CPP – cfr., ainda, art. 118º, nºs 1 e 2 do mesmo Código.
Na verdade, a única nulidade que se poderia eventualmente ponderar ter sido cometida seria a respeitante a insuficiência do inquérito por não ter sido praticado ato legalmente obrigatório, o que, manifestamente não é o caso porquanto a “reconstituição do facto” não integra a panóplia de atos jurisdicionais que a lei prevê como imperiosos. 
Ainda que assim não se entendesse, sempre seria de concluir que a nulidade em apreço estaria sanada por falta de arguição no prazo legal que, no caso, atenta a presença do arguido e da sua ilustre defensora oficiosa na “reconstituição de facto” seria até ao final da diligência ou, em última instância, até ao encerramento do debate instrutório – cf. art. 120º, nº3, als. a) e c), do CPP.
Ademais, a não ser como expusemos – o que não se concede –, a invalidade da diligência processual de reconstituição do facto a declarar não se alastraria a qualquer outro ato processual praticado nos autos, designadamente, ao douto acórdão recorrido, uma vez que, como decorre da motivação da decisão de facto nele expressa, o Tribunal a quo não valorou especificamente o teor do auto de reconstituição do facto para efeitos da decisão prolatada – cfr. art. 122º do CPP.        

Aqui chegados, louvamo-nos então no defendido no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23.10.2017, proferido no Processo nº 20/15.0GDGMR.G1, relatado pela Exma. Desembargadora Alda Casimiro, acessível in www.dgsi.pt, onde, no contexto de uma situação assaz semelhante, se referiu:

«(…) embora o nº 2 do art. 150º do Cód. Proc. Penal aluda a um despacho para ordenar a reconstituição do facto, a circunstância de tal despacho não ter acontecido não acarreta qualquer nulidade, como resulta claramente da leitura dos preceitos invocados pelo recorrente.
Com efeito, e desde logo, como refere o Digno Procurador junto da 1ª instância, da previsão dos arts. 150º e 270º, nº 2 do Cód. Proc. Penal não resulta que a produção de tal prova esteja sujeita à reserva de despacho prévio do Ministério Público e, muito menos, que este tenha que presidir à diligência. Por outro lado, o inquérito foi realizado pelo OPC com base em delegação genérica de competência, conforme previsto nos arts. 263º, nº 1 e 270º, nº 1 do Cód. Proc. Penal e 4º e 6º da Lei 49/2008, de 27/08).
Estaríamos perante uma mera irregularidade, já sanada (art. 123º do Cód. Proc. Penal).»

Mais recentemente se pronunciou sobre tal matéria o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 28.01.2019, proferido no Processo nº 1111/17.9JABRG-A.G1, relatado pela Exma. Desembargadora Cândida Martinho, disponível in www.dgsi.pt, mantendo-se semelhante entendimento, ali profusamente sumariado:

«I) A ausência de despacho judicial ou de magistrado do Ministério Público a autorizar a reconstituição do facto não constitui qualquer nulidade que impeça a sua valoração para fundamentar a suficiência dos indícios.
II) Apesar da referência no art.150.º, nº2, do C.P.P., da expressão “o despacho que ordenar a reconstituição do facto”, não se pode daí inferir que tal diligência terá de ser precedida de despacho para esse efeito, seja um despacho judicial ou de um magistrado do Ministério Público, como pugna o recorrente.
III) A interpretação a fazer do nº2, do art. 150º é apenas a de que na hipótese de ser proferido despacho a determinar a reconstituição – quando este existir - deverá fornecer indicações, ainda que breves, de modo a orientar o órgão de polícia criminal que irá executar a diligência.
IV) Ainda que a direção do inquérito caiba ao Ministério Público, a verdade é que quer em termos legais, quer em termos funcionais e efectivos, a maioria das diligências de investigação, nelas se incluindo as reconstituição de facto – são realizadas por órgãos de polícia criminal ( PJ,PSP,GNR), por força da delegação de competências a que alude o art. 270º,nº1 e 4 do C.P.P., a qual não tem que ser feita processo a processo, caso a caso, conforme surja a necessidade de a levar a efeito, podendo ser genérica.
V) Tal faculdade de delegação genérica foi exercida através da Diretiva nº1/2002, de 11/3/2002, determinada pelo Procurador-Geral da República de então, a qual veio a ser publicada no DR, II Série, de 4-4-2002, encontrando-se ainda actualmente em vigor.
VI) No que em especial se refere à Policia Judiciária, foi delgada genericamente neste órgão de polícia criminal a competência para a investigação e para a prática dos actos processuais de inquérito derivados da mesma ou que a integrem relativamente aos crimes previstos no artigo 4.º da Lei n.º 21/2000, de 10 de Agosto (a que corresponde o actual art. 7 da Lei 49/2008, de 27/8 (Lei da Organização da Investigação Criminal que revogou a anterior 21/2000, de 10/8) e no n.º 2 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 275-A/2000, de 9 de Novembro (Lei Orgânica da Polícia Judiciária).
VII) Entre tais crimes contam-se, sem dúvida, os crimes de sequestro e roubo, cfr art. 7º, nº2, b) e nº3, b) da LOIC, pelo que, tendo a realização das mencionadas reconstituições (porquanto não se tratando de actos indelegáveis), sido efectuadas pela Polícia Judiciária, a quem competia a investigação específica/reservada do tipo de crimes em apreço, não estavam as mesmas dependentes de qualquer despacho.
VIII) Acresce que a legalidade de tais reconhecimentos levados a cabo no âmbito dos presentes autos pela entidade policial, no caso concreto pela PJ, sempre estaria assegurada, por caber no âmbito das diligências cautelares e urgentes previstas no art. 249, nºs1e 2, do CPP.»

Ressalva-se que no caso concreto a competência legalmente atribuída à Polícia Judiciária para a investigação criminal do crime de homicídio, na forma tentada, decorre do disposto no art. 7º, nºs 1, 2, al. a), e 5, da Lei nº 49/2008, de 27.08 (Lei de Organização da Investigação Criminal).
No sentido por nós pugnado, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08/02/2007, acessível in www.dgsi.pt, em que se entende que «não é necessário, como requisito formal da reconstituição de facto o ser determinada por juiz, ou magistrado do M.P., pois tal não o impõe o n° 2 do referido art.° 150° do C.P.P.. Entendemos, tal como o M.P. nas suas alegações, que a interpretação ao n° 2 do art. 150° do CPP é a de que, caso seja proferido despacho ordenando a reconstituição, tal despacho deverá fornecer indicações, ainda que breves, de modo a orientar o órgão de polícia criminal que irá executar a diligência». No caso em concreto a que o Acórdão se refere, a reconstituição do facto foi também efectuada pelo OPC com competência específica/reservada para a investigação para o crime em causa.

Pertinente ainda o sagazmente expendido no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12.12.2007, acessível in www.dgsi.pt

«(…) a falta desse despacho não afecta o valor da reconstituição como meio de prova, por lhe ser exterior. A existência do despacho representa apenas uma boa prática processual, atento o seu efeito ordenador e definidor das diligências que hão-de integrar a reconstituição. Por isso, a ausência de despacho a determinar a reconstituição preencherá um vício estritamente processual, vício que, não estando previsto como nulidade, só pode, nos termos do artº 118º, nºs 1 e 2, do referido código, constituir irregularidade», acrescentando que “tal irregularidade, não afectando o valor do reconhecimento, na medida em que, como se viu, se consubstanciou na omissão de uma formalidade que não integra o conteúdo desse acto, não é, nos termos do nº 2 do artº 123º do CPP, de conhecimento oficioso. Por isso, para ser conhecida, tinha de ser arguida perante o tribunal de 1ª instância no prazo referido no nº 1 desse artº 123º. Nunca em sede de recurso. Recurso só poderia haver da decisão que apreciasse a arguição da irregularidade.
Assim, não se tendo seguido esse caminho, o vício, a ter existido, sanou-se».

Por conseguinte, concluímos pela inexistência da apontada nulidade insanável da prova decorrente da realização da reconstituição do facto, por falta de promoção do Ministério Público.

III.2.2.3 – Nulidade da prova produzida mediante a reconstituição do facto, atento o circunstancialismo em que decorreu, com violação do princípio da lealdade processual (cf. art. 126º, nº1 e nº2, als. a), b) e c), do CPP): 

Invocando a violação do disposto no nº1 e nas als. a), b) e c) do nº2 do artº 126º do CPP, alega o arguido/recorrente que a prova resultante da reconstituição do facto é nula e não poderia servir para formar a convicção do Tribunal. Para o efeito, alega, em síntese [conclusões 17ª a 25ª]:

▫ Os antecedentes da diligência de reconstituição do facto apontam para o seguinte:
- A GNR foi chamada às 2.54 h do dia 5/9/21 e chegou ao local às 3.00 horas (fls. 4 e 5), tendo o recorrente sido imediatamente detido, ou seja, às 3.00 horas (fls. 34);
- O recorrente foi constituído arguido às 4.00 horas (fls. 28);
- Foi realizado exame de alcoolemia ao arguido às 4.20 h (fls. 117);
- Exame às roupas e fotos do detido às 6.15 h (fls. 74);
- A PJ entrou em contacto com o detido pelas 7.00 horas (tendo em conta que estava no Hospital ... pelas 6.15 h – fls. 12 e 13);
- O detido foi entregue à PJ às 8.00 horas (fls. 35);
- Foi realizado o exame às roupas do detido às 9.25 h (fls. 69);
- A hora desconhecida foi lavrado um termo de consentimento pelo arguido, redigido pela PJ (fls. 53) no qual constava que este declarava que “(…) de livre vontade e consciente da minha qualidade de arguido, cujos direitos me foram explicados, espontaneamente me prontifico para a reconstituição do facto, com a presença de elementos da Polícia Judiciária, tendo em vista esclarecer as circunstâncias do crime ocorrido hoje, entre as 2.00 e as 2.45, na via pública, concretamente nas imediações das casas de banho na ..., em B....

Mais consinto que a presente “reconstituição do facto” seja efectuado com o registo de imagens fotográficas que autorizo.
▫ Às 16.30 h teve início a diligência de reconstituição do facto, na qual:
- informalmente confessou a autoria dos factos;
- de livre e espontânea vontade voluntariou-se a acompanhar a PJ ao local;
- prestou as declarações aí constantes que se dão aqui por integralmente reproduzidas.
▫ Das fotos juntas aos autos consta:
A fls. 59 uma foto do arguido de costas com as mãos colocadas à frente da barriga (foto 1);
A fls. 60 nova foto de perfil com as mãos na mesma posição com uma toalha azul por cima das mesmas;
A fls. 61 duas fotos do arguido de costas com as mãos na mesma posição;
A fls. 62 duas fotos sendo uma de frente e outra de costas com as mãos na mesma posição e com a mesma toalha azul;
Mais duas fotos de frente a fls. 63 com as mãos na mesma posição com a dita toalha azul;
A fls. 64 nova foto de costas com a mesma posição e fls. 65 mais uma foto de frente e uma de perfil mostrando as mãos na mesma posição e a dita toalha;
- A diligência terminou às 17.30, sendo que as fotos foram tiradas durante a reconstituição do facto;
- Em todas as fotos referidas estavam inúmeras pessoas no local;
▫ A prova por reconstituição do facto com reportagem fotográfica de fls. 54 a 66 constava da acusação como meio de prova a usar contra o arguido, tendo o depoimento das testemunhas da PJ incidido sobre o mesmo;
▫ Pelo menos as fotografias de fls. 58 e ss. tiradas durante tal reconstituição do facto foram levadas em conta para a formação da convicção do Tribunal (acórdão a fls. 1047 verso).
▫ Da conjugação destes meios de prova conclui-se que o recorrente estava animado de uma taxa de álcool de 1,20 g/l pelas 4.20 horas; que, se dormiu entre a hora da detenção e a hora da reconstituição, dormiu tempo insuficiente para se dizer que estava na plena posse das suas capacidades pela hora da reconstituição; e que o arguido estava algemado e notoriamente constrangido por assim se apresentar perante variadas pessoas, sem embargo do pano azul que por cima das suas mãos colocaram.
▫ Do auto de reconstituição não consta que o arguido estivesse algemado ou a razão de este assim estar, o que viola os artºs 99º nº3 e 275º nº1 do Código de Processo Penal, pelo que quod non est in actis non est in mundo e, portanto, a diligência em causa violou o artº 140º nº1 do CPP.
▫ Apesar de a reconstituição do facto estar sujeita à livre apreciação da prova, a entidade que à diligência preside, tem de fazer constar o modo em que as declarações foram prestadas e as circunstâncias em que o foram e, designadamente, para o que aqui interessa o modo como as fotografias foram tiradas e as circunstâncias em que o foram.
▫ A diligência de reconstituição está sujeita ao princípio da necessidade da diligência e nenhuma necessidade existia para se fazer a reconstituição do facto, uma vez que o próprio arguido confessava a agressão e disse-o às testemunhas que já tinham sido ouvidas pela PJ a partir das 8 da manhã.
▫ O que consta do processo são depoimentos e fotografias do arguido “maquilhados” de reconstituição, o que constitui fraude à lei violadora do princípio da lealdade processual.

Decidindo.

Preceitua o art. 126º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “Métodos proibidos de prova”, na parte que ora releva:

“1 - São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas.
2 - São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante:
a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos;
b) Perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória ou de avaliação;
c) Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei;”

As circunstâncias elencadas nos preditos preceitos legais consubstanciam modos de aquisição da prova absolutamente proibidos, isto é, métodos incondicionalmente banidos, que não resistem sequer ao eventual consentimento prestado pelo afetado.
São diversos os fundamentos da proibição de métodos probatórios, sendo que Pedro Soares de Albergaria – citado “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, Tomo II, anotação ao art. 126º, II, §2, págs. 38 e 39 –, os sumaria da seguinte forma:
«Desde logo, a preservação da validade epistemológica da informação obtida – ninguém duvidará de que, p. ex., uma confissão ou um testemunho arrancados sob tortura encerram um grave potencial de afastamento da verdade histórica. Por outra banda, o Estado está adstrito a critérios de lisura procedimental que por força implicam que não use os mesmos meios – por mais eficazes que se mostrassem – que os delinquentes que visa perseguir e punir, podendo dizer-se que sobre si impende o dever de preservar as “mãos limpas”. No entanto, o fundamento que em definitivo sustenta a proibição é a tutela (a garantia) de direitos e liberdades fundamentais. É que se são cogitáveis casos em que a fiabilidade epistemológica de certo modo não seja atacável nos termos referidos (p. ex., interceções telefónicas fora dos crimes de catálogo), o que sempre restará, em todas as hipóteses previstas no art. 126º, é a violação de direitos e liberdades fundamentais à margem de título constitucional que pudesse caber. É assim que no art. 126º se dá proteção a direitos que têm uma evidente conexão com a dignidade da pessoa (art. 1º CRP), como é certamente o caso da respetiva integridade física e moral (art. 25º CRP), da intimidade da vida privada (art. 26º/1 CRP) e da inviolabilidade do domicílio e da correspondência e telecomunicações (art. 34º CRP), mas igualmente a outros direitos relativamente aos quais a mesma lógica seja postulável, como sucede certamente com a imagem e a palavra (art. 26º/1 CRP). Trata-se, pois, no art. 32º/8 CRP, densificado na norma sob comentário, de garantia fundamental do processo criminal na vertente da obtenção de provas (cf. Manuel Alves Meireis, 1999, p. 201), garantia esta que, de resto, já podia ter-se como incluída na previsão do nº1 do art. 32º CRP (cf. ac. TC 184/2004).»[4]     

Por seu turno, prescreve o art. 99º, nºs 1 e 3:

“1 - O auto é o instrumento destinado a fazer fé quanto aos termos em que se desenrolaram os actos processuais a cuja documentação a lei obrigar e aos quais tiver assistido quem o redige, bem como a recolher as declarações, requerimentos, promoções e actos decisórios orais que tiverem ocorrido perante aquele.
(…)
3 - O auto contém, além dos requisitos previstos para os actos escritos, menção dos elementos seguintes:
a) Identificação das pessoas que intervieram no acto;
b) Causas, se conhecidas, da ausência das pessoas cuja intervenção no acto estava prevista;
c) Descrição especificada das operações praticadas, da intervenção de cada um dos participantes processuais, das declarações prestadas, do modo como o foram e das circunstâncias em que o foram, incluindo, quando houver lugar a registo áudio ou audiovisual, à consignação do início e termo de cada declaração, dos documentos apresentados ou recebidos e dos resultados alcançados, de modo a garantir a genuína expressão da ocorrência;
d) Qualquer ocorrência relevante para apreciação da prova ou da regularidade do acto.”

Conforme estatui o art. 275º, nº1, “As diligências de prova realizadas no decurso do inquérito são reduzidas a auto, que pode ser redigido por súmula, salvo aquelas cuja documentação o Ministério Público entender desnecessário.”
Finalmente, preceitua o art. 140º, nº1, que “Sempre que o arguido prestar declarações, e ainda que se encontre detido ou preso, deve encontrar-se livre na sua pessoa, salvo se forem necessárias cautelas para prevenir o perigo de fuga ou atos de violência.”
Posto isto, cumpre desde logo afirmar que a douta argumentação recursória produzida não se mostra suscetível, minimamente adequada – nem a tal parece dirigida, concede-se –, à integração do disposto no nº1 e no nº2, al. a), do art. 126º, no segmento que se reporta à utilização de tortura, coação, maus tratos, ofensas corporais ou meios cruéis, ou seja, métodos que envolvem qualquer forma de violência sobre a pessoa e, por conseguinte, são atentatórios do núcleo fundamental do direito à integridade pessoal, consagrado no art. 25º, nº2, da CRP; o denominador comum a tais métodos «(…) é o colocarem quem a eles é sujeito no dilema de prestarem um contributo probatório que de outro modo não prestariam ou de arcarem com as consequências, os sofrimentos, inerentes ao emprego deles.» [ibidem, c), § 12, p. 43]
E o mesmo se diga, por razões óbvias, quanto ao legalmente previsto uso de hipnose e meios enganosos [nº2, al. a)], enquanto fatores determinantes na formação da vontade/decisão do sujeito passivo da diligência probatória, ou uso injustificado e desproporcional da força [nº2, al. c)], manifestamente não utilizados no caso que nos ocupa.
Assim, sobeja para apreciação a implicitamente invocada perturbação da capacidade de memória ou de avaliação do arguido [nº2, al. b)] enquanto causa do manifestado consentimento prestado à sua participação na reconstituição do facto.
No caso vertente, não decorre da prova produzida nos autos, nomeadamente da invocada pelo recorrente, que o circunstancialismo precedente e contemporâneo da reconstituição do facto estribe uma situação de indevida perturbação da capacidade de memória ou da formação da vontade (avaliação) daquele, no sentido de que ele tivesse sido de algum modo condicionado, afetado na decisão de prestar tal consentimento e, subsequente, no decurso da diligência, relativamente ao por si indicado e dito.  
 Designadamente, não surge comprovado, sequer minimamente indiciado, que o arguido estivesse severamente privado do sono ou sob relevante influência do álcool quando veiculou tal assentimento e participou na diligência.
Com efeito, entre o momento em que o arguido foi submetido a teste de pesquisa de álcool no sangue, em que apresentou uma taxa de álcool expirado (TAE) de 1,20 g/l, ocorrido às 04h20 do dia 05.09.2021 – fls. 117 –, e o momento em que iniciou a participação na reconstituição do facto, às 16h30 do mesmo dia, após ter prestado termo de consentimento para o efeito[5], donde consta declarado que o fazia de livre vontade e consciente da sua qualidade de arguido, cujos direitos e deveres lhe foram devidamente explicados, espontaneamente se prontificando para tal diligência, tendo em vista esclarecer as circunstâncias do crime ocorrido nesse dia, entre as 02h00 e as 02h45 – fls. 53 e 54 – decorreram doze horas, tempo mais do que suficiente para anular ou amenizar significativamente os efeitos da ingestão excessiva de bebidas alcoólicas, permitindo ao arguido, livre e conscientemente, como aliás assumiu, erigir e manifestar a sua vontade de participar na diligência probatória de reconstituição do facto.
Aliás, a influência que uma T.A.S de 1,20 g/l possa assumir no concerne à tomada de decisão em apreço e respetiva participação efetiva do arguido na diligência não se pode aferir por cotejo com a influência que aquela taxa de alcoolémia consabidamente causa no exercício da condução automóvel, em que está em causa uma diminuição acentuada da capacidade de reação (reflexos) do condutor alcoolizado.      
Por outro lado, não ressuma visível dos registos fotográficos obtidos no decurso da reconstituição do facto, nem do texto do respetivo auto – fls. 54 a 57 e 59 a 66 –, que o arguido se encontrasse algemado.
Contudo, ainda que o arguido estivesse algemado no decurso da diligência, nunca tal circunstância constituiria óbice à validade legal da reconstituição efetuada porquanto o disposto no art. 140º, nº1, do CPP, consagrando a regra de que o arguido deve encontrar-se livre na sua pessoa, sem algemas, encontra-se prevista para a tomada de declarações ao mesmo, o que, em bom rigor, não constitui o objeto da diligência efetuada.
Na verdade, o fito primordial deste meio de prova, como tal autonomamente previsto na lei processual penal, é permitir a aquisição de prova sobre factos relevantes para a boa decisão da causa, nomeadamente os atinentes à verificação do modo e condições em que supostamente terá ocorrido o facto probando, ainda que a sua acuidade não se restrinja a tais aspetos fácticos, uma vez que pode ainda constituir um meio válido de demonstração da existência de outros factos relevantes, ainda que só reflexamente conexionados com o crime sob investigação.
Como menciona Eurico Balbino Duarte, in “Making off – A reconstituição do facto no processo penal português”, em “Prova Criminal e Direito de Defesa”, p. 10 e seguintes, «a reconstituição pode respeitar aos factos relativos à imputação – execução do facto típico, de uma sua parte, elemento ou circunstância (podendo nomeadamente compreender o acesso ao local do crime, a retirada ou fuga, a destruição ou ocultação dos instrumentos utilizados e, nos crimes contra a propriedade, a ocultação da coisa subtraída), apuramento do grau de ilicitude ou de uma causa da sua exclusão, bem como para a aferição da culpa do agente. Igualmente pode ter por objeto aspetos atinentes à prova, isto é, factos probatórios por exemplo, para comprovar se, nas concretas circunstâncias do caso, uma determinada testemunha poderia ter visto, ou tido de outro modo perceção, dos factos que relatou.»           
Não se olvidando a querela doutrinária e jurisprudencial concernente à valoração que se possa ou não fazer em julgamento das declarações prestadas pelo arguido durante a reconstituição do facto, dir-se-á que defendem uns que a conjugação das normas legais contidas nos arts. 355º, 356º, nºs 1, al. b), e 8, e 357º, nºs 1 e 2, impõe a conclusão de que o aproveitamento em audiência de uma reconstituição em que o arguido preste declarações feita no inquérito ou na instrução obedece à regra do artigo 357º, nº2, concatenado com o artigo 356º, nº8, pelo que só será viável se o arguido não se remeter ao silêncio e solicitar a sua leitura, caso as mesmas tenham sido prestado perante JIC e ocorram discrepâncias entre as declarações produzidas na reconstituição do facto e as que foram produzidas em audiência de julgamento. No demais, caso o arguido opte pelo silêncio em julgamento, cumpre discernir entre aquilo que na reconstituição consubstancia atividade do arguido não necessária e obrigatoriamente traduzível nas palavras por ele usadas, como, por ex., a indicação que fez do percurso por si percorrido e do local ou locais onde decorram os factos, só assim possibilitando aos agentes policiais que acompanharam a diligência retratá-los no auto, que pode ser valorado pelo Tribunal, sujeito às regras da livre apreciação da prova, daquilo que as testemunhas referem ter ouvido o arguido afirmar, que não pode ser valorado enquanto declarações deste.[6] Outros sustentam que, para além das informações fornecidas pelo arguido e atos materiais praticados, também as declarações propriamente ditas por ele produzidas na reconstituição podem ser valoradas pelo Tribunal de julgamento, independentemente de o arguido se remeter ao silêncio e de ser ou não solicitada a leitura do auto, uma vez que tais declarações se inserem num meio de prova com uma configuração autónoma no conjunto dos meios probatórios, encontrando-se dessarte para além do círculo de proteção do direito ao silêncio; argumentam ainda os defensores destoutra posição que se a reconstituição é o resultado do contributo de uma pluralidade de conhecimentos e saberes de diversas pessoas, não se descortina como é que, em concreto, se pode efetuar uma operação de redução daquela visão global, subtraindo uma de tais contribuições atomísticas, que é parte do todo.[7]
Sucede que, in casu, independentemente da posição doutrinária/jurisprudencial que se sufrague, a conclusão será sempre a de que o Tribunal a quo não procedeu á valoração indevida da prova resultante da reconstituição do facto, pois que se extrai da análise da fundamentação da decisão de facto expressa no acórdão recorrido que os Meritíssimos Julgadores, de modo avisado, não valoraram como meio de prova o conteúdo do auto de reconstituição do facto enquanto integrador de “declarações” ali produzidas pelo arguido, nela participante, nomeadamente no que tange à “confissão” da autoria dos factos, pois que se ativeram às declarações por ele prestadas em audiência de julgamento, conjugadas com outra prova produzida nos autos por via de outros meios probatórios.
Por outro lado, face à validade formal e substancial da reconstituição do facto, nada impedia que o Tribunal recorrido inquirisse, como inquiriu, os agentes de autoridade que acompanharam a diligência a propósito do modo como a mesma foi executada, desde logo para aferir da sua conformidade face ao teor do respetivo auto, e se socorresse de reproduções fotográficas anexas a tal auto.

Ainda a propósito da alegação de que o arguido se encontrava algemado aquando da realização da reconstituição de facto, circunstância que não surge mencionada no respetivo auto, importa aditar que a lei permite, excecionalmente, tal limitação, quando essa medida se mostre necessária a prevenir o perigo de fuga ou atos de violência (art. 140º, nº1, segunda parte).
Ora, no caso vertente, atendendo ao facto de a diligência se desenrolar num terreno amplo, aberto, isto é, não confinado por barreiras físicas intransponíveis ou de difícil transposição, parece-nos facilmente sustentável a existência de perigo de fuga, ao que acresce a circunstância de o modo assaz violento com que o suspeito/arguido supostamente teria perpetrado os graves factos sob investigação permitir presumir a sua propensão para a prática de atos violentos sobre terceiros.
Por conseguinte, ainda que o arguido estivesse algemado durante a realização da reconstituição do facto, tal circunstância estaria justificada também por estas razões – para além, reitera-se, de que não se tratou de uma tomada de declarações ao arguido –, e, por outro lado, seria compreensível que os órgãos de polícia criminal presentes na diligência camuflassem com uma toalha as mãos algemadas do arguido para assim preservar a dignidade do mesmo perante terceiras pessoas, alheias aos factos, que estavam no terreno da praia fluvial enquanto decorria a diligência.
De todo o modo, não se olvidando que a ser verdade que o arguido se encontrava algemado tal facto devia constar do auto de reconstituição do facto, sendo certo que não consta, urge considerar que cabia à defesa do arguido, em tempo próprio, alegar tal discrepância para que a mesma ficasse consignada no documento e determinasse que entidade que presidia ao ato decidisse se mantinha ou alterava a redação inicial – cf. art. 100º, nº3, do CPP. Mantendo-se a redação inicial, não integralmente conforme à realidade, estaríamos perante o cometimento de uma irregularidade processual que devia ter sido invocada até ao momento do encerramento da diligência, mormente aquando da apresentação para assinatura do auto pelo arguido interveniente e sua ilustre defensora nomeada, pelo que, não tendo sido tempestivamente arguida, sempre estaria sanada, pois tal desconformidade não afeta a validade do ato – cf. arts. 118º, nº2, e 123º, nº1, ambos do CPP.               
Por último, cabe acrescentar que, salvo o devido respeito, não se compartilha a consideração do recorrente de que a reconstituição do facto operada nos autos se revelava desnecessária, pelo que não devia ter ocorrido. Entendemos antes que aquela diligência probatória encontra justificação na necessidade de permitir à investigação, com o valioso contributo do arguido – que para tal livre e conscientemente se disponibilizou – reproduzir os aspetos geográficos relevantes para o caso, entre o mais as características do local onde os factos ocorreram, específico lugar apontado pelo arguido onde, alegadamente, viu a ofendida “na marmelada” com o EE (testemunha nos autos), e onde, como admitido pelo próprio, o arguido agrediu aquela, conjugando tais indicações com as referências ao respetivo circunstancialismo temporal, a fim de se aquilatar sobre a possibilidade ou impossibilidade de os factos ocorrerem de acordo com tal versão e se esta é viável igualmente no que tange à apontada causa que despoletou a reação violenta do arguido, por se ter sentido vítima de uma “traição”. A pertinência da realização da reconstituição de facto funda-se ainda na circunstância de inexistirem testemunhas presenciais da agressão (alegada tentativa de homicídio) propriamente dita.
Destarte, conclui-se pela inexistência de proibição de valoração da prova produzida por reconstituição de facto (art. 126º do CPP). 

III.2.2.4Nulidade do acórdão recorrido por alteração substancial dos factos fora dos casos e condições previstos no art. 359º do CPP (art. 379º, nº1, al. b), do CPP):

Neste conspecto, alega o arguido/recorrente BB, resumidamente [conclusões 40ª a 44ª]:

- No ponto 20 dos factos provados no acórdão deu-se como provada matéria não constante da acusação ou do despacho que determinou a alteração não substancial dos factos, dado que neste último, dizia-se que AA a certa altura começou a gritar, chamando por Deus, momento em que o arguido para a impedir de gritar pegou em terra e erva seca, encheu-lhe a boca com tais elementos e colocou una mão em cima da boca e do nariz da ofendida/assistente, impedindo-a de respirar normalmente, afirmando, repetidamente, “vou-te matar” – (parágrafo 10º do referido despacho, correspondente ao ponto 18 da acusação e ponto 20 da matéria de facto provada);
- No acórdão recorrido o ponto 18 da acusação, correspondente ao ponto 20 dos factos provados sofreu uma “ligeira alteração”, dando-se como provado que: AA a certa altura começou a gritar, chamando por Deus, momento em que o arguido, obstando a que ela gritasse, pegou em terra e erva seca e encheu-lhe a boca com tais elementos e colocou uma mão em cima da boca e do nariz da ofendida/assistente, assim a impedindo de respirar normalmente, afirmando, repetidamente, “vou-te matar”;
- No ponto 33 da matéria de facto (que não sofreu alterações com o despacho supra descrito e que corresponde ao ponto 28 da acusação) diz-se: O arguido agiu com o propósito de tirar a vida a AA, sua namorada, atingindo-a diversas vezes, predominantemente na zona da cabeça, cara, nariz e colocando-lhe terra e erva seca no interior da boca para a sufocar, prevendo que com tais condutas a poderia matar, resultado com o qual se conformou e quis, só o não logrando obter por a vítima ter fingido que estava morta e ter sido assistida atempadamente e, assim, consequentemente, por circunstâncias alheias à sua vontade;
- Da leitura literal do ponto 20 dos factos provados parece (embora com dúvidas quanto à interpretação do trecho do acórdão) que aí não se espelha a intenção do arguido ao colocar terra e erva seca no interior da boca da ofendida, deixando a descrição da intenção do arguido ao empreender tal conduta para o ponto 33 dos factos provados (para a sufocar), ao contrário do que expressamente sucede com o ponto 18 da acusação e com o parágrafo 10º do despacho que determinou a alteração não substancial (para a impedir de gritar);
- Se assim se entender, o douto acórdão é nulo por alteração substancial dos factos, uma vez que se trata de um acto de execução do crime tentado (artº 359º nº1 e 379º nº1 al. b) do Código de Processo Penal).

