Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
270/16.2T9CHV.G1
Relator: FÁTIMA BERNARDES
Descritores: RAI
FALSIDADE DE TESTEMUNHO
OMISSÃO DE FACTOS
REJEIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/05/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
É de rejeitar por inadmissibilidade legal da instrução o RAI apresentado pelo assistente que omite os factos suscetíveis de integrarem os elementos subjetivos típicos, designadamente, o dolo, do crime de falsidade de testemunho do artº 360º, do CP, cuja prática imputa aos arguidos, não sendo, em face daquela omissão, os factos constantes do RAI suficientes para fundamentar a aplicação de uma pena aos arguidos, sendo certo que o convite ao aperfeiçoamento daquela peça processual é inadmissível, in casu, e não podendo a falta de descrição dos factos em questão ser suprida, por via do disposto no artº 303º, do CPP.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Penal, do Tribunal da Relação de Guimarães:

1 – RELATÓRIO

Neste processo nº. 270/16.2T9CH, do Tribunal Judicial da Comarca de Vila do Conde – Juízo Local Criminal de Chaves, tendo sido denunciados Joaquim e José findo o inquérito, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento, ao abrigo do disposto no artigo 277º, nº. 1, do C.P.P., por entender não existirem indícios que permitam imputar aos arguidos a prática de factos denunciados que integrariam o crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360º do C.P.

A denunciante Maria constituiu-se assistente e requereu a abertura de instrução, tendo o requerimento apresentado tendo em vista esta última, sido rejeitado por mesmo ser legalmente inadmissível, nos termos do disposto no artigo 287º, nº. 3, do C.P.P, mormente por não descrever nenhum facto concreto ao nível do elemento subjetivo do tipo legal de crime que é imputado ao arguido e a deficiência de que enferma ser insuprível, conforme jurisprudência fixada no AFJ nº. 7/2005, de 12/05/2005.

Não se conformando com o assim decidido, recorreu a assistente, para este Tribunal da Relação, apresentando motivação e dela extraindo as seguintes conclusões:

1 - O presente recurso vem interposto do douto despacho do Mmo. Juiz de Instrução que rejeitou o requerimento de abertura de instrução apresentado pela Recorrente, com o fundamento no mês mo ser legalmente inadmissível e insuprível (art° 283 n° 3 do Código de Processo Penal).
2 - Porquanto no entender do Meritíssimo Juiz de Instrução, a Assistente no RAI não imputa aos Denunciados nenhum facto concreto ao nível do elemento subjectivo, e que possa consubstanciar a prática do ilícito penal imputado.
3 - Salvo o devido respeito, o RAI apresentado preenche todos os requisitos legalmente previstos.
4 - A Assistente ora Recorrente discordou do arquivamento dos presentes autos primeiramente porque nunca foi chamada a prestar declarações complementares sobre os factos, como por norma ocorre.
5 - Não tendo por isso, oportunidade de fazer a junção de mais documentos, conforme pretendia, tendo acabado por fazê-lo no seu requerimento de abertura de instrução.
6 - No RAI também descreveu a factualidade que considera ser consubstanciadora dos ilícitos praticados pelos dois denunciados.
7- O Denunciado José Declarou sobre Joaquina que “Ela deve ter feito o testamento aí um ou dois meses antes de entrar em casa dos primos”, quando o testamento é datado de 2007, e Joaquina mudou-se para a residência de António no ano de 2006.
8 - Declarando ainda que “(…) a Senhora esteve sempre num estado perfeito, senhora de si (…)” quando o relatório do gabinete medico-legal junto aos autos, diz precisamente que esta padecia de demência senil, pelo menos desde 2006.
9 - Por seu turno, António A. afirmou ter visto Joaquina nas festas de Folgosa, Maia, em 2008/2009, quando segundo a testemunha Bruna e a documentação médica junta, aquela acamou definitivamente em 2009.
10 - Assim, da leitura do conteúdo da documentação junta, e da audição dos depoimentos prestados pelos Denunciados, facilmente se entende que os mesmos estão feridos de falta de verdade, consubstanciando por isso o crime de falsidade de testemunho.
11 - Ao artigo 360º do CP exige-se é que o agente tenha a consciência da falsidade da declaração, não exige o tipo penal a prova da “verdade” que deveria ter constado do depoimento verdadeiro, nem a certeza sobre a data da consumação do crime, APENAS A CONSCIÊNCIA.
12 - Não há dúvidas quanto à intenção e convicção dos Denunciados, até porque, que se saiba, não se encontravam em estado de inimputabilidade ou erro, na data em que prestaram os seus depoimentos desprovidos de verdade, pelo que o intuito dos mesmos era efectivamente faltar à verdade ao tribunal.
13 - O Requerimento de abertura de instrução apresenta todos os requisitos legalmente exigidos para a sua admissibilidade, nomeadamente: a discordância quanto ao arquivamento nos seus artigos 4º a 39º; a indicação dos actos de instrução que a Assistente pretende que sejam levados a cabo (declarações dos denunciados e prova por acareação); a indicação e junção de meios de prova não juntos na fase inicial do inquérito (vide artigos 40º, 41º, 43º, 45º); indicação dos factos que se pretende serem dados como provados (vide artigos 23º a 38º); a narração dos factos que fundamentam a aplicação aos denunciados de uma pena ou de uma medida de segurança, inclusive, em termos de lugar e tempo da sua prática (vide artigos 11.º a 35º) e por último a indicação das disposições legais aplicáveis (vide artigos 46.º e 47º).
14 - Com todo o respeito, dos factos constantes no requerimento para abertura de instrução podem inferir-se os elementos subjectivos do tipo.
15 - Tal requerimento contém factos que permitem assacar aos denunciados a prática do crime de falsidade de testemunho, assim como a sua vontade e convicção ao fazê-lo.
16 - Para além do que, não está o juiz de instrução dispensado de investigar, como bem decorre do que se estatui no art. 288.°, n.º 4, do C.P.P., aditando esse facto á decisão, caso se prove toda a factualidade que o suporta, tendo em conta o que se dispõe nos arts.303º, n.º 1 e 358.°, n.º 1, ambos do C.P.P.
17 - O Meritíssimo Juiz de Instrução, com o fundamento invocado, não pode rejeitar o requerimento do assistente da forma como o fez.
18 - O despacho ora posto em crise deve por isso ser revogado e substituído por outro que admita o requerimento de abertura de instrução, seguindo-se os ulteriores termos do processo.
19 - O douto despacho impugnado viola o disposto nos artigos 287º, nº 1,2 e 3 e 283º, nº 1 e 3 Código de Processo Penal, bem como, o artigo 20.° da Constituição da República Portuguesa.
20 - Violação que determina a invalidade daquela decisão e a sua substituição por outra que admita o requerimento de abertura de instrução apresentado pela Recorrente e declare aberta a fase de instrução.
Termina a recorrente pugnando para que o recurso seja julgado procedente e, em consequência, que o despacho recorrido deve ser substituído por outro que declare aberta a instrução.
O recurso foi regularmente admitido.

