Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1120/09.1TABCL.G3
Relator: JORGE BISPO
Descritores: JURISDIÇÃO TRIBUTÁRIA
DESPACHO DE REVERSÃO
INCIDÊNCIA PROCESSO PENAL TRIBUTÁRIO
CASO JULGADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: A reversão e a respetiva impugnação deduzida na execução fiscal não constitui uma questão prejudicial ou da qual dependa a qualificação jurídico criminal dos factos objeto do processo penal tributário. Consequentemente, a decisão proferida pela jurisdição tributária, a julgar procedente a oposição e a anular o despacho de reversão, não produz efeito de caso julgado com incidência sobre o processo penal tributário, constituindo exceção impeditiva da apreciação do mérito da causa, nos termos previstos no artº 48º do RGIT.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

1. No processo comum com intervenção de juiz singular com o NUIPC 1120/09.1TABCL, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, no Juízo Local Criminal de Barcelos - J2 (anterior Secção Criminal da Instância Local), foi proferida sentença, datada e depositada a 24-10-2016, com o seguinte dispositivo (transcrição) (1):
«III. DECISÃO
Pelo exposto:---
[1]
Julga-se a acusação procedente, termos em que se decide:---
a) Condenar a arguida sociedade M., Unipessoal, Ldª., pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p., pelas disposições conjugadas dos artºs 7º, nº 1, 12º, nº 2, 107º, nº 1, com referência ao artº 105º, nº 1 todos do RGIT e ao artº 30º, nº 2 do Cód. Penal, aplicável “ex vi” do preceituado na al. a) do artº 3º do primeiro dos indicados diplomas legais, na pena de 340 [trezentos e quarenta] dias de multa, à taxa diária de € 9,00 [nove euros], o que perfaz a multa global de € 3.060,00 [três mil e sessenta euros];---
b) Condenar a arguida A. C. pela prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, sob a forma continuada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs 6º, nº 1, 12º, nºs 2 e 3, 107º, nº 1, com referência ao artº 105º, nº 1 todos do RGIT e ao artº 30º, nº 2 do Cód. Penal, aplicável “ex vi” do preceituado na al. a) do artº 3º do primeiro dos indicados diplomas legais, na pena de 170 [cento e setenta] dias de multa, à taxa diária de € 7,00 [sete euros], o que perfaz a multa global de € 1.190,00 [mil, cento e noventa euros], e a que corresponderão, se for caso disso, 113 [cento e treze] dias de prisão subsidiária;---
c) Mais condenar as arguidas, cada uma delas, no pagamento de taxa de justiça que se fixa em 1 UC, nos termos do disposto pelo art. 344º, n.º 2, al. c) e 513º, n.º 1 do CPP e 8º, n.º 5, do RCJ e tabela III anexa a tal diploma, e ambas, solidariamente, nos demais encargos do processo.---
[2]
Julga-se o pedido de indemnização civil formulado por Instituto da Segurança Social, IP, procedente, termos em que se decide condenar as demandadas M., Unipessoal, Ldª, e A. C. a pagar-lhe, solidariamente, a quantia de € 17.017,12, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, desde a data de vencimento de cada uma das prestações, à taxa legal aplicável aos créditos da titularidade da SS e até efetivo e integral pagamento, ascendendo os primeiros a € 5.400,69.---
Custas da instância civil a cargo, solidariamente, das demandadas, com taxa de justiça que se fixa no mínimo legal.---»

2. Dessa decisão recorreu a arguida A. C., concluindo a respetiva motivação nos seguintes termos (transcrição):
«CONCLUSÕES:
A) O presente recurso vem interposto da decisão do Tribunal a quo que recaiu sobre a “QUESTÃO PRÉVIA” apreciada na sentença em apreço.
B) A Recorrente considera que, tendo sido proferida sentença pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, em sede de oposição judicial, esta constitui caso julgado nos presentes autos.
Sucede que,
C) Na sentença recorrida, o Tribunal a quo considerou que não foi discutida, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, nenhuma questão passível de contender com a qualificação criminal e que fosse do conhecimento reservado e privativo da jurisdição administrativa e, nessa sequência, determinou que aquela decisão não produziu qualquer efeito de caso julgado com incidência nos autos.
D) É precisamente nessa conclusão que radica o erro de julgamento ora imputado à sentença recorrida.
E) Erro que se verifica, quer na apreciação dos factos, quer na aplicação do direito ao caso concreto.
Vejamos:

F) Decorre da sentença proferida pelo TAF de Braga, no processo de oposição judicial n.º 418/15.4BEBRG, constante dos documentos juntos aos autos, que a ora Recorrente/aí Oponente alegou a ilegitimidade da pessoa citada por não figurar no título executivo nem ser responsável pelo pagamento das dívidas, para o que invocou o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 204º do Código de Procedimento e Processo Tributário.
G) Compulsada a referida sentença verifica-se, a páginas 6, que esta refere que o teor do despacho de reversão não contém, em termos suficientes, a explicitação dos motivos fácticos, desde logo quanto ao exercício da gestão de facto, mais aí se referindo que a Segurança Social, exequente, nada disse ou alegou que permitisse concluir que a Oponente/Recorrente foi, de facto, a gestora da devedora originária.
H) Ora, se no âmbito do processo penal tributário se pretende condenar a arguida, por, na qualidade de gerente, ser a responsável pelo pagamento das dívidas à Segurança Social (respeitantes a quotizações devidas ao Instituto de Gestão Financeira) e se, no processo de oposição judicial se decidiu que aquele Instituto não imputou à executada comportamentos, ações, ou quaisquer atos tendentes a permitir considerá-la como gerente de facto, anulando-se a reversão,
I) Forçoso será concluir que a decisão do Tribunal Tributário constitui exceção de caso julgado para o processo penal, obstando à sua apreciação.
J) Está aqui em causa, a decisão sobre uma questão de caráter estritamente tributário (a determinação da Oponente/Recorrente como gerente de facto da sociedade arguida), absolutamente necessária à decisão da questão prejudicada, que é a verificação do crime fiscal tributário de abuso de confiança contra a segurança social, questão essa que se apresenta como um antecedente lógico-jurídico, com caráter autónomo, e que, nesse sentido, condiciona o conhecimento da questão principal.
K) O que sucede no presente caso é o facto de existir uma decisão judicial onde a ora Recorrente se encontra desonerada da responsabilidade pelo pagamento das dívidas à segurança social, por via do deferimento da sua pretensão pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, em contradição com uma outra decisão judicial de condenação da Recorrente em multa e pedido de indemnização cível (calculado nos precisos termos dos valores das quotizações em dívida), todas com base no mesmo facto constitutivo da relação tributária – o exercício (ou não exercício) da gerência por parte da Recorrente.
L) Se a jurisdição tributária considera não existirem elementos suficientes para determinar que a ora Recorrente era gerente de facto da primitiva executada, porque a Segurança Social não carreou aos autos elementos de prova que permitissem essa constatação (comportamento que lhe era imposto por via da regra do ónus da prova), e, por isso, a desonera dessa responsabilidade, a jurisdição penal tem de acatar essa decisão e validá-la,
M) Sob pena de vigorarem no nosso universo jurídico duas decisões judiciais contraditórias entre si.
N) Recorrente considera, pois, que a douta sentença recorrida deverá ser julgada inexistente, na medida em que a sentença proferida no âmbito do processo tributário, sendo causa prejudicial, constitui exceção de caso julgado no processo penal tributário, obstando à apreciação do processo penal (causa prejudicada).
O) A sentença recorrida ofendeu o princípio do caso julgado, estabelecido no artigo 48º do RGIT.
Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso, e proferido douto acórdão que declare inexistente a sentença ora recorrida, por ofender o princípio do caso julgado, legalmente estabelecido no artigo 48º do RGIT, normativo com aplicação ao caso ora em apreciação.
Acordando como se pugna, farão Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, a costumada JUSTIÇA!»