Vejamos.
O art. 1º, alínea f), do CPP, define «alteração substancial dos factos» como “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.
Tal noção não é ideologicamente neutra, antes exprimindo o pensamento legislativo que visa assegurar no processo penal a efetividade das garantias de defesa do arguido.
Como refere o Exmo. Juiz Conselheiro Henriques Gaspar[8], «A vinculação temática ao objeto da acusação constitui uma garantia de defesa, para impedir alterações do objeto do processo que possam inviabilizar ou prejudicar de modo desrazoável a defesa do arguido; o objeto da acusação deve, por isso, manter-se essencialmente idêntico até à decisão final por forma a assegurar as garantias de defesa do arguido, que não deve ser surpreendido por factos ou circunstâncias novos, diferentes dos que constam da acusação, e que não tenha podido considerar na preparação e organização da sua defesa.»
O princípio geral acima enunciado comporta, no entanto, exceções, legalmente previstas, permitindo-se alterações ao objeto do processo delimitado pelo teor da acusação ou da pronúncia por pertinentes razões que se reconduzem à descoberta da verdade material, economia processual e até à proteção do interesse da paz processual devida ao arguido, desde que haja cumprimento do contraditório e daí não advenha prejuízo insuportável para a defesa.

Nessa decorrência, prescreve o art. 359º do CPP [sob a epígrafe «Alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia»]:   

“1 – Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância.
2 – A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objeto do processo.
3 – Ressalvam-se do disposto nos números anteriores os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal.
4 – Nos casos referidos no número anterior, o presidente concede ao arguido, a requerimento deste, prazo para preparação da defesa não superior a dez dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário.” 

No caso vertente, alegou-se no ponto 18 da douta acusação pública:
«AA tentou gritar várias vezes, altura em que o arguido para impedir de gritar pegou em terra e erva seca, encheu-lhe a boca com tais elementos e fechou-lhe, à força, a boca, impedindo-a de respirar, afirmando, repetidamente, “vou-te matar”» - negrito nosso.
Por despacho proferido pelo Tribunal coletivo em 07.10.2021, constante da ata de audiência de julgamento de fls. 1037 e seguintes dos autos, foi comunicado à defesa do arguido que “da produção de prova até ao momento efetuada em julgamento poderão resultar indiciariamente apurados factos com diferente descrição na acusação”, entre eles, o seguinte (ponto correspondente ao parágrafo 10º): «AA a certa altura começou a gritar, chamando por Deus, momento em que o arguido para a impedir de gritar pegou em terra e erva seca e encheu-lhe a boca com tais elementos e colocou uma mão em cima da boca e do nariz da ofendida/assistente, impedindo-a de respirar normalmente, afirmando, repetidamente, “vou-te matar”.» - negrito e sublinhado nosso.
Mais verteu o Tribunal a quo no sobredito despacho o entendimento de que tal alteração consiste numa alteração não substancial dos factos, pelo que cumpria comunicar tal situação ao arguido e, se requerido pelo mesmo, conceder-lhe o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.   
Cumprido o disposto no art. 358º, nº1, do CPP, consoante o determinado pelo Tribunal a quo, pelo ilustre mandatário do arguido foi requerido um prazo de 5 minutos para consulta do despacho, o que lhe foi concedido pelo Mmº Juiz Presidente; após o decurso do tempo concedido, aquele ilustre causídico disse nada ter a requerer relativamente à alteração não substancial dos factos comunicada. 
Entretanto, o Tribunal recorrido fez constar do ponto 20 dos factos provados no acórdão a seguinte matéria de facto: «AA a certa altura começou a gritar, chamando por Deus, momento em que o arguido, obstando a que ela gritasse, pegou em terra e erva seca e encheu-lhe a boca com tais elementos e colocou uma mão em cima da boca e do nariz da ofendida/assistente, assim a impedindo de respirar normalmente, afirmando, repetidamente, “vou-te matar”.» - negrito nosso.
Compulsadas as alterações fáticas face ao descrito na douta acusação pública (ponto 18) operadas na matéria de facto dada por provada no douto acórdão recorrido (facto nº 20), urge concluir que as mesmas, conforme corretamente comunicado pelo Tribunal à defesa, consubstanciam alterações não substanciais, nos termos e para efeitos do disposto no art. 1º, al. f), a contrario, e 358º, nº1, ambos do CPP.
Com efeito, o Tribunal recorrido, atendendo à prova produzida nos autos, perfunctoriamente apreciada por si, limitou-se a alterar a circunstância alegada no libelo acusatório de que a ofendida/assistente tentou gritar, considerando agora provado que ela chegou efetivamente a gritar (“chamando por Deus”) e, concomitantemente, modificou a alegação acusatória de que o arguido, por tal motivo, tentou impedi-la de gritar, considerando comprovado de que ele logrou obstar a que ela continuasse a gritar, por via do, já descrito na acusação, enchimento da boca da vítima com terra e erva seca. Quanto ao demais que vinha arrazoado no ponto 18 da acusação, verifica-se que a respetiva factualidade dada como provada pelo Tribunal a quo no ponto 20 somente é dissemelhante no que tange ao facto de o arguido ter atuado ainda de forma que impediu a ofendida de respirar “normalmente”, sem que, contudo, tivesse impedido totalmente tal respiração (como era dito na acusação), e que o modo de atuação adotado pelo arguido para o efeito foi distinto do descrito na acusação), pois que, diferentemente do que ali se invocava, ele não fechou, à força, a boca daquela, antes colocou uma mão em cima da boca e do nariz da assistente.
Ou seja, as alterações factuais realizadas – como, aliás, tende a admitir o próprio recorrente – não contendem com elementos típicos do crime de homicídio tentado imputado ao arguido, designadamente com um ato objetivo de execução da tentativa (cfr. art. 22º, nºs 1 e 2, do CP) e/ou com o elemento subjetivo, reportado à “intenção” que presidiu à atuação daquele ao colocar terra e erva seca na boca da vítima, porquanto, frisa-se, o Tribunal a quo limitou-se a divergir do libelo acusatório quanto à circunstância ali referida de que a ofendida tenha apenas tentado gritar, pois que considerou comprovado que ela chegou mesmo a gritar, sendo que, cremos, carecia até de lógica a asserção de que o arguido procedeu daquele modo para “a impedir de gritar” – ora, se ela não tinha conseguido gritar! Daí que, coerentemente, o Tribunal recorrido tenha retirado da factualidade provada, remetendo-a para os factos não provados [alínea f)], a circunstância de AA ter apenas tentado gritar, e aditado como matéria provada, no ponto 20, a circunstância objetiva de que o arguido, com o procedimento por si levado a cabo obstou a que ela gritasse (no sentido de que continuasse a gritar).   
Tais alterações factuais face à acusação não representam uma alteração substancial de factos, porquanto das mesmas não resulta a imputação ao arguido de um crime diverso ou o agravamento da pena abstratamente aplicável.
Note-se que é irrelevante para a presente apreciação que no despacho que comunicou à defesa as alterações de facto o Tribunal tivesse mantido, neste conspecto, o facto de o arguido, após a ofendida ter começado a gritar, ter colocado terra e erva seca na boca daquela, para a impedir de gritar, uma vez que o que conta para efeitos de sindicância recursória da decisão sobre a matéria de facto é o que é definitivamente fixado como provado (ou não provado) pelo Tribunal na decisão final, na medida em que naquele despacho interlocutório o julgador está apenas a manifestar uma eventualidade, a emitir um juízo provisório e condicional acerca de factualidade que considera indiciada e poderá ser dada como provada, e não a proferir um ato decisório – neste sentido, vide, entre outros, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14.01.2014, CJ, 2014, Tomo I, p. 136; o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, Processo nº 266/11.0TAVFR.P1, relatado pela Exma. Desembargadora Eduarda Lobo, disponível in www.dgsi.pt; o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14.01.2015, Processo nº 72/11.2GDSRT.C1, relatado pelo Exmo. Desembargador Fernando Chaves, disponível in www.dgsi.pt.                      
Por outro lado, não serve para fundamentar a clamada alteração substancial de factos o consignado pelo Tribunal no ponto 33 dos factos provados, pois que, como admitido pelo recorrente, o seu teor corresponde ao alegado no artigo 28º da acusação, não encerrando qualquer disparidade factual face ao ali descrito. 
Questão diversa, suscitada em alternativa pelo recorrente, é a de saber se face às alterações ao teor da acusação introduzidas por força da redação conferida ao ponto 20 dos factos provados, conjugadas com o descrito no ponto 33 do mesmo item, ocorre ou não contradição insanável da fundamentação (entre tais factos provados), tema que igualmente será objeto de discussão e decisão neste aresto [infra, item III.3.2, a)].     
Conclui-se, destarte, que a matéria de facto dada por provada no acórdão recorrido nos pontos 20 e 33 não consubstancia uma alteração substancial dos factos descritos na douta acusação.     
Pelo exposto, improcede, nesta parte, o douto recurso deduzido pelo arguido BB.

III.2.2.5Nulidade do acórdão recorrido por insuficiência/falta de fundamentação (art. 379º, nº1, al. a), com referência ao art. 374º, nº2, ambos do CPP):

Uma vez que o arguido/recorrente convoca diversas causas suscetíveis de integrarem, no seu entendimento, a nulidade por falta/insuficiência de fundamentação da decisão recorrida, lavraremos desde já as considerações comuns que julgamos cumprir aduzir a propósito de tal invalidade, apreciando depois, casuisticamente, cada um dos fundamentos invocados no recurso.
           
No que concerne aos requisitos da sentença, preceitua o art. 374º, nº2, do CPP, que “Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.

Por seu turno, prescreve o art. 379º, nº1, al. a), do CPP [na parte que ora releva]:

“1 - É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no nº2 e na alínea b) do nº3 do artigo 374º […]”.

A Lei ordinária portuguesa, como corolário do disposto no art. 205º, nº1, do Texto Fundamental (Constituição da República Portuguesa), consagra expressamente o dever de fundamentação das decisões finais, sentenças e acórdãos – art. 374º, nº2 do CPP –, bem como aponta a fundamentação como requisito essencial na apreciação da prova produzida em audiência – art. 365º, nº2 -, e na escolha e determinação da sanção a aplicar ao arguido – art. 375º, nº1.
O Supremo Tribunal de Justiça, em diversas decisões, tem consubstanciado o dever de fundamentação da sentença do seguinte modo: para além da indicação dos factos provados e não provados e da indicação dos meios de prova, a sentença deve conter os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituam o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados na audiência[9].

Paulo Saragoça da Matta[10] entende que a fundamentação das sentenças consistirá:

«(a) num elenco das provas carreadas para o processo;
(b) numa análise crítica e racional dos motivos que levaram a conferir relevância a determinadas provas e a negar importância a outras;
(c) numa concatenação racional e lógica das provas relevantes e dos factos investigados (o que permitirá arrolar e arrumar lógica e metodologicamente os factos provados e não provados); e,
(d) numa apreciação dos factos considerados assentes à luz do direito vigente»  

Pertinente também, e por nós acolhido, o entendimento que sobre a fundamentação tem José Mouraz Lopes[11], nos seguintes termos:

«No processo de elaboração da fundamentação da decisão o procedimento tem de fundar-se na fundamentação lógica e racional do raciocínio do juiz, em função da prova que foi produzida e do modo como se chegou à decisão tomada. Na fundamentação assume especial importância a demostração da prova que sustenta os factos.
Deverá sempre explicar-se o porquê de determinada valoração, e porque não outra. O que levou o tribunal a decidir-se por esta ou aquela opção de prova através de um exame crítico das provas produzidas».

Por outro lado, a motivação não tem de ser extensa, exaustiva e pormenorizada. Basta que seja razoável, aceitável, do ponto de vista do normal e da suficiência, o que sucederá sempre que do seu conteúdo se consiga extrair as razões subjacentes à decisão tomada pelo julgador.       

a) Por não explicitação da razão para ter concedido credibilidade às declarações prestadas pela assistente e pela testemunha EE e descredibilizado as declarações prestadas pelo arguido, bem como por não referência ao motivo da atuação deste:

Neste segmento, invoca o arguido/recorrente [conclusões 58ª a 65ª]:

- O Tribunal considerou as declarações da assistente como completas, desinteressadas e coerentes e as declarações do arguido incompletas e interessadas. No entanto, não se diz o porquê de o Tribunal ter chegado a tal convicção, ou seja, o porquê de se terem por completas, desinteressadas e coerentes e as declarações do arguido incompletas e interessadas;
- Se se pode perceber o porquê de se ter concluído que as declarações da assistente foram coerentes (eventualmente porque corroboradas pela testemunha EE em conjugação com as regras da experiência comum que a seguir analisaremos), já não se percebe, porque não se diz na fundamentação, porque é que se consideraram completas e desinteressadas, sendo certo que algum interesse teria a ofendida na demanda, tendo em conta que se constituiu assistente e deduziu pedido de indemnização civil, o que, naturalmente, quer dizer que estava interessada na condenação do arguido e, não menos naturalmente, na obtenção de uma indemnização;
- Por sua vez, o depoimento da testemunha EE terá sido calmo, sereno e seguro, nesta parte, sendo que o Tribunal também não afirma o porquê de assim ter entendido;
- Quanto às declarações do arguido já não se consegue perceber o porquê de estas terem sido julgadas incompletas e interessadas, quando o arguido confessou a agressão e, do seu ponto de vista, não tinha qualquer interesse em divulgar que tinha sido traído, quando, na verdade, nem o teria sido.
- O acórdão diz que não acreditou no arguido quando este disse que a testemunha e a ofendida estavam a ter relações sexuais, porque ainda esteve um tempo a conversar com a ofendida antes de a agredir, pelo que se tivesse visto partiria logo para a agressão. Ora, a conversa referida na fundamentação não consta dos factos provados e não provados. O que consta da fundamentação é que o arguido encetou uma discussão e que a determinada altura começou a agredi-la, o que é bem diferente e inconciliável. Dos pontos 9 a 13, o que decorre do acórdão é que a explicação da ofendida para o que estava a fazer com o referido EE já foi dada quando a agressão já tinha começado, pelo que não era inócuo enumerar-se o facto de o arguido e a ofendida terem conversado antes da discussão e quanto tempo estiveram a conversar.
- Assim, existe nesta parte uma fundamentação deveras insuficiente, não demonstrando o Tribunal o percurso lógico-racional de que partiu para concluir por aquele exame crítico dos depoimentos, por um lado, e que não enumerou todos os factos que entendeu como provados, pelo que se deve entender que, nesta parte, o acórdão enferma do vício de falta de fundamentação (artºs 374º nº2 e 379º nº1 al. a) do CPP).

Apreciando.

Na parte que ora releva, que o recorrente centra essencialmente no juízo probatório emitido pelo Tribunal a quo relativamente ao circunstancialismo que antecedeu a agressão que o arguido perpetrou sobre a ofendida AA, eventual motivação subjacente a tal conduta, e prova atendida para o efeito, o Tribunal recorrido expendeu na motivação:

«Relativamente aos pontos 9. a 11 e 12. (na parte inicial, isto é, na parte em que se refere que existiu uma discussão entre arguido e ofendida) dos factos provados impõe-se afirmar, desde logo, que as versões apresentadas pelo arguido e pela assistente não foram uniformes e compatíveis quanto ao que estavam EE e a assistente a fazer, na parte traseira do local onde se situam as casas de banho, quando o arguido os encontrou.
Nas declarações prestadas pelo arguido em audiência este afirmou que a ofendida e a testemunha EE se encontravam a ter relações sexuais quando ali foram encontrados pelo arguido. Já as declarações da ofendida e o testemunho de EE foram no sentido de que ali se encontraram, de forma fortuita, e que estavam ali a conversar há poucos minutos quando surgiu o arguido.
Dentre as versões apresentadas pelo arguido, por um lado, e pela assistente, pelo outro, o Tribunal deu preferência à versão apresentada por esta, uma vez que as suas declarações se mostram mais completas, desinteressadas e coerentes (quando analisadas de per si e quando conjugadas com as regras da experiência comum) quando confrontadas com as declarações incompletas e interessadas do arguido.
Por outro lado, o Tribunal notou que as declarações da assistente, nesta sede, foram consonantes, no essencial, com o depoimento, nesta parte calmo, sereno e seguro, de EE.
Ademais, a versão apresentada pela assistente é a que melhor se coaduna com as regras da experiência comum.
Sabe-se, desde logo, que a assistente se queixava que arguido era ciumento. Ora, atendendo a essa característica pessoal do arguido e dada a relativa proximidade do local onde decorria a festividade e (mais ainda) do local onde se situam as instalações da casa de banho e de um café/bar ali também existente (como emerge, designadamente, do depoimento da testemunha ...), certamente a assistente e a testemunha EE (pessoas já experimentadas na vida, o que se deduz das suas idades – ambos com mais de 40 anos da idade -), caso efectivamente quisessem ter tido relações sexuais, não deixariam de melhor esconder tais relações do arguido e dos demais conhecidos que porventura ali os pudessem encontrar, escolhendo melhor sítio para o efeito, o que até era relativamente simples na data e local dos autos (como decorre, especialmente, das fotografias de fls. 62 – fotografia n.º 6 - e 66, a planta do milho, naquela altura do ano e nos campos que estão para lá da cerca que, a sul, veda a Praia Fluvial de ..., estava alta, verde e com folha, pelo que bastaria à assistente e a EE, em sentido físico, pular a cerca e ter as relações sexuais com toda a privacidade, caso esse efectivamente fosse a sua vontade, o que manifestamente não fizeram).
A isto acresce que o próprio arguido admitiu que, mesmo depois de o EE ter saído do local onde se encontravam os três (EE, assistente e o entretanto chegado arguido), esteve algum tempo a conversar com a ofendida/assistente, antes de começar a agredi-la, o que que constitui um indício de que ele não os encontrou a ter relações sexuais, nem foi esse (indemonstrado) facto – que o arguido encontrou a assistente e a testemunha EE a terem relações sexuais - que motivou as agressões.
No sentido da prevalência da versão da assistente sobre a versão do arguido quanto à realidade por este percepcionada quando encontrou a ofendida e EE nas traseiras da casa de banho milita ainda a conduta posterior deste. Efectivamente, EE ausentou-se daquele local e, em vez de, por exemplo, ir embora e/ou dizer aos outros elementos do grupo o que tinha sucedido (caso efectivamente tivesse tido relações sexuais com a ofendida/assistente e tivessem sido descobertos no acto pelo arguido), dirigiu-se ao local onde estavam a decorrer as festividades e continuou a desfrutar da companhia dos outros membros do grupo (a testemunha ..., de modo, nesta parte isento e credível, afirmou que EE, depois de se ter ausentado, chegou ao local onde estava grupo e interagiu normalmente; A testemunha HH relatou, de forma que neste âmbito se considerou firme e desinteressado, que quando EE voltou ao grupo vinha “normal”). Ainda nesta sede, refira-se que EE, logo no local onde se encontrava o grupo e decorriam as festividades, quando confrontado pelo arguido com o facto de ter tido relações sexuais com a ofendida, mostrou-se surpreendido e prontamente negou essa factualidade (o que decorre do testemunho de HH; o depoimento de ... foi no sentido de que EE, logo no momento, negou a imputação que lhe foi ali efectuada pelo arguido).
Estes elementos, devidamente conjugados, permitiram ao Tribunal concluir, com a necessária segurança no sentido da verificação da matéria factual dada como provada sob os n.ºs 9. a 11 e 12 (na parte inicial, isto é, quanto á existência da falada discussão).»
Assim, neste como nos outros pontos de facto em que invocou as declarações prestadas pela ofendida (para memória futura), o Tribunal a quo tomou as mesmas como mais completas, desinteressadas e coerentes quando comparadas com as declarações prestadas pelo arguido em audiência de julgamento, e corroboradas aquelas pelo depoimento prestado, nessa parte, pela testemunha EE, que qualificou de calmo, sereno e seguro, e mais consentâneas com as regras de experiência comum.
A asserção de que as declarações prestadas pela ofendida/assistente foram completas compreende-se pela circunstância de a mesma não ter deixado de responder a todas as questões que lhe foram colocadas e de ter sido pormenorizada nas respetivas respostas quanto ao contexto de tempo, modo e lugar em que decorreram os factos por si narrados.
Por outro lado, sendo certo que o Tribunal não o diz expressamente, ressuma percetível para qualquer destinatário da sobredita motivação que entendeu como mais incompletas as declarações do arguido em virtude de a sua versão, nesta parte, não explicar convenientemente a dinâmica dos factos como por ele assumida, outrossim a suposta motivação subjacente ao seu comportamento agressor, designadamente por ter visualizado a sua namorada e o EE a manterem relações sexuais de cópula, atendendo a que a sua narrativa não encontra arrimo em qualquer outro meio de prova e não se compagina satisfatoriamente com as regras de experiência e da lógica.
Ademais, sendo pertinente a alegação do recorrente de que a circunstância de a ofendida se ter constituído assistente e ter deduzido pedido de indemnização civil nos autos é suscetível de demonstrar algum interesse no desfecho da causa, logo, na condenação do arguido/demandado, tal não é incompatível ou conflituante com o facto de a mesma, apesar de ter sido vítima de um crime assaz violento e hediondo, que fez perigar a sua vida, não ter denotado particular animosidade ou desejo de vingança relativamente ao arguido. Quanto ao arguido, por seu turno, é indubitável o seu extremo interesse em tentar convencer o Tribunal de que atuou por um motivo “nobre”, de defesa da sua honra, pelo menos, para atenuar o seu sancionamento penal.   
Por último, a coerência das declarações da ofendida/assistente, como decorre apreensível da fundamentação aduzida pelo Tribunal a quo, afere-se não só pela ausência de notórias contradições no discurso produzido quanto a aspetos fáticos relevantes, como também pela sua corroboração através de outros meios de prova (igualmente tomados como credíveis) e, outrossim, por a sua versão dos factos ser sustentada pelas regras de experiência e da lógica.
Diga-se, ainda, que o Tribunal recorrido explicou que o depoimento prestado pela testemunha EE se revelou calmo, sereno e seguro, ou seja, sem contradições, exaltações ou particulares alterações de tom de voz e postura, e que a sua versão dos factos é compatível com a atitude descomprometida que revelou perante terceiros após se ter encontrado com a ofendida junto às casas de banho, e de surpresa quando foi confrontado pelo arguido com o facto de, supostamente, ter mantido relações sexuais com a ofendida.
Logo, salvo melhor opinião, a fundamentação da decisão de facto veiculada pelo Tribunal recorrido no acórdão é idónea e suficiente para o cumprimento a sua função processual e extraprocessual, não enfermando a decisão da apontada nulidade derivada de falta ou insuficiência da fundamentação.
Urge realizar uma última observação relativamente à invocada eventual falta de inclusão nos factos provados do teor da “conversa” mantida entre o arguido e a vítima antes da agressão, e respetiva duração, para afirmarmos que a existir tal omissão não estaríamos perante uma insuficiência da fundamentação, para efeitos do disposto conjugadamente nos arts. 374º, nº2 e 379º, nº1, al. a), ambos do CPP, antes uma insuficiência da matéria de facto provada para a decisão (cf. art. 410º, nº2, al. a), do mesmo diploma), vício esse não alegado e que não se vislumbra oficiosamente, pois que o que o Tribunal relevantemente considerou provado é que a ofendida apenas esteve a conversar com o EE, e que o arguido, após ter encetado uma discussão com a ofendida, começou por agredi-la enquanto a questionava sobre o que estava ali a fazer com o EE – como tal, sem os ter visto a copular, pois que, de outro modo, não necessitava de a questionar sobre tal facto –, sendo que, não satisfeito com a explicação daquela de que estava somente a conversar, o arguido incrementou o grau de violência perpetrado sobre o corpo da assistente (factos nºs 9 a 15).
E, consequentemente, deu como não provado que «o comportamento da ofendida/assistente foi o gerador das agressões, por não se ter “comportado”» [alínea bb)] e que «a ofendida/assistente e EE estivessem a ter relações ou contactos de cariz sexual quando foram encontrados pelo arguido» [alínea cc)]. 

Improcede, assim, o douto recurso quanto a este fundamento.   
    
b) Por não fundamentar a especial censurabilidade ou perversidade do agente:

Nas conclusões 115ª a 119ª do douto recurso, alega o arguido, resumidamente:

- Apesar de se ter feito no acórdão a destrinça entre especial perversidade e especial censurabilidade a que alude o art. 132º, nº1, do CP, não se afirma como se qualifica a conduta do recorrente.
- Da mesma sorte, tendo por assente que não basta o preenchimento de um dos exemplos padrão para o preenchimento do tipo de crime, também não se explica o porquê de se entender que a conduta preenche os pressupostos da especial perversidade ou censurabilidade, designadamente quais os factos que em concreto nesse sentido apontam.
- Conclui o recorrente que também nesta parte o acórdão recorrido é nulo, por violação do disposto nos artºs 374º nº2 e 379º nº1 al. a) do Código de Processo Penal.

Analisando.

No que tange ao preenchimento do tipo de homicídio qualificado, na forma tentada, o Tribunal a quo aduziu a seguinte motivação:  

«O artigo 132.º do CP define o tipo de crime de homicídio qualificado, constituindo uma forma agravada do crime em relação ao tipo do artigo 131.º.
No artigo 132.º do CP o legislador português, em matéria de qualificação do homicídio, recorre à combinação de um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa, com a técnica chamada dos exemplos-padrão (cfr. Jorge de Figueiredo Dias in op. cit., p. 25).

Prescreve o art. 132.º do CP que:

“1 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.
2 - É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente (…).
b) Praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa do outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau (…).
e) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil (…).”.
A qualificação prevista no artigo 132.º deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos relativamente indeterminados: a especial censurabilidade ou perversidade do agente (n.º 1) e de verificação indiciada por circunstâncias ou elementos, uns relativos aos factos, outros ao autor, exemplificativamente elencados no n.º 2.
Tais elementos, uma vez verificados, porém, não implicam sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação; para além de que nada impede que se verifiquem outros elementos substancial e teleologicamente análogos aos descritos e que integrem o tipo de culpa qualificador (cfr. Figueiredo Dias in op. cit.., p. 26).
O tipo de culpa supõe a realização dos elementos constitutivos do tipo orientador que resulta de uma imagem global do facto agravada correspondente ao especial conteúdo de culpa tipo em conta no art. 132º, n.º 2 do CP (cfr. Figueiredo Dias in op. e loc. cit.).
Portanto, só se pode decidir que a morte foi causada em circunstâncias que revelam especial censurabilidade ou perversidade do agente através de uma ponderação global das circunstâncias externas e internas presentes no facto concreto (cfr. Teresa Serra in Homicídio Qualificado. Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, p. 63).
O tipo de culpa em análise é conformado através da verificação da “especial censurabilidade ou perversidade” de que o facto se reveste.
Na especial perversidade integram-se aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de forma de realização do facto especialmente desvaliosas; e na especial perversidade aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas (cfr. Figueiredo Dias in op. cit., p. 29).
Com efeito, “especial perversidade” e “especial censurabilidade” não são conceitos equivalentes, já que o primeiro se reporta às qualidades especialmente desvaliosas da personalidade do agente, enquanto o segundo se refere à forma especialmente desvaliosa como o acto criminoso foi cometido.
Como é evidenciado por Fernando Silva in op. cit., pp. 52 e 53: “A censurabilidade constitui o juízo direccionado para o comportamento do agente, pelo facto de este ter actuado contrariamente à lei, podendo conformar a sua actuação de acordo com ela. A especial censurabilidade constitui uma conduta que revela uma profunda distância em relação a determinado quadro valorativo, afastando-se dum padrão normal, havendo maior exigência na não motivação por aqueles motivos. (…) As circunstâncias que rodeiam o agente e o motivam para matar representam maior refracção, sendo razões que deviam
acarretar maior contra-motivação para que o agente não tivesse agido daquele modo. O grau de censura aumenta por haver na decisão do agente o vencer de factores que, em principio, deveriam orientá-lo ainda mais para se abster de actuar, as motivações que o agente revelou, ou a forma como realizou o seu facto, apresentam, não apenas um profundo desrespeito por um normal padrão axiológico vigente na sociedade, como ainda traduzem situações em que a exigência para não empreender a conduta se torna mais acentuada.
A especial perversidade representa um comportamento que traduz uma acentuada rejeição, por força dos sentimentos manifestados pelo agente que revela um egoísmo abominável. A decisão de matar assenta em pressupostos absolutamente inaceitáveis. O agente toma a decisão sob grande reprovação atendendo à personalidade manifestada no seu comportamento. (…) O agente deixa-se motivar por factores completamente desproporcionais aumentando a intolerância perante o seu facto.”.
Por relevante no caso concreto, tendo em conta as circunstâncias que, atenta a factualidade provada, a situação convoca, importa ainda referir sucintamente que a relação de namoro foi incluída no artigo 132.º, n.º 2, al. b) pela Lei n.º 16/2018, de 27-03, reforçando a protecção jurídico-penal dessa relação.
A partir dessa inclusão (e apesar de todas as críticas que a questão pode suscitar – cfr., por exemplo, a este propósito, Alexandra Vilela, “A propósito da Técnica de Qualificação do Homicídio prevista no artigo 132.º do Código Penal – As suas alterações legislativas e a sua aplicação” in https://revistas.ulusofona.pt) não podem existir dúvidas no espírito do intérprete e aplicador de que foi intenção do legislador proteger especialmente as vítimas de homicídio no âmbito das relações de namoro.
A citada protecção penal introduzida pela Lei n.º 16/2018 deveu-se ao entendimento de que existia um espaço autónomo para a inclusão da relação de namoro na al. b) do n.º 2 do artigo 132.º do CP.
Como foi salientado no Parecer do Conselho Superior da Magistratura in https://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063446f764c324679626d56304c334e706447567a4c31684a53556c4d5a5763765130394e4c7a464451554e45544563765247396a6457316c626e527663306c7561574e7059585270646d46446232317063334e686279396a59546c684e6a51314d6930345954646a4c54526a5a6d51744f54526c4e79316b5a6a51354d32457a5a574a6c4d5755756347526d&fich=ca9a6452-8a7c-4cfd-94e7-df493a3ebe1e.pdf&Inline=true “(…) o crime em causa cometido entre pessoas que mantenham, ou tenham mantido, uma relação de namoro permite indiciar uma especial perversidade do agente. A relação de namoro, pressupondo uma intimidade estável e continuidade, distinta de relações fortuitas, traz consigo um conjunto de deveres e proximidade entre os sujeitos envolvidos. O cometimento de crimes, sobretudo aqueles que ofendam bens pessoais, no contexto desta relação é particularmente desvalioso. Por outro lado, e à semelhança das outras relações já expressamente previstas na al. b), do n.º 2, do art.132.º, do Código Penal, a relação de namoro é susceptível de gerar casos de stalking, de retaliação pelo seu rompimento ou de domínio entre os seus membros. Nestes termos, a qualificação do crime de homicídio cometido no contexto de uma relação de namoro (em vigor ou finda) indicia uma especial perversidade ou censurabilidade, não sendo valorativamente menor do que outros exemplos-padrão previstos no n.º 2, do art.132.º, do Código Penal.”
Refira-se ainda que motivo “torpe ou fútil” é “o motivo da actuação que, avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito (…) de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pelo valor da vida humana» (cfr. Figueiredo Dias in op. cit., pp. 32 e 33.
Assinalam Miguez Garcia/Castela Rio in Código Penal – Parte Geral e especial –, Almedina, p., 580, que “Motivo fútil é o ‘notoriamente desproporcionado ou inadequado do ponto de vista do homem médio em relação ao crime praticado’; para além da desproporcionalidade, deve acrescer a insensibilidade moral, que tem a sua manifestação mais alta na brutal malvadez ou se traduz em motivos subjetivos ou antecedentes psicológicos que, pela sua insignificância ou frivolidade, sejam desproporcionados com a reação homicida” (Ac. STJ de 7/12/1999, BMJ 492, p. 168; e de 11/12/1997, BMJ 472, p. 163). O Ac. STJ de 27/05/2010 (58/08.4) tem o conceito como de ‘difícil definição’. Será o ‘motivo de importância mínima’, mas também ‘o motivo frívolo, leviano, a ninharia’ que leva o agente à prática de um grave crime, ‘na inteira desproporção entre o motivo e a extrema reação homicida’”.
Ao nível do tipo subjectivo, importa apurar se a situação, correspondente a um exemplo-padrão ou a uma situação substancialmente análoga, foi representada pelo agente e, se assim foi, se a mesma é susceptível de revelar uma situação de especial censurabilidade ou perversidade do agente.
[…]
Nos tipos qualificados, como é o caso do homicídio qualificado, em que ocorrem acto de execução de homicídio, mas não se verifica a morte da pessoa contra quem o agente pretende atentar, importa que se mostre integralmente verificado um exemplo-padrão ou situação análoga qualificadora do homicídio.
O início da tentativa relativamente a um tipo qualificado, para Miguez Garcia e Castela Rio in op. cit., p. 202 dá-se apenas quando se verifiquem actos de execução do ilícito típico conjunto. Exige-se a verificação de actos de execução da qualificação.
A tentativa do crime qualificado inicia-se quando o agente executa um elemento do tipo qualificado, salvo no caso de a circunstância qualificativa já preexistir à conduta do agente, sendo então aplicável o regime geral (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, p. 133).
Entrando no caso dos autos, considerando o que se deixa exposto e o manancial fáctico provado, temos por certo ter o arguido BB praticado o crime de homicídio tentado (tipo fundamental ou matricial) de cuja prática se encontra acusado, em virtude de estarem verificados todos os seus requisitos, a nível objectivo e volitivo.