O Ministério Público, junto da 1ª Instância, apresentou resposta ao recurso interposto pela assistente, nos termos constantes de fls. 138 a 152, formulando, a final, as seguintes conclusões:

A) Foi proferido a fls. 100-112 (ref.ª 30560608) despacho judicial de rejeição do requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente Maria, por o mesmo ser legalmente inadmissível e insuprível, atento o preceituado no art.º 287º, n.º3 do Código de Processo Penal (doravante, apenas C.P.P.), com o consequente arquivamento dos autos;
B) Tendo o Ministério Público ordenado o arquivamento do inquérito em relação aos denunciados e tendo sido a assistente quem requereu a abertura de instrução, tinha esta, por força do disposto neste normativo, aplicável ex vi n.º2, parte final, do art.º 287.º do C.P.P., indicar, ainda que de forma sintética, os factos que fundamentam a aplicação a alguém de uma pena ou de uma medida de segurança, bem como as disposições legais aplicáveis, devendo indicar, se possível, o lugar, tempo e motivação da sua prática e o grau de participação do agente;
C) A assistente não descreve qualquer facto, limitando-se no requerimento de abertura de instrução a alegar, ainda que de forma genérica, a sua discordância em relação aquele arquivamento, discordância esta assente, apenas, na sua própria convicção;
D) A assistente não cumpriu o ónus de especificação que sobre ela impendia e tal exigência impõe-se em nome de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente, o direito de defesa e a estrutura acusatória do processo penal;
E) O juiz investiga autonomamente o caso submetido a instrução, mas tem de ter em conta e atuar dentro dos limites da vinculação factual fixados pelo requerimento de abertura de instrução;
F) Os factos têm de ser alegados pela assistente, tendo de ser a assistente e só ela a descrever e/ou concretizar “quem fez o quê, onde, sob que espécie de resolução ou vontade e com que consequências”;
G) No caso dos autos, o requerimento de abertura de instrução é total e absolutamente omisso quanto a factos e bem assim quanto aos elementos subjetivos dos crimes, o que torna a instrução irremediavelmente inadmissível, por falta de objeto (art.º 287.º, n.º3 do C.P.P.);
H) A consequência não podia ser outra senão a sua inadmissibilidade legal, atenta a nulidade plasmada no art.º 283º, n.º3, do C.P.P., como bem decidiu o Tribunal a quo.
Termina no sentido de o recurso dever improceder, confirmando-se o despacho recorrido.
Neste Tribunal da Relação, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, a fls. 195 a 196, concluindo no sentido de dever ser negado provimento ao recurso.
Cumprido o disposto no nº. 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal, a o não foi exercido o direito de resposta.
Feito o exame preliminar e, colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência. Cumpre agora apreciar e decidir:

2 – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Delimitação do objeto do recurso

É consabido que as conclusões formuladas pelo recorrente extraídas da motivação do recurso balizam ou delimitam o objeto deste último (cfr. artº. 412º do C.P.P.), sem prejuízo da apreciação das questões de natureza oficiosa.
Assim, no caso em análise, considerando os fundamentos do recurso, a única questão suscitada e que há que apreciar e decidir é a de saber se existe fundamento para que seja liminarmente rejeitado o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente.
Para que possamos apreciar a questão suscitada, importa ter presente o teor do despacho recorrido.

2.2. Decisão recorrida
O despacho recorrido é do seguinte teor:
«(…)
Requerimento para abertura de instrução (fls. 59 e ss.)
Dispõe o art.º 286º, n.º1 do Código de Processo Penal que “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”, sendo que o assistente a pode requerer, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação (art.º 287º, n.º1, al.a) do Código de Processo Penal)

Nos termos do n.º2 do art. 287º do Código de Processo Penal, o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, sendo-lhe ainda aplicáveis as als. b) e c) do n.º3 do art. 283º.

No caso, tendo o Ministério Público ordenado o arquivamento do inquérito e tendo sido o Assistente quem requereu a abertura de instrução, tinha esta, por força do disposto nas als. b) e c) do n.º3 do art. 283.º daquele código, aplicável ex vi n.º2, parte final, do art. 287.º daquele diploma legal, indicar, ainda que de forma sintética, os factos que fundamentam a aplicação a alguém de uma pena ou de uma medida de segurança, bem como as disposições legais aplicáveis, devendo indicar, se possível, o lugar, tempo e motivação da sua prática e o grau de participação do agente.
Como refere o Prof. Germano Marques da Silva no Curso de Processo Penal, vol. III, pág. 161, “O objecto do despacho de pronúncia há-de ser substancialmente o mesmo da acusação formal ou implícita no requerimento de instrução.”.

No mesmo sentido, Maia Gonçalves, no Código de Processo Penal Anotado, 9.ª edição, pág. 541, segundo o qual, “Em tal caso, de instrução requerida pelo assistente, o seu requerimento deverá, a par dos requisitos do n.º1, revestir os de uma acusação, que serão necessários para possibilitar a realização da instrução, particularmente no tocante ao funcionamento do princípio do contraditório e elaboração da decisão instrutória”.