3. A Exma. Procuradora-Adjunta na primeira instância apresentou resposta, a perfilhar o entendimento de que deverá ser negado provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida, porquanto:
- A oposição apresentada pela recorrente na execução fiscal foi julgada procedente e, em consequência, anulado o despacho de reversão aí proferido contra ela, por considerar-se que este despacho não contém em termos suficientes a explicitação dos motivos fácticos desde logo quanto ao exercício da gestão de facto que motivaram e que constituíram a sua fundamentação, referindo-se expressamente na decisão proferida nesses autos que “trata-se de questão que naturalmente situa-se no âmbito da validade formal do ato não se tratando de saber se esses motivos correspondem à realidade e se, correspondendo, são suficientes para legitimar a concreta atuação administrativa”.
- Ora, no âmbito criminal e nestes autos, apurou-se que, efetivamente, a arguida era gerente de facto da pessoa coletiva também arguida.
- Assim, a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal não tem a virtualidade de conduzir a que o Tribunal Criminal considere que ali se fez prova que a arguida afinal não era gerente de facto da sociedade nas datas em questão, porque tal não foi apurado por aquele Tribunal.
- Por outro lado, essa decisão e a sentença ora posta em crise não são contraditórias entre si e o caso julgado da primeira não influencia a qualificação criminal dos factos imputados à arguida.
4. Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer em que, considerando que a decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal - que julgou procedente a oposição deduzida pela arguida, anulando o despacho de reversão fiscal que a visara - teve por fundamento a verificação do vício de falta de fundamentação do ato, por carência de articulação de factos bastantes para suportar a conclusão da efetiva gerência de facto por parte da recorrente relativamente à devedora originária, radicou na verificação de invalidade formal do despacho de reversão. Assim, não foi decidido no âmbito dessa oposição nenhum facto passível de contender com a qualificação criminal operada nos presentes autos, pelo que aquela decisão em sede de oposição não possui o almejado alcance de formação de caso julgado, a constituir exceção que obste à apreciação do mérito do processo penal tributário.
5. No âmbito do disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não houve resposta.
6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c) do citado código.


II. FUNDAMENTAÇÃO

1. QUESTÕES A DECIDIR
Em conformidade com o disposto no art. 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões extraídas da motivação pelo recorrente, não podendo o tribunal de recurso conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (2).
Assim, no presente recurso a única questão submetida à nossa apreciação consiste em saber se a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal, a julgar procedente a oposição aí deduzida pela ora arguida e, consequentemente, anulou o despacho de reversão, produziu efeito de caso julgado com incidência sobre o presente processo penal tributário, constituindo exceção impeditiva da apreciação do mérito da causa.