Com efeito, da matéria de facto dada como assente resulta, no importante que:
- O arguido e a vítima AA mantiveram uma relação de namoro que se iniciou em Maio de 2021.
- No dia 4 de Setembro de 2021, o arguido e a ofendida deslocaram-se até à Praia Fluvial de ..., sita em B..., onde, juntamente com outros amigos, estiveram a comemorar o aniversário de um deles e com o intuito de ali ficarem acampados.
- Tal festividade iniciou-se pelas 11h00, e o arguido e a ofendida aparecerem durante a tarde, sendo que pelas 20h00/21h00 surgiu EE, amigo da ofendida e a convite desta, com o conhecimento do arguido.
- Pelas 02h00 do dia 5 de Setembro de 2021, EE dirigiu-se ao quarto de banho dos homens que dista a cerca de 150 metros do local onde decorria a festividade.
- Pelas 02h00 do dia 5 de Setembro de 2021, EE dirigiu-se ao quarto de banho dos homens que dista a cerca de 150 metros do local onde decorria a festividade.
- Por volta do mesmo dia e hora, o arguido acompanhou a ofendida/assistente à casa de banho das mulheres, após o que se deslocou em direcção ao local onde se realizava a festividade, percurso durante o qual encontrou amigos (primeiro o FF, depois o GG) com quem conversou, tendo ainda conversado com um grupo de pessoas de nacionalidade ... que nesse percurso encontrou.
- Entretanto, depois de terem saído das instalações das respectivas casas de banho a ofendida/assistente e EE encontraram-se, sem que o tivessem previsto, numa zona situada nas traseiras do local onde se situam as casas de banho, após o que ficaram a conversar.
- Passados poucos minutos a ofendida/assistente e EE foram surpreendidos pelo arguido, que ficou desagradado com a situação.
- Desta feita, EE ausentou-se do local e dirigiu-se para o local onde se encontravam todos a festejar, permanecendo no mesmo sítio o arguido e a ofendida/assistente.
- Após o arguido encetar uma discussão com a ofendida/assistente, a determinada altura apertou-lhe, com força, o pescoço, arrastou-a até aquela bater com as costas numa cerca, enquanto lhe perguntava o que estava ali a fazer com o EE, momento em que a ofendida reagiu e tentou libertar-se.
- A ofendida explicou ao arguido que apenas estavam a conversar, porém, o arguido disse-lhe que aquilo era uma traição e, com a mão fechada, começou a esmurrar a ofendida com murros na cara e no peito, tendo também segurado os cabelos desta com força atirando-a para o chão.
- Acto seguido, quando a ofendida/assistente se encontrava no chão com as costas viradas para o solo e a parte da frente do corpo virada para o arguido, o arguido agarrou-a pelos cabelos e começou a bater com cabeça da ofendida no chão.
- Em seguida, o arguido, com toda a força, desferiu, violentamente, vários socos na cabeça, nariz e boca da ofendida/assistente.
- …Na sequência destas agressões a ofendida/assistente começou a engolir sangue.
- O arguido ia intercalando os murros na boca e no nariz com pancadas na cabeça da ofendida/assistente no chão e agarrando-lhe os cabelos, ao mesmo tempo que AA tentava afastar os braços daquele, sem qualquer efeito dada a diferença de envergadura física entre ambos e porque se encontrava fisicamente por cima da ofendida, tendo a maior parte do tempo as pernas dobradas sobre as pernas da ofendida/assistente e pontualmente colocado uma perna sobre o peito desta e, por outra vez, sobre seus braços, assim impedindo que esta tentasse resistir.
- Nessas agressões, o arguido atingiu também os ombros da ofendida/assistente.
- Enquanto a agredia, o arguido dizia repetidamente “Vou-te matar…vou-te matar”, ao mesmo tempo que a ofendida implorava para a deixar e lhe dizia que queria ver as suas filhas.
- AA a certa altura começou a gritar, chamando por Deus, momento em que o arguido, obstando a que ela gritasse, pegou em terra e erva seca e encheu-lhe a boca com tais elementos e colocou uma mão em cima da boca e do nariz da ofendida/assistente, assim a impedindo de respirar normalmente, afirmando, repetidamente, “vou-te matar”.
- Após, o arguido voltou a desferir socos à ofendida/assistente, sendo que esta começou a sufocar.
- Enquanto decorriam as agressões supra descritas e por força delas a ofendida/assistente pensou que ia morrer naquele tempo e local.
- Então AA optou por se fingir de morta, não se mexendo e permanecendo com os olhos abertos.
- O arguido ainda abanou a ofendida/assistente, para ver se esta estava morta, levantou-se e pisou-lhe o rosto duas vezes, sem que aquela tivesse reagido.
- A ofendida perdeu os sentidos e só voltou a si quando ali já se encontrava o EE, juntamente com outras pessoas.
- …Quando regressou ao local onde se encontrava o grupo o arguido, ensanguentado, dirigiu-se a EE, agarrou-o pelas costas e disse “Vai lá ver o corpo da ...”, o que foi ouvido por algumas pessoas que ali se encontravam.
- Em consequência da conduta do arguido, a ofendida sofreu as lesões descritas nos pontos 31., 32., 37., 38. e 39. dos factos provados, sendo que, pelo menos a lesão descrita em 32. lhe provocou perigo para a vida nos termos ali identificados.
- O arguido agiu com o propósito de tirar a vida a AA, sua namorada, atingindo-a diversas vezes, predominantemente na zona da cabeça, cara, nariz e colocando-lhe terra e erva seca no interior da boca para a sufocar, prevendo que com tais condutas a poderia matar, resultado com o qual se conformou e quis, só o não logrando obter por a vítima ter fingido que estava morta e ter sido assistida atempadamente e, assim, consequentemente, por circunstâncias alheias à sua vontade.
- Actuou o arguido com calma e total indiferença e desprezo pelo estado em que deixava a ofendida, motivado por ciúmes.
- O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Ora, do citado circunstancialismo fáctico resulta que o arguido, com o seu comportamento descrito, visou matar outra pessoa, neste caso a sua então namorada, AA.
Para o efeito executou um conjunto de agressões na pessoa da vítima, sua namorada (descritos em 12., 13., 14., 15.,16., 17., 19., 20., 21. e 24), idóneos a provocar-lhe a morte, o que resulta tanto da forma dos actos concretamente praticados (o arguido desferiu murros na cara e no peito da ofendida, agarrou-a pelos cabelos e começou a bater com cabeça da assistente no chão, aplicou socos na cabeça, nariz e boca da assistente; o arguido encheu a boca e o nariz da ofendida com terra e erva seca e colocou uma mão por cima dessa boca e desse nariz, impedindo-a de respirar normalmente; o arguido levantou-se e pisou-lhe o rosto duas vezes), como pela força que imprimiu nessas agressões e atendendo ainda às zonas do corpo especialmente visadas (cabeça, cara, nariz e boca).
A sequência de actos praticados pelo arguido são de modo a concluir que o mesmo persistiu na realização do acto, tendo praticado actos de execução do tipo legal de homicídio.
Por outro lado, os actos praticados são, de um ponto de vista ex ante, de prognose póstuma, adequados a produzir o resultado típico: a morte de outra pessoa, no caso, sua então namorada.
Porém, apesar de tal acção, o resultado não se chegou a verificar, por facto independente da vontade do arguido (uma vez que a assistente se fingiu de morta e teve assistência atempada).
Os actos praticados pelo arguido subsumem-se a actos de execução (cfr. artigo 22.º, n. º1, al. b) do C.P.), integradores da tentativa de um crime de homicídio.
Por outro lado, da matéria de facto dada como provada (cfr. matéria de facto dada como provada sob os n.ºs 33. e 35.) resulta o dolo directo.
A isto acresce que as circunstâncias em que ocorreram os actos praticados pelo arguido revelam especial censurabilidade, pelo que o seu comportamento se integra no crime de homicídio qualificado tentado.
Com efeito, a verificação da qualificativa (relação de namoro) entre agente e vítima constitui, em face do artigo 132.º, n.º 2, al. b) do CP, um indício de especial censurabilidade.
Ademais, como supra se expendeu, a relação de namoro, pressupondo uma intimidade estável e continuidade, distinta de relações fortuitas, traz consigo um conjunto de deveres e proximidade entre os sujeitos envolvidos.
Observe-se, neste conspecto, que, no caso, tudo se passou no âmbito de uma deslocação de um grupo de pessoas a uma praia fluvial para comemoração do aniversário de um deles e com o intuito de ali acamparem.
Acresce que os factos foram perpetrados pelo arguido após ter encontrado, já depois das 02.00 da manhã, a vítima a conversar com EE (um amigo da vítima) perto das traseiras do quarto de banho e depois de EE se ter ausentado e ter deixado sozinhos o arguido e a vítima.
Ora, a prática de actos como os descritos nos autos, por parte do arguido, na pessoa da ofendida, sua então namorada, afigura-se acto especialmente reprovável e censurável, por violar precisamente a necessária confiança e os deveres de respeito exigíveis numa relação tão próxima como a de namoro.
Por outro lado, também se verifica um motivo fútil, dado que a reacção do arguido ao ver a sua então namorada a conversar com o seu amigo EE nos termos descritos em 9. foi, à luz das regras do normal acontecer, completamente desproporcionada e desvaliosa, sendo, por isso, especialmente censurável.
Vale isto por dizer que se conclui que o arguido praticou o crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131.º, 132.º, n.º 1 e 2, als. b) e e), 22.º, n. º1 e n.º 2 al. b), 14.º, n.º1, todos do Código Penal.»

Posto isto, salvo o devido respeito pela opinião defendida pelo arguido no douto recurso, entendemos que a decisão recorrida se apresenta devidamente fundamentada quanto a este aspecto do preenchimento da clausula geral da “especial perversidade ou censurabilidade”, prevista no art. 132º, nº1 do Código Penal (CP), à luz da qual devem ser valoradas as circunstâncias elencadas no nº2 do preceito, a título de exemplo-padrão, isto é, como circunstâncias que, não sendo taxativas nem de funcionamento automático, são suscetíveis de revelar as ditas “perversidade” ou “censurabilidade”.      

Assim, como decorre do sobredito trecho citado, verifica-se que o Tribunal recorrido mencionou os fundamentos genéricos que presidem à previsão legal das circunstâncias qualificativas do crime de homicídio (no caso, tentado), alertou para o não funcionamento automático daquelas exemplificativas circunstâncias, expôs a destrinça entre a especial “perversidade” e “censurabilidade”, e, subsequentemente, partindo dessas considerações de índole jurídica, concretizou a factualidade que, no seu entendimento, integrava as circunstâncias “relação de namoro” entre o arguido e a vítima do crime, bem como a atuação daquele determinada por “motivo fútil”, e, outrossim, explicou as razões de as mesmas, por consideração do circunstancialismo que antecedeu e acompanhou a realização dos factos ilícitos típicos em discussão, revelarem, no caso sub judice, aquelas chancelas potenciadoras do tipo de culpa qualificador.  
Com efeito, adianta-se na motivação que a relação de namoro (atual ou transata), segundo a intenção do legislador expressa na norma em questão [art. 132º, nº2, al. b), na redação conferida pela Lei nº 16/2018, de 27.03], é suscetível de indiciar uma especial perversidade ou censurabilidade do agente, essencialmente porque, como referido no ali citado parecer do Conselho Superior da Magistratura, aquele tipo de relacionamento, pressupõe uma intimidade estável e continuidade, distinta de relações fortuitas, acarreta um conjunto de deveres e proximidade entre os sujeitos envolvidos, pelo que o atentado à vida, à integridade física ou a outros relevantes bens de jaez pessoal perpetrado sobre um membro da relação pelo outro membro revela-se particularmente desvalioso, incrementando sensivelmente o grau de culpa do agente.
Concretizando, o Tribunal a quo explana que as circunstâncias em que ocorreram os actos praticados pelo arguido, no contexto de uma relação de namoro estabelecida com a ofendida, revelam especial censurabilidade, convocando para o efeito as comprovadas circunstâncias de os factos terem decorrido na sequência de uma deslocação de um grupo de pessoas a uma praia fluvial para comemoração do aniversário de um deles e com o intuito de ali acamparem, e, nesse contexto, após o arguido ter encontrado a vítima a conversar com EE (um amigo da vítima) perto das traseiras do quarto de banho e depois de EE se ter ausentado e ter deixado sozinhos o arguido e a vítima, ou seja, sem que nada “justificasse” minimamente a atitude extremamente violenta adotada pelo arguido, atentatória da vida da namorada, o que, sem dúvida, representa uma gravíssima violação da confiança e do respeito que devem presidir a uma relação de namoro, dessa forma se revelando o comportamento do arguido como particularmente reprovável e censurável.
Por outro lado, os Meritíssimos Juízes adiantaram na fundamentação o motivo para considerarem preenchida a circunstância qualificativa “motivo fútil” [art. 132º, nº2, al. f), in fine] e em que medida a mesma revelou, em concreto, uma especial censurabilidade da ajuizada conduta do arguido.
Assim, ali se refere que a reação do arguido ao lobrigar a sua namorada a conversar com um amigo – nos termos dados como provados no facto nº 9 – não se coaduna minimamente com o normal suceder, afastando-se consideravelmente de todas as previsíveis e “toleráveis” atuações que podia ter assumido, mostrando-se, assim, completamente desproporcionada e desvaliosa – moralmente iníqua, acrescentamos nós –e, como tal, demonstrativa de “especial censurabilidade”.      
Por conseguinte, conclui-se pela inexistência, nesta parte, da arguida nulidade por falta de fundamentação da decisão recorrida.
  
c) Por não indicação dos meios de prova atendidos para fixar a matéria de facto provada constante dos pontos 37 a 41 e 43 a 59 (e respetiva ausência de exame crítico das provas): 
 
Neste segmento recursório, invoca o recorrente a nulidade do acórdão recorrido por falta de fundamentação (disposições conjugadas dos arts. 374º, nº2 e 379º, nº1, al. a), ambos do CPP), atenta a não indicação dos meios de prova atendidos para fixar a matéria de facto provada constante dos pontos 37 a 41 e 43 a 59 (com consequente ausência de exame crítico das provas) - cfr. conclusões 130ª e 131ª.

Decidindo.

Consta da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto expressa no acórdão recorrido, na parte que ora releva:
«A prova da matéria dos pontos 31., 36., 37., 38., 39., 40., 41., 42.,43., 44., 45., 46., 47., 48., 49., 50., 51., 52., 53., 54., 55., 56., 57., 58., 59., emerge da globalidade da prova produzida e, especialmente, da conjugação dos elementos clínicos do Hospital ..., dos relatórios periciais constantes dos autos, da informação da APAV supra identificada, das declarações da ofendida/assistente e dos testemunhos de II, OO e PP que se mostraram serenos, firmes e consonantes com as regras da experiência comum.»  
Por conseguinte, constata-se que o Tribunal indicou os meios de prova em que se fundou para, na sua livre convicção, balizada pelo teor da prova pericial e documental produzida nos autos, dar como provada a factualidade constante dos pontos 37 a 41 e 43 a 59, acrescendo que, relativamente à prova decorrente das declarações da ofendida/assistente e dos depoimentos de testemunhas, o Tribunal considerou que os mesmos se revelaram, nessa parte, credíveis, até porque corroborados pelas regras de experiência comum e não infirmados por outros meios de prova.
Tanto mais que o Tribunal menciona no dealbar da motivação a razão para não se afastar do conteúdo dos relatórios periciais juntos aos autos – com exceção do que se apurou no ponto 42, em virtude, designadamente, do conteúdo de prova documental de valor reforçado, no caso, do teor dos certificados de incapacidade temporária para o trabalho da assistente/demandante, para o período que mediou entre 17.01.2022 a 27.02.2022 (cfr. fls. 539 e seguintes) –, identifica a razão de ciência das testemunhas II, OO e PP, e, outrossim, por referência às folhas a que se encontram juntam aos autos, a prova documental tomada em consideração e sobre cujo respetivo conteúdo as preditas testemunhas também depuseram -  cfr. págs. 16 e 17 do douto acórdão.
É quanto basta para a assegurar, nesta parte, a devida fundamentação da decisão de facto, incluindo na vertente de exame crítico das provas.
Donde, improcede o douto recurso, nesta parte.

d) Por ter dado como provada a factualidade vertida nos pontos 32, 33, 41 a 43, 47 e 52 a 58, sem realização das imprescindíveis perícias médico-legais/violação do disposto no art. 340º, nº1, do CPP e erro de julgamento:

Neste conspecto, alega, em síntese, o arguido/recorrente [conclusões 132ª a 141ª]:
- A perícia médico legal levada a efeito nos presentes autos é lacunosa, tendo em conta que o Coletivo nunca proferiu despacho a ordenar a perícia e, por consequência, elaborou quesitos quanto a tal matéria – artº 154º nº1 do CPP. Tal facto levou o Tribunal a dar como assentes factos que dependem, em absoluto, da comprovação por perícia médico-legal com base em depoimentos testemunhais (uns de testemunhas que de medicina nada sabiam e outros cujos conhecimentos em medicina legal se desconhece, como sejam o médico que passou os certificados de baixa da ofendida – Dr. II – e o médico neurocirurgião que assistiu a ofendida quando esta foi levada para o Hospital na data dos factos – o Dr. JJ) e ainda a divergir do relatório pericial final de fls. 1012 e ss. (com base no depoimento do primeiro dos médicos referidos).
- Por outro lado, apesar de o juízo pericial sobre a intenção de matar constituir um juízo de probabilidade sobre essa intenção, tal juízo era importante para a descoberta da verdade material, uma vez que a constatação sobre se os actos praticados pelo arguido são idóneos a produzir o resultado típico só pode ser extraída através de perícia.
- Assim, o Tribunal deu como provada a matéria dos pontos 41 a 43, 47 e 52 a 58 que não poderia ser dada como provada sem que fosse feita uma perícia médico-legal à mesma destinada.
- Os pontos 32, 33, 41, 42, 52, 54 e 55 deram-se como provados factos (a intenção de matar, o perigo para a vida, a ajuda de terceira pessoa, as dores, os ataques de ansiedade) que dependiam de uma perícia médico-legal relativa ao dano corporal, uma vez que tal prova depende de um juízo técnico e científico que não pode ser feito pelo juiz de julgamento.
- Os pontos 43, 47, 52, 56 a 58 para serem dados como provados deveriam ser alvo de perícia do campo da Psicologia que não foi realizada.
- Assim, deve considerar-se a douta sentença proferida nula, por falta de fundamentação, nos termos do disposto no artº 379º n.º1 al. c) do Código de Processo Penal.
- Mesmo que assim não se entenda porque não se realizou tal perícia violou-se o artº 340º nº1 do Código de Processo Penal e resultou um erro de julgamento.

Apreciando.

O princípio da livre apreciação da prova, constituindo um princípio estruturante do direito processual penal português, encontra-se vertido no art. 127º do Código Processo Penal, que preceitua: “Salvo quando a lei dispuser diferentemente a prova é apreciada segundo as regras da experiência e livre convicção da entidade competente.”
 Tal princípio está intimamente conexionado com o princípio da descoberta da verdade material e contrapõe-se ao sistema probatório fundado nas provas tabelares ou tarifárias que estabelece um valor racionalizado a cada prova, porquanto por via da livre apreciação da prova concede-se ao julgador um âmbito de discricionariedade, ainda que limitada, na valoração de cada uma das provas atendíveis que estribam a decisão de facto.
Tal discricionariedade não é absoluta, antes balizada pelas regras da ciência, da lógica e da argumentação que devem nortear o decisor na apreciação da prova produzida. Por conseguinte, o juiz, na fundamentação da decisão de facto, deve justificar, fundamentando convenientemente, as suas próprias escolhas, ou seja, porque valorou cada prova de determinado modo (por exemplo, porque concedeu credibilidade ao depoimento de uma testemunha e negou credibilidade ao depoimento de outra testemunha). Compreende-se que assim seja, sob pena de a convicção do tribunal se tornar não sindicável, caindo no mero livre arbítrio, o que não se coaduna com um sistema de justiça próprio de um estado de direito democrático.    
É por isso que José Mouraz Lopes, in “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, Tomo II, p. 78, entende que a «livre apreciação da prova» é, de alguma forma, um sofisma, na medida em que se deve falar é de uma livre apreciação racional e fundamentada da prova.
Nas palavras de José Tomé de Carvalho, in “Breves palavras sobre a fundamentação da matéria de facto no âmbito da decisão final penal no ordenamento jurídico português”, Revista Julgar, nº21, 2013, p. 84, «o livre convencimento não equivale assim a valoração livre, estando o processo deliberativo condicionado pelas regras de lógica, experiência, técnica e ciência, apesar de na reconstrução de determinado facto o juiz ser livre de crer (ou não) numa determinada fonte probatória, agora que o tempo das provas legais e tabelares se finou».
Assim também tem sido entendido, reiteradamente, pelo Tribunal Constitucional, num juízo de conformidade do disposto no art. 127º do CPP com a Constituição.
Como se decidiu no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 1165/96, de 19.11.1996, in DR, Série II, de 06.02.1997 (reiterado pelo acórdão do mesmo Tribunal nº 464/97, de 01.07.1997, in DR, Série II, de 12.01.1998): «A livre apreciação da prova não pode ser entendida como uma operação puramente subjetiva, emocional e, portanto, imotivável. Há-de traduzir-se em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas de experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objetivar a apreciação dos factos, requisitos necessários para uma efetiva motivação da decisão». 
Ainda o acórdão do Tribunal Constitucional nº 401/02, proferido no âmbito do processo nº ...2, onde se lê «[…] de acordo com o entendimento que tem vindo a ser professado por este tribunal, a valoração da prova segundo a livre convicção do julgador não significa uma apreciação contra a prova ou uma valoração que se desprendeu da legalidade dos meios de prova ou das regras gerais de produção da prova, ou seja, não é admissível uma valoração arbitrária da prova, sendo a convicção do julgador «objetivável e motivável», conjugando-se com dever de fundamentar os actos decisórios e de promover a sua aceitabilidade».
Uma das exceções a que se reporta a primeira parte do citado normativo legal vislumbra-se no disposto conjugadamente nos arts. 151º e 163º, ambos do mesmo diploma legal.
Assim, o art. 151º prescreve que “a prova pericial tem lugar quando a perceção ou apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos”. Segundo o art. 163º, nº1, “o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador”. E acrescenta-se no nº2: “sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência”.
A disciplina jurídica do art. 163º é inspirada na doutrina do Prof. Figueiredo Dias (in “Direito Processual Penal”, I, p. 209), expendendo que os dados de facto que servem de base ao parecer estão sujeitos à livre apreciação do juiz; mas já o juízo científico ou parecer propriamente dito só é passível de uma crítica igualmente material ou científica. Segundo aquele insigne penalista, perante um certo juízo cientificamente provado, de acordo com as exigências legais, o tribunal guarda a sua inteira liberdade no que toca à apreciação da base de facto pressuposta; quanto, porém, ao juízo científico, a apreciação há de ser científica também, e está, por conseguinte, subtraída em princípio à competência do tribunal[12].
O valor da prova pericial vincula o julgador, que só pode rejeitar a conclusão pericial, oriunda de quem está provido dos indispensáveis e especiais conhecimentos (art. 151º do CPP), que escapam àquele, ainda que se possa pressupor uma certa capacidade para intuir, base da divergência, que há de ser especialmente fundamentada.
O Prof. Germano Marques da Silva refere a este propósito que o julgador só pode arredar a conclusão inscrita no parecer “com fundamento numa crítica material da mesma natureza” (in “Curso de Direito Processual Penal”, II, p. 53).   
Não vale uma crítica material procedente do julgador, alicerçada no seu critério pessoal, na forma particular de subjetivar os resultados, os factos, assente em conhecimentos meramente profanos, tudo sem apoio em conceitos científicos; se o julgador pudesse fundamentar a divergência sem apelo ao critério científico, seria uma forma clara de iludir, frustrar o comando imperativo resultante do nº2 do art. 163º do CPP, contraditória, até, nos seus termos, caindo-se na proibição a obstar, não se conciliando essa fundamentação própria e interpretação pessoal com a indispensabilidade do apoio científico – assim, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08/10/2015, relator Conselheiro Souto de Moura, in www.dgsi.pt.[13]
Como explana Carlota Pizarro de Almeida [in “Modelos da Inimputabilidade – Da Teoria à Prática”, págs. 90 e 91]: «O art. 163º aparece, assim, nomeadamente no âmbito das perícias psiquiátricas, como uma solução de compromisso, em que, reconhecendo-se o especial valor das perícias como elemento de prova, não se ousou (ou não se quis) subtraí-las totalmente à apreciação do julgador.»
É por isso que, como adverte o Professor Figueiredo Dias, in “Direito Penal”, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, pág. 566, «O perito das ciências do homem, na primeira fase da evolução, tomava sobre si a generalidade das tarefas do juiz neste campo, até ao ponto de se poder afirmar que se sobrepunha à função judicial e que era a ele que em último termo pertencia a decisão sobre a imputabilidade ou inimputabilidade. O perito passa agora porém a ser, em rigor, um auxiliar dispensável do juiz, para quem inclusivamente constituirá por vezes um estorvo. Ele pode, é certo, continuar a responder às questões relacionadas com o fundamento biopsicológico da inimputabilidade, mesmo com a muito maior extensão que este fundamento agora assume. Ao que o perito não pode responder, todavia, nem sequer ajudar a responder, sem cometer um palmar excesso de competência, é ao fundamento normativo da inimputabilidade, no fundo do qual se inscreve a indiscernível questão do livre-arbítrio e da liberdade da vontade em situação».
O sobredito vale, mutatis mutandis, para a intenção de matar associada ao cometimento de um crime de homicídio, questão ainda mais sensível no quadro da tentativa.
Com efeito, se dúvidas não sobejam de que neste contexto os exames periciais médico-legais, nomeadamente de avaliação do dano corporal, se mostram determinantes para auxiliar o Tribunal a determinar as lesões corporais e sequelas resultantes, de modo adequado e causal,  da ação do agente para a saúde da vítima – aqui se incluindo as do foro psicológico/psiquiátrico –, não é menos verdade que o juízo sobre a existência ou não do subjacente desígnio de matar está reservado ao juiz, naturalmente fundado na base factual que resulte provada por força dos juízos técnico-científicos emitidos nos relatórios periciais (se não fundamentadamente afastados pelo julgador, nos estritos termos legais), não cabendo ao perito formulá-lo, sem extravasar as suas competências funcionais, na medida em que aquele propósito contende já com a culpa do autor dos factos, em sentido amplo, enquanto factualidade suscetível de preencher o elemento subjetivo do crime e, outrossim, a possibilidade de censurá-lo ético-juridicamente por tal conduta (a denominada consciência da ilicitude).
A intenção de matar pertence ao foro íntimo, psicológico, da pessoa, pelo que geralmente a mesma só se alcança através de factos externos ao agente, concludentes desse nexo psicológico e, assim, através de prova indireta (indiciária) – excetua-se, por exemplo, a confissão do agente sobre tal elemento ou a verbalização por aquele no decurso da execução do ato da vontade de causar a morte ao visado, desde que não estejamos perante uma tentativa impossível.
Dessarte, a prova sobre tal intenção há-se estribar-se em inferências extraídas dos factos materiais comprovados, analisados à luz da globalidade da prova que foi produzida e das regras de experiência comum. Uma vez que estamos no domínio de factos respeitantes a uma realidade que escapa a uma observação directa, aquela intenção há-de ser detetada através de ilação ou dedução, reflexamente do restante acervo factual e, neste enquadramento, por prova indireta, que é reconhecida e aceite ao nível do processo penal, não contendendo com o previsto nos arts. 124.º a 126.º do CPP, nem com os limites definidos pela livre apreciação consagrada no art. 127.º do mesmo diploma legal.
Os factos suscetíveis de manifestar essa intenção serão, essencialmente, as zonas do corpo da vítima atingidas, sobretudo quando nelas se alojam órgãos imprescindíveis à vida humana, o número de lesões e modo da sua perpetração, avultando aqui o instrumento de agressão e a sua forma de utilização.
Daí que quem dolosamente atinge zonas relevantes do corpo humano de outrem, seja pelo número de vezes que o faz, seja pela idoneidade letal do instrumento usado a causar lesões graves, sujeita-se ver afirmada a respetiva intenção homicida.
Em suma, compete ao tribunal tomar posição sobre a matéria, em função do juízo global que faça sobre a prova produzida, formando-se a convicção, a final, pelo escrutínio rigoroso e ponderado de cada um dos elementos probatórios individualmente considerados, mas também da concatenação de todos, quer dos diretos quer dos indiretos, apelando às regras da experiência, da lógica das coisas e do normal suceder.
Em conformidade, urge concluir que distintamente do que defende o arguido/recorrente, não estamos neste campo da comprovação da “intenção de matar” na presença de prova legal vinculada, pois que, por um lado, não resulta direta e especificamente da lei que tal facto apenas pode ser provado através de determinada perícia (diferentemente do que sucede, v.g., quando, por impossibilidade de realização de teste no ar expirado para, for necessário recorrer a análise laboratorial (art. 153º, nº8, do Código da Estrada) para quantificação da taxa de álcool no sangue, e, por outro lado, não se trata de facto que, pela sua especificidade técnica ou científica, só possa ser provado por recurso a quem tenha especiais conhecimentos técnicos ou científicos (art. 151º do CPP).       
Por conseguinte, o Tribunal recorrido não determinou a realização específica de perícia para responder à questão sobre a intenção com que teria atuado o arguido (juízo de probabilidade), nem tinha obrigatoriamente de o fazer.
Por outro lado, foram realizados nos autos, pelo INML, perícia de avaliação do dano corporal e perícia de psiquiatria forense, tendentes a concluir sobre as consequências médico-legais advenientes para a ofendida do ajuizado evento, sendo que a perícia do foro psiquiátrico visou esclarecer que sequelas decorreram do evento para aquela, necessidades atuais de tratamento/acompanhamento regular em consultas e se tais sequelas afetam de maneira grave a capacidade de trabalho e a sua vida pessoal e de que forma (cf. relatórios periciais de fls. 234 a 236, 523 a 526, 988 a 990 e 1027 a 1030).    
Deste modo, não colhe igualmente a asserção recursória de que faltou a realização nos autos de perícia médico-legal relativa ao dano corporal, imprescindível para que se pudessem dar como provados os factos vertidos nos pontos 32, 33, 41, 42, 52, 54 e 55, e, bem assim de perícia do campo da Psicologia, para efeitos de prova da factualidade descrita nos pontos 43, 47, 52, 56 a 58 dos factos provados.
Ademais, salvo o devido respeito, o recorrente esgrime incorretamente a nulidade por falta ou insuficiência de fundamentação no que concerne aos sobreditos pontos da matéria de facto, quando o que, perante as suas alegações, o que estaria em causa – como aliás peticiona o recorrente, a título subsidiário – a procederem as críticas ali dirigidas à decisão recorrida, seria antes um erro de julgamento relativo à decisão desses pontos, por insuficiência da prova produzida para o efeito, sindicável somente por via de impugnação ampla da matéria de facto, que não foi deduzida no recurso, isto no caso de se partilhar a tese recursória de que não foram realizadas perícias impreterivelmente impostas por lei, no sentido de imprescindíveis para a determinação da respetiva factualidade, e, consequentemente, com violação do princípio da livre apreciação da prova e, eventualmente, do princípio in dubio pro reo (que nesse caso resultaria do próprio texto da decisão recorrida), o que, como vimos, não sucede in casu, ou, então, uma nulidade dependente de arguição, prevista no art. 120º, nºs 1 e 2, al. d), parte final, do CPP, no caso de se considerar que tais perícias, ainda que não legalmente impostas, teriam sido essenciais para a descoberta da verdade, circunstância que igualmente não se verifica no caso vertente, como infra melhor se explanará.                 
Soçobra, assim, a arguição da nulidade assente na falta ou insuficiência da fundamentação, porquanto, compulsada a motivação da decisão de facto relativa aos pontos invocados pelo recorrente, constata-se que o Tribunal a quo adiantou os meios de prova em que se estribou para dar como provada a respetiva factualidade, as razões para lhes conceder credibilidade, relevo e força probatória, em alguns casos em detrimento de outros produzidos nos autos, analisando-os em concatenação e, sempre que possível, isto é, quando fora da presença de prova pericial ou documental com força probatória reforçada, geradoras de presunções iuris tantum, à luz das regras da experiência e da lógica.
Assim, nos termos que ali concretamente se expressam, para dar como provada a intenção com que o arguido actuou, de tirar a vida à ofendida, o Tribunal recorrido, partindo das concretas atuações objetivas demonstradas, lançando mão também das regras da experiência, da normalidade dos acontecimentos, e socorrendo-se da denominada prova indireta (por presunção ou indiciária), considerou o modo violento de atuação do arguido, as partes do corpo da ofendida atingidas, suscetíveis de lhe tirar a vida, a circunstância de ter colocado uma mão em cima da boca e do nariz daquela, assim a impedindo de respirar normalmente, à persistente verbalização do arguido durante as agressões da sua intenção (afirmando, de modo reiterado, que a ia matar), o facto de ter abanado a vítima e pisado o seu rosto mesmo após ela se ter fingido de morta, de só ter cessado as agressões por se ter apercebido que a mesma não esboçava qualquer reação e ter julgado que já se encontrava morta, à circunstância de lhe ter causado perigo para a vida, e ao comportamento adotado pelo arguido após as agressões, nomeadamente por não ter diligenciado espontaneamente por obter ajuda médica à vítima.
Assim, analisando tais factos à luz das regras da normalidade, concluiu o Tribunal, de modo que não merece censura, que o arguido, ao atuar como descrito na factualidade provada, causou perigo para a vida da ofendida/assistente e quis mesmo tirar-lhe a vida, o que só não sucedeu por circunstâncias alheias à sua vontade.
Deste modo, é indubitável que o Tribunal a quo, neste conspecto, fundamentou, suficiente e devidamente, a sua convicção e consequente decisão sobre a matéria de facto.
E o mesmo se diga no que tange à decisão tomada sobre a restante matéria de facto vertida nos pontos invocados pelo recorrente, atinentes, no essencial, à necessidade de a ofendida, como consequência das lesões provocadas, direta e necessariamente, pela conduta do arguido, ter necessitado da ajuda de terceira pessoa e ter sentido dores, e, por força do acontecimento por aquela vivenciado, ter passado a sofrer ataques de ansiedade.          
Quanto ao ponto 32 dos factos provados, relativo à decorrência para a ofendida/assistente de hematoma subdural agudo e hemorragia subaracnoide, causadora de perigo para a sua vida, o Tribunal recorrido fundamentou a respetiva prova no teor do relatório médico elaborado pelo Hospital ..., corroborado em audiência pelo depoimento prestado pelo seu ilustre subscritor, o neurocirurgião JJ, ou seja, baseou a prova no teor de registo clínico e depoimento realizados por pessoa que, não obstante não ser Perito para efeitos legais, dado que não interveio no âmbito de Perícia formalmente determinada nos termos legais, é pessoa com especiais conhecimentos técnicos na especialidade da medicina em questão, acrescendo que a respetiva factualidade não é infirmada pelo teor dos relatórios periciais de exame médico-legal (intercalares e final) juntos aos autos.           
No que concerne aos pontos 41 a 43, 47 e 52 a 58 dos factos provados, o Tribunal a quo estribou a respetiva demonstração na concatenação da globalidade da prova produzida nos autos, que examinou criticamente, e, particularmente, na conjugação dos elementos clínicos do Hospital ..., dos relatórios periciais juntos aos autos, da informação da APAV (fls. 535-536), das declarações da ofendida/assistente e dos testemunhos de II, médico assistente da ofendida desde janeiro de 2022, subscritor dos Certificados de Incapacidade Temporária de fls. 539 e ss., que avaliou a ofendida em consulta, OO, psicóloga e técnica da APAV que acompanhou a assistente, e PP, mestre em direito e gestora de gabinete da APAV que igualmente acompanhou a situação da vítima, cujos depoimentos se revelaram ao Tribunal como serenos, firmes e consonantes com as regras de experiência comum. Ou seja, a fundamentação da decisão de facto sobre os pontos em apreço remete para prova pericial e documental oriunda de entidades isentas e credíveis, bem assim para declarações e depoimentos de pessoas com indubitável conhecimento direto sobre os factos em discussão, e, no caso do Exmo. médico subscritor dos aludidos certificados, com particular erudição relativamente aos factos sobre os quais depôs.
Reforça-se que tais factos dados como provados não colidem com o teor das perícias médico-legais realizadas nos autos, sendo certo que na parte em que excedem o objeto daquelas podiam ter sido provados com recurso aos meios probatórios a que lançou mão o Tribunal, porquanto não se reportam a circunstâncias fáticas que impreterivelmente tivessem de ser provadas com recurso a juízo técnico-pericial.
Ademais, o Tribunal recorrido, face ao amplo acervo de jaez pericial, documental, essencialmente, no que respeita aos registos e demais elementos clínicos, declaratório e testemunhal produzido nos autos, onde imperam os depoimentos de médicos que, no exercício das suas específicas e técnicas funções, acompanharam a vítima, documentando as suas observações e conclusões, não sentiu necessidade de ordenar a realização de outra perícia, decisão que se compreende e aceita, sem que suscite qualquer crítica.
Acresce que no único ponto em que o Tribunal a quo se distanciou do juízo pericial lavrado nos autos, relativo à matéria apurada vertida no ponto 42, os Meritíssimos Julgadores fundamentaram tal divergência com o teor dos certificados de incapacidade temporária para o trabalho da assistente, no período que mediou entre 17.01.2022 e 27.02.2022 (cf. fls. 539 e seguintes), bem como no depoimento prestado em audiência de julgamento pelo médico subscritor dos mesmos.
Ou seja, o Tribunal não se refugiou em meras convicções ou juízos pessoais para não acolher a conclusão do relatório pericial relativamente ao período de afetação da capacidade para o trabalho, caso em que estaríamos perante flagrante violação do princípio da livre apreciação da prova, por injustificado desrespeito do valor especialmente reforçado da prova pericial (cf. arts. 127º, primeira parte, e 163º, nº1, ambos do CPP), antes considerou prova veiculada por pessoa que igualmente possui especiais conhecimentos técnicos, no caso de medicina, com competência legalmente atribuída pelo Estado para certificar situações de incapacidade temporária para o trabalho, tanto mais que avaliou a ofendida em momento mais atual, posterior ao da última observação realizada pelos Srs. Peritos e recolha de dados clínicos, que remontou a 24.01.2022 (cf. relatório pericial de fls. 1027 e ss.), isto é, perante uma base de facto distinta da que motivou aquele juízo pericial.
Assim sendo, cremos que se mostra suficientemente fundamentada a apontada divergência, a qual, como vimos, não coloca em causa a validade/qualidade do juízo técnico-científico emitido no relatório pericial, antes considera outro pressuposto, diferente base factual.
Pelo exposto, improcede o douto recurso, neste conspecto.