Ou seja, regendo-se o processo penal pelos princípios do acusatório e contraditório, resulta que o requerimento de abertura de instrução, quando requerida pelo Assistente, porque é consequência de um despacho de arquivamento, deve conter todos os elementos de uma acusação, com especial relevância para a matéria de facto que descreve o ilícito que é imputado.

No que concerne ao princípio do acusatório, e assumindo este especial relevância, cumpre atender ao estatuído no n.º 5 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, que remete para o princípio do acusatório ao determinar que “o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do acusatório”.

Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada ( 3ª Edição, pág. 205-206)O princípio do acusatório na sua essência significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Rigorosamente considerada, a estrutura acusatória do processo penal implica: a) proibição de acumulações orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também um órgão de acusação; b) proibição de acumulação subjectiva a jusante do processo, isto é, que o órgão de acusação seja também órgão julgador; c) proibição de acumulação orgânica na instrução e julgamento (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª Edição, pág. 205-206)”.

Assim, e tal como refere Germano Marques da Silva, em obra citada supra, pág. 144, “o Juiz está substancial e formalmente limitado na pronúncia aos factos pelos quais tenha sido deduzida acusação formal, ou tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser objecto de acusação do MP. O requerimento para a abertura da instrução formulado pelo assistente constitui, substancialmente, uma acusação (alternativa ao arquivamento ou à acusação deduzida elo MP), que dada a divergência assumida pelo MP vai necessariamente ser sujeita a comprovação judicial”. (1)

Assim, tendo o requerimento de abertura de instrução por parte do Assistente de configurar uma acusação, é esta que condicionará a actividade de investigação do Juiz e a decisão instrutória, tal como flui, claramente, do disposto nos artigos 303º, n.º3 e 309º, n.º1 do Código de Processo Penal, sendo que a decisão instrutória que viesse a pronunciar o arguido por factos não constantes daquele requerimento, estaria ferida de nulidade.
Ora, expostas estas considerações, é manifesto que o requerimento de abertura de instrução da assistente não respeita as imposições que decorrem quer das disposições legais aplicáveis quer dos princípios de direito, uma vez que não imputa factos, de forma encadeada, para o ilícito imputado (ou os ilícitos imputados) e respectivo grau de participação, por referências às disposições legais, por forma a, também, se poder concluir que estão invocados todos os factos relativos aos elementos objectivo e, sobretudo, subjectivo do tipo legal do ilícito imputado.
Efectivamente, o requerimento de abertura de instrução não descreve a factualidade mínima necessária para que se considere estarmos perante uma acusação, pois que do seu conteúdo apenas se extrai que o assistente discorda do arquivamento, invocando apenas alguns factos soltos a título objectivo.
Ora, como já referimos supra, não é possível ao Juiz substituir-se à Assistente, colocando, por iniciativa própria, os factos em falta e que se revelam essenciais.

Como se decidiu no Acórdão da Relação de Évora de 15.11.2011, Relator: Desembargador Ribeiro Cardoso, in www.dgsi.pt:

1. Perante a notificação do arquivamento do inquérito que concluiu pela inexistência de crime, no qual não foram constituídos arguidos ou recolhidas outras provas para além do relatório da autópsia, a solução correcta passaria por uma reclamação fundamentada para o imediato superior hierárquico do Ministério Público, nos termos do art. 278.º do CPP, visando o prosseguimento das investigações pelos factos e provas aportadas e não pela instauração de processo autónomo ou pela formulação de requerimento de abertura da instrução, como foi feito.
2. Deve ser rejeitado, por inadmissibilidade legal, o requerimento de abertura da instrução em que não se indica cabalmente quem deve ser pronunciado, qual o crime ou crimes, as disposições legais aplicáveis e os elementos fácticos referentes ao dolo ou negligência.” (sublinhado nosso)
Nos termos do n.º3 do art. 287.º do Código de Processo Penal, o requerimento de abertura de instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal.
No caso, entendemos que estamos perante uma situação de inadmissibilidade legal, atenta a nulidade plasmada no art.º 283º, n.º3, sendo que esta causa de rejeição é de conhecimento oficioso. - Entre muitos outros, o Acórdão do STJ de 12.03.2009, Relator: Conselheiro Arménio Sottomayor, os Acórdão da Relação do Porto de 6.07.2011 (6790/09.8TDPRT.P1 - 1ª Sec.), Relator: Desembargador Araújo Barros, de 15.09.2010 (167/08.0TAETR-C1.P1 - 1ª Sec.), Relator: Desembargador Vasco Freitas, de 3.02.2010 (7/08.0TAMUR.P1 - 1ª Sec.), Relator: Desembargador Castela Rio, Acórdão da Relação de Coimbra de 7.01.2009 (6210/08 - 4ª Sec.), Relator: Desembargador Jorge Jacob, Acórdão da Relação de Évora 15.11.2011, Relator: Desembargador Fernando Ribeiro Cardoso, todos publicados em www.dgsi.pt).
Perfilhamos do entendimento seguido pela jurisprudência maioritária, ou mesmo unânime, dos Tribunais superiores que não há lugar ao convite ao aperfeiçoamento do requerimento apresentado pelo Assistente (vide, neste sentido, Ac. de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/2005, de 12 de Maio de 2005, in DR I Série-A, de 4/11/05 e também Ac. do Trib. da Rel. do Porto de 31/05/06 e de 1/03/06, publicados em texto integral em www.dgsi.pt), pois que, a existir, este convite colocaria em causa o carácter peremptório do prazo referido no art.º 287, n.º1 do Código de Processo Penal e a apresentação de novo requerimento de abertura de instrução, por parte do assistente, para além daquele prazo, violaria as garantias de defesa do arguido (cfr. Ac. do Tribunal Constitucional n.º 27/2001 de 31/01/01, DR 2ª série de 23/03/01 e Acórdão n.º358/04, de 19/05, publicado no DR 2ª série de 28/06/04).
Na verdade, a realização da instrução constituiria um acto inútil, na medida em que, finda a mesma, e por inexistência de qualquer imputação cabal (sobretudo do ponto de vista subjectivo) de um tipo de ilícito penal, qualquer decisão que viesse a ser proferida e que considerasse factos não alegados na instrução seria nula, pois que sempre haveria falta de objecto do processo.