2. DA SENTENÇA RECORRIDA
É do seguinte teor a sentença recorrida, na parte relevante, ou seja, em que apreciou a questão prévia que constitui objeto do presente recurso (transcrição):
«QUESTÃO PRÉVIA
Conforme decorre do que acima se expôs já, o Venerando Tribunal da Relação Guimarães determinou fosse a audiência de discussão e julgamento reaberta, com o exclusivo propósito de permitir o exercício do contraditório, por parte de todos os participantes processuais, relativamente à incidência da decisão que o TAF de Braga proferiu sobre os termos da presente ação penal.---
Pois bem.---
Da documentação constante dos autos, resulta que, tendo sido originariamente instaurada pela Secção de Processo Executivo de Braga do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP, execução fiscal, a que coube o nº 0301200801201131 e respetivos apensos, contra a sociedade M., Unipessoal, Ldª., veio tal execução, fundada em dívidas de contribuições e cotizações à Segurança Social, relativas aos anos de 2007 a 2009, no valor global de € 111.468,82, a ser revertida contra a arguida A. C.---
Com isso inconformada, a arguida A. C. deduziu oposição à execução contra si revertida.---
Fundamentou a oposição, sustentando/alegando, em síntese, que, tendo sido visada por despacho de reversão fiscal, que ditou a sua citação para pagar, não foi tal ato administrativo precedido de audição prévia, com isso resultando postergado o exercício do direito de participação previsto pelo artº 60º da LGT; que a citação que lhe foi destinada veio acompanhada de certidão de dívidas que tinha aposta assinatura ilegível, para além de não conter a indicação do nome e do cargo de quem, por alegada delegação de competências, praticou o correspondente ato, com isso resultando, em decorrência do disposto no artº 165º, nº 1, al. b) do CPPT, a nulidade do título dado à execução; que, a par de tudo, o despacho de reversão se apresentava ferido de invalidade, por vício de fundamentação, determinante da sua anulabilidade, nos termos prescritos pelos artºs 23º, nº 4, 74º, nº 1, 77º da LGT e 99º, al. c) do CPPT, por nele não se conter a alegação e a prova de que, a par da gerência de direito, haja exercido, também, a administração de facto da devedora originária.---
Concluiu, pugnando pela procedência da oposição, com a prolação de decisão que julgasse extinto o processo de execução fiscal contra si revertido.---
Por decisão proferida, aos 17.11.2015, e transitada em julgado aos 03.12.2015, pelo TAF de Braga, no âmbito do processo que aí correu termos sob o nº 418/15.4BEBRG, foi a oposição deduzida pela arguida A. C. julgada totalmente procedente e, em consequência disso, anulado o despacho de reversão fiscal que a visou.---
A decisão proferida teve por fundamento a verificação de vício, por falta de fundamentação, do despacho de reversão, que se considerou não conter articulação fáctica bastante - em particular quanto à efetiva gestão de facto por banda da oponente relativamente à devedora originária - para suportar o efeito por via dele desencadeado.---
Pois bem.---
Estiveram os presentes autos suspensos, nos termos previstos pelo artº 47º do RGIT, a aguardar pela prolação de decisão definitiva no âmbito do sobredito processo de oposição.---
E a questão que, agora, se coloca, julgada que se mostra em definitivo aquela causa, é a de saber se a decisão proferida tem qualquer tipo de implicação, designadamente, nos termos previstos pelo artº 48º do RGIT, na subsistência da presente instância penal.---
E a resposta é, quanto a nós, adiantamo-lo já, manifestamente negativa, por várias ordens de razões.---
A primeira delas é a de que o artº 48º do RGIT - que estabelece que a sentença proferida em processo de impugnação judicial e a que tenha decidido da oposição do executado, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Penal Tributário, uma vez transitadas, constituem caso julgado para o processo penal tributário -, não pode ser lido isoladamente.---
Com efeito, a disposição normativa em causa articula-se com a previsão do antecedente artº 47º, no qual se prescreve que, se estiver a correr termos processo de qualquer uma das indicadas espécies, a respetiva pendência só determina a suspensão do processo penal tributário, quando nelas se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados.---
Não é, por conseguinte, qualquer impugnação judicial ou qualquer oposição à execução que determina, ou deve, determinar a suspensão do processo penal tributário. É necessário que, por alguma dessas formas de reação processual, seja posta em causa situação tributária de cuja definição dependa, por seu turno, a verificação do delito penal.---
Do mesmo modo que assim é, só decisão, proferida no âmbito de impugnação judicial ou de oposição, que tenha esse alcance pode ter como efeito, em caso de procedência, a formação de caso julgado, que constitui exceção que obsta à apreciação do mérito do processo penal tributário.---
Para além disso, o artº 48º do RGIT estabelece, ainda, que essa eficácia de caso julgado abrange apenas as questões decididas e nos precisos termos em que o foram.---
Dito isto, e vertendo, agora, ao caso que nos toma, verifica-se que, por decisão proferida em 1ª instância, na sequência do primeiro acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, foi determinada a suspensão dos termos do presente procedimento criminal, que ficou a aguardar pelo julgamento definitivo da oposição deduzida pela arguida A. C. ---
Não tendo, como é evidente, qualquer cabimento tecer considerações sobre se a suspensão foi, ou não, corretamente determinada, a verdade é que, fosse qual fosse a decisão que viesse a ser proferida pelo TAF de Braga, os fundamentos da oposição não se ajustavam aos requisitos do artº 47º do RGIT. E, não se ajustando, nenhuma decisão que viesse