e) Por não mencionar a relevância que os factores descritos no art. 494º do Código Civil assumiram na fixação da indemnização, como esta foi determinada com juízos de equidade e por não ter fixado a situação económica do recorrente:
                      
Alega o arguido/recorrente que no acórdão recorrido não se diz de que forma os factores referidos no artº 494º do Código Civil afetaram a fixação da indemnização ou sequer como esta foi fixada de acordo com juízos de equidade [conclusão 142ª].
Vejamos o que no acórdão recorrido foi expendido a tal propósito.
Refere-se no acórdão impugnado, no ponto referente ao pedido de indemnização civil deduzido pela ofendida/demandante:
“Como supra se expendeu a fls. 656 e ss. veio AA pedir a condenação do arguido/demandado no pagamento da quantia de € 160.000,00 a titulo de danos patrimoniais e não patrimoniais.
A este propósito deverá salientar-se que, nos termos do disposto no art. 129.º, do Código Penal, a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.
Trata-se, por isso, de uma acção civil que adere ao processo penal e que como tal permanece civil (cfr. Figueiredo Dias, in “Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal”, Centro de Estudos Judiciários, p. 15.).
Importa, pois, averiguar se estão preenchidos os pressupostos condicionantes da obrigação de indemnizar, à luz da responsabilidade civil extracontratual.
Assim, preceitua o n.º 1 do art. 483º, do Código Civil que “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”
É necessário que haja um facto voluntário do agente, que o facto do agente seja ilícito, que haja um nexo de imputação do facto ao lesante, ou seja, que haja culpa do lesante, que à violação do direito subjectivo ou da lei sobrevenha um dano e, finalmente, que haja um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima para “…poder afirmar-se, à luz do direito, que o dano é resultante da violação.” (cfr. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, Vol. I, 6.ª Edição, p. 495 e ss.).
Da análise da norma em questão, resulta que o legislador consagrou duas formas de ilicitude.
A primeira consubstancia-se na violação do direito de outrem e a segunda na violação de norma legal destinada a proteger interesses alheios.
Relativamente ao primeiro segmento, a doutrina tem entendido que nele estão contidos, sobretudo, os direitos absolutos, designadamente os direitos de propriedade e de personalidade (cfr. WW. cit. p. 503).
Adiantando mais um passo, deverá afirmar-se que o arguido demandado violou os direitos de personalidade da demandante.
O comportamento do demandado civil é, assim, ilícito porque violador de direito absoluto da demandante civil (cfr. artigos 70.º, n.º 1 e 484.º do C.C. e artigos 131.º, 132.º, n.º 1 e 2, als. b) e e), 22.º, nº 1 e n.º 2 al. b), 14.º, nº1, todos do Código Penal), sendo que a sua conduta merece a reprovação ou censura do direito.
A violação do direito subjectivo da demandante por banda do demandado civil é, como vimos já relativamente à matéria penal, culposa (assumindo a modalidade de dolo directo).
Encontrando-se estabelecido o necessário nexo de imputação ético-jurídico dos factos ao agente, importa agora estabelecer a medida concreta da responsabilidade do demandado, o que implicará a delimitação dos danos que o mesmo deverá indemnizar.
De acordo com o disposto nos arts. 483.º, nº 1 e 563.º, do C.C., o lesante só tem a obrigação de reparar os danos que, em concreto, se tenham verificado como uma consequência necessária do evento danoso e que, em abstracto, se tenham verificado como uma consequência adequada do mesmo.
Daqui resulta que só os danos que estejam por este modo conexionados com o facto ilícito é que serão reparáveis.
O dano é toda a ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica.
Por outro lado, de acordo com o disposto no art. 496.º, nº 1, do Código Civil, “Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”, estabelecendo o nº 3, da mesma disposição legal que o montante será fixado equitativamente pelo tribunal.
Os danos patrimoniais incidem sobre interesses de natureza material ou económica e, portanto, reflectem-se no património do lesado (cfr. Almeida Costa in Direito das Obrigações, 9.ª ed., p. 543). O dano não patrimonial é aquele prejuízo que não é susceptível de avaliação patrimonial.
Ora, no caso dos autos, provaram-se factos que consubstanciam a prática, por banda, do arguido/demandado, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, de que foi vítima a demandante cível.
Tratam-se de factos ilícitos e culposos (dolosos) que causaram danos á demandante cível, existindo entre estes e os factos criminais um nexo de causalidade adequada.
Portanto, encontram-se preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, pelo que importa apreciar os danos e quantificar a reparação adequada aos mesmos.
No caso, apesar de ter sido alegada de forma conclusiva a existência de danos patrimoniais (cfr. artigo 54.º do pedido de indemnização civil), a verdade é que da matéria de facto dada como assente não resulta a respectiva existência.
Assim, por exemplo, encontra-se demonstrado que a assistente/ofendida se encontrou incapacitada para o trabalho pelo período de tempo descrito 41., mas não se provou, nem foi alegado, que nesse período, não fora a prática do crime, a ofendida iria trabalhar (em Portugal, na República ... ou em qualquer outro país do mundo) e auferir, por essa via, rendimentos (também não foram alegados os rendimentos que a assistente auferiria se trabalhasse durante o período em que se mostrou incapacitada para o efeito).
Do mesmo modo, sabe-se que a demandante necessitou de ajuda de terceira pessoa até 06-10-2021, mas não foi alegado se pagou alguma quantia por essa ajuda e, em caso afirmativo, o montante.
Talqualmente, a demandante alegou (e provou) que por força da conduta do arguido teve e tem necessidade de fazer medicação, mas não especificou essa medicação, nem o respectivo preço.
Vale isto por dizer que não se extraem da matéria de facto dada como provada danos patrimoniais que possam ser indemnizáveis nesta sede.
O mesmo não se passa relativamente aos danos não patrimoniais.
Com efeito, da factualidade descrita na matéria de facto sob os n.ºs 19., 22., 31., 37. a 44., 46. a 52., 54. a 58. resultam relevantes e graves danos não patrimoniais (dado que enquanto decorriam as agressões supra descritas e por força delas a ofendida/assistente pensou que ia morrer naquele tempo e local; por força das agressões existiram alterações no quotidiano da vítima, sofrimento a nível pessoal, social e profissional; incapacidade de estar com pessoas com características físicas similares às do arguido; stress pós-traumático; o facto de a ofendida evitar sair de casa e andar sozinha, o isolamento da ofendida; o medo atroz; o facto de a ofendida ter constantes pesadelos, culpabilizando-se pelo sucedido; o sentimento de insegurança da ofendida; a circunstância de a ofendida ter tido ataques de ansiedade; a ofendida/assistente continua a sentir fortes dores de cabeça e tonturas; a ofendida sente-se humilhada, ameaçada, tendo inúmeros episódios de ansiedade e diminuída na sua dignidade; o facto de a ofendida reviver diariamente o dia das agressões e o momento em que “viu a morte á sua frente” e a perda das suas filhas; o facto de a demandante sentir que não consegue voltar a ter intimidade, sentindo-se incapaz de ter
um companheiro; não descurando as dores físicas que as lesões sofridas certamente lhe provocaram).
O objectivo da reparação dos danos morais, para além de reprovar ou castigar, no plano civilístico, a conduta do agente, é o de proporcionar ao lesado, através do recurso à equidade, uma “compensação ou benefício de ordem material (a única possível), que lhe permite obter prazeres ou distracções – porventura de ordem puramente espiritual – que, de algum modo, atenuem a sua dor: não consistiria num pretium doloris, mas antes numa compensatio doloris” (cfr. Pessoa Jorge in Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, Almedina. 1999, p. 375).
Deverá ter-se ainda em conta que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça em matéria de danos não patrimoniais tem evoluído no sentido de considerar que a indemnização, ou compensação, deverá constituir um lenitivo para os danos suportados, não devendo, portanto, ser miserabilista. A compensação por danos não patrimoniais, para responder actualizadamente ao comando do art. 496.º e constituir uma efectiva possibilidade compensatória, tem de ser significativa, viabilizando um lenitivo para os danos suportados e, porventura, a suportar.
Os danos supra descritos, sofridos pela demandante nestes autos, por não revestirem natureza económica, são danos não patrimoniais que, pela sua relevância e gravidade, são susceptíveis de ofender e ofenderam, de modo extremamente relevante, a personalidade física e psíquica da ofendida, demandante nestes autos – direitos de personalidade –, pelo que são merecedores de uma adequada reparação pecuniária.
Nesta determinação monetária não podemos deixar de ter em consideração as circunstâncias que determinaram os danos que mereceram a supra referida censura penal mas também agora civil, ou seja, os factos ocorreram sem qualquer justificação, no âmbito da prática de actos ilícitos culposos criminais de tentativa de que a demandante cível foi vítima.
Portanto, tudo factores que se reflectem na ilicitude e na culpa da conduta do arguido e demandado e que necessariamente se deve reflectir no montante indemnizatório a atribuir ao lesado.
Para além disso, ter-se-á em consideração a situação económica do arguido/ demandado nos termos julgados provados e da demandante civil (vide a factualidade julgada como provada e o que se apurou a este respeito, que agora aqui temos em consideração).
Ora, tendo presente a matéria de facto dada como provada (e todos os danos não patrimoniais apurados) e os critérios supra enunciados para a determinação do montante indemnizatório, entendemos avaliar, de acordo com um juízo de equidade, os danos (não patrimoniais) em causa no montante de 60.000,00 €.
De acordo com o entendimento sufragado pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2002, uma vez que o tribunal recorreu à equidade para alcançar os valores referidos quanto aos danos não patrimoniais e, nessa medida, efectuou um cálculo tendo em conta as condições e o valor monetário actuais, deverão os mesmos vencer juros, à taxa legal, desde a data do presente Acórdão.
Assim e em suma, o pedido de indemnização civil é julgado parcialmente procedente, condenando-se o arguido/demandado a pagar à demandante a quantia de € 60.000,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a data do presente Acórdão e até efectivo e integral pagamento.”
Segundo estatui o art. 496º, nº1, do Código Civil (C.C.) – com a epígrafe “danos não patrimoniais –, “Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.”     
De acordo com o preceituado no nº4 do mesmo normativo, “O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores.”

Por seu turno, prescreve o art. 494º do Código Civil: “Quando a responsabilidade se fundar na mera culpa, poderá a indemnização ser fixada, equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem.”
Compulsada a fundamentação de direito vertida na douta decisão recorrida, constata-se que o Tribunal, apesar de não citar expressamente o disposto no art. 494º do C.C., atendeu efetivamente aos fatores relevantes para determinação do quantum indemnizatur ali referidos, designadamente ao grau de ilicitude dos factos e à culpa do agente/demandado neles manifestada, num contexto de ausência de justificação para o seu cometimento e de extrema gravidade do ato lesivo, consistente numa tentativa de homicídio da lesada e, outrossim, à demonstrada situação económica do agente e da lesada, nos termos constantes dos factos provados.     
Por outro lado, o Tribunal recorrido explicitou que, na determinação do concreto montante da compensação fixada, tomou em consideração a matéria de facto dado como provada e todos os danos de jaez não patrimonial apurados, atendeu, entre outros, aos sobreditos critérios legais e recorreu, conforme determina a lei, à equidade, ou seja, ao que entendeu como proporcional e justo para tentar contrapesar as provações sofridas pela lesada como consequência direta e necessária da ação típica culposa perpetrada pelo lesante.
Finalmente, cumpre referir que bastaria ao recorrente atentar minimamente na factualidade dada por provada nos pontos 82 a 85 – para a qual, como vimos, o Tribunal também remeteu na fundamentação – para constatar que ali se encontra espelhada a situação económica do recorrente à data da prática dos factos (visto que após se encontrou em situação de reclusão prisional), incluindo o montante da retribuição mensal que auferia, como agente imobiliário, que englobava uma parte fixa, correspondente ao valor do salário mínimo nacional[14], e uma parte variável, a título de comissões derivadas dos negócios por si angariados.  
Logo, manifestamente, não assiste razão ao recorrente em nenhuma das questões suscitadas, mostrando-se a decisão recorrida, neste segmento, devidamente fundamentada.      

III.3 – Dos alegados vícios da decisão previstos no art. 410º, nº2, do Código de Processo Penal:

Preceitua o art. 410º do Código de Processo Penal [na parte ora relevante]:
“1 – Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2 – Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.”

III.3.1 – Da invocada insuficiência para a decisão da matéria de facto provada:

Neste conspecto, alega o arguido/recorrente que o Tribunal a quo não averiguou, como devia, se o arguido tentou obter socorro para a vítima, nomeadamente chamando o INEM, ou, não tendo sido ele, quem o fez, sendo que tal circunstancialismo era relevante para afastar a factualidade dada por provada na parte final do ponto 33 e no ponto 34, assim como não apurou a concreta motivação ou móbil para o cometimento do crime [cf. conclusões 29ª a 34ª e 66ª a 87ª]   

Para tanto, alega, resumidamente:

- No ponto 28 da matéria de facto diz-se que as testemunhas foram ao encontro da ofendida, tendo-a localizado, pelo que se pressupõem que estas sabiam onde esta se encontrava. E para saberem onde esta se encontrava, apenas o arguido lhes poderia dar tais indicações, uma vez que era este que tinha estado com a mesma, sendo que não foi dado como provado que as testemunhas tenham estado à procura da vítima e, na afirmativa, quanto tempo estiveram, o que indicia que foi assim mesmo que aconteceu. Assim sendo, o próprio arguido disse onde estava a vítima, o que afasta a conclusão de que o arguido não tenha tentado obter socorro para a vítima, no entanto, tal matéria não foi averiguada pelo Tribunal, o que se afigurava importante para a descoberta da verdade material.
- Se o arguido diligenciou pela chamada da GNR ao mesmo tempo diligenciou pela chamada de uma ambulância, pois a GNR sempre o faria, sendo que não se apurou, se não foi o arguido a tentar obter socorro chamando o INEM, quem foi que o fez e era importante que o fizesse porque concluindo-se o contrário também não se poderia ter por fixada a parte final do ponto 33 e o ponto 34 da matéria de facto.
- Tanto se pode extrair dos factos provados que o arguido tinha intenção de matar porque chamou a GNR em vez do INEM, após os factos, como se pode concluir que este se convenceu, após a agressão, que a ofendida estava morta, aliás, como esta queria que este se convencesse ao “fazer-se de morta”, não se mexendo e permanecendo com os olhos abertos – ponto 23 da matéria de facto. O Tribunal não afasta este segundo entendimento que é verosímil e que está de acordo com os factos e com as regras da experiência comum, pelo que esta possibilidade também devia ser investigada.

Por outro lado,
- O Tribunal, pelo menos, deveria:
- dar como provado ou não provado o facto de o arguido possuir uma taxa de álcool de 1,20 g/l;
- investigar se a testemunha e a ofendida estiveram a beber,
Antes de afoitamente lançar mão de uma regra de experiência comum que não se coaduna com as circunstâncias especiais do caso em julgamento.
- Lido o acórdão não fica esclarecido porque é que a ofendida e a testemunha se encontraram imprevistamente nas traseiras da casa de banho, uma vez que é um local no mínimo inusitado para alguém se encontra de forma imprevista e para ter uma conversa. Não fica esclarecido do acórdão, por que razão se deu como provado que a testemunha e a ofendida foram surpreendidos pelo arguido e por que razão este ficou desagradado com a situação.
- Por outro lado, não se percebe do acórdão se o arguido ficou desagradado com a situação porque ficava sempre desagradado quando a ofendida falava com pessoas do sexo masculino ou só dessa vez ou se era normal o arguido reagir violentamente de cada vez que a ofendida falava com uma pessoa do sexo masculino, agredindo-a. Não se deu como provado tal facto, nem qualquer outro quanto a esta matéria.
- Não se compreende porque é que a ofendida teve a necessidade de dizer que a testemunha apenas estava a conversar com ela, quando o arguido viu que era só uma conversa, embora o Tribunal não diga qual era.
- O Tribunal também não esclarece se apesar de não ter havido “traição” o arguido ficou convencido que houve e que a testemunha e a ofendida mantiveram relações sexuais ou contactos de cariz sexual.
- Na fundamentação do acórdão relativa ao depoimento da testemunha EE diz-se que este depois de uma troca de palavras com o arguido e com a ofendida saiu do local. Mas não se diz que “troca de palavras” foi essa, designadamente se, logo nesse momento, o arguido disse que estariam a ter relações sexuais ou a conversa foi de outro teor.
- Não era indiferente aquilatar da motivação do arguido, pois que ter existido ou o arguido ter suspeitado de que teria ocorrido uma infidelidade por parte da ofendida constitui a motivação, o móbil do crime, sendo que a darem-se como provados tais factos estes não se podem reconduzir apenas ao ciúme conclusivamente aposto no ponto 34 da matéria de facto.
- A resposta a todas estas questões era importante para a descoberta da verdade material, sendo que o Tribunal devia investigar tais factos, por forma a chegar à verdade material, mas não o fez.

Apreciando.
No que tange ao invocado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, comungando do douto e cristalino ensinamento de Sérgio Gonçalves Poças [in “Processo Penal quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto”, Revista Julgar, nº 10, 2010, p. 25/26], cumpre ter presente:
“Se o recorrente alega este vício – partindo necessariamente da análise do texto da decisão – deve especificar os factos que em seu entender era necessário – para a decisão que devia ser proferida – que o tribunal a quo tivesse indagado e conhecido e não indagou e consequentemente não conheceu, podendo e devendo fazê-lo.
Assim, num discurso argumentativo, encorpado e completo, mas ao mesmo tempo simples e claro, o recorrente deve procurar convencer o tribunal de recurso que faltam factos (identificando-os) necessários (fundamentando esta necessidade, nomeadamente invocando as normas jurídicas pertinentes) para a decisão e que não foi levada a cabo indagação a respeito deles quando (fundamentando) podia e devia ser feita.”       
O vício em apreço tem forçosamente de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou mediante concomitante recurso às regras de experiência comum, não cabendo na previsão do preceito legal «toda a tarefa de apreciação ou valoração da prova produzida, em audiência ou fora dela, nomeadamente a valoração de depoimentos, mesmo que objeto de gravação, documentos ou outro tipo de provas, tarefa reservada para o conhecimento do recurso em matéria de facto» [cf. Exmo. Conselheiro Pereira Madeira, in “Código de Processo Penal Comentado”, António Henriques Gaspar e outros, 3ª Edição Revista, 2021, Almedina, anot. 1 ao art. 410º, p. 1291]. 
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada implica que esta, na sua globalidade, se revela inidónea ou escassa para suportar a decisão tomada pelo Tribunal.
Por outro lado, como menciona o sobredito excelso magistrado [ob. cit., anot. 4 ao art. 410º, pp. 1292 e 1293], «A afirmação do vício ora em causa, importa, sim, sempre, uma adequada perspetiva do objeto do processo, cujos confins são fixados pela acusação e (ou) pronúncia quando exista, complementada pela pertinente defesa. A partir daí, impõe-se o confronto de tal objeto processual com o que o tribunal de julgamento em concreto indagou, independentemente de o resultado dessa indagação ter tido ou não êxito, isto é, independentemente de os factos indagados terem sido dados como provados ou não provados. Importa, sim, que esses factos pertinentes ao objeto do processo tenham sido averiguados em julgamento do facto e obtido a necessária resposta, seja positiva ou negativa. Se se constar que o tribunal averiguou toda a matéria postulada pela acusação/defesa pertinente – afinal o objeto do processo - ainda que toda ela tenha, porventura, obtido resposta de «não provado», então o vício de insuficiência está afastado. Os factos pertinentes obtiveram resposta do tribunal, a matéria de facto é bastante para a decisão. Já assim não será se o tribunal de julgamento deixou de dar resposta a um facto essencial postulado pelo referido objeto de processo, isto é, deixou por esgotar o thema probandum.»       
In casu, salvo o devido respeito, cremos que o arguido BB embarca numa nítida confusão entre a alegação deste vício e a discordância que manifesta face ao decidido de facto pelo Tribunal a quo no que tange às apontadas circunstâncias de saber se o arguido proveu pelo socorro à vítima, nomeadamente pelo acionamento do INEM, bem como se efetivamente, como ele alegava, surpreendeu a assistente e a testemunha EE a manterem relações sexuais, pois que, no fundo, o que ressuma das suas alegações de recurso é que entende que não foi produzida prova clara e inequívoca sobre tais factos, que apelida de relevantes para a boa decisão da causa.
Sucede que, os fundamentos do recurso ora em apreciação assentam em pressuposto assaz distinto, reportando-se ainda o vício em questão à impugnação restrita da matéria de facto (ou revista alargada), impondo-se que decorra óbvio do próprio texto da decisão recorrida, enquanto aqueloutro argumento se insere já no domínio do erro de julgamento (de facto), cabível na impugnação ampla da matéria de facto, a operar nos termos do art. 412º, nºs 3 e 4 do CPP, mas não realizada pelo recorrente no seu recurso – refere-se o recorrente a um eventual erro na apreciação da prova no que tange ao segundo aspeto fático abordado (motivação do crime), matéria que será abordada e apreciada infra.
No caso vertente, tomamos por certo que o Tribunal recorrido não deixou de se pronunciar sobre a atitude adotada pelo arguido após o cometimento dos ajuizados factos, e sobre a apreensão por ele tida de que a ofendida, nessa altura, já se encontrava morta, matéria que se encontra refletida nos pontos 27 a 30, donde decorre que não foi o arguido a acionar os meios de socorro à vítima ou a solicitar a outrem que procedesse a tal chamada de emergência, como consta da alínea v) dos factos não provados, o que, aliás, se afigura lógico na senda da aludida falsa imagem criada pelo arguido na sua mente de que tinha logrado matar a AA. Daí que, como igualmente provado (facto nº65), o arguido somente tenha diligenciado pela chamada ao local das autoridades policiais.   
Acresce que, distintamente do que pugna o recorrente, o Tribunal a quo averiguou e apurou a concreta motivação que levou o arguido a perpetrar os factos em discussão nos autos, vertendo a respetiva factualidade nos pontos 9 a 13, 27 e 34, in fine. Em conformidade, o Tribunal deu como provado que o arguido agiu motivado por ciúmes, em virtude de ter ficado desagradado com a circunstância de ter observado a sua namorada e conversar com um amigo (EE), nas traseiras do local onde se situam as casas de banho do recinto da Praia Fluvial de ..., tendo ficado desconfiado sobre se algo mais teria ocorrido entre ambos. Concomitantemente, o Tribunal recorrido não ficou convencido, face à prova produzida, de que a vítima e o EE estivessem a ter relações sexuais ou contactos de cariz sexual quando foram encontrados pelo arguido, juízo probatório/decisório que verteu na alínea cc) dos factos não provados.
Ademais, decorre percetível da matéria de facto constante dos pontos 9 a 13 da dos factos provados que o arguido não atuou no erróneo convencimento de que a ofendida, sua namorada, e o EE se encontravam a ter relações sexuais ou contactos de cariz sexual, pois que se assim fosse o arguido não sentiria a necessidade de, como fez, questionar a assistente sobre o que estava naquele local a fazer com o EE. 
Mostra-se, pois, irrelevante que o Tribunal recorrido não tivesse feito constar dos factos provados que o arguido ostentava uma T.A.S de 1,20 g/l – facto que só podia ser reportado à hora de realização do teste de alcoolémia, i.e., às e, bem assim, que tivesse “averiguado” se a vítima e o EE estiveram antes a beber (circunstância esta a que nos voltaremos a referir aquando da abordagem à questão sob o prisma do erro notório na apreciação da prova). 
Portanto, conclui-se que o Tribunal a quo, movendo-se no território delimitado pelo objeto do processo – configurado pelo teor da acusação pública e da contestação deduzida pela defesa (incluindo a versão oral decorrente das declarações prestadas pelo arguido em audiência de julgamento) –, aquilatou das questões relevantes para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa, nomeadamente das ora invocadas pelo recorrente.
Destarte, não se verifica a apontada insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
      
III.3.2 – Das alegadas contradições insanáveis da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão:

A contradição insanável a que alude o art. 410º, nº2, al. b), do CPP pode reportar-se à fundamentação e/ou ocorrer entre a fundamentação (abrangendo a fundamentação de facto e de direito) e a decisão.    
Como mencionado no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14/01/2015, processo nº 72/11.2GDSRT.C1, acessível em www.dgsi.pt, «A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.»
Segundo o aresto do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/05/2015, processo nº 3793/09.6TDLSB.L1-9, acessível em www.dgsi.pt, «O vício em apreço [contradição insanável de fundamentação], como resulta da letra do art. 410, n.º 2 al. b) do CPP, só se deve e pode ter por verificado quando ocorre uma contradição insanável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, isto é, um conflito inultrapassável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, o que significa que nem toda a contradição é susceptível de o integrar, mas apenas a que se mostre insanável, ou seja, aquela que não possa ser ultrapassada ou esclarecida de forma suficiente com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com o auxílio das regras da experiência.
Qualquer um dos vícios previstos nas alíneas a) a c) do nº 2 do art. 410 do CPP, como decorre da letra da lei, só se poderá ter por verificado se resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, isto é, com exclusão de exame e consulta de quaisquer outros elementos do processo (cf. entre outros os ac. do STJ de 90-01-10 e de 94-07-13, o primeiro publicado na AJ, 5, 3 e o segundo na CJ/STJ, ano II, tomo III, 197), pelo que a actividade de fiscalização e de controlo do tribunal superior neste particular, conquanto incida sobre toda a decisão, com destaque para a proferida sobre a matéria de facto, não constitui actividade de apreciação e julgamento da prova, sendo que ao exercê-la se limita a verificar se a mesma contém algum ou alguns dos mencionados vícios, sendo que no caso de aquela deles enfermar e, em face disso, se tornar impossível decidir a causa, deverá o processo ser reenviado para novo julgamento, tendo em vista a sua sanação (art. 426, n.º1 do CPP).
Este vício ocorre quando se afirma e nega ao mesmo tempo uma coisa ou uma emissão de duas proposições contraditórias que não podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas. A contradição pode suceder entre segmentos da própria fundamentação - dão-se como provados factos contraditórios, dá-se como provado e não provado o mesmo facto, afirma-se e nega-se a mesma coisa, enfim, as premissas contradizem-se -, como entre a fundamentação e a decisão - esta não se encontra em sintonia com os factos apurados (cf., neste sentido, Germano Marques da Silva, «Curso de Processo Penal», III, 2ª Ed., Editorial Verbo, págs. 340 e 341).
A contradição a que se reporta a alínea b) do art. 410 do CPP é só aquela que, como expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser ultrapassada com recurso à decisão recorrida no seu todo e com recurso às regras da experiência e que incida sobre elementos relevantes do caso submetido a julgamento.»