Como doutamente se decidiu no Acórdão da Relação do Porto de 6.06.2012, Relator: à altura Desembargador Melo Lima, in www.dgsi.pt:

“I - A estrutura acusatória do processo penal obriga a que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados, seja na acusação, seja no requerimento de abertura da instrução equivalente a acusação.
II - Para se afirmar o elemento intelectual do dolo, não basta que o agente tenha conhecido ou representado todos os elementos do tipo legal de crime, mas é ainda necessário que tenha tido conhecimento do seu sentido ou significado, isto é, que tenha actuado com consciência da ilicitude.
III - A partir do momento em que a lei deixou de presumir o conhecimento da lei incriminadora, e sendo a consciência da ilicitude essencial para a punibilidade do facto, a existência dessa consciência tem de ser objecto de acusação e de prova e, portanto, faz parte também do objecto do processo.
IV - Se na acusação ou no RAI não constem os factos atinentes ao elemento subjectivo "consciência da ilicitude", devem ser rejeitados por manifestamente infundados.”
Na mesma sena, o Acórdão da Relação de Coimbra de 1.06.2011, Relatora: Desembargadora Maria Pilar Oliveira, in www.dgsi.pt
“Num crime doloso, da acusação há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade - o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo). O dolo como elemento subjectivo - enquanto vontade de realizar um tipo legal conhecendo o agente todas as suas circunstâncias fácticas objectivas - constitutivo do tipo legal, será, então, em definitivo, um dos elementos que o artigo 283º/3 C P Penal, impõe que seja incluído na acusação.

Invocamos, também, o Acórdão da Relação de Coimbra de 7.03.2012, Relator: Desembargador Luis Ramos, in www.dgsi.pt (2):

“Deve ser rejeitado, por inadmissibilidade legal, o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente que seja totalmente omisso quanto a elementos subjetivos dos crimes imputados e que não contém uma descrição minimamente inteligível dos factos praticados pelos arguidos que possam integrar os seus elementos objetivos”
(…)
“Na decisão instrutória a proferir em instrução requerida pelo assistente (e nos actos a realizar no decurso desta) apenas poderão ser considerados os factos descritos no requerimento para abertura de instrução (ressalvada a hipótese a que se refere o artigo 303° do Código do Processo Penal de alteração não substancial dos factos descritos nesse requerimento), sob pena de nulidade: artigo. 309°, n. ° 1, do Código do Processo Penal (traduz este regime legal uma decorrência do principio da estrutura acusatória do processo penal, consagrado no artigo 32°, n° 5, da Constituição da República Portuguesa).
O requerimento de abertura da instrução tem de conter assim todos os elementos de facto e de direito necessários à aplicação de uma pena ao arguido, sem remissões seja para onde for, designada mente para o despacho de arquivamento do inquérito.
Tal como uma acusação do Ministério Público, não pode ter remissões para a denúncia. O mesmo se passa com o requerimento de abertura de instrução, que fixa o thema decidendum e, por isso, é dele e apenas dele que o arguido tem de se defender atento o Principio Constitucional do Acusatório e ainda o Principio da Auto-Suficiência dos autos. Mas ainda que assim não fosse (e sem qualquer duvida é) o certo é que o arguido não podia defender-se de remissões que do requerimento de abertura da instrução não constam, conquanto pudessem estar no espírito de quem o redigiu.
O requerimento do assistente para a abertura da instrução, para além de conter as razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação, deve conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao a arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; e deve conter ainda a indicação das disposições legais aplicáveis (obedecendo assim à estrutura de uma acusação).
O requerimento que não contenha factos, dos quais se possa concluir que o arguido cometeu um facto ilícito típico, por dele não constarem os elementos objectivos e subjectivos típicos do ilícito é um requerimento que tem de ser rejeitado, entendendo-se que se verifica uma situação de inadmissibilidade legal da instrução - nº 3 do artigo 287º do Código do Processo Penal (neste sentido vide Ac. do TRL de 21.03.2001, in CJ, XXVI, tomo 2, pág. 133).
Nas palavras de Souto de Moura in "Jornadas de Direito Processual Penal" pág. 120: "Se o assistente requerer instrução sem a mínima delimitação do campo factual sobre que há-de versar, a instrução será a todos os títulos inexequível. O juiz ficará sem saber que factos é que o assistente gostaria de ver acusados. Aquilo que não está na acusação e no entendimento do assistente lá devia estar pode ser mesmo muito vasto. O juiz de instrução «não prossegue» uma investigação, nem se limitará a apreciar o arquivamento do M.º P,º a partir da matéria indiciária do inquérito. O juiz de instrução responde ou não a uma pretensão. Aliás, um requerimento de instrução sem factos, subsequente a um despacho de arquivamento, libertaria o juiz de instrução de qualquer vinculação temática. Teríamos um processo já na fase de instrução sem qualquer delimitação do seu objecto, por mais imperfeita que fosse, o que se não compagina com uma fase que em primeira linha não é de investigação, antes dominada pelo contraditório. Se o assistente requerer instrução relativa a factos pelos quais o M.P. tenha deduzido acusação já, também se não vê bem, porque é que se solicita a intervenção do juiz de instrução. Note-se que no nosso ponto de vista, a expressão «pelos quais o M.º P.º não tiver deduzido acusação», abrange para além dos factos nem sequer referidos na acusação, todos aqueles aí presentes de modo instrumental. Todos os factos a que o M.P. não deu relevância jurídico-penal, e que o assistente pretende".
Compreende-se que assim seja. Na realidade, o despacho de pronúncia tem de conformar-se com os factos descritos no requerimento de abertura de instrução, que configura uma verdadeira acusação - n.° 1 do artigo 303º do Código do Processo Penal. Se desse requerimento não constam os referidos elementos, o despacho tem de ser, obrigatoriamente, de não pronúncia por não poder o Juiz socorrer-se de factos estranhos aos contidos no dito requerimento, sob pena de violar o princípio constitucional da acusação.
Como resulta da análise do requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente, constata-se que o mesmo não obedece ao preceituado nos supra citados artigos 287º, n.º 2 e artigo 283°, n,º 3, alínea b) do Código do Processo Penal, uma vez que o requerimento em apreço não contém a narração circunstanciada de factos que possam fundamentar a aplicação à arguida de uma pena ou medida de segurança. O aludido requerimento não contém, desde logo, a narração dos factos e indícios que possam constituir o crime, sendo certo que também se procede a uma inconsistente descrição da concreta conduta ilícita imputada à arguida, limitando-se o assistente a manifestar as suas razões de discordância relativamente ao despacho de arquivamento do Ministério Público.