Ainda o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/01/2017, Processo nº 93/14.3JAGRD.C1.S1 – 3ª Secção, in www.dgsi.pt: «Ocorre contradição insanável entre a fundamentação e a decisão quando através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os meios de prova invocados na fundamentação como base dos factos provados ou entre a fundamentação e o dispositivo da decisão, ou seja, quando a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão.»   

a) Da contradição insanável entre os factos provados constantes dos pontos 20 e 33:

Neste conspecto - conexionado com o já apreciado no ponto III.2.2.4 deste aresto -, o arguido/recorrente alega, em súmula, que se se entender que com a alteração dos factos constantes do despacho e a alteração dos factos empreendida no acórdão no ponto 20 se mantém a interpretação de que o arguido colocou a terra e a erva seca para a ofendida não gritar e ao dar-se como provado no ponto 33 que o arguido colocou a terra e a erva seca na boca da ofendida para a sufocar, existe contradição insanável entre os factos prevista no artº 410º nº2 al. b) do Código de Processo Penal que deve ser decretada – conclusão 45ª.

Vejamos.

É o seguinte o teor da matéria de facto vertida nos pontos 20 e 33 dos factos provados:
«20. AA a certa altura começou a gritar, chamando por Deus, momento em que o arguido, obstando a que ela gritasse, pegou em terra e erva seca e encheu-lhe a boca com tais elementos e colocou uma mão em cima da boca e do nariz da ofendida/assistente, assim a impedindo de respirar normalmente, afirmando, repetidamente, “vou-te matar”.»
«33. O arguido agiu com o propósito de tirar a vida a AA, sua namorada, atingindo-a diversas vezes, predominantemente na zona da cabeça, cara, nariz e colocando-lhe terra e erva seca no interior da boca para a sufocar, prevendo que com tais condutas a poderia matar, resultado com o qual se conformou e quis, só o não logrando obter por a vítima ter fingido que estava morta e ter sido assistida atempadamente e, assim, consequentemente, por circunstâncias alheias à sua vontade.»
Por conseguinte, extrai-se do citado ponto 20 dos factos provados que, no respetivo circunstancialismo de tempo, modo e lugar, quando a AA começou a gritar (chamando por Deus), o arguido BB pegou em terra e erva seca e encheu-lhe a boca com tais elementos e colocou uma mão em cima da boca e do nariz da ofendida/assistente, condutas que o fizeram conseguir que a vítima deixasse de gritar, como pretendia, e, simultaneamente, a impediram de respirar normalmente (tudo isto enquanto o arguido afirmava, repetidamente, “vou-te matar”).
Ora, salvo melhor opinião, tal factualidade em nada contende com a matéria de facto contida no ponto 33 dos factos provados, designadamente no que concerne à intenção subjacente ao gesto do arguido de colocar terra e erva seca no interior da boca AA, aqui descrita como sendo a de sufocá-la, porquanto aqui apenas se concretiza, em conformidade com o que já vinha alegado na acusação pública, que o fito do arguido ao agir do modo descrito foi não só obstar a que a vítima continuasse a gritar – como já decorria do ponto 20 – como, concomitantemente, impedi-la de respirar, para que sufocasse, o que, aliás, se coaduna não só com a também demonstrada atitude do daquele de tapar com uma das mãos não só a boca desta mas também o seu nariz, sendo que esta última atitude seria despicienda, escusada, caso apenas pretendesse que ela não gritasse, sendo igualmente consonante com a circunstância de o arguido verbalizar, reiteradamente, a sua intenção de matá-la.
Logo, os factos em questão não se contradizem, muito menos de modo insanável.
Improcede, destarte, nesta parte, o douto recurso do arguido.
          
b) Da contradição insanável da fundamentação, designadamente entre os pontos 33 e 34 dos factos provados:

A tal propósito, alega o arguido/recorrente, sumariamente, que os factos constantes dos pontos 33 e 34 dos factos provados são inconciliáveis entre si, tendo em conta que encerram duas qualificações do dolo, dolo direto e dolo eventual, pelo que o acórdão recorrido incorreu, nessa parte, em contradição insanável entre os factos, prevista no art. 410º, nº2, al. b), do CPP [cf. conclusões 35ª a 39ª].
Analisando.

No ponto 33 dos factos provados, encontra-se consignada a seguinte matéria de facto:
«33. O arguido agiu com o propósito de tirar a vida a AA, sua namorada, atingindo-a diversas vezes, predominantemente na zona da cabeça, cara, nariz e colocando-lhe terra e erva seca no interior da boca para a sufocar, prevendo que com tais condutas a poderia matar, resultado com o qual se conformou e quis, só o não logrando obter por a vítima ter fingido que estava morta e ter sido assistida atempadamente e, assim, consequentemente, por circunstâncias alheias à sua vontade.»
Do ponto 34 dos factos provados consta o seguinte:
34. Actuou o arguido com calma e total indiferença e desprezo pelo estado em que deixava a ofendida, motivado por ciúmes.
Primeiramente, salvo má perceção nossa, dir-se-á que não vislumbramos qual o pretenso motivo para que a factualidade constante do ponto 34 pudesse ser contraditada pela que consta do ponto 33, pois que se reportam a realidade distintas, não respeitando aquela ao elemento subjetivo do tipo, o dolo.
Por outro lado, cingindo a nossa análise aos factos descritos no ponto 33, entendemos que inexiste a alegada contradição insanável, por concomitante e não compaginável afirmação de duas modalidades de dolo distintas, o direto e o eventual, conforme previstos nos nºs 1 e 3 do art. 14º do Código Penal.

Estatui o art. 14º do Código Penal:

“1 - Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar.
2 - Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta.
3 - Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização.”

A afirmação do dolo do tipo pressupõe sempre a presença do elemento cognitivo ou intelectual, isto é, a representação ou conhecimento pelo agente de todas as circunstâncias de facto, ou seja, dos elementos descritivos do tipo, e de direito, os denominados elementos normativos, do tipo de ilícito objetivo, porquanto tal perceção é imprescindível para que ele possa orientar-se e decidir-se, de acordo, com a sua consciência ética pela salvaguarda ou não do bem jurídico protegido pela norma. 
Nas várias modalidades de dolo previstas no sobredito normativo legal encontra-se ainda como denominador comum, agora no que tange ao denominado elemento volitivo, a vontade do agente de realização da ação típica, ou seja, do facto que preenche um tipo de crime.
Contudo, enquanto no dolo direto, previsto no nº1, o agente atua com uma vontade intencional dirigida à realização do facto, que representou, no dolo eventual, definido no nº3, o agente não molda primordialmente a sua atuação com vista à obtenção do resultado típico a que a norma legal pretende obstar com a incriminação, mas, mesmo prevendo que do facto que quer cometer (ou omitir) possa resultar aquele resultado danoso, conforma-se com a concretização dessa possibilidade, não se coibindo de atuar conforme o por si decidido.
No caso, extrai-se da factualidade provada que o Tribunal verteu no ponto 33 que o arguido previu que com as condutas por si voluntariamente assumidas e ali descritas podia advir a morte da ofendida, e que, não só se conformou com esse possível resultado como esse desfecho era precisamente o que ele pretendia que ocorresse. A intenção que presidiu ao comportamento do arguido era a causação da morte da vítima. Logo, tal factualidade preenche o elemento subjetivo do tipo legal de crime de homicídio – na forma tentada –, mediante dolo direto (excedendo a atuação a título de dolo “meramente” eventual).
Assim sendo, não padece a decisão da matéria de facto da alegada contradição insanável, pelo que igualmente não colhe esta reivindicação recursória.  
             
c) Da contradição insanável entre os factos provados – entre o descrito nos pontos 23 e 24 e o que consta do ponto 29 – e entre tal factualidade e a fundamentação da decisão de facto:
 
Neste segmento, invoca o arguido/recorrente [conclusões 46ª a 48ª]:
- Dos pontos 23 e 24 da matéria de facto extrai-se que o arguido, após a ofendida se fingir de morta, não se mexer e abrir os olhos, o arguido ainda a abanou e pisou-lhe a cara duas vezes, ou seja em momento posterior a esta não ter reacção, pelo que resulta inconciliável com tais pontos de facto dar-se como provado no ponto 29 que este só parou de agredir a vítima nos termos descritos quando a mesma deixou de ter qualquer reacção e por achar que já a mesma estava morta.
- Na fundamentação do acórdão recorrido dá-se como argumento para se concluir pela intenção de matar exactamente o facto de o arguido ter agredido a vítima depois de esta se ter fingido de morta – cfr. 9º parágrafo de fls. 1052 – e logo no parágrafo seguinte dá-se como argumento para se concluir pela intenção de matar a circunstância de o arguido só ter parado de agredir a vítima quando esta deixou de ter qualquer reacção e por achar que estava morta – parágrafo 10º de fls. 1052.
- Pelo exposto, o acórdão recorrido incorreu no vício de contradição insanável entre os factos provados, entre os factos provados e a fundamentação e na fundamentação, prevista no artº 410º nº2 do CPP que deve ser decretado.
É a seguinte a matéria de facto dada por provada nos pontos invocados pelo recorrente:
«23. Então AA optou por se fingir de morta, não se mexendo e permanecendo com os olhos abertos.
24. O arguido ainda abanou a ofendida/assistente, para ver se esta estava morta, levantou-se e pisou-lhe o rosto duas vezes, sem que aquela tivesse reagido.
[…]
29. O arguido só parou de agredir a vítima nos termos descritos quando a mesma deixou de ter qualquer reacção e por achar que já a mesma estava morta.»
Compulsada a predita matéria de facto dada por provada nos referidos pontos, julgamos que a mesma não encerra a indicada contradição insanável.
Com efeito, se é certo que ressuma da factualidade descrita no ponto 23 que, a dado momento, a ofendida resolveu fingir-se de morta – não se movendo e mantendo os olhos abertos –, por certo para que o arguido não persistisse nas agressões, não é legítimo concluir daí que a mesma não pudesse vir a reagir a novas investidas do arguido, e, muito menos, que este estivesse já convencido de que ela estava já morta. Por isso, o arguido quis-se assegurar, nos termos descritos no ponto 24, que a vítima efetivamente já não reagia, mesmo perante outras ofensas corporais relevantes (abanão do corpo e, mormente, dois pisões no rosto), só assim se capacitando de que ela tinha falecido (cfr. ponto 29).

Por conseguinte, de nenhuma incoerência padece a fundamentação aduzida pelo Tribunal recorrido na parte em que menciona as declarações da assistente e das testemunhas EE e ... (na parte em que infirmaram o declarado pelo arguido), consistentes com as regras da experiência comum, para fundar a prova daqueles factos, e, bem assim, como erigiu a conduta adotada pelo arguido após a ofendida já se encontrar imóvel, aparentando estar desprovida de vida, abanando-a e desferindo com o pé dois pisões no rosto da mesma, para confirmar se ela efetivamente morta, como um dos fatores indiciadores da intenção do arguido de tirar a vida à sua namorada, o que, uma vez mais, e apelando ainda aos outros factos indiciários invocados pelo Tribunal coletivo, não surge contrariado pelas regras de experiência e da lógica.
        
Deste modo, inexiste o alegado vício de contradição insanável entre factos provados e entre estes e a fundamentação da decisão.

III.3.3 – Dos invocados erros notórios na apreciação da prova:
 
O erro notório na apreciação da prova “é o erro que se vê logo, que ressalta evidente da análise do texto da decisão por si só ou conjugada com as regras da experiência”[15].
Como é jurisprudência pacífica[16], só há erro notório na apreciação da prova quando for de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores e resulta do próprio texto da decisão (não sendo admissível a sua demonstração através de elementos alheios à decisão, ainda que constem do processo).

O vício da decisão previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Perante a simples leitura do texto da decisão, o “homem médio” conclui, legitimamente, que o tribunal violou as regras da experiência ou que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.

Como referido no acima citado Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14/01/2015, “Trata-se de um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão; erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental; as provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial.”

a) No que tange ao julgamento dos pontos 21, 23 e 24 dos factos provados, por violação das regras de experiência comum:

É a seguinte a factualidade que o Tribunal a quo considerou provada nos pontos 21, 23 e 24:
«21. Após, o arguido voltou a desferir socos à ofendida/assistente, sendo que esta começou a sufocar.
[…]
23. Então AA optou por se fingir de morta, não se mexendo e permanecendo com os olhos abertos.
24. O arguido ainda abanou a ofendida/assistente, para ver se esta estava morta, levantou-se e pisou-lhe o rosto duas vezes, sem que aquela tivesse reagido.»

Quanto ao julgamento destes pontos fácticos, o arguido/recorrente defende [cf. conclusões 49ª a 52ª] ter ocorrido erro notório na apreciação da prova, por violação das regras da experiência comum, pois não concebe que uma pessoa que está a começar a sufocar consiga ao mesmo tempo “fazer-se de morta”, não se mexer e deixar os olhos abertos, uma vez que, segundo o seu entendimento, que adianta ser o do comum cidadão, as dificuldades que tem em respirar impelem-na a tossir, ter espasmos, fechar os olhos enquanto o faz e, se estiver deitada, a pôr a cabeça de lado para expelir o que a impede de respirar.
Acrescenta que atenta igualmente contra as regras da experiência comum que uma pessoa – ainda para mais depois de ter sido agredida da forma como descreve o acórdão nos pontos antecedentes – já marcada na face pelas agressões de que foi vítima consiga não reagir ao ser abanada e pisada por duas vezes na cara – local onde foi agredida –, pois que nesse circunstancialismo as dores impeliriam a ofendida a reagir fugindo com a cara, sendo certo que esta estava desperta e consciente, tendo em conta que, como forma a furtar-se a continuar a ser agredida, de forma consciente e lúcida, teve a ideia de se fazer de morta, não se mexer e abrir os olhos.
Vejamos.
Conforme menciona Paulo Tonini, in “La prova penale”, 1999, Milão, CEDAM, p. 16, as máximas de experiência «são regras de comportamento que exprimem aquilo que sucede na maior parte das vezes (id quod plerumque accidit); mais precisamente é uma regra que se extrai dos casos semelhantes (…)».   
As máximas da experiência, consubstanciando generalizações empíricas, potenciam a formulação de um juízo de probabilidade e não de certeza. Podem, no entanto, consistir igualmente no conhecimento técnico que fazem parte da cultura do homem médio, sendo que, neste caso, o juiz pode aplicar diretamente a um facto demonstrado uma lei científica comummente conhecida.
Contudo, urge notar, como faz José Mouraz Lopes [ibidem, comentário IV §9 ao art. 127, p. 80], que «As máximas de experiência introduzem assim o uso de generalizações muitas vezes de sentido comum a que se deve resistir ou, pelo menos, que devem ser apreciadas com algum grau de criticismo. Nesse sentido, para além de não deverem ser utilizadas quando contrariadas pela ciência, também não devem ser invocadas quando são contraditadas “por evidências empíricas específicas ou por provas disponíveis no caso concreto”, conforme refere Taruffo (2007, p. 259), ou mesmo, quando são contrariadas por outras máximas de experiência.»     
In casu, importa conceder que o arrazoado pelo arguido/recorrente não se mostra absolutamente desfasado do normal suceder, ou seja, os comportamentos que refere deviam ter sido manifestados pela ofendida, por se encontrar a sufocar e ter sido ainda vítima de novas agressões, seriam, quanto a algumas dessas reações, perfeitamente aceitáveis, compreensíveis face às regras de experiência comum.
Todavia, salvo melhor opinião, entre o mais, aquelas asserções olvidam o específico contexto global em que sucederam os factos, demonstrado nos autos.
Desde logo, apesar de a ofendida se encontrar com dificuldades respiratórias, estas não a impediam ainda assim de respirar, como objetivamente comprova o facto de passado um relevante lapso temporal, que mediou entre a chegada de outras pessoas ao local onde se encontrava prostrada, inconsciente, subsequentemente acionamento dos meios de socorro, chegada destes ao local e momento em que ocorre a intervenção médica, se ter revelado viável a sua reanimação e manutenção da função respiratória; bem assim, a predita complicação respiratória não foi ao ponto de impedir a vítima de raciocinar, capacidade humana que, é comummente sabido, parece recrudescer quando alguém luta pela própria vida, e que, no caso, a fez adotar a postura que se lhe afigurou a mais idónea a fazer cessar as agressões.
Por outro lado, não resulta de nenhuma regra científica nem das máximas da experiência que alguém que esteja a sufocar, as dificuldades que tem em respirar impelem-na a ter espasmos, fechar os olhos enquanto o faz e, se estiver deitada, a pôr a cabeça de lado para expelir o que a impede de respirar. Pelo contrário, normal será que a pessoa em causa, falta ou insuficiência de oxigénio sentida, comece a “esbugalhar” os olhos (dilatação das pupilas) e, se a asfixia se mantiver por tempo relevante, com a persistente constrição das vias respiratórias, como sucedeu, a vítima entre em processo de desfalecimento, tornando-se progressivamente mais apática e não reativa, até ao desmaio, com eventual paragem cardíaca e respiratória e, finalmente, morte.[17]
Acresce que também ficou demonstrado nos autos que, pela sequência de agressões de que a ofendida foi alvo, que culminaram num estado de inconsciência da mesma, único momento em que o arguido abandonou o local, a ofendida nunca teve tempo nem meios para, sem auxílio de terceiros, retirar da boca a terra e erva seca ali introduzida pelo arguido e que a impedia de respirar normalmente.
Tudo isto demonstra que as atitudes que o recorrente acha que seriam as normais, ou não correspondem aos expetáveis acontecimentos, ou no caso não eram as prioritárias para a vítima ou, quanto a outras, mostraram-se inviáveis.
Donde, não se verifica o invocado vício, pois não se deteta no acórdão recorrido, ao nível da apreciação da prova relativa aos pontos fácticos em apreço, erro manifesto, não se revelando a fundamentação a esse propósito aduzida e respetiva decisão de facto impreterivelmente contrariada pelas regras de experiência, pelos conhecimentos técnicos ou científicos.
Improcede, nesta parte, o douto recurso.

b) No que tange ao julgamento do ponto 34 dos factos provados, por violação das regras de experiência comum:

Neste conspecto, invoca o arguido/recorrente, em síntese [conclusões 53ª a 57ª e 66ª a 87ª]:
- No ponto 34 da matéria assente diz-se que o arguido actuou com calma, quando da restante matéria de facto assente, designadamente dos pontos 12 a 24 conclui-se exactamente no sentido inverso.
- Tal conclusão derivaria, desde logo do facto de este ter tido uma discussão com a vítima – ponto 12 da matéria de facto – e quando se tem uma discussão com razão ou sem ela, não se está, naturalmente, calmo.
- Da leitura deste trecho da factualidade dada como provada extrai-se que o Tribunal concluiu que o arguido agiu por ciúmes através do depoimento do arguido e da ofendida e que o arguido actuou calmo, tendo em conta o depoimento da testemunha DD – cabo da GNR.
- Mesmo que se considere credível o depoimento do referido agente da GNR, a testemunha em causa chegou ao local cerca de meia hora após os factos, pelo que da eventual postura do arguido após as agressões, não se pode concluir que este agiu com calma.
- Dar-se como provada uma discussão entre duas pessoas, seguida de uma agressão e ao mesmo tempo dar-se como provado que o agiu durante essas agressões calmo, com base no depoimento de uma testemunha que compareceu no local após a discussão e as agressões, revela a ocorrência do vício de erro notório na apreciação da prova (artº 410º nº2 al. c) do CPP) que deve ser decretado.

Por outro lado,
- O Tribunal baseia-se nas regras da experiência comum para afirmar que não ocorreram relações sexuais entre a ofendida e EE porque os intervenientes tinham mais de 40 anos, estava próximo um local onde podiam fazer as coisas às escondidas.
- Essas não são regras da experiência comum, mas antes o que o Tribunal hipoteticamente faria na mesma situação, o que não se coaduna com o circunstancialismo apurado, porquanto, por se tratar de uma festa de aniversário, atenta a sua duração e a nacionalidade (...) da vítima e do EE e hábitos de consumo dos brasileiros, o que se retira das regras de experiência comum é que o arguido, a ofendida e o EE ingeriram bebidas alcoólicas.
- O Tribunal não pode julgar os outros como se fosse o próprio, tem, naturalmente, que ter em conta o concreto circunstancialismo em que decorreram os factos, a mentalidade e forma de agir dos intervenientes e os seus hábitos, o que não aconteceu.
- A reação que cada pessoa tem ao álcool é muito diversa, podendo-a levar a empreender condutas totalmente inusitadas e inesperadas.
- Lido o acórdão não fica esclarecido porque é que a ofendida e a testemunha se encontraram imprevistamente nas traseiras da casa de banho, uma vez que é um local no mínimo inusitado para alguém se encontra de forma imprevista e para ter uma conversa.
- Não fica esclarecido do acórdão, por que razão se deu como provado que a testemunha e a ofendida foram surpreendidos pelo arguido e por que razão este ficou desagradado com a situação.
- Se apenas estavam a conversar e sabiam que o arguido estava no local, nenhuma surpresa poderia haver pela presença do arguido, antes devendo ser encarada como uma circunstância normal.
- Não se compreende porque é que a ofendida teve a necessidade de dizer que a testemunha apenas estava a conversar com ela, quando o arguido viu que era só uma conversa, embora o Tribunal não diga qual era.
- Também não se compreende da leitura do acórdão por que razão o arguido ripostou dizendo que era uma “traição” se era o que fazia sempre que via a ofendida a falar com pessoas do sexo masculino ou se foi só dessa vez.
- O acórdão recorrido, ao ponderar uma regra da experiência comum que não se coaduna com o circunstancialismo apurado e que não passa de uma regra da experiência do próprio tribunal, incorreu em erro notório na apreciação da prova, vício que deve ser decretado com as consequências legais.

Decidindo.
O Tribunal recorrido deu como provado no ponto 34 que “Actuou o arguido com calma e total indiferença e desprezo pelo estado em que deixava a ofendida, motivado por ciúmes.”

E fundamentou tal juízo probatório nos seguintes termos:
“A factualidade vertida em 34. resultou da globalidade da prova produzida, perspectivada sob as regras da experiência comum (salientando-se que das declarações do arguido emerge que ele actuou por ciúmes, o mesmo derivando das declarações para memória futura prestadas pela ofendida/assistente; o testemunho, aqui isento e nesta parte credível, de DD, Cabo da G.N.R. que se deslocou ao local no após a ocorrência, foi no sentido de que o arguido se mostrou sempre calmo, nada perturbado, parecendo não ser nada com ele).”
O recorrente questiona primeiramente a circunstância de o Tribunal ter dado como provado que o arguido agiu com calma, quando é certo que igualmente foi dado como provado que as agressões decorreram após uma discussão por ele encetada com a ofendida/assistente, nos termos descritos nos pontos 12 a 14.
Apelando às regras de experiência comum, sustenta o recorrente que, naquele contexto, é óbvio que não se encontrava calmo, nem pode resultar provado do depoimento da testemunha DD, cabo da GNR, pois que este chegou ao local cerca de meia hora após os factos, pelo que da eventual postura do arguido após as agressões, não se pode concluir que ele agiu com calma.
Compulsado o texto da decisão impugnada, cremos que assiste razão ao arguido/recorrente no que concerne à sobredita crítica dirigida ao acórdão recorrido.
Com efeito, ressuma da matéria de facto provada contida nos pontos 9 a 14, que as agressões perpetradas pelo arguido sobre a ofendida AA decorreram após aquele ter visualizado esta a conversar com um amigo, junto às casas banho existentes no local, facto que desagradou ao arguido, que encetou, por ciúmes, uma discussão em tom vigoroso com a sua namorada, não aceitando a explicação por ela adiantada de que aquele encontro se tinha tratado de uma mera e ocasional conversação entre amigos.
Ora, tal circunstancialismo conjugado com o facto de as agressões terem ocorrido quase logo de imediato, ainda naquele local e contornos de acentuada violência, inculcam a ideia, consentânea com as regras da experiência e da lógica, de que o arguido atuou em estado de exaltação e não com calma, como se deu como provado.
E, como bem observa o recorrente, não é idóneo a contrariar tal conclusão o facto adiantado pela testemunha DD de, após os factos, o arguido se apresentar calmo, nada perturbado (parecendo não ser nada com ele), porquanto aquele depoente não assistiu aos factos e só esteve com o arguido cerca de 30 minutos após a sua ocorrência, não podendo assim asseverar minimamente o estado anímico em que aquele se encontrava quando os perpetrou.
Por conseguinte, todo o predito ponderado, julgamos que a prova produzida e a restante factualidade apurada, tal como retratadas e ponderadas no próprio texto da douta decisão recorrida, não se revelam idóneas e suficientes para dar como provado que o arguido agiu com calma no cometimento dos factos em discussão nos autos, até porque tal juízo não se mostra conforme às regras de experiência comum.
Destarte, o douto acórdão recorrido padece do vício de erro notório na apreciação da prova, no que tange ao ponto 34 dos factos provados, no segmento em que se dá por provado o facto de o arguido ter atuado com calma, o qual deve passar a integrar a factualidade não provada, sem necessidade, pois, de determinar o reenvio do processo, conforme preceituado no art. 426º, nº1, do CPP (cfr., ainda, art. 431º, al. a), do mesmo diploma legal).
Distintamente, no que concerne à segunda questão suscitada pelo recorrente, atinente ao motivo da sua atuação, designadamente se esta foi motivada ou não pela circunstância de aquele ter visto a ofendida, sua namorada, e a testemunha EE a manterem relações sexuais ou contactos de cariz sexual, entendemos inexistir o clamado vício de erro notório na apreciação da prova.
A tal propósito, o Tribunal a quo verteu na motivação da decisão sobre a matéria de facto:
«Relativamente aos pontos 9. a 11 e 12. (na parte inicial, isto é, na parte em que se refere que existiu uma discussão entre arguido e ofendida) dos factos provados impõe-se afirmar, desde logo, que as versões apresentadas pelo arguido e pela assistente não foram uniformes e compatíveis quanto ao que estavam EE e a assistente a fazer, na parte traseira do local onde se situam as casas de banho, quando o arguido os encontrou.
Nas declarações prestadas pelo arguido em audiência este afirmou que a ofendida e a testemunha EE se encontravam a ter relações sexuais quando ali foram encontrados pelo arguido. Já as declarações da ofendida e o testemunho de EE foram no sentido de que ali se encontraram, de forma fortuita, e que estavam ali a conversar há poucos minutos quando surgiu o arguido.
Dentre as versões apresentadas pelo arguido, por um lado, e pela assistente, pelo outro, o Tribunal deu preferência à versão apresentada por esta, uma vez que as suas declarações se mostram mais completas, desinteressadas e coerentes (quando analisadas de per si e quando conjugadas com as regras da experiência comum) quando confrontadas com as declarações incompletas e interessadas do arguido.
Por outro lado, o Tribunal notou que as declarações da assistente, nesta sede, foram consonantes, no essencial, com o depoimento, nesta parte calmo, sereno e seguro, de EE.
Ademais, a versão apresentada pela assistente é a que melhor se coaduna com as regras da experiência comum.
Sabe-se, desde logo, que a assistente se queixava que arguido era ciumento. Ora, atendendo a essa característica pessoal do arguido e dada a relativa proximidade do local onde decorria a festividade e (mais ainda) do local onde se situam as instalações da casa de banho e de um café/bar ali também existente (como emerge, designadamente, do depoimento da testemunha ...), certamente a assistente e a testemunha EE (pessoas já experimentadas na vida, o que se deduz das suas idades – ambos com mais de 40 anos da idade -), caso efectivamente quisessem ter tido relações sexuais, não deixariam de melhor esconder tais relações do arguido e dos demais conhecidos que porventura ali os pudessem encontrar, escolhendo melhor sítio para o efeito, o que até era relativamente simples na data e local dos autos (como decorre, especialmente, das fotografias de fls. 62 – fotografia n.º 6 - e 66, a planta do milho, naquela altura do ano e nos campos que estão para lá da cerca que, a sul, veda a Praia Fluvial de ..., estava alta, verde e com folha, pelo que bastaria à assistente e a EE, em sentido físico, pular a cerca e ter as relações sexuais com toda a privacidade, caso esse efectivamente fosse a sua vontade, o que manifestamente não fizeram).
A isto acresce que o próprio arguido admitiu que, mesmo depois de o EE ter saído do local onde se encontravam os três (EE, assistente e o entretanto chegado arguido), esteve algum tempo a conversar com a ofendida/assistente, antes de começar a agredi-la, o que que constitui um indício de que ele não os encontrou a ter relações sexuais, nem foi esse (indemonstrado) facto – que o arguido encontrou a assistente e a testemunha EE a terem relações sexuais - que motivou as agressões.
No sentido da prevalência da versão da assistente sobre a versão do arguido quanto à realidade por este percepcionada quando encontrou a ofendida e EE nas traseiras da casa de banho milita ainda a conduta posterior deste. Efectivamente, EE ausentou-se daquele local e, em vez de, por exemplo, ir embora e/ou dizer aos outros elementos do grupo o que tinha sucedido (caso efectivamente tivesse tido relações sexuais com a ofendida/assistente e tivessem sido descobertos no acto pelo arguido), dirigiu-se ao local onde estavam a decorrer as festividades e continuou a desfrutar da companhia dos outros membros do grupo (a testemunha ..., de modo, nesta parte isento e credível, afirmou que EE, depois de se ter ausentado, chegou ao local onde estava grupo e interagiu normalmente; A testemunha HH relatou, de forma que neste âmbito se considerou firme e desinteressado, que quando EE voltou ao grupo vinha “normal”). Ainda nesta sede, refira-se que EE, logo no local onde se encontrava o grupo e decorriam as festividades, quando confrontado pelo arguido com o facto de ter tido relações sexuais com a ofendida, mostrou-se surpreendido e prontamente negou essa factualidade (o que decorre do testemunho de HH; o depoimento de ... foi no sentido de que EE, logo no momento, negou a imputação que lhe foi ali efectuada pelo arguido).
Estes elementos, devidamente conjugados, permitiram ao Tribunal concluir, com a necessária segurança no sentido da verificação da matéria factual dada como provada sob os n.ºs 9. a 11 e 12 (na parte inicial, isto é, quanto á existência da falada discussão).»
Assim, temos que o resultado probatório retirado pelo Tribunal recorrido dos meios de prova por si invocados, em concatenação, apreciado à luz das regras da experiência e da lógica, se apresenta como perfeitamente defensável e justificado, não se tratando de um juízo arbitrário, discricionário, insustentável.
Contrariamente ao pugnado pelo recorrente, as regras de experiência evocadas pelo Tribunal a quo são isso mesmo, isto é, comportamentos que seriam os habitualmente expectáveis do cidadão comum, medianamente formado, colocado perante aquele concreto circunstancialismo.
Salvo o devido respeito, mostram-se desprovidas de fundamento ao nível da mundividência e do conhecimento científico as normas de comportamento que o arguido/recorrente pretende ver antes associadas ao caso, ou seja, que a ofendida e a testemunha EE por terem (alegadamente) ingerido bebidas alcoólicas e, como tal, também por terem nacionalidade brasileira, o natural, o mais comum é que tivessem mantido relações sexuais (ou contactos de cariz sexual) no local onde foram surpreendidas pelo arguido, apesar de, como assertivamente nota o Tribunal a quo, disporem nas imediações de locais resguardados dos olhares de terceiros para o fazerem, se assim quisessem.
Por outro lado, nenhuma estupefação deve causar o facto de, no decurso de uma festa de aniversário, a decorrer num espaço amplo, com casas de banho isoladas nas imediações, a assistente ter encontrado, acidentalmente, o EE – pessoa que já conhecia e tratava como amigo, não sendo assim um estranho – nas traseiras dos respetivos sanitários e ali terem ficado a conversar.          
Também a expressão “surpreendidos” utilizada no ponto 10 dos factos provados quando se refere a chegada do arguido ao local onde a ofendida e a testemunha se encontravam a conversar, deve ser interpretada, face ao contexto global da factualidade apurada e a motivação aduzida no acórdão, no sentido de que aqueles não esperavam, naquele momento, que o arguido surgisse naquele local, sem qualquer outra carga valorativa, nomeadamente a que lhe quer ver associada o recorrente de que foram surpreendidos quando estavam a manter relações sexuais.
A razão de o arguido ter ficado desagradado com a situação de ter encontrado a sua namorada e o amigo a conversarem naquele local só ele podia elucidar, por se tratar de emoção do foro interno, sendo certo que o facto também dado como provado de se tratar de uma pessoa com comportamento possessivo e ciumento (ponto 2) ajuda a explicar tal reação.
Também não causa estranheza a necessidade sentida pela ofendida de dizer ao arguido que só estava a conversar com o amigo, porquanto, apesar de aquele nada ter visto em contrário, continuava a demonstrar desconfiança sobre se ainda assim teria acontecido algo mais antes dele aparecer.
Ademais, quanto a essa objeção aduzida pelo recorrente, por entendê-la pouco consentânea com a lógica, é possível invertê-la de modo a afastar a credibilidade das suas declarações, uma vez que se ele estava ciente de que a AA e o EE estavam a ter relações sexuais, como por si alegadamente visualizado, qual a razão para ter questionado a sua namorada sobre o que estavam os dois ali a fazer.