O requerimento revela-se insuficiente, imperfeito, além do mais, no que concerne à descrição dos factos, à narração dos concretos actos ilícitos criminais praticados, ou seja, dos elementos objectivos, bem como, e ainda, no que respeita a descrição de factos constitutivos do crime que, a indiciarem-se, permitissem concluir que o agente actuou com culpa.
Não faz o assistente qualquer referência ao circunstancialismo que caracterizou a conduta mencionada; não faz o assistente qualquer alusão consistente às circunstancias de tempo e lugar e aos concretos actos materiais imputados à arguida. Desta forma, e com base na factualidade descrita no requerimento de abertura de instrução apresentado, nunca poderia haver uma condenação com base na prova dos factos alegados pelo requerente, nem pode, consequentemente (cfr. artigo. 308°, n.º 1, do Código do Processo Penal) haver lugar a pronúncia por esses factos.
Não poderia, pelas razões supra aduzidas, serem considerados em eventual despacho de pronúncia outros factos que eventualmente resultassem da instrução e que não tivessem sido alegados no requerimento para abertura de instrução apresentado.”
Também se mostra pacífico tal entendimento no Acórdão da Relação de Guimarães de 6.12.2010, Relatora: Desembargadora Maria Augusta, in www.dgsi.pt:

“I) O dolo constitui matéria de facto e, por isso, têm de ser devidamente alegados os factos donde tal se possa concluir
II) Assim sendo, não é legítimo afirmar o dolo simplesmente a partir das circunstâncias externas da acção concreta pois, a não ser assim, o arguido estaria impedido de se defender cabalmente por ignorar a modalidade do dolo.
III) Admitir um requerimento de instrução completamente omisso quanto ao elemento subjectivo do crime imputado ao arguido e prosseguir com a instrução estando o juiz limitado nos seus poderes cognitivos por esse requerimento, seria praticar acto inútil, o que é proibido por lei – artº137º do Cód. Proc. Civil, ex vi do artº4º do C.P.P.”
E do mesmo modo, foi proferido o Acórdão da Relação de Guimarães de 28.05.2012, Relatora: Desembargadora Maria Luísa Arantes, in www.dgsi.pt:

“I) Não contendo o requerimento da assistente a descrição dos necessários elementos objectivos e subjectivos do crime de falsificação de documento que imputa aos arguidos, os factos narrados não integram qualquer ilícito criminal e como tal nunca poderia ser proferido despacho de pronúncia.
II) O juiz não pode substituir-se ao assistente, colocando por iniciativa própria os factos em falta referentes aos elementos objectivos e subjectivos, sob pena de violação da estrutura acusatória do processo penal e do direito de defesa do arguido.
III) O facto do dolo poder ser provado com recurso a presunções naturais ou com recurso às regras da experiência comum, não significa que se possa dispensar a respectiva alegação.”

Como se decidiu recentemente, que invocámos em jeito de conclusão, no Acórdão da Relação do Porto de 19.11.2014, Relatora: Desembargadora Maria Deolinda Dionísio, in www.dgsi.pt:

“I - No RAI o assistente ao narrar os factos que fundamentam a aplicação de uma pena e ao indicar as disposições legais aplicáveis, deve reproduzir a acusação que em seu entender o MºPº devia ter elaborado.
II - Tal RAI tem uma dupla função:
- delimita os poderes de cognição do juiz de instrução (artº 288º4 CPP);
- consubstancia o direito de defesa do arguido.
III - Deve por isso o RAI conter a descrição factual do ilícito que se pretende ver averiguado e imputado de forma perceptível ao tribunal (JIC) e ao visado (arguido).
IV - Se o núcleo essencial do facto imputado se revela duvidoso, vago ou confuso, é legalmente inadmissível a abertura da instrução.”

Por fim, seguimos o entendimento expresso no recente Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ n.º 1/2015 – D.R. n.º 18/2015, Série I de 2015-01-27.
«A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.»
Sublinhe-se que a fase de instrução nunca poderá ser considerada como uma nova fase de investigação ou de inquérito.
Citamos o Acórdão do STJ de 12.06.2014, Relatora: Conselheira Helena Moniz, in www.dgsi.pt:

“IV - A instrução não constitui uma nova fase de inquérito. A instrução, como puro instrumento de controlo apenas, e não como instrumento de fiscalização da atividade desenvolvida pelo MP durante o inquérito, nem como complemento de investigação, assegura a necessária compatibilização com o modelo acusatório (articulado com o princípio da investigação) imposto pela CRP (art. 32.º, n.º 5). Se o requerente pretendia uma nova investigação ou a realização da investigação que, segundo o seu entendimento, não foi realizada, deveria ter usado a faculdade que o art. 278.º do CPP lhe concedia — a de requerer a intervenção hierárquica para que fosse avaliada a necessidade (ou não) de prosseguir a investigação. (3)
V - O requerimento de abertura de instrução, ao lado da acusação, quando esta exista, permitem delimitar o objeto do processo. E por isto tem-se considerado que aquele requerimento deve conter em súmula as razões de facto e de direito da discordância do requerente relativamente à decisão anterior, no caso a decisão de arquivamento; e deve também indicar as provas a produzir durante a instrução. Deve ainda conter a narração dos factos e a indicação das disposições legais aplicáveis. E se se entende que “o assistente e o arguido devem ser convidados a aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, faltando algum ou alguns dos seus requisitos”, “excetua-se, porém, a falta da narração dos factos no requerimento do assistente, [pois] constitui o elemento definidor do âmbito temático da instrução”. Caso que que “o requerimento terá de ser indeferido, não podendo ser renovado, a não ser que a renovação se efective antes do termo do prazo”.
VI - O entendimento de que o arguido não pode defender-se a si próprio em processo penal é um entendimento largamente defendido na jurisprudência, nomeadamente, pelo Supremo Tribunal de Justiça (Proc. n.º 279/96.0TAALM.S1 e Proc. n.º 3236/04), pelo Tribunal Constitucional (ac. 578/01) e pelo TEDH
VII - Sabendo que o que poderia estar em discussão era a prática de um crime de denegação da justiça, previsto no art. 369.º, n.º 1, do CP, e constituindo um elemento deste tipo de ilícito objetivo a decisão contra o direito, nada foi referido que nos permita concluir que este elemento está preenchido.
VIII - Não são nunca identificadas as pessoas contra quem o processo haveria de prosseguir — um elemento essencial à narração dos factos exigida no requerimento de abertura de instrução.
IX - Pelo facto de o requerimento de abertura de instrução não cumprir os requisitos do art. 287.º, n.º 2, do CPP não deve ser admitido. E “não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente aÌ narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido” (AFJ n.º 7/2005). Entendimento que tem recebido apoio do Tribunal Constitucional (ac. 389/2005, 636/2011 e 175/2013).
X - Este tribunal tem entendido que “não faz sentido proceder-se a uma instrução visando levar o arguido a julgamento, sabendo-se antecipadamente que a decisão instrutória não poderá ser proferida nesse sentido” (acórdão do STJ de 22.10.2003 — proc n.º 2608/03-3), pelo que tem entendido ser de “rejeitar, por inadmissibilidade legal «vista a analogia perfeita entre a acusação e a instrução», o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente no qual este se limita a um exame crítico das provas alcançadas em inquérito” e “omite em absoluto a alegação de concretos e explícitos factos materiais praticados pelo arguido e do elemento subjectivo que lhe presidiu para cometimento do crime” (acórdão do STJ de 22.03.2006 – proc. n.º 357/05-3 e acórdão de 07.05.2008, proc. n.º 4551/07-3). E ainda o acórdão de 07.12.1005 (proc. n.º 1008/05), onde foi decidido que “se o requerimento do assistente para abertura da instrução não narra factos susceptíveis de integrar a prática de qualquer crime não pode haver legalmente pronúncia (cf. art. 308.° do CPP), pois a instrução seria, então, um acto inútil, cuja prática a lei proíbe (arts. 137.º do CPC e 4.° do CPP), e como tal legalmente inadmissível”, sendo certo que “a inadmissibilidade legal da instrução é uma das causas de rejeição do requerimento para abertura da instrução, nos termos do n.º 3 do aludido art. 287°”.” (4)
Em suma, o requerimento de abertura de instrução não descreve a factualidade mínima necessária para que considere estarmos perante uma acusação, pois que do seu conteúdo apenas se extrai que a assistente discorda do arquivamento, que entende existirem provas mal apreciadas no decurso do inquérito. Como já se referiu, nenhum facto concreto, ao nível do elemento subjectivo, é imputado ao arguido e que possa consubstanciar a prática do ilícito penal imputado,, havendo impedimento à formulação de qualquer convite de aperfeiçoamento, nos termos já expostos, não sendo a fase de instrução um novo inquérito, nem podendo na sua pendência propor-se o seu objecto, o qual tem de fica definido no requerimento de abertura de instrução.

Face a tudo supra exposto, rejeito parcialmente o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente Maria, por o mesmo ser legalmente inadmissível e insuprível, atento o preceituado no art.º 287º, n.º3 do Código de Processo Penal, determinando o arquivamento dos autos.
*
Custas pela assistente, fixando-se a taxa de justiça em 2 UCs, nos termos do art.º 8.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.
Notifique.»

2.3. Apreciação do recurso

O Sr. Juiz a quo rejeitou o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente por inadmissibilidade legal”, nos termos do disposto no artigo 287º, nº. 3, do C.P.P, mormente por não descrever nenhum facto concreto ao nível do elemento subjetivo do tipo legal de crime que é imputado aos arguidos – crime de falsidade de testemunho p. e p. pelo artigo 360º do C.P. – e a deficiência de que enferma o RAI ser insuprível, conforme jurisprudência fixada no AFJ nº. 7/2005, de 12/05/2005.
O Ministério Público manifesta concordância com o decidido no despacho recorrido.
Por seu lado, a assistente sustenta que o RAI que apresentou preenche todos os requisitos legais, podendo dos factos nele descritos inferir-se os elementos subjetivos do do crime de falsidade de testemunho, além de que o juiz de instrução não está dispensado de investigar, aditando esse facto à decisão, caso se prove toda a factualidade que o suporta, tendo em conta o disposto nos artºs.303º, n.º 1 e 358.°, n.º 1, ambos do C.P.P., pelo que, não existe fundamento para a rejeição do RAI.

Apreciando:

Sobre e o âmbito da instrução dispõe o artigo 286º, nº. 1, do Código de Processo Penal – diploma legal a que pertencem todas as normas legais que venham a citar-se sem menção da respetiva origem –: “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.”