Por conseguinte, conclui-se pela improcedência do recurso nesta última vertente.    
     
c) Por violação do disposto no art. 163º do CPP no que tange à fundamentação do ponto 42 da matéria de facto provada (com inerente violação do princípio da livre apreciação da prova):  
 
Neste segmento do recurso, alega o arguido/recorrente [conclusões 88ª a 91ª]:

- O acórdão funda o ponto 42 da matéria de facto de forma confusa, contraditória e violadora do artº 163º do Código de Processo Penal, uma vez que num local diz que se fundou em testemunhas noutro no conteúdo dos certificados de incapacidade temporária acima mencionados sob a al. h) do acervo da prova documental).
- O julgador não fundamentou a divergência para com o relatório pericial, apenas invocando os certificados de incapacidade para o trabalho como meio de prova que infirma o relatório pericial que dá 45 dias de incapacidade para o trabalho à ofendida.
- Por outro lado, independentemente da importância da fixação de tal matéria de facto, esta não vem alegada na acusação ou no pedido de indemnização civil (o artº 30º do pedido cível remete apenas para os documentos).
- Ao não fundamentar ou ao fundamentar deficientemente a divergência com o relatório pericial o tribunal olvida o valor da prova vinculada, submetendo-a ao princípio da livre apreciação da prova, o que determina a ocorrência de erro notório na apreciação da prova.
Reiteramos neste item o já supra expendido no ponto III.2.2.5, d), parte final.
Assim, verifica-se no único ponto em que o Tribunal a quo foi para além do juízo pericial lavrado nos autos, relativo à matéria apurada vertida no ponto 42, os Meritíssimos Julgadores fundamentaram tal divergência com o teor dos certificados de incapacidade temporária para o trabalho da assistente, no período que mediou entre 17.01.2022 e 27.02.2022 (cf. fls. 539 e seguintes), corroborados pelo depoimento prestado em audiência de julgamento pelo médico subscritor dos mesmos, Dr. II.
Ou seja, o Tribunal não se refugiou em meras convicções ou juízos pessoais para não acolher a conclusão do relatório pericial relativamente ao período de afetação da capacidade para o trabalho, caso em que estaríamos perante flagrante violação do princípio da livre apreciação da prova, por injustificado desrespeito do valor especialmente reforçado da prova pericial (cf. arts. 127º, primeira parte, e 163º, nº1, ambos do CPP), antes considerou prova veiculada por pessoa que igualmente possui especiais conhecimentos técnicos, no caso de medicina, com competência legalmente atribuída pelo Estado para certificar situações de incapacidade temporária para o trabalho, tanto mais que avaliou a ofendida em momento mais atual, posterior ao da última observação realizada pelos Srs. Peritos e recolha de dados clínicos, que remontou a 24.01.2022 (cf. relatório pericial de fls. 1027 e ss.), isto é, perante uma base de facto distinta da que motivou aquele juízo pericial.
Assim sendo, entendemos que se mostra suficientemente fundamentada a apontada divergência, a qual, frisa-se, não coloca em causa a validade/qualidade do juízo técnico-científico emitido no relatório pericial, antes considera outro pressuposto, diferente base factual.
Por outro lado, a matéria em causa, reportada à incapacidade para o trabalho resultante para a ofendida da ajuizada conduta do arguido é relevante para efeitos de apreciação da pretensão compensatória deduzida nos autos pela lesada, tendo sido alegada nos arts. 30º e 53º do pedido de indemnização civil (cfr. fls. 656 e ss.).
Aliás, tal incapacidade somente não foi desde logo concretizada no libelo acusatório em virtude de à data da sua apresentação ainda não ser possível mencionar o momento da consolidação médico-legal das lesões, atendendo ao elevado número das mesmas (cfr. ponto 27, in fine, da douta acusação, a fls. 554).  
Pelo exposto, improcede o douto recurso, neste conspecto.

III.4 – Da alegada indefinição temporal e circunstancial contida no ponto 2 dos factos provados, no que concerne à caracterização do arguido como pessoa possessiva: 

Em súmula, argumenta o arguido/recorrente neste ponto [conclusões 92ª a 96ª]:

- No ponto 2 dos factos provados o Tribunal deu como assente que o arguido passou a ter um comportamento possessivo e ciumento com AA, exigindo que fosse submissa e que lhe obedecesse, principalmente à frente dos seus amigos, mas não diz quando, em que circunstâncias de tempo e lugar ou o porquê quais os factos que subjazem à consideração do arguido como pessoa possessiva.
- A indefinição temporal e circunstancial, impede o efectivo e eficaz contraditório de tal matéria, colidindo com o direito à contra-argumentação, enquanto parte integrante do direito de defesa constitucionalmente tutelado pelo arº 32º nº1 da CRP.
- As imputações genéricas não são factos, violam os direitos de defesa do arguido, violam igualmente, por isso, o princípio do processo equitativo, resultando daqui que não podem sustentar uma acusação e, muito menos, uma condenação penal.
- O ponto 2 da matéria de facto não é ou não foi irrelevante para o Colectivo, pois que se assim acontecesse certamente que o Colectivo não o levaria ao rol de factos provados e, por outro, tal facto serve para “encorpar” e adensar a conclusão de que a motivação do crime foi o ciúme.
- Não deixa de ser demonstrativo da credibilidade do depoimento da ofendida que o seu discurso quanto a esta matéria – tal como relativamente ao alegado abuso sexual - se tenha alterado totalmente ao longo do processo, revelando-se as suas declarações contraditórias e não credíveis.

Vejamos.

Consta do ponto 2 dos factos provados a seguinte matéria:

“2. Na decorrência da relação de namoro, o arguido passou a ter um comportamento possessivo e ciumento com AA, exigindo que fosse submissa e que lhe obedecesse, principalmente à frente dos seus amigos.”
Concatenando a factualidade vazada no ponto 2 com o que foi dado como provado no ponto 1, extrai-se a conclusão de que o “comportamento possessivo” que o arguido passou a assumir surgiu em momento não concretamente determinado, mas no decurso da relação de namoro mantida com a AA, iniciada em maio de 2021, e sempre antes da ocorrência dos ajuizados factos.   
Para além de não ser exigível a indicação do concreto dia ou mês em que o arguido começou a revelar o dito comportamento possessivo, cumpre notar que para efeitos de se conceder, em concreto, relevância àquela caraterística de personalidade do arguido é despiciendo saber se a mesma se demonstrou muito ou pouco tempo antes da data dos factos (04.09.2021), pois que o que importa e o que foi considerado pelo Tribunal recorrido a propósito da determinação do móbil do crime é que nesse momento o arguido já se havia manifestado como pessoa possessiva.   
Ademais, a apreensão do que é uma pessoa com comportamento possessivo está ao alcance do senso comum, sendo linguagem quotidiana vulgarmente utilizada relativamente a membros de relações afetivas, seja de que natureza for (conjugal, união de facto ou namoro) e compreendida facilmente pelo cidadão comum medianamente formado.  

Assim, no seu significado corrente, “possessivo” é o «que exerce poder ou influência; que domina ou subjuga», «que exprime sentimentos exacerbados de posse, de domínio em relação a outrem» - cf. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa, II Volume, 2001, Verbo, p. 2920.   
Daí que tal afirmação se encontre concretizada naquele ponto 2 mediante a referência ao facto de o arguido exigir à sua namorada que fosse submissa e que lhe obedecesse, principalmente à frente dos seus amigos.
Por conseguinte, aquele ponto da matéria de facto não enferma de qualquer indefinição ou falta de concretização temporal e circunstancial – muito menos relevante –, que impedisse o arguido de se defender daquela alegação acusatória, exercendo o respetivo contraditório.
Não foram violados o princípio do contraditório (consagrado no art. 32º, nº1, da CRP), os direitos de defesa do arguido e o princípio do processo equitativo. 
Acresce que a referência feita pelo recorrente à falta de credibilidade das declarações realizadas pela ofendida/assistente, em cotejo com os depoimentos prestados pelas testemunhas HH e EE mostra-se juridicamente inócua e ineficaz, porquanto aquele não procedeu à impugnação da decisão sobre a matéria de facto nos termos consagrados no art. 412º, nºs 2 e 3, do CPP, nem vislumbramos, oficiosamente, que resulte da fundamentação, nesta parte, vício de erro notório na apreciação da prova.            
Assim sendo, soçobra o recurso quanto ao supra apreciado fundamento.

III.5 – Da alegada falta de concretização factual da «relação de namoro» contante dos pontos 1, 2, 33 e 81 dos factos provados e na alínea a) dos factos não provados:
     
Neste segmento do douto recurso, alega o arguido/recorrente [conclusões 97ª a 102ª]:

- Nos pontos 1, 2, 33 e 81 dos factos provados e na al. a) dos factos não provados fala-se numa relação de namoro, sendo que as alterações levadas a cabo pela Lei nº 16/2018 de 27/3 no artº 132º nº2 al. b) do CP – e antes dela pela Lei 19/13 que introduziu “a relação de namoro” no tipo da violência doméstica – tornaram o “namoro” num conceito de direito que tem que ser densificado ou pela lei ou pela jurisprudência e pela doutrina, mas seguramente através de factos que constem na acusação.
- Para se concluir pela existência de uma relação de namoro têm que ser dados como provados factos nesse sentido.
- O Coletivo não deu como provados ou não provados quaisquer factos de onde derive a conclusão de que o recorrente e a ofendida mantivessem uma relação de namoro, designadamente não há qualquer facto de onde derive, como se diz no acórdão recorrido, que a relação do recorrente e da arguida desfrutava de uma intimidade estável e continuidade, distinta de relações fortuitas, aludindo a um conjunto de deveres e proximidade entre os sujeitos envolvidos, confiança e dever de respeito que também não concretiza factualmente. Daí que, não tendo a decisão recorrida concretizado os factos em que se consubstancia o conceito de namoro fez uso de factos conclusivos.
- Os factos constantes do ponto 2 e a “relação de namoro”, sendo um “não facto”, ou seja, sendo um conceito de direito e conclusivo deve ser tido por não escrito.
- Pelo exposto, devem tais “factos” ser dados como não escritos, pelo que o arguido deve ser absolvido do crime de homicídio qualificado na forma tentada pelo qual foi condenado.
Apreciando.
Através da redação conferida à alínea b) do nº2 do art. 132º do Código Penal pela Lei nº 16/2018, de 27.03, passou a integrar o elenco de circunstâncias potencialmente qualificativas do crime de homicídio a de o agente praticar o facto contra pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem aquele mantenha ou tenha mantido uma «relação de namoro».

Conforme expendido no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23.02.2022, proferido no Processo nº 666/20.5PIPRT.P1, relatado pelo Exmo. Desembargador Horácio Correia Pinto, acessível em www.dgsi.pt, que embora reportado a uma imputação de crime de violência doméstica, tem pertinência para o caso que nos ocupa, «Certamente que a definição de namoro não se encontra em qualquer diploma legal mas também não há dúvida que o legislador no artº 152 nº 1 alª b) do CPP fala de uma relação de namoro para também tipificar o crime de violência doméstica. Refere-se ao namoro sem definir o conceito. O conceito de namoro alterou-se através dos tempos, todavia, esta relação não pode ser posta em causa desde que obedeça a traços comuns: duração, afectividade e projecto (expectativa). Namoro é muito mais que um encontro fortuito (one night stand). A relação amorosa não é um fim em si, nem perspectiva necessariamente uma comunhão de cama, mesa e habitação, como acontece, em regra, no casamento – salientar que o conceito de casamento tem sofrido mutações. Aceitamos que é um compromisso entre duas pessoas que se relacionam durante um lapso de tempo indeterminado, com partilha e comunhão de afectos e interesses pessoais comuns. Alguma doutrina fala de namoro simples e qualificado para distinguir o grau de compromisso. Admitimos também que a ideia de intimidade, estabilidade, fidelidade e publicidade da união pode estar comprometida e precisa de ser repensada em termos hodiernos. A noção terá de ser preenchida judicialmente - com jurisprudência - atendendo aos factos concretos e, neste contexto analisando os factos provados, não há dúvida que arguido e ofendida namoraram, embora de forma muito especial. O namoro está consubstanciado nos factos provados. Arguido e ofendida durante o lapso de tempo descrito na sentença – rubrica de factos provados – namoraram ainda que com o mínimo de afecto e estabilidade.
O conceito de namoro tem de ser permanentemente ajustado à realidade actual.
Certamente que o princípio da legalidade sairia mais reforçado se o legislador tivesse definido namoro no âmbito da lei. Não optou por essa via, provavelmente pela noção dinâmica que o conceito encerra. No Código Penal o legislador não optou por esse procedimento concedendo alguma margem ao intérprete sem que isso sacrifique a legalidade e tipicidade da norma.
O valor dos conceitos indeterminados e da interpretação da lei em matéria penal obedecem a critérios muito apertados, sem que seja proibido fazer ajustamentos de acordo com a realidade social (interpretação actualista), a isso não se opõe o princípio da legalidade.
Actualmente a relação de namoro integra uma causa expressiva de violência doméstica que o legislador não pode declinar, pelo que compete aos tribunais definir a relação segundo critérios actualistas.»

Assim, como também se frisa no Tribunal da Relação de Lisboa de 23.03.2021, proferido no Processo nº 670/19.6SFLSB.L1-5, relatado pelo Exmo. Desembargador João Carrola, acessível em www.dgsi.pt, «As relações de namoro, tal como moderna e socialmente se mostram desenvolvidas, abrangem uma multiplicidade de comportamentos e graus de interacção entre os namorados que fogem dos cânones a que estamos habituados a presenciar, não sendo hoje de exigir para qualificar esse tipo de relacionamento a existência de elementos como notoriedade, exclusividade, partilha de cama mesa e habitação e projecto de vida futura em comum.»

Apesar das apontadas dificuldades em caraterizar, nos tempos hodiernos, a relação de namoro integradora da tipicidade objetiva do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nº1, al. b) do CP, ou da circunstância qualificativa do homicídio prevista no art. 132º, nº2, al. b) do CP, terá de consubstanciar no seu núcleo essencial uma relação entre o agente e o ofendido de proximidade, pelo menos existencial, isto é, de partilha, atual ou anterior (para além da vertente física) de afetos e de confiança (expetativa) em um comportamento de respeito e abstenção de condutas lesivas da integridade pessoal do parceiro(a), incluindo esta a componente física e psíquica. Daí que, exigindo-se para tal relação uma mínima estabilidade ou durabilidade tendencial, os meros namoros ocasionais, fortuitos, flirts e relações de amizade (ainda que com prática ocasional de relações sexuais, como é o caso das atualmente denominadas “amizades coloridas”), não estejam incluídas no âmbito da norma incriminadora – neste sentido, André Lamas Leite, “Violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o Direito Penal e a Criminologia”, in Revista Julgar, nº12, (Especial), 2010, pp. 51-52.         

É a relação de namoro assim caracterizada que pode, legitimamente, prover aos seus membros a expetativa de que a contraparte lhe guardará respeito, aqui se incluindo a fidelidade e, mormente, não atentará contra a sua integridade física ou vida.

Constituindo a relação de namoro com a vítima uma circunstância suscetível de indiciar a especial censurabilidade ou perversidade do homicida (cf. art. 132º, nºs 1 e 2, al. b), do CP), cumpre que aquela relação seja materializada em factos concretos idóneos a integrá-la, tarefa que há de ser empreendida desde logo na acusação para que seja possível a sua demonstração probatória.

Assim se cumprirão os preceitos constitucionais que consagram o princípio do acusatório e asseguram ao arguido o exercício cabal das garantias de defesa, que lhe confere, entre o mais, o direito ao contraditório, ou seja, a defender-se de factos que lhe são imputados no libelo acusatório – cfr. art. 32º, nºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa.       
Dito isto, não se pode olvidar que a “relação de namoro”, a partir do momento em que foi consagrada na lei como um dos elementos típicos objetivos do crime de violência doméstica e, posteriormente, como circunstância qualificativa do crime de homicídio, transformou-se num conceito de dimensão normativa, mas não abandonou inteiramente a sua caraterização como conceito factual, ou seja, de expressão de uso frequente, corrente, quotidiano, apreensível facilmente pelo “homem médio”, sem necessidade de particulares conhecimentos técnicos.
A expressão “relação de namoro” assume assim uma natureza mista, o que influi na apontada necessidade de, casuisticamente, se proceder à sua densificação factual e, concomitantemente, na medida concreta dessa concretização.
Volvendo ao caso vertente.
No ponto 1 da factualidade dada como provada no acórdão recorrido consta que «O arguido e a vítima AA mantiveram uma relação de namoro que se iniciou em Maio de 2021».
No ponto 2 dos factos provados faz-se nova referência àquela «relação de namoro».
No ponto 33 dos factos provados descortina-se referência à AA como sendo «namorada» do arguido.
Esta factualidade constava já da acusação pública deduzida nos autos.
No ponto 81 dos factos provados, que reflete o teor do relatório social atinente ao arguido elaborado nos autos (fls. 902 e ss.), reafirma-se que o arguido «conheceu AA, com quem em Maio de 2021 iniciou uma relação de namoro.» Este facto deve ser compreendido à luz do mencionado no ponto 85, parte inicial, isto é, como descrevendo um dos relacionamentos afetivos que o arguido foi mantendo ao longo dos tempos. 
No ponto 86 dos factos provados, reportado ainda ao teor do predito relatório, consta, entre o mais, que no período de ocorrência dos factos o arguido «convivia regularmente com a namorada AA e com amigos.»
Assim sendo, cremos que se mostra suficientemente alegada e concretizada a matéria de facto suscetível de integrar o conceito “relação de namoro”, conferindo ao respetivo relacionamento afetivo, de proximidade, caráter estável e contínuo (à data dos factos, a relação durava ininterruptamente há cerca de 4 meses) e, no caso, público, que permite distinguir aquela relação de relações fortuitas, casos de “uma noite” ou relações de mera amizade que incluam intimidade.      
Tanto mais que in casu a relação de namoro em causa foi voluntária e livremente assumida pela ofendida/assistente e pelo arguido nas declarações que prestaram, ela para memória futura e ele em audiência de julgamento, como, aliás, consta da motivação da decisão de facto relativa ao Ponto 1 dos factos provados, acrescendo que o arguido até situou o início da relação de namoro em maio de 2021 e não, como mencionava a acusação, em julho de 2021 (cfr. pág. 20 do acórdão, a fls. 1049, vº).     
Julgamos pertinentes as considerações expendidas a propósito da consubstanciação da existência de “uma relação de namoro” e respetiva prova no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26.07.2018, proferido no Processo nº 9/17.5GAABF.E1, relatado pela Exma. Desembargadora Maria Isabel Duarte, acessível em www.dgsi.pt:
«Casos há (até nos parece que constituirão a larga maioria) em que a conclusão sobre se existe ou não uma relação de namoro entre duas pessoas não oferece qualquer dificuldade; Por exemplo, num caso em que um casal que publicamente se apresenta como um casal de namorados, e que tem uma relação sólida e continuada, com evidente expectativa e aparência pública de ser uma relação emocional exclusiva dos seus intervenientes para quem seja seu conhecido, a conclusão sobre a existência da relação de namoro acaba por ser uma "trivialidade". Casos há todavia em que não é assim; Por causa da elevada dose de "subjectividade" que o conceito de namoro tem a conclusão sobre a existência ou inexistência de tal relação oferecerá, quando a questão não seja tão clara, dificuldades assinaláveis. Todavia estamos convencidos que num e noutro caso a existência da relação de namoro é sempre, em rigor, uma conclusão, um juízo, e não propriamente um facto. Ainda que nas decisões judiciais deva sempre procurar-se lançar mão da mais elevada dose de rigor possível, não choca que quando seja inquestionável (e incontroversa) a existência de tal relação se leve a mesma à matéria fáctica provada e não provada: a questão é, em tais casos, pouco relevante relativamente ao verdadeiro objecto (instrutório e de direito) da causa, e por isso tal metodologia em nada contende com os princípios que norteiam a metodologia do direito penal substantivo e processual. Porque, naqueles casos concretos a questão, à partida, não se assume como potencial influência na decisão final da causa, não existe verdadeiramente um problema a resolver sobre a existência ou não do namoro; Saber se o namoro é um facto ou se é uma conclusão é, em tais casos, absolutamente secundária. Não é assim in casu. Com efeito, a prova produzida demonstrou -à saciedade- que para os membros da relação de namoro afirmada na acusação a questão não é líquida: a arguida CC afirmou que efectivamente ela e o co-arguido BB namoravam outrora, e o arguido, por seu lado, negou tal relação; E mesmo as testemunhas ouvidas não foram unânimes sobre a questão. Uma vez que no caso vertente a questão acaba por assumir relevância decisiva no resultado da causa, entendemos de levar à matéria fáctica provada somente os factos objectivos -aqueles que são susceptíveis de prova, contraprova e prova em contrário- aptos a servir de critério para aferir se existiu ou não entre CC e BB uma relação de namoro (factos 1 a 17); Com base naqueles factos objectivos cumprirá concluir se a matéria está ou não no perímetro previsto pela norma incriminadora. E optámos, em contraponto, por excluir da matéria provada o artigo do libelo acusatório que, por causa dos contornos concretos revelados pelo caso sub iudice, acaba por não ter, em si mesmo, substrato fáctico próprio e por isso é, tão-somente, uma conclusão de direito.» - sublinhado nosso.
 Idêntico raciocínio é seguido no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11.06.2019, proferido no Processo nº 340/17.0PBOER.L1-5, relatado pelo Exmo. Desembargador Jorge Gonçalves, acessível em www.dgsi.pt:
«Não se duvida que a relação de namoro é um elemento objectivo do tipo de crime de violência doméstica e uma acusação deve descrever os factos que suportem a existência de uma relação de namoro entre arguido e denunciante, tanto mais que inexiste uma única forma (ou um conjunto de formas pré-estabelecidas exclusivas) para se iniciar ou vivenciar uma relação de namoro.
Mas no caso, logramos perceber que a falta de outros elementos na acusação/pronúncia tem por base a circunstância de, da parte de arguido e denunciante, nunca ter havido dúvidas de que, efectivamente, tiveram um relacionamento que consideraram ser “de namoro”, que envolveu um vínculo afectivo/sentimental que foi para além da mera amizade e das relações fortuitas, caracterizando-se pela existência de uma relação amorosa com intimidade sexual que, apesar das suas vicissitudes, descontinuidades, frustrações e “altos e baixos”, perdurou ao longo do tempo e o arguido alegou, mesmo, que a relação “não foi só de namoro”, ou seja, foi mais do que isso (!), “dado que passaram a existir convivências e estadias alternativas na casa de cada um, as quais não tinham períodos certos”, o que, aliás, resultou das declarações de arguido e denunciante que, melhor que ninguém, sabem da relação que mantiveram um com o outro.
Atenta a circunstância - de se ter por evidente que para os próprios não era dubitativo que a relação entre o recorrente e a denunciante, que os próprios qualificaram de namoro, ultrapassou a mera amizade ou as chamadas relações furtuitas e que ambos tiveram um relacionamento amoroso "sério" -, entende-se não ser cabida a dúvida sobre tal estado, ou seja sobre a relação de namoro, que para os próprios se afigurava, antes do recurso, como inquestionável (e incontroversa) obviamente, referida ao passado, relativamente aos factos imputados ao arguido - sublinhado nosso
E bem se compreende que assim seja, em casos como o dos autos, pois que, para além de nos parecer que a alegada “relação de namoro” entre arguido e assistente se mostra suficientemente encarnada de factos – nos termos sobreditos –, a caracterização do relacionamento entre mantido como sendo de “namoro” revela-se pacífica para ambos, incontroversa, e, como sagazmente se observa no último dos citados arestos, são aquelas pessoas as que melhor (senão as únicas) que podem afiançar que tipo de relação estabeleciam.
Por conseguinte, não se vislumbra qualquer violação do princípio do acusatório, conexionado com o princípio do asseguramento das garantias de defesa do arguido e do contraditório, porquanto, nesta concreta ajuizada situação, o arguido não ficou privado de se defender daquela alegação acusatória – ainda que se considerasse a mesma conclusiva –, pela simples razão de que não a quis contradizer, antes a assumindo como retratando a realidade vivenciada.
Ademais, no processo penal português vigora igualmente o princípio da lealdade, que na sua vertente de proibição do venire contra factum proprium impõe aos sujeitos processuais, em sede de recurso, a impugnação de decisão na parte em que seja concordante com a sua anterior posição assumida no processo – neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, ibidem, anotações 19 e 21 ao art. 2º e anotação 4 ao art. 401º.
No caso, o arguido só agora, em sede de recurso, veio questionar a não concretização de uma relação que consciente, livre e reiteradamente assumiu como sendo de namoro, sendo certo que até centrou a sua defesa na alegada circunstância de ter agido da forma em questão por ter visto a sua namorada a manter relações sexuais com um terceiro.
Daí que, perante a univocidade do tipo de relacionamento mantido entre o arguido e a vítima, o Tribunal recorrido nem tenha sentido necessidade de melhor concretizar aquela alegação acusatória, recorrendo eventualmente ao disposto no art. 358º do CPP.
Ou seja, por um lado, o recorrente pretende, por via do recurso, ver reconhecido que agiu motivado por compreensível emoção, em “defesa da honra”, por “ciúmes” ao ter sido “traído” pela sua namorada, que perpetrou relações sexuais com outrem, as quais foram por aquele percecionadas; por outro lado, almeja que não fique provado que existia uma relação de namoro entre si e a vítima. Como sabiamente diz o dito popular, quer sol na eira e chuva no nabal!
Assim, este tipo de comportamento processual do arguido afigura-se-nos violador do referido princípio da lealdade processual e não lhe permitiria nunca obter, por esta via, provimento da sua pretensão recursória de que fossem tidas como não escritas as expressões “relação de namoro” contidas na decisão recorrido.   
Improcede o recurso nesta parte

III.6 – Sobre alegada inconstitucionalidade da norma contida no art. 132º, nºs 1 e 2, al. b), do Código Penal: 

Alega o arguido/recorrente a inconstitucionalidade do artº 132º, nºs 1 e 2, al. b), do Código Penal, por fazer depender a qualificação do homicídio de uma relação de namoro, sem que exista uma definição legal e um regime legal que determine os deveres e os direitos conferidos aos parceiros dessa relação e, da mesma forma, por conferir um tratamento idêntico ao “namoro” e ao casamento ou à união de facto com coabitação ou sem coabitação, punindo o crime de homicídio qualificado com a mesma pena num e noutro caso, viola do disposto no artº 2º, 13º, 18º nº2 (princípio da proporcionalidade), 20º nº4, 29º nº1, 3 e 4, 110º nº1 e 111º da Constituição, designadamente do princípio da culpa, da legalidade, da tipicidade e da necessidade da lei penal.
Invoca ainda a inconstitucionalidade da predita norma penal derivada da violação dos aludidos preceitos constitucionais, em virtude de considerar a relação de namoro uma situação de facto que reveste especial censurabilidade e perversidade que leva à consideração do crime de homicídio sobre o parceiro como qualificado.

Apreciando.

Estatui o art. 132º do Código Penal, na parte que ora releva:

“1 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.
2 - É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:
(…)
b) Praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau;”
A questão pertinentemente suscitada pelo recorrente contende desde logo com o princípio da legalidade, entendido com o sentido de não poder haver crime, nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa (nullum crimen, nulla poena sine lege), conforme consagração vertida no art. 29º, nº1 e 3 da Constituição da República Portuguesa e exteriorização na lei penal ordinária por via do disposto nos arts. 1º, nº1 e 2º, nº1 do Código Penal.  

Deste princípio, na vertente de determinabilidade do tipo legal, deriva como consequência a proibição de recurso à analogia para qualificar um facto como crime, definir um estado de perigosidade ou determinar a pena ou medida de segurança que lhes corresponde – cf. art. 1º, nº3, do CP.

A propósito da determinabilidade do tipo legal, menciona Jorge de Figueiredo Dias, in “Direito Penal – Parte Geral”, Tomo I, 2ª Edição, 2007, Coimbra Editora, pp. 185-186:
«No plano da determinabilidade do tipo legal ou tipo de garantia – precisamente, o tipo formado pelo conjunto de elementos cuja fixação se torna necessária para uma correta observância do princípio da legalidade –, importa que a descrição da matéria proibida e de todos os outros requisitos de que dependa em concreto uma punição seja levada até a um ponto em que se tornem objetivamente determináveis os comportamentos proibidos e sancionados e, consequentemente, se torne objetivamente motivável e dirigível a conduta dos cidadãos.»  E acrescenta: «Do mesmo modo, se é inevitável que a formulação dos tipos legais não consiga renunciar à utilização de elementos normativos, de conceitos indeterminados, de cláusulas gerais e de fórmulas gerais de valor, é indispensável que a sua utilização não obste à determinabilidade objetiva das condutas proibidas e demais elementos de punibilidade requeridos, sob pena de violação irremissível, neste plano, do princípio da legalidade e sobretudo da sua teleologia garantística. Nesta aceção se afirma, com razão, que a lei penal fundamentadora ou agravadora da responsabilidade tem de ser uma lei certa e determinada.»   
O Autor aponta ainda como critério decisivo para aferir do respeito pelo princípio da legalidade (e da respetiva constitucionalidade da regulamentação) o de saber se, apesar da indeterminação inevitável resultante da utilização desses elementos, do conjunto da regulamentação típica deriva ou não uma área e um fim de proteção da norma claramente determinados.
A tal propósito pronunciou-se já reiteradamente o Tribunal Constitucional, entre muitos outros, no Acórdão nº 340/2022, Processo nº 246/2022, 1ª Secção, relatado por José António Teles Pereira, disponível in www.tribunalconstitucional.pt:    
«O princípio da legalidade criminal apresenta-se, pois, como “[…] garantia pessoal de não punição fora do âmbito de uma lei escrita, prévia, certa e estrita […]” (Acórdão n.º 500/2021). Um dos seus corolários é o designado princípio da tipicidade, a que se refere a exigência de lei certa, significando “[…] que a lei que cria ou agrava responsabilidade criminal deve especificar suficientemente os factos que integram o tipo legal de crime (ou que constituem os pressupostos da aplicação de uma pena ou medida de segurança) e definir as penas (e as medidas de segurança) que lhes correspondem. Nesta aceção, o princípio da legalidade penal tem como corolário o princípio da tipicidade, condicionando a margem de conformação legislativa no âmbito da definição típica dos factos puníveis” (novamente, Acórdão n.º 500/2021, sublinhado acrescentado).

Como se assinala no Acórdão n.º 76/2016:
[…]
A exigência de determinabilidade do conteúdo das normas penais, uma dimensão do denominado princípio da tipicidade, é avessa a que o legislador formule normas penais recorrendo a cláusulas gerais na definição dos crimes, a conceitos que obstem à determinação objetiva das condutas proibidas ou que remeta a sua concretização para fontes normativas inferiores, as chamadas normas penais em branco. A exclusão de fórmulas vagas na descrição dos tipos legais, de normas excessivamente indeterminadas e de normas em branco, leva em conta os valores da segurança e confiança jurídicas postulados pelo princípio da legalidade criminal. Com efeito, a exigência de clareza e densidade suficiente das normas restritivas, como é o caso das normas penais, é um fator de garantia da confiança e da segurança jurídica, «uma vez que o cidadão só pode conformar autonomamente os próprios planos de vida se souber com o que pode contar, qual a margem de ação que lhe está garantida, o que pode legitimamente esperar das eventuais intervenções do Estado na sua esfera pessoal» (Jorge Reis Novais, As restrições aos Direitos Fundamentais, não expressamente autorizadas pela Constituição, Coimbra Editora, 2ª ed. pág. 770).
Deve reconhecer-se, porém, que a exigência de lex certa, como corolário do princípio da legalidade criminal, não veda em absoluto a formulação dos pressupostos jurídico-constitutivos da incriminação através de elementos normativos, conceitos indeterminados, cláusulas gerais e fórmulas gerais de valor. Seria inviável, até pela natureza da própria linguagem jurídica, uma determinação absoluta do tipo legal de ilícito.
[…]
Em princípio, a modelação do tipo legal de crime com recurso a conceitos indeterminados não afronta os princípios da legalidade e da tipicidade. Como reconhece o Tribunal Constitucional, após se interrogar sobre o grau admissível de indeterminação ou flexibilidade normativa em matéria de ilícitos penais, «uma relativa indeterminação dos tipos legais pode mostrar-se justificada, sem que isso signifique violação dos princípios da legalidade e da tipicidade» (Acórdão n.º 93/01).
Mas se é impossível uma total determinação dos elementos compósitos da ação punível, há de exigir-se um grau de determinação suficiente que não ponha em causa os fundamentos do princípio da legalidade. É que o princípio nullum crimen só pode cumprir a sua função de garantia se a regulamentação típica, ainda que indeterminada e aberta, for materialmente adequada e suficiente para dar a conhecer quais as ações ou omissões que o cidadão deve evitar. Como se escreve no Acórdão n.º 168/99, «averiguar da existência de uma violação do princípio da tipicidade, enquanto expressão do princípio constitucional da legalidade, equivale a apreciar da conformidade da norma penal aplicada com o grau de determinação exigível para que ela possa cumprir a sua função específica, a de orientar condutas humanas, prevenindo a lesão de relevantes bens jurídicos. Se a norma incriminadora se revela incapaz de definir com suficiente clareza o que é ou não objeto de punição, torna-se constitucionalmente ilegítima.»
Em conformidade, entendemos que a previsão legal da “relação de namoro” como circunstância agravadora da responsabilidade penal no crime de homicídio, não obstante se mostre legalmente indeterminada, um conceito aberto a necessitar de concretização doutrinária e jurisprudencial, revela-se simultaneamente um elemento do tipo qualificado objetivamente determinável.
Com efeito, como já acima expusemos (ponto III.5), apesar das dificuldades inerentes à caracterização fática de uma relação de namoro, provindas essencialmente das rápidas mutações relacionais vivenciadas nos tempos modernos, particularmente ao nível dos jovens e do distanciamento geográfico dos parceiros frequentemente presente nestes relacionamentos, é possível descortinar fatores identificativos imprescindíveis para a sua afirmação, mormente tendo em vista o âmbito de proteção da norma incriminadora. Assim, dúvidas não sobejam de que se exige uma proximidade afetiva de duração tendencialmente duradoura, estável, geradora de respeito mútuo, confiança e legítima expetativa para cada um dos membros de que o outro não atentará contra a sua integridade física e, naturalmente, contra a sua vida (bem jurídico protegido pela incriminação).           
Ademais, reitera-se, o “namoro” expressa uma relação correntemente conhecida do comum dos cidadãos, cujo significado corrente é por eles facilmente apreendida.
 Donde, a norma do art. 132º, nº2, al. b), do CP, na parte em que se refere à “relação de namoro”, não encerra qualquer violação do princípio da legalidade (e da tipicidade) da intervenção penal.
Por outro lado, decorre ainda do atrás referido que a interpretação e concreta aplicação da norma do artigo 132.º, n.º 2, al. b), do Código Penal, no segmento relativo a “relação de namoro”, se insere na normal tarefa hermenêutica dos tribunais penais compatível com o artigo 29.º, n.º 1, da CRP, sem que se verifique uma concessão ao julgador de poderes de estatuição normativa que pertencem em exclusivo ao espaço legislativo. Ou seja, o legislador realizou inteiramente a sua função legislativa ao estabelecer o preceito nos termos assinalados e a tarefa que remeteu para o julgador não estende a função de julgar. Dito de outro modo, não ocorre qualquer violação dos artigos 2.º, 110º, nº1, 111.º e 165.º, n.º 1, alínea c), da CRP (separação de poderes dos órgãos de soberania).

No que concerne à alegada violação dos princípios da proporcionalidade e necessidade da lei penal, entendemos igualmente que a mesma inexiste.

O alargamento da qualificação da incriminação prevista no art. 132º do CP operado pela Lei 16/2018, de 27.03, aos casos em que o crime é praticado por agente que mantenha ou tenha mantido com a vítima relação de namoro (independentemente de coabitação), visa o reforço da proteção jurídico-penal dos namorados, na sequência da perceção tida pelo legislador de que a realidade empírica vinha demonstrando um socialmente inadmissível incremento de casos em que eles, por força desse relacionamento atual ou passado, eram vítimas de comportamentos atentatórios da sua integridade pessoal por parte do namorado(a) ou ex-namorado(a), consubstanciando esses atos, frequentemente, ataques à sua própria vida. Tais comportamentos retaliatórios e fortemente perturbadores da paz do parceiro ou ex-parceiro são muitas vezes motivados por ciúmes ou pelo agressor não se conformar com o fim da relação ou com a assunção de uma relação amorosa com outra pessoa. Obviamente, tais condutas são contrárias à confiança num comportamento de respeito e abstenção de atos violadores da integridade pessoal do parceiro ou ex-parceiro que deve presidir à relação de namoro.
            Portanto, ainda que a relação de namoro não esteja legalmente definida e regulamentada, contrariamente ao que sucede com o matrimónio e a união de facto, descortinam-se naquela figura, no que concerne aos valores de respeito, auxílio e afetividade a ela inerentes, muitos pontos comuns aos estatutos derivados do casamento e da relação análoga à dos cônjuges para os respetivos membros do “casal”, acrescendo que também para esta o legislador prescinde da coabitação.
            Destarte, atendendo à mencionada ratio legis e à extrema relevância do bem jurídico protegido, uma vez que a vida humana é o bem supremo, afigura-se-nos justificada, proporcional e necessária a opção legislativa de conceder ao namoro, para este efeito, o mesmo tratamento jurídico que atribui ao casamento e à relação análoga à dos cônjuges.
Ainda que, salvaguarde-se, diversamente do alegado pelo recorrente, não se trate de uma equiparação estrita do homicídio em contexto de namoro ao casamento e à união de facto em termos de igual ilicitude e culpa apenas por que estão na mesma alínea. O legislador penal ordinário de 2018 veio tão-só dizer que o homicídio cometido no contexto de namoro também revela especial censurabilidade ou perversidade, sem com isso significar que o namoro é equivalente ao casamento.
            Sendo tais atuações passíveis de formulação de um acentuado juízo de censura ético-jurídica (culpa) dirigido ao seu autor, por violação da confiança em si depositada pela namorada(o) ou ex-namorada(o), compreende-se que constitua circunstância suscetível de revelar a especial censurabilidade do agente.
Por conseguinte, salvo melhor opinião, não se descortinam as alegadas violações dos princípios da igualdade, proporcionalidade e necessidade da lei penal, e da culpa (arts. 13º e 18º, nº2, da CRP).   
Deste modo, não vislumbramos que a normas contida no art. 132º, nº 2, al. b) – por referência ao nº1 –, do CP, no segmento referido à “relação de namoro”, padeça de inconstitucionalidade, improcedendo assim o douto recurso nesta parte.



            III.7 – Não preenchimento do dolo do tipo de crime, por a matéria de facto vertida no ponto 33 dos factos provados ser insuficiente para o efeito, por falta do seu elemento intelectual:

            Neste conspecto, alega o arguido/recorrente [conclusões 2ª a 4ª]:
  - Os factos constantes do acórdão, designadamente do ponto 33, da matéria de facto são insuficientes para ter por preenchido o dolo da conduta, porquanto nenhuma referência há à representação da conduta ilícita, ou seja, que o arguido em momento anterior à conduta se determinou a cometer o crime, representando os elementos objectivos típicos;
- A interpretação que se extraia do disposto no artº 14º nº1 e 131º do Código Penal no sentido de que o arguido pode ser punido pelo crime de homicídio na forma consumada ou tentada sem que na decisão condenatória seja dado como provado o elemento intelectual do dolo, no sentido da sua pré-existência relativamente à conduta, deve ser julgado inconstitucional por violação do princípio da legalidade na sua vertente da tipicidade, do princípio do acusatório e do contraditório (artºs 29º nº1 e 32º nº1 e 5 da Constituição).
            Decidindo.
            Encontra-se provado no ponto 33 dos factos provados: «O arguido agiu com o propósito de tirar a vida a AA, sua namorada, atingindo-a diversas vezes, predominantemente na zona da cabeça, cara, nariz e colocando-lhe terra e erva seca no interior da boca para a sufocar, prevendo que com tais condutas a poderia matar, resultado com o qual se conformou e quis, só o não logrando obter por a vítima ter fingido que estava morta e ter sido assistida atempadamente e, assim, consequentemente, por circunstâncias alheias à sua vontade.»
            Analisada aquela factualidade dúvidas não nos assolam de a mesma encerra o elemento intelectual ou cognitivo do dolo do tipo de crime de homicídio, consubstanciado no conhecimento (previsão ou representação) da factualidade típica, pois que dali se extrai que o arguido sabia (previu) que ao atuar da forma por si, voluntária e livremente, adotada, podia matar (tirar a vida) a ofendida AA – cfr., ainda, ponto 35 dos factos provados.
            É quanto basta para afirmar o dolo do tipo de crime em apreço.
            Não colhe, assim, esta pretensão recursória do arguido.  



            III.8 – Não preenchimento pela factualidade provada do dolo relativo às circunstâncias qualificativas do homicídio:


Neste segmento recursório, surge alegado sucintamente pelo recorrente [conclusões 109ª a 112ª]:
- O dolo (representação e vontade) deve abranger todos os elementos típicos do crime incluindo os elementos qualificativos e agravativos do tipo de crime.
- Quer isto dizer que para que se pudesse entender que os factos da acusação e constantes do acórdão preenchiam o tipo de crime de homicídio qualificado teria que se alegar e provar que o arguido sabia que mantinha uma relação de namoro com a vítima, que agia movido pelo ciúme e que tais factos tornavam a sua conduta especialmente censurável, mas ainda assim não se absteve de empreender tal conduta, sem o que não se pode considerar que a conduta descrita é qualificada.
- Não tendo sido alegada na acusação ou dada como provada a factualidade concernente ao dolo das circunstâncias qualificativas do homicídio, deveria o arguido ser condenado pelo crime de homicídio simples na forma tentada.
            Vejamos.
            Temos por certo que o dolo do tipo deve abranger as circunstâncias as circunstâncias que agravam o tipo de crime.
            Contudo, a relevância de tal asserção coloca-se essencialmente no que concerne ao denominado erro sobre a factualidade típica, ou seja, o erro sobre as circunstâncias de facto ou de direito que constituem os elementos típicos do crime qualificado ou agravado.
            No caso, as circunstâncias qualificativas do crime de homicídio, na forma tentada, imputado ao arguido, reportam-se à situação de namoro que este mantinha com a vítima e à atuação por motivo fútil, pelo que pode afirmar-se com segurança que o conhecimento do arguido não podia deixar de abranger tais circunstâncias, como aliás resulta provado nos termos dos pontos 33 e 34 dos factos provados, donde consta, entre o mais, que ele «agiu com o propósito de tirar a vida a AA, sua namorada» e que «atuou (…) com total indiferença e desprezo pelo estado em que deixava a ofendida, motivado por ciúmes».
O que o arguido não precisa, nem pode saber é se a sua concreta atuação constitui motivo «torpe ou fútil» e se esta circunstância, assim como a prática dos factos no contexto de uma «relação de namoro» com a vítima preenchem a cláusula geral da «especial censurabilidade ou perversidade», pois que tais conceitos abertos ou indeterminados, hão-de ser concretizados e preenchidos, obviamente á posteriori da sua atuação, pelo labor jurisdicional, atendendo ao circunstancialismo demonstrado no caso concreto.
Dito de outra forma: o que o arguido tinha de saber, e sabia, era como autuava, sobre quem atuava – a vítima, sua namorada –, que previsíveis consequências podiam advir dos seus atos e qual o motivo, ou falta dele, que o levou a agir dessa forma.
Diferente seria o panorama, conduzindo ao afastamento do dolo por erro e por conseguinte à qualificação do crime, nos termos do art. 16º, nº1, do CP, caso se tivesse alegado e provado que o arguido agrediu a ofendida sem saber que com ela mantinha uma relação de namoro ou – e aqui entra de novo a incongruência, incompatibilidade que já acima apontamos à defesa – que agiu daquela forma no convencimento de que a sua namorada tinha acabado de trair a sua confiança e de faltar ao respeito que lhe era devido, mantendo relações sexuais com um terceiro, o que, manifestamente, não sucedeu no caso.
Deste modo, soçobra o douto recurso, nesta parte.       



            III.9 – Não preenchimento da circunstância qualificativa do crime de homicídio «motivo torpe ou fútil»:

            Alega o arguido/recorrente, citando jurisprudência, que o ciúme não constitui motivo torpe para efeito de qualificação do crime de homicídio, e também no caso concreto não serve, pelo que acórdão recorrido ser revogado nesta parte, designadamente não considerando o homicídio qualificado por motivo torpe ou fútil [conclusões 113ª e 114ª].
            Apreciando.
Aqui chegados, urge apurar se se mostra efetivamente verificada, in casu, a circunstância agravante especial consubstanciada na determinação do agente por “motivo torpe ou fútil”, que surge elencada na alínea e) do nº2 do art. 132º enquanto exemplo-padrão de circunstâncias que, para efeitos do seu nº1, podem revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, sem que sejam de funcionamento automático, acrítico, antes sendo o mesmo condicionado à concreta verificação de que a circunstância em causa revele um acentuado grau de ilicitude ou de culpa do agente, fornecendo uma imagem global do facto agravada.
Chamam-se aqui à colação as doutas palavras de Teresa Serra, in “Homicídio Qualificado: Tipo de Culpa e Medida da Pena”, Reimpressão, 1992, Almedina, págs. 67 a 70, quando refere que «com a realização do tipo fundamental do art. 131º e de uma das circunstâncias previstas no nº2 do art. 132º, desencadeia-se o chamado efeito padrão (“Regelwirkung”) que fornece o indício da existência de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente em que se baseia a aplicação da moldura penal do art. 132º. Ou seja, fundamenta uma presunção ilidível de que o facto deverá ser subsumido sob o grupo valorativo superior dos casos agravados de homicídio. Como particularmente relevante aparece aqui o método em que a doutrina dominante entende que se baseia a técnica dos exemplos-padrão e que reside no princípio da ponderação global do facto e do autor. Significa isto que o juiz, antes de concluir pela existência da especial censurabilidade ou perversidade do agente, tem que verificar se não existem circunstâncias especiais no facto ou na pessoa do agente que possam atenuar substancialmente o conteúdo da ilicitude ou da culpa do facto, de tal modo que se imponha a revogação do efeito do indício.»
E acrescenta: «as circunstâncias capazes de contraprovarem o efeito de indício dos exemplos-padrão têm de possuir um significado essencial, alterando, por isso, a imagem global do facto (…) Aqui estaremos perante um caso de homicídio simples atípico. Neste caso, a decisão judicial deve fundamentar pormenorizadamente as razões que levaram à revogação do efeito da regra»[18].   
Conforme expendido por Jorge de Figueiredo Dias, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, 1999, Coimbra Editora, págs. 32 e 33, «qualquer motivo torpe ou fútil” significa que o motivo da atuação, avaliado segundo as conceções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito, de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pelo valor da integridade física (no caso) de outra pessoa.»
Maia Gonçalves, in “Código Penal Português, Anotado e Comentado”, 18ª Edição, p. 515, entende que “motivo fútil” é, «um motivo sem relevo, sem importância mínima ou manifestamente desproporcionado segundo as concepções da comunidade, incapaz portanto de razoavelmente explicar e muito menos justificar a conduta.»
De acordo com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.12.2008, Processo nº 08P3703, disponível em www.dgsi.pt., «motivo fútil é o móbil de actuação despropositada do agente sem sentido perante o senso comum, por ser totalmente irrelevante na adequação ao facto, sem explicação racional plausível, radicando num egoísmo mesquinho e insignificante do agente.»
No mesmo sentido se posicionam os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 09.03.2022, prolatado no Processo nº 874/20.9JAPRT.S1, e de 02.02.2022, prolatado no Processo nº 74/21.0GBRMZ.S1, ambos relatados pelo Exmo. Conselheiro Lopes da Mota e acessíveis em www.dgsi.pt, sendo que no segundo se refere:
«Quanto ao “motivo torpe ou fútil”, indicado na al. e) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, a doutrina e a jurisprudência vêm salientando unanimemente que se trata de um exemplo-padrão “estruturado com apelo a elementos estritamente subjetivos, relacionados com a especial motivação do agente”; atuar determinado por “qualquer motivo torpe ou fútil” significa que “o motivo da atuação, avaliado segundo as conceções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito, de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pelo valor da vida humana”.
Motivo fútil é o motivo de importância mínima, o motivo sem valor, insignificante para explicar ou tornar aceitável, dentro do razoável, a atuação do agente do crime, desproporcionado e sem sentido perante o senso comum, por ser totalmente irrelevante na adequação ao facto, sem explicação racional plausível, radicando num egoísmo mesquinho e insignificante do agente. O motivo é fútil quando, pela sua insignificância ou frivolidade, é notavelmente desproporcionado, do ponto de vista do homo medius e em relação ao crime. A desproporcionalidade de que se fala é a que se evidencia face ao motivo de “importância mínima”, “sem valor”, dotado de “insignificância” ou “frivolidade”; refere-se à relação entre o motivo e o facto, não caracteriza o motivo que determina o facto.»
Ainda o acórdão do mesmo Alto Tribunal de 13.11.2013, proferido no Processo nº 938/12.2JAPRT.P1.S1, relatado pelo Exmo. Conselheiro Souto de Moura, disponível em www.dgsi.pt, assim sumariado:
«Para avaliar se um motivo é fútil, para efeitos da al. e) do n.º 2 do art. 132.º do CP, tem que se relacionar a gravidade do comportamento com o móbil do crime. A grande desproporção entre o que se elege como motivo da ação e aquilo em que esta se analisa, transforma a conduta, não só em algo intolerável, como também em algo absurdo, sem explicação, à luz das conceções éticas correntes da sociedade. A razão do cometimento do crime surge pois com um valor irrisório para o normal dos cidadãos, comparado com o mal que se provoca com este.»[19]
Alega o arguido/recorrente que tendo atuado motivado por ciúmes, sendo que o ciúme não constitui motivo torpe para efeito de qualificação do crime de homicídio, incluindo no caso concreto, e cita jurisprudência que, alegadamente, lhe confere razão.
Não concordamos com a posição adotada pelo recorrente.
Não se olvida que a atuação do agente homicida motivada por ciúme passional, em determinados casos, pode não ser suscetível de revelar a sua especial censurabilidade ou perversidade e, desse modo, ser idónea à qualificação do crime com base numa atuação estribada em motivo fútil.
Assim, se decidiu, por exemplo, no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 06.04.2018, Processo nº 1069/16.1JABRG.G1, relatado pelo Exmo. Desembargador Jorge Bispo, disponível em www.dgsi.pt:
«Não é suscetível de revelar especial censurabilidade ou perversidade e, consequentemente, servir para qualificar o crime de homicídio com base numa atuação por motivo fútil, a circunstância de o arguido agir no âmbito de uma discussão travada com a vítima, motivado pelo facto de esta, para além de recusar o reatamento da relação de namoro, conforme ele vinha insistindo há cerca de quatro meses, lhe confirmar que mantinha uma outra relação afetiva, facto de que o arguido suspeitava e que afastava a concretização da sua vontade de reconciliação, tendo, pois, agido motivado por ciúme passional.»
Igualmente se conclui no já citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02.02.2022, que «A ação motivada por “ciúmes” pode remeter para a figura do homicídio por “razões passionais” – para o denominado “homicídio passional”, entendido como cometido, em regra, repentinamente, na sequência de um impulso emocional súbito – que, pelas possibilidades de perturbação ou interferência na liberdade da formação e execução da vontade criminosa, podem relevar, não para a agravação da culpa, mas para a sua atenuação, por verificação dos requisitos do crime de homicídio privilegiado, em virtude de o agente ter agido “dominado por compreensível emoção violenta” (artigo 133.º do Código Penal), ou, mesmo, para a exclusão, nos casos mais graves (inimputabilidade, por traduzirem “perturbações profundas da consciência” – artigo 20.º do Código Penal).
Daqui não resulta, porém, que a atuação do agente, fora destes casos, deva considerar-se como sendo determinada por “motivo fútil”. Enquanto expressão de sentimentos profundos e complexos, determinados pela perda ou pelo receio ou medo, real ou imaginário, de perda da pessoa a quem o agente se encontra afetivamente ligado, o ciúme traduz-se, como revelam os estudos da área da psicologia, num estado envolvendo emoções, reações e comportamentos muito diversos, que não podem, em si mesmos, qualificar-se como expressões de mera futilidade.
Embora podendo justificar uma atenuação (ou exclusão) da culpa, nos casos mencionados, o estado emocional gerado pelo ciúme, traduzido em comportamento violento, pode dar lugar, fora desses casos, a situações que devam ser mais gravemente censuradas, por revelarem especial perversidade ou censurabilidade, nos termos do artigo 132.º do Código Penal, o que exigirá uma avaliação global do facto que permita identificar outras circunstâncias relevantes – que, neste caso, o acórdão recorrido afastou – que possam relacionar-se com esse estado emocional (como sucederá, por exemplo, quando, inexistindo motivo de atenuação ou exclusão da culpa, o homicídio é praticado através de ato de crueldade, com meio particularmente perigoso, determinado pelo prazer de matar ou de modo a fazer aumentar o sofrimento da vítima).»
Tudo depende, pois, do concreto circunstancialismo do caso sub judice.
No caso daquele primeiro aresto, o ali arguido agiu no âmbito de uma discussão travada com a vítima, motivado pelo facto de esta, para além de recusar o reatamento da relação de namoro, conforme ele vinha insistindo há cerca de quatro meses, lhe confirmar que mantinha uma outra relação afetiva, facto de que o arguido suspeitava e que afastava a concretização da sua vontade de reconciliação, tendo, pois, agido motivado por ciúme passional.
No segundo caso, conforme resulta da factualidade dada como provada em primeira instância ali vertida, a arguida agiu por sentir ciúmes da relação que achava que o seu ex-namorado tinha com outrem, por não se conformar com o fim do relacionamento amoroso que havia mantido com aquele e por estar convencida de que ele e aquela terceira pessoa tinham passado a noite juntos em casa do ex-namorado.
Ora, no caso vertente, a factualidade apurada (e não provada) não reflete minimamente um tal circunstancialismo envolvente, anterior ou contemporâneo da prática do crime.  
Não houve, desde logo, qualquer rutura anterior da relação de namoro que o arguido mantinha com a vítima, potencialmente causadora de relevante sofrimento psicológico para aquele e, bem assim, não existiu qualquer “infidelidade” ou, sequer, qualquer facto objetivo que levasse o arguido a convencer-se de que a sua namorada mantinha um relacionamento amoroso e/ou de cariz sexual com outrem fora daquela relação.
O que houve foi uma agressão bárbara cometida pelo arguido sobre a sua namorada, apenas porque ficou desagrado por a ver a conversar com um amigo – como ela, aliás, lhe asseverou ter sido exclusivamente o que sucedeu (cfr. facto provado nº 13) –, num contexto de uma festa de aniversário, e sendo certo que tal facto lhe causou ciúmes, por se sentir traído, a verdade é tal sentimento mostra-se, face ao concreto circunstancialismo do caso, totalmente injustificado, e serve somente para mascarar a personalidade violenta, autoritária, misógina e subjugadora que dirigia e dirigiu para a sua namorada, pessoa que, por força dessa especial relação de proximidade afetiva e vivencial determinava antes que a tratasse de forma respeitosa e, dentro do possível, carinhosa.
O modo reiterado e particularmente violento com que o arguido, na sequência daquele irrelevante episódio, agrediu fisicamente a ofendida, visando matá-la, usando as suas mãos e em condições de extrema proximidade corporal que teriam de o fazer ver o sofrimento atroz que estava a causar à vítima, revela-se assaz desproporcional ao acontecimento que motivou a atitude do arguido.
A motivação do crime em cotejo com os factos perpetrados, pelo seu acentuado afastamento dos padrões normais de comportamento assumidos em sociedade, gera fundada repugna ao cidadão comum medianamente formado, que não consegue “compreender”, face à irrelevância e absurdidade da situação que despoletou os factos, como foi possível levar o arguido a cometer atos de tamanha gravidade objetiva e extremamente censuráveis do ponto de vista ético-jurídico.
Conclui-se, destarte, em consonância com o decidido pelo Tribunal a quo, que o arguiu agiu por motivo fútil, revelador de especial censurabilidade.         
Improcede, assim, nesta parte, o douto recurso.


            III.10 – Do preenchimento, em alternativa, do tipo de crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art. 145º, nº1, al. a), do Código Penal: 

            Alega o arguido/recorrente a este propósito [conclusões 5ª a 7ª]:
            - A alteração factual levada a efeito no ponto 24 da matéria de facto relativamente à acusação quanto a agressões após a ofendida se “fazer de morta” no sentido que este o fez “para ver se esta estava morta”, quando na acusação se diz que este abanou a ofendida/assistente, para confirmar se esta estava morta, levantou-se e pisou-lhe o rosto duas vezes, sem que a ofendida tivesse reagido. leva a concluir que o arguido ficou surpreendido e não acreditou que a ofendida estivesse morta ou suspeitou que esta se estivesse a fazer de morta e abanou-a e pisou-a na face para ver se esta reagia.
- E como esta não reagiu, fazendo-se de morta, não se mexendo e permanecendo com os olhos abertos, o arguido convenceu-se de que a ofendida estava morta, pelo que assim sendo, este agiu não se conformando com o resultado morte, mas convenceu-se que a ofendida estava morta, pelo facto de esta não reagir.
- Assim, independentemente da fórmula conclusiva constante do ponto 33 dos factos provados, tem de se concluir que os factos dados como provados não preenchem o tipo de crime de homicídio, mas antes o tipo de crime de ofensa à integridade física qualificada previsto no artº 145º nº1 al. a) do CP, porquanto como decorre dos sucessivos relatórios periciais juntos não resultou da conduta do arguido qualquer das circunstâncias agravantes das alíneas do artº 144º do CP.
            A procedência desta pretensão estava dependente da concomitante procedência de outras questões suscitadas no recurso e supra apreciada, que não aconteceu.
            Assim, nem o arguido impugnou a decisão sobre a matéria de facto constante dos pontos de facto em questão, nomeadamente quanto à intenção de matar que presidiu à sua atuação e correlativa representação da possibilidade do resultado decorrer da sua conduta, nos termos fixados no art. 412º, nºs 3 e 4, do CPP, nem logrou tal impugnação pela via restrita, por força da invocação meritória, com sucesso, de algum dos vícios previstos no nº2 do art. 410º do aludido diploma legal, os quais também não se vislumbraram oficiosamente.
            Assim sendo, e porque, nos termos já definidos no douto acórdão recorrido, que aqui se acolhem, a factualidade dada como provada preenche a tipicidade do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, imputado ao arguido, soçobra o recurso neste conspecto.