E sobre o requerimento para abertura da instrução, estatui o artigo 287º, na parte que para o caso vertente releva:

1. A abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento:
a) (…)
b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.
2. O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente (…) à não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos, que através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº. 3 do artigo 283º. (…).
3. O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.
(…).
O artigo 283º, nº. 3, alíneas b) e c) – “Acusação pelo Ministério Público” –, para que remete o artigo 287º, nº. 2, aplicável ao requerimento do assistente, dispõe:

A acusação contém, sob pena de nulidade:

A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e as circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhes deve ser aplicada. - al. b) -;
A indicação das disposições legais aplicáveis. - al. c) -.
Tal como decorre do disposto no artigo 286º do C.P.P., quando requerida pelo assistente, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de arquivamento, isto é, visa discutir essa decisão «apenas no que respeita ao juízo do MP de inexistência de indícios suficientes» de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança (artigo 308º, nº. 1)» – Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 3ª edição, pág. 750 e Rita Serrano, “A Irrecorribilidade do Despacho de Pronúncia”, in Prova Criminal e Direito de Defesa, Almedina, pág. 192.
Conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque, in ob. cit., pág. 754: «O requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente é constituído pelas seguintes partes: a. a narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou uma medida de segurança, sendo aplicável o disposto no artigo 283º, nº. 3, al. b); b. as disposições legais violadas pelo arguido e as razões de direito de discordância relativamente ao arquivamento do MP; c. a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo (…); d. e os meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito.»

Os fundamentos de rejeição do requerimento de abertura da instrução são os previstos no nº. 3 do artigo 287º, a saber:

- A extemporaneidade do requerimento;
- A incompetência do juiz
- A inadmissibilidade legal da instrução.
Se os fundamentos da extemporaneidade e da incompetência do juiz não suscitam dificuldades de maior, estando regulados na lei (cfr. artigos 87º, nº. 1 e 32º), já o conceito da «inadmissibilidade legal da instrução», como bem se salienta no Acórdão da R.L. de 16/02/2016, in C.J., Ano 2016, T. II, págs. 126 a 127, tem sido objeto de larga elaboração, quer doutrinária, quer jurisprudencial.
Como poderá verificar-se consultando a jurisprudência dos nossos tribunais superiores, que se encontra publicada, referente à matéria, a rejeição do requerimento de instrução quando apresentado pelo assistente, prende-se, sobretudo, com a delimitação do campo factual que pode ser objeto da instrução, v.g., por se verificar a falta de narração dos factos que fundamentem a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança ou, por no requerimento se narrarem factos que não constituem crime (cfr. casos indicados pelo Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, in ob. cit., pág. 750, anotação 1 e também pelos Conselheiros António Henriques Gaspar e outros, in Código de Processo Penal, Almedina, 2ª edição, pág. 962).
Os factos cuja narração deve ser feita no R.A.I., quando apresentado pelo assistente, são os enunciados na al. b) do nº 3 do artigo 283º, aplicável ex vi do artigo 287º, nº. 2, ou seja, o assistente tem de descrever, ainda que sumariamente, factos suficientes para preencher todos os elementos típicos objetivos e subjetivos do(s) crimes(s) cuja prática imputa ao(s) arguido(s), sendo esses factos que delimitam a atividade investigatória do juiz de instrução criminal.

Nesta matéria e, de harmonia com a jurisprudência uniformizada que é citada pelo Sr. Juiz a quo, fixada no AFJ n.º 7/2005, do S.T.J., de 12/05/2005, publicado no D.R.-I Série, de 04/11/2005, “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”, impondo-se, por conseguinte, a sua rejeição.
Revertendo ao caso dos autos, a rejeição do R.A.I. apresentado pela assistente, baseou-se na circunstância de a narração dos factos ser deficiente, não observando o disposto na al. b) do nº. 3 do artigo 283º, nº. 3, aplicável ex vi do artigo 287º, nº. 2, ambos do C.P.P., por omitir completamente a descrição de factos passíveis de preencher o tipo subjetivo do crime de falsidade de testemunho, cuja prática a assistente imputa aos arguidos.

A assistente não põe em causa que, no requerimento de abertura da instrução que apresentou, omitiu a descrição daqueles factos. Defende, contudo, que contrariamente ao decidido no despacho recorrido, essa omissão poderá ser suprida, pelo Juiz de Instrução Criminal, podendo este aditar esses factos à decisão de pronuncia, caso se prove toda a factualidade que os suportam, tendo em conta o que se dispõe nos artigos 303º, n.º 1 e 358.°, n.º 1, ambos do C.P.P.