            III.11 – Da excessividade da medida da pena e, em caso de procedência da reclamada redução, da peticionada suspensão da execução da pena:
           
Defende o arguido/recorrente que a pena a aplica deveria ser pouco superior ao mínimo legal, situada nos 3 anos [conclusões 120ª a 126ª].
Para tanto, invoca que na decisão recorrida não se levou em conta que houve uma discussão entre a vítima e o arguido; o recorrente foi movido por ciúme; a vítima e o arguido encontravam-se alcoolizados por força de todo um dia a beber.
O modo de execução do crime não foi especialmente desvalioso, uma vez que o arguido não se muniu de qualquer instrumento contundente para alegadamente dar a morte à ofendida.
Todos estes factos levam a um menor grau de censura quanto à conduta do arguido que não se compaginam com a pesada pena de 7 anos de prisão que lhe foi aplicada.
Acrescenta que o juízo de prognose a fazer é o de que o arguido não está preparado para manter uma conduta desconforme ao Direito e que o ciúme de que o arguido foi acometido e o facto de este e a ofendida terem ingerido álcool influenciou a sua conduta.
Mais alega que no acórdão compara-se a conduta do arguido que agrediu a ofendida com as próprias mãos à conduta de quem agrediu com ácido sulfúrico (10 anos), uma faca (7 anos) e com uma moto-serra (9 anos) para concluir que era ajustada a pena de 7 anos.
Ora, diz, o arguido apenas usou as suas mãos, as lesões causaram um período de incapacidade de 45 dias para a cura, sendo que as repercussões permanentes na vida da ofendida têm que ver com cefaleias, ao contrário das vítimas de todos os acórdãos citados na motivação, nos quais, evidentemente, as vítimas ficaram com um dano estético assinalável e até privadas dos sentidos e de membros.
Conclui, então que satisfaria as necessidades de prevenção geral e especial a aplicação de uma pena de 3 anos, suspensa na sua execução por igual período com regime de prova, frequentando o arguido curso da DGRS para controlar a violência e para a sua dissuasão, o que seria suficiente para afastá-lo da prática de crimes.
            Vejamos.
Face à moldura penal abstrata de pena de prisão multa de 10 a 120 dias [cfr. arts. 132º, nº1, 23º, nº2 e 73º, nº1, als. a) e b), todos do Código Penal], o Tribunal recorrido condenou o arguido na pena de 7 anos de prisão.
Conforme decorre do art. 40º, nº 1, do Código Penal, a aplicação das penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
            Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (nº2 do art. 40º do C.P.).
            Segundo Figueiredo Dias[20], quanto aos fins das penas, predomina «a ideia de que só as finalidades relativas de prevenção, geral e especial, não finalidades de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reações específicas. Num contexto em que a prevenção geral assume o primeiro lugar, como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação, do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida, em suma, na expressão de Jackobs, como estabilização contrafática das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida».   
            O mesmo insigne autor, após expor a teoria penal por si defendida no que tange ao problema dos fins das penas, conclui do seguinte modo[21]:
            «(1) Toda a pena serve as finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial; (2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; (3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; (4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função das exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excecionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais».      
Idêntico ensinamento é fornecido por Maria João Antunes, in “Penas e Medidas de Segurança”, Almedina, 2020 (reimpressão), p. 45, nos seguintes termos:
            «A medida da pena tem de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos, em face do caso concreto, num sentido prospetivo de tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da vigência da norma infringida. Um critério de necessidade da pena que não fornece, contudo, um quantum exato de pena. Fornece somente a medida ótima de tutela dos bens jurídicos e das expetativas comunitárias e o ponto abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função de tutela do ordenamento jurídico. Ponto que não tem de coincidir com o limite mínimo da moldura legal, podendo situar-se acima dele. Neste sentido, é a prevenção geral positiva (e não a culpa) que fornece uma moldura dentro da qual vão atuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que, em última instância, vão determinar a medida da pena. Constituindo a culpa o limite inultrapassável de quaisquer considerações preventivas – em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (art. 40º, nº2, do CP) -, a culpa fornece somente o limite máximo da pena.»
Assim, na proteção de bens jurídicos está ínsita uma finalidade de prevenção de comportamentos danosos que afetem tais bens e valores (prevenção geral) como também a realização de finalidades preventivas que sejam aptas a impedir a prática pelo agente de futuros crimes (prevenção especial negativa).
            As finalidades das penas na sua vertente de prevenção positiva geral e de integração ou prevenção especial de socialização conjugam-se na prossecução do objetivo comum de, por meio da prevenção de comportamentos danosos, proteger bens jurídicos comunitariamente valiosos cuja violação constitui crime.[22]
            Casuisticamente, a finalidade de tutela e proteção de bens jurídicos há de constituir o motivo fundamento da medida da pena, da tutela da confiança das expectativas da comunidade na validade das normas e especificamente na validade e integridade das normas e dos correspondentes valores concretamente afetados.
            Por seu turno, a finalidade de reintegração do agente na sociedade há de ser casuisticamente prosseguida pela imposição de uma pena cuja espécie e medida, determinada por critérios derivados das exigências de prevenção especial, se mostre adequada e seja exigida pelas necessidades de ressocialização do agente, ou pela intensidade da advertência que se revele suficiente para realizar tais finalidades.
            Nos limites da prevenção geral de integração e de prevenção especial de socialização deverá ser encontrada a medida concreta da pena, sempre de acordo com o princípio da culpa que, como vimos, nos termos do art. 40º, nº 2, do Código Penal, constitui limite inultrapassável da prevenção a realizar através da pena.
            A operação de fixação da pena, dentro dos sobreditos limites, faz-se, segundo o art. 71º, nº 1, do Código Penal, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. Atendendo-se, conforme prescreve o nº 2 do mesmo preceito legal, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, nomeadamente:
            - Ao grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente – al. a); 
            - À intensidade do dolo ou da negligência – al. b);
            - Aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram- al. c);
            - Às condições pessoais do agente e a sua situação económica – al. d);
            - À conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime – al. e); e
            - À falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena – al. f).
            No caso vertente, no que tange à determinação da medida da pena, o Tribunal a quo fundamentou a decisão nos seguintes termos [transcrição]:
«Dentro dos limites das penas de prisão acima referidas para os crimes em confronto
teremos, portanto, de elaborar a dosimetria cingidos à regra do art. 71º do C.P. vigente, valorando: a culpa do agente, a concorrência de circunstâncias agravantes ou atenuantes estranhas à tipicidade e a satisfação das exigências preventivas (geral e especial).
Assim, valora-se:
a)Em desfavor do arguido:
- O bem jurídico protegido pelo crime de homicídio não chegou a ser violado, dado que estamos perante uma tentativa. Porém, os actos de execução do crime provocaram um perigo concreto de vida para a ofendida, que apenas não faleceu por motivos alheios à vontade do arguido. O desvalor do comportamento do arguido é, assim, muito acentuado;
- O grau de ilicitude é muito elevado, atendendo ao modo de actuação do arguido (o arguido actuou com extrema violência e brutalidade, com as próprias mãos, fazendo-se valer da superioridade física e posicional, tendo inclusivamente colocado terra e erva no interior da boca da ofendida/assistente e colocado uma mão em cima da boca e do nariz da ofendida, impedindo-a de respirar normalmente; a calma com que actuou, demonstrativa da frieza e insensibilidade pela vida da ofendida; o arguido só parou quando a vítima não tinha qualquer reacção) e às relevantes consequências que daí advieram para a pessoa da ofendida;
- O grau de culpa é muito elevado, sendo o dolo directo e intenso;
- Os sentimentos manifestados no cometimento do crime – comportamento socialmente desajustado e absolutamente desconforme com as regras básicas de convivência humana;
- O motivo que esteve na origem do comportamento e que estão na incapacidade de o arguido, perante a circunstância de ter encontrado a sua namorada (aqui ofendida) e EE a conversar nos termos dados como assentes e imbuído por ciúme, em adoptar um comportamento socialmente aceitável;
- As necessidades de prevenção geral são elevadíssimas, impondo uma resposta firme e severa por parte dos Tribunais, como forma de, por um lado, repor a confiança da comunidade na efectiva tutela penal dos interesses protegidos pela incriminação (a pena assume aqui um papel de confiança, pedagógico e de fortalecimento do próprio ordenamento jurídico – cfr. Ac. do S.T.J. de 11-02-2010 in www.dgsi.pt., proc. n.º 23/09.4GCLLE.S1) e, pelo outro (embora com muito menor relevância), intimidar a generalidade das pessoas para que não cometam factos semelhantes. Essas razões de prevenção são fundamentalmente sustentadas, por um lado, pelo facto de o crime aqui tentado proteger o bem jurídico fundamental ou primeiro – a vida – e pela circunstância de a prática deste tipo de crimes – especialmente entre pessoas que estão ou estiveram especialmente relacionadas por ligações de casamento, união de facto ou namoro – se continuarem a multiplicar por todo o país (e, de modo muito significativo, também nesta comarca ...).
b) Em favor do arguido:
- O facto de não ter antecedentes criminais registados;
- A circunstância de o arguido ter hábitos de trabalho regulares;
- O facto de, à data dos factos, se encontrar inserido pessoal, profissional e socialmente;
- O facto de, no dia em que foi detido, ter colaborado com as autoridades policiais;
- A circunstância de o arguido ter confessado parcialmente os factos e ter verbalizado arrependimento;
- O facto de o arguido revelar dispor de competências pessoais que lhe permitem compreender as normas e regras de funcionamento da vida em sociedade, apresentando capacidade para, em abstracto, perceber e identificar a ilicitude das problemáticas criminais em causa e suas consequências;
- O facto de o arguido ter vindo a revelar, no estabelecimento prisional em que se encontra, uma conduta de acordo com o normativo institucional, ter aceite uma actividade laboral em meio prisional e beneficiar de visitas de amigos e de contactos telefónicos com a mãe e com a irmã.
Ainda a propósito da medida da pena, importa referir que se concorda integralmente com o entendimento sufragado na fundamentação do Ac. do S.T.J. de 23-03-2017, in www.dgsi.pt. , proc. n.º 267/15.0PAPTS.L1.S1 de que as exigências de prevenção especial de socialização não constituem, normalmente – e o caso dos autos apreço não é excepção –, “nos casos de homicídio, um factor com relevo significativo na determinação da medida da pena porque, quando é posto em causa o bem jurídico vida sobreleva, decisivamente, a necessidade e a medida da sua tutela.”.
Destarte, tudo ponderado, atendendo aos limites abstractos das penas de prisão acima referidos, fazendo apelo a critérios de justiça, adequada proporcionalidade entre a
gravidade do crime e a culpa do arguido (não descurando outras situações julgadas pelos
tribunais superiores – por exemplo, no Ac. da R.E. de 25-09-2018, in www.dgsi.pt., proc. n.º 55/17.9JAPTM.E1, em que, em síntese, foi aplicada uma pena de 10 anos de prisão pela prática do crime de homicídio qualificado na forma tentada mediante o despejo sobre a vítima de ácido sulfúrico e/ou ácido clorídrico que lhe determinaram, além do mais, 90 dias de doença com afectação para o trabalho geral; No Ac. do S.T.J. de 21-10-2015, in www.dgsi.pt., proc. n.º 244/14.8GBPMS, em que, em resumo, foi aplicada a pena de 7 anos de prisão pela prática de crime de homicídio qualificado na forma tentada desferindo golpes no pescoço e no corpo da vítima com faca de uso doméstico com 8 cm. de comprimento de lâmina, provocando na vítima 20 dias de doença, com incapacidade para o trabalho geral e habitual; do Ac. do S.T.J. de 23-03-2017, in www.dgsi.pt. , proc. n.º 267/15.0PAPTS.L1.S1 em que, em suma, foi aplicada a pena de 9 anos de prisão, a um arguido de 19 anos de idade, pela prática de crime de homicídio qualificado na forma tentada, mediante a utilização de motosserra ligada, golpeando a vítima no tórax, pernas, cabeça, face, pescoço e pernas, causando-lhe 120 dias de doença, com afectação de capacidade para o trabalho e das actividades domésticas), não descurando a ideia de uma certa intimidação e dissuasão ou de pura prevenção geral negativa, é justa a imposição ao arguido pela prática, em autoria material e na forma tentada, do crime de homicídio qualificado a que se reportam os autos, da pena de 7 anos de prisão.»
Compulsada a sobredita argumentação, cumpre expressar a nossa adesão às considerações ali tecidas sobre as exigências de prevenção geral e especial verificadas no caso, bem assim no que concerne aos demais concretos fatores de determinação da pena ali convocados.
Exceciona-se a referida atuação calma do arguido que, como supra se decidiu, não devia ter sido dada como provada. Contudo, tal facto não impede a conclusão igualmente firmada pelo Tribunal recorrido, e abaixo por nós reafirmada, de que o modo de atuação do arguido demonstra particular insensibilidade pelo sofrimento da vítima.
Por outro lado, salvo o devido respeito, não colhem as objeções deduzidas pelo recorrente.
Como está provado e acima se acentuou, a discussão que o arguido manteve com a ofendida foi por si encetada, por ciúme, mas sem que este sentimento fosse minimamente justificado por qualquer comportamento menos próprio da vítima.
Não descortinamos, pois, como sucedeu com o Tribunal a quo, qualquer valência atenuativa nas sobreditas circunstâncias.
Não se encontra provado que arguido e ofendida se encontrassem alcoolizados e, muito menos, que tal circunstância tivesse motivado a atuação levada a cabo pelo primeiro.
Também não se concorda com a asserção recursória de que o modo de execução do crime não foi especialmente desvalioso, dado não ter utilizado qualquer instrumento contundente para dar morte à ofendida.
A circunstância de o arguido ter usado as mãos para cometer os factos agressores não branqueia a extrema violência exercida sobre a vítima, atentas as reiteradas agressões cometidas, que incluiriam o apertar do seu pescoço, o desferimento de fortes socos na cabeça, cara, nariz, boca, ombros e no peito, o agarrar dos cabelos, o repetido batimento da sua cabeça contra o solo, levando-a a engolir sangue, e ainda o enchimento da boca da ofendida com terra e erva seca, impedindo-a de respirar normalmente e fazendo com que começasse a sufocar; tudo isto num cenário de superioridade física do arguido.
O facto de o arguido ter utilizado as mãos para agredir, reiterada e violentamente, a vítima, num contexto de extrema proximidade física entre eles, permite concluir pela extrema insensibilidade demonstrada por aquele face ao notório e progressivo sofrimento manifestado pela ofendida (sua namorada), não se coibindo de continuar as agressões apesar desse notório sofrimento que causava, e mesmo após aquela clamar por misericórdia (chamando por Deus) e ter simulado, convincentemente, a sua morte.
Aliás, este tipo de comportamentos, assim como aqueles de idêntico jaez em que o agressor utiliza uma arma, são assertivamente considerados como demonstrativos de maior “coragem” e tendência violenta por banda dos executores, relativamente, por exemplo, a quem dispara sobre a vítima à distância, com uma arma de fogo, precisamente pela necessária proximidade que naqueles casos existe entre o homicida” e a vítima.
Acresce que se a tentativa de homicídio tivesse ocorrido com recurso do arguido a uma motosserra ou a ácido sulfúrico, como sucedeu em dois dos arestos citados pelo Tribunal a quo a título comparativo – comparação que o recorrente ora recupera –, resultaria, no caso, a ocorrência de uma nova circunstância qualificativa do crime – utilização de meio particularmente perigoso – que, a acrescer às demais verificadas, redundaria no agravamento da responsabilidade jurídico-penal do arguido.
Diga-se até, com o devido respeito, que não se vislumbra a pertinência da invocação feita na douta decisão recorrida de outras decisões judiciais atinentes a crimes da mesma natureza, porquanto, como é sabido, não existe qualquer bitola ou tabela punitiva a seguir no nosso ordenamento jurídico e a determinação da medida da pena é uma operação iminentemente casuística, dependente que está do circunstancialismo fático relevante apurado em cada caso, o qual é, em regra, singular e irrepetível.
 Quanto à consequência ao nível da incapacidade para o trabalho resultantes para a ofendida das lesões sofridas, cumpre notar que o respetivo período decorreu de 05-09-2021 a 27-02-2022 (cf. facto provado nº 42), não sendo de 45 dias como erroneamente invoca o recorrente.
As consequências que advieram da tentativa de homicídio para a assistente são relevantes, incluindo ainda a necessidade de ajuda de terceira pessoa por cerca de um mês, de apoio psicológico, emocional e social, alterações no seu quotidiano, a nível pessoal, social e profissional, necessidade de tratamento medicamentoso, e dores, sofrimento e agonia, ainda sentidas.
Dito isto, julgamos que, considerado o concreto circunstancialismo fático verificado in casu, a medida da pena de prisão cominada ao arguido, situando-se muito próxima do terço e abaixo do meio da moldura penal aplicável, mostra-se adequada, suficiente e proporcional a acautelar os fins de jaez preventivo que subjazem à aplicação da sanção criminal (e dentro do limite imposto pela culpa manifestada pelo arguido).
            Ponderados todos os enunciados factos e considerações, em especial as atinentes à ilicitude dos factos, à intensidade da culpa e, sobretudo, à necessidade da pena, ressuma, pois, que a pena aplicada pelo tribunal de primeira instância adequa-se e revela-se idónea à satisfação das necessidades de afirmação dos bens jurídicos violados, bem como à finalidade de procurar que o arguido não volte a delinquir.
            Ou seja, a pena concretamente aplicada respeita o exigido pela tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, pelo que a redução da mesma, nos termos preconizados pelo arguido/recorrente, não é sustentável, sob pena de se colocar em causa a crença da comunidade na validade das normas jurídicas violadas e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais, bem como, na medida do possível, a finalidade de reintegração social do condenado.
Aliás, como ensina o Professor Figueiredo Dias [“Direito Penal Português II, As Consequências Jurídicas do Crime”, 3ª Reimpressão, Coimbra Editora, 2011, p. 197] a propósito da controlabilidade da pena em sede de recurso, na determinação do seu quantum, a sindicância recursória deverá reservar-se para as hipóteses em que tiveram sido violadas regras de experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada, o que não sucede no caso vertente.
Uma vez que a medida concreta da pena de prisão não permite a suspensão da sua execução, fica prejudicado o conhecimento sobre esta questão
Improcedem, destarte, tais pretensões recursórias.



            III.12 – Do quantum indemnizatur:

            Alega o arguido/recorrente que o valor fixado pelo acórdão é muito próximo daquele que os tribunais atualmente fixam pelo dano morte, sendo que a ofendida sofreu 45 dias de incapacidade e ficou com sequelas permanentes, embora não desprezíveis, diminutas em face de casos idênticos, pelo que uma indemnização fixada em 20.000 € satisfaria as exigências de equidade, reprovação e compensação do mal sofrido [conclusão 144ª].
            Analisando.
            O Tribunal fundou a sua decisão quanto ao pedido de indemnização civil formulado pela demandante AA contra o demandado BB nos seguintes termos:
«Com efeito, da factualidade descrita na matéria de facto sob os n.ºs 19., 22., 31., 37. a 44., 46. a 52., 54. a 58. resultam relevantes e graves danos não patrimoniais (dado que enquanto decorriam as agressões supra descritas e por força delas a ofendida/assistente pensou que ia morrer naquele tempo e local; por força das agressões existiram alterações no quotidiano da vítima, sofrimento a nível pessoal, social e profissional; incapacidade de estar com pessoas com características físicas similares às do arguido; stress pós-traumático; o facto de a ofendida evitar sair de casa e andar sozinha, o isolamento da ofendida; o medo atroz; o facto de a ofendida ter constantes pesadelos, culpabilizando-se pelo sucedido; o sentimento de insegurança da ofendida; a circunstância de a ofendida ter tido ataques de ansiedade; a ofendida/assistente continua a sentir fortes dores de cabeça e tonturas; a ofendida sente-se humilhada, ameaçada, tendo inúmeros episódios de ansiedade e diminuída na sua dignidade; o facto de a ofendida reviver diariamente o dia das agressões e o momento em que “viu a morte á sua frente” e a perda das suas filhas; o facto de a demandante sentir que não consegue voltar a ter intimidade, sentindo-se incapaz de ter um companheiro; não descurando as dores físicas que as lesões sofridas certamente lhe provocaram).
O objectivo da reparação dos danos morais, para além de reprovar ou castigar, no plano civilístico, a conduta do agente, é o de proporcionar ao lesado, através do recurso à equidade, uma “compensação ou benefício de ordem material (a única possível), que lhe permite obter prazeres ou distracções – porventura de ordem puramente espiritual – que, de algum modo, atenuem a sua dor: não consistiria num pretium doloris, mas antes numa compensatio doloris” (cfr. Pessoa Jorge in Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, Almedina. 1999, p. 375).
Deverá ter-se ainda em conta que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça em matéria de danos não patrimoniais tem evoluído no sentido de considerar que a indemnização, ou compensação, deverá constituir um lenitivo para os danos suportados, não devendo, portanto, ser miserabilista. A compensação por danos não patrimoniais, para responder actualizadamente ao comando do art. 496.º e constituir uma efectiva possibilidade compensatória, tem de ser significativa, viabilizando um lenitivo para os danos suportados e, porventura, a suportar.
Os danos supra descritos, sofridos pela demandante nestes autos, por não revestirem natureza económica, são danos não patrimoniais que, pela sua relevância e gravidade, são susceptíveis de ofender e ofenderam, de modo extremamente relevante, a personalidade física e psíquica da ofendida, demandante nestes autos – direitos de personalidade –, pelo que são merecedores de uma adequada reparação pecuniária.
Nesta determinação monetária não podemos deixar de ter em consideração as circunstâncias que determinaram os danos que mereceram a supra referida censura penal mas também agora civil, ou seja, os factos ocorreram sem qualquer justificação, no âmbito da prática de actos ilícitos culposos criminais de tentativa de que a demandante cível foi vítima.
Portanto, tudo factores que se reflectem na ilicitude e na culpa da conduta do arguido e demandado e que necessariamente se deve reflectir no montante indemnizatório a atribuir ao lesado.
Para além disso, ter-se-á em consideração a situação económica do arguido/ demandado nos termos julgados provados e da demandante civil (vide a factualidade julgada como provada e o que se apurou a este respeito, que agora aqui temos em consideração).
Ora, tendo presente a matéria de facto dada como provada (e todos os danos não patrimoniais apurados) e os critérios supra enunciados para a determinação do montante indemnizatório, entendemos avaliar, de acordo com um juízo de equidade, os danos (não patrimoniais) em causa no montante de 60.000,00 €.»
            O expendido pelo Tribunal a quo merece a nossa inteira concordância.
            Com efeito, o demandado, com a sua conduta ilícita e culposa, atentou contra o bem jurídico supremo, isto é, a vida humana.
            Os danos de cariz não patrimonial causados à lesada pelo demandado são assaz relevantes, pois que consubstanciados em lesões corporais e abalo psíquico-emocional impressivos, mormente ao nível do medo pela perda da vida que esta, desafortunadamente, sentiu aquando da prática dos factos e subsequentemente, o mesmo valendo para as sequelas daí derivadas, que afetaram e continuam a afetar sobremaneira o modo de vida da ofendida.
            O grau de culpa do lesante é intenso.
            As condições económico-financeiras das partes são modestas.
            Tudo ponderado, e afastada que cada vez mais está uma certa prática jurisprudencial que frequentemente era apontada como “miserabilista” ao nível da fixação de indemnizações, entendemos que o montante indemnizatório fixado pelo Tribunal a quo como compensação dos danos não patrimoniais sofridos pela lesada/demandante civil se afigura proporcional e equitativo.
            Por conseguinte, improcede, nesta parte, o douto recurso.  

*

IV - DISPOSITIVO:

            Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em:
 
IV.1 – Nos termos conjugados dos artigos 410º, nº2, al. c) e 431º, ambos do Código de Processo Penal, modificar a decisão sobre a matéria de facto operada no douto acórdão recorrido no que tange ao ponto 34 dos factos provados, no segmento em que refere ter o arguido atuado “com calma”, que passa a integrar a factualidade não provada.

IV.2 – Quanto ao mais, julgar improcedente o douto recurso e, consequentemente, manter integralmente a douto acórdão recorrido.

Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC (arts. 513º, nº1, 514º, ambos do CPP, arts. 1º, 2º, 3º e 8º, nº 9, todos do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa ao mesmo), sem prejuízo da proteção jurídica na respetiva modalidade de que beneficia (cf. fls. 267).

*

Atento o disposto no art. 215º, nº6, do CPP, comunique desde já a presente decisão ao tribunal de primeira instância.
Notifique (art. 425º, nº6, do CPP).
*           
        Guimarães, 17 de abril de 2023, 

                                                                                           Paulo Correia Serafim (Relator)
                                                                                          [assinatura eletrónica]
                                                                                       
                                                                                 Pedro Freitas Pinto (Adjunto)
                                                                                                           [assinatura eletrónica]

                                                                                Paulo Almeida Cunha (Adjunto)
                                                                                                           [assinatura eletrónica]


(Acórdão elaborado pelo relator e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos – cfr. art. 94º, nº 2, do CPP)


[1] Cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, UCE, 2008, anot. 3 ao art. 402º, págs. 1030 e 1031; M. Simas Santos/M. Leal Henriques, in “Código de Processo Penal Anotado”, II Volume, 2ª Edição, Editora Reis dos Livros, 2004, p. 696; Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2018, pág. 335; o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que ainda hoje mantém atualidade.
[2] Neste sentido, praticamente unânime na jurisprudência, vejam-se, a título exemplificativo, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.06.2003, Processo nº 2019/2003, in www.verbojurídico.pt; os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 10.03.2021, Processo nº 368/19.7JAAVR.P1, in www.jurisprudência.pt, de 09.10.2002, Processo nº 0240907, in www.dgsi.pt, de 08.04.2015, Processo nº 177/10.7TABGC-A.P1, in www.jurisprudência.pt; o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15.12.2022, Processo nº 158/21.5GCSNT-A.L1.9, in www.dgsi.pt; e o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 09.01.2018, Processo nº 222/14.8GCSTR.E1, in www.dgsi.pt.
[3] Neste sentido, Conselheiro Santos Cabral, in “Código de Processo Penal Comentado”, 3ª Edição Revista, António Henriques Gaspar e outros, Almedina, 2021, comentário 5 ao art. 150º, págs. 577-578; Tiago Caiado Milheiro, in “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, António Gama e outros, Tomo II, Almedina, 2019, IV, § 13, págs. 375-376; Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28.01.2015, proferido no Processo nº 1150/09.3GCVIS.C1, in www.dgsi.pt.     
[4] Como refere Paulo de Sousa Mendes (in “As Proibições de Prova no Processo Penal”, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, p. 137), a velha máxima de que o processo penal é direito constitucional aplicado tem toda a razão de ser no campo da obtenção dos meios de prova, uma vez que a Constituição elevou à categoria dos direitos fundamentais a conciliação das provas com a dignidade da pessoa humana.
Nas múltiplas garantias constitucionais do processo criminal cabem as proibições de prova subentendidas na cominação de nulidade de “todas as provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa…” (art. 32º, nº4 da CRP).
A tortura, a coação ou a ofensa da integridade física ou moral da pessoa em geral são métodos absolutamente proibidos de obtenção de meios de prova – cfr. art. 126º, nºs 1 e 2 do CPP.
[5] Assinado pelo arguido em hora não concretamente identificada no termo, mas sempre posterior à nomeação da ilustre defensora oficiosa, Dra. XX, ou seja, pelo menos posteriormente às 11h39 do dia 05.09.2021, como decorre da “cota” lavrada nos autos a fls. 50. 
[6] Neste sentido, a título exemplificativo, Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª Edição, UCE, p. 432; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.07.2001, CJSTJ, Ano IX, III, p. 166 e ss.; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23.10.2017, Processo nº 20/15.0GDMDL.G1; acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27.06.2012, Processo nº 96/10.7GCVPA.P1; acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 01.04.2009, Processo nº 91/04.5PBCTB.C1, de 25.09.2013, Processo nº 681/10.7GBTMR.C1; de 25.02.2015, Processo nº 127/09.3GCSCD.C1, e de 17.05.2017, Processo nº 225/12.6GCSCD.C1, acessíveis in www.dgsi.pt. 
[7] Neste sentido, a título exemplificativo, Conselheiro Santos Cabral, ibidem, comentário 16 ao art. 150, p. 583-584; Tiago Caiado Malheiro, ibidem, c), § 24, pp. 381-382; acórdãos do STJ de 11 de Dezembro de 1996 ( BMJ n.º 462, pág. 299), de 22 de Abril de 2004 (C.J., ano XII, tomo 2.º, pág. 165), de 5 de Janeiro de 2005 (CJ., n.º 181, pág. 159), de 20 de Abril de 2006, proc. n.º 06P363 (www.dgsi.pt/jstj), de 14 de Junho de 2006, proc. n.º 06P1574 (www.dgsi.pt/jstj), do Tribunal da Relação de Guimarães de 11.01.2016, Processo nº 112/14.3GBMDL.G1; do Tribunal da Relação do Porto, de 12 de Dezembro de 2007 (CJ, ano XXXII, 5.º, pág. 215); e do Tribunal da Relação de Coimbra, de 1 de Abril de 2009, no proc. n.º 91/04.5PBCTB.C1 (www.dgsi.pt/jtrc) e de 26 de Maio de 2009, no proc. n.º 94/07.8GBCNT.C1.   
[8] In “Código de Processo Penal Comentado”, de António Henriques Gaspar, José António Henriques dos Santos Cabral, Eduardo Maia Costa, António Jorge de Oliveira Mendes, António Pereira Madeira e António Pires Henriques da Graça, 3ª Edição Revista, 2021, Almedina, comentário 10 ao art. 1º, p. 16.
[9] Neste sentido, vejam-se, entre outros, os Acórdãos do STJ de 13/10/1992, in CJ, Ano XVII, 1992, tomo I, p.36, de 21/03/2007, processo nº 07P024, disponível em www.dgsi.pt, de 23/04/2008, in CJSTJ, tomo II, p. 205, e de 08/01/2014, processo nº 7/10.0TELSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[10] “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, in “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, Almedina, p. 265.
[11] “Gestão Processual: Tópicos Para Um Incremento da Qualidade da Decisão Judicial”, in Revista Julgar, nº10, 2010, págs. 142 e 143. 
[12] Neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 16.02.2005, relator Desembargador Clemente Lima, in www.dgsi.pt, e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.09.1995, in CJSTJ, ano III, Tomo II, p. 189 e ss. 
[14] O salário mínimo nacional vigente no ano de 2021 correspondeu ao valor mensal de € 665,00 (cf. DL 109-A/2020, de 31.12)
[15] Conselheiro Sérgio Gonçalves Poças, ibidem, p. 29.
[16] Entre muitos outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 02/02/2011, processo 308/08.7ECLSB.S1; do Tribunal da Relação de Coimbra de 09/03/2018, processo 628/16.7T8LMG.C1, de 03/06/2015, processo 12/14.7GBSTR.C1, de 14/01/2015, processo 72/11.2GDSTR.C1, e de 17/12/2014, processo 872/09.3PAMGR.C1; e do Tribunal da Relação de Lisboa de21/05/2015, processo 3793/09.6TDLSB.L1-9, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
[17] Cfr. informação médica disponível em www.chleiria.pt.
[18] Contrariamente, casos há em que pode afirmar-se a especial censurabilidade ou perversidade do agente, apesar da não verificação de qualquer daquelas circunstâncias agravantes típicas (casos de homicídio qualificado atípico).
[19] Adotando tal entendimento neste Tribunal da Relação de Guimarães, veja-se, por todos, o acórdão de 11.09.2017, Processo nº 1744/16.0JAPRT.G1, relatado pela Exma. Desembargadora Ausenda Gonçalves, disponível em www.dgsi.pt.
[20] “Direito Penal Português, Tomo II - As Consequência Jurídicas do Crime”, 1993, pp. 72-73.
[21] “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, 2007, pp.78-85.
[22] Conforme menciona Manuel Augusto Barros Lopes, in “Sobre Um Caminho Para a Pena”, 2022, p.110, a finalidade da pena «(…) no modo de prevenção geral positiva ou integração, aposta no reforço da confiança ou consciência comunitária na validade da ordem jurídica. Existindo pertinência do bem jurídico a pena exerce uma função pedagógica dirigida à interiorização dos bens jurídico-penais pela consciência jurídica comunitária, uma função de pacificação social. (…) Por seu turno, a prevenção especial assume natureza acautelar a prática de futuros crimes, quer pelo mesmo agente no polo em que fulmina enquanto negativa, quer por possíveis agentes diversos no polo em que atrai como positiva. (…) no modo de especial positiva adota a regeneração, reeducação, ressocialização ou reinserção social como desígnio.»