Vejamos:
Analisado o RAI apresentado pela assistente/recorrente, verifica-se que, efetivamente, não contém a descrição de quaisquer factos passíveis de poder integrar os elementos subjetivos do tipo, necessários ao preenchimento do crime de falsidade de testemunho p. e p. pelo artigo 360º do C.P., imputado aos arguidos.
O aludido crime é doloso, exigindo, portanto, para o seu preenchimento o dolo, em qualquer das suas modalidades, direto ou eventual (neste sentido, vide A. Medina de Seiça, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, pág. 482 a 484).
É certo que, tal como refere a recorrente, a existência do dolo poderá ser inferida de elementos externos, revelados pela conduta do agente. Todavia, tal inferência, só pode ser feita, a nível probatório, e não, para o efeito de poder suprir a omissão existente no RAI apresentado pelo assistente, na medida, em que de tal peça processual tem, obrigatoriamente, de constar a descrição factual do dolo, pois que, só assim, os factos narrados poderão integrar a prática de crime e fundamentar a aplicação de uma pena ao(s) arguido(s), conforme disposto na b) do nº. 3 do artigo 283º, nº. 3, aplicável ex vi do artigo 287º, nº. 2, ambos do C.P.P.
Se os factos integrantes dos elementos subjetivos do tipo do ilícito, designadamente, o dolo, não constarem do R.A.I. apresentado pelo assistente e não podendo haver lugar ao convite ao aperfeiçoamento do requerimento, conforme jurisprudência fixada no AFJ nº. 7/2005, a que aludimos supra, não poderão aqueles factos vir a ser aditados pelo JIC, no despacho de pronúncia, por via da alteração dos factos descritos no R.A.I., nos termos previstos no artigo 303º, nº. 1 e no artigo 358º, nº. 1, ambos do C.P.P., antes determinado a rejeição do R.A.I., por inadmissibilidade legal da instrução. – neste sentido, cfr., entre outros, Ac. da RP de 13/01/2016, proc. 682/10.5TAVFR.P1, Acs. da RC de 13/9/2017, proc. 36/15.7MAFIG.C1 e de 28/1/2015, proc. 511/13.8TACVL.C1 e Ac. da RG de 6/2/2017, proc. 263/15.7GAVVD.G1, todos acessíveis no endereço ww.dgsi.pt.
O recurso ao mecanismo previsto no artigo 303º do C.P.P. – que se reporta à alteração dos factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura da instrução -, só pode ocorrer, no decurso da instrução – se dos atos de instrução ou do debate instrutório resultar a alteração não substancial ou substancial dos factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura da instrução -, o que pressupõe que haja lugar à abertura dessa fase processual e, por conseguinte, que não ocorra qualquer causa de rejeição do R.A.I.
Tal como decidiu o STJ, no Acórdão de 11/01/2017, proferido no Proc. n.º 236/15.0TRPRT.S1 – 3.ª Secção -, cujo sumário se encontra publicado nos Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça Secções Criminais 23 Número 229 – Janeiro de 2017, «resultando da jurisprudência fixada no AFJ 7/2005 do STJ que não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura da instrução, apresentado nos termos do art. 287.º, n.º 2, do CPP, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido, inevitável é concluir que o requerimento de abertura de instrução que não cumpra o disposto naquele preceito deverá ser rejeitado.»
«Sobre o juiz de instrução não impende qualquer obrigação de perseguição da infração, antes a de fiscalização dos atos do Ministério Público no inquérito e a de direção da instrução, em que se inclui a verificação dos pressupostos de admissibilidade da mesma.»
Nesta conformidade, na falta de descrição, no R.A.I. apresentado pela assistente, ora recorrente, de factos suscetíveis de integrarem os elementos subjetivos típicos, designadamente, o dolo, do crime de falsidade de testemunho p. e p. pelo artigo 360º do C.P., cuja prática imputa aos arguidos e, não sendo, em face daquela omissão, os factos que constam do R.A.I. suficientes para integrar a prática de crime e fundamentar a aplicação de uma pena aos arguidos (com inobservância do disposto na b) do nº. 3 do artigo 283º, nº. 3, aplicável ex vi do artigo 287º, nº. 2, ambos do C.P.P.), não sendo admissível, nesta situação, o convite ao aperfeiçoamento do R.A.I. e não podendo a falta de descrição dos factos em questão ser suprida, por via do disposto no artigo 303º do C.P.P., a consequência da assinalada falta de descrição factual, é, necessariamente, a rejeição do R.A.I., por inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 287.º do CPP.
Bem decidiu, pois, o Sr. Juiz a quo, ao rejeitar o requerimento de abertura da instrução apresentado pela assistente, ora recorrente, pelo que, se impõe julgar improcedente o recurso, confirmando-se o despacho recorrido.

3– DISPOSITIVO

Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Penal deste Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar o despacho recorrido.

Custas pela assistente/recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC´s (art. 515º, nº. 1, al. b), do C. P.P. e art.8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa).

Notifique.

Guimarães, 5 de fevereiro de 2018

1. Acórdão da Relação de Guimarães de 18.12.2012, Relator: Desembargador Paulo Fernandes Silva, in www.dgsi.pt:“Do requerimento de abertura de instrução do Assistente deve constar a descrição da factualidade integradora do ilícito criminal imputado ao Arguido, sob pena de nulidade e, consequente, rejeição daquele requerimento, não havendo convite prévio ao seu aperfeiçoamento.”
2. Igualmente, Acórdãos da Relação de Coimbra de 9.05.2012, Relator: Desembargador Calvário Antunes, e de 7.01.2009, Relator: Desembargador Jorge Jacob, in www.dgsi.pt
3. Vg, também , o ACRL de 03-10-2007 , in www.pgdlisboa.pt:(extracto do acórdão) I - 'Não é poosível (...) um requerimento de abertura de instrução contra incertos, assim como não seria possível/admissível, uma acusação contra incertos'. II - ' Se o assistente entendedesse que, caso fossem realizadas as diligências que pretendia ver feitas em sede de instrução, poderia identificar os alegados autores do ilícito, restar-lhe-ia como alternativa ao arquivamento do processo o requerimento de mais diligências de investigação, dirigido ao superior do magistrado do Ministério Público que proferiu o despacho de arquivamento do inquérito ou um requerimento de reabertura do inquérito'. Proc. 4477/07 3ª Secção Desembargadores: Margarida Ramos de Almeida - Rodrigues Simão - Carlos Sousa - Sumário elaborado por Paula Figueiredo
4. Acórdão da Relação de Coimbra de 12.11.2014, Relatora: Desembargadora Olga Maurício, in www.dgsi.pt “I - Quando o Ministério Público não acusa o assistente pode requerer a abertura de instrução mas, o RAI apresentado deve demonstrar a verificação da prática de factos criminalmente punidos, bem como do seu autor. II - Ao assistente, no RAI, não basta contrapor argumentos aos argumentos apresentados pelo Ministério Público aquando do arquivamento, sem cuidar de conformar esses argumentos à estrutura de uma acusação. O RAI tem que assumir as vestes de uma acusação, que o processo não tem, sendo este requerimento que, uma vez admitido, vai conformar o desenvolvimento de todo o processo. III - A instrução não é um segundo inquérito, pelo que não visa averiguar se alguém cometeu factos qualificados como crime. Antes se destina a comprovar a bondade da decisão anteriormente tomada pelo Ministério Público, cabendo-lhe apurar se a decisão de acusar ou de não acusar correspondeu aos indícios existentes nos autos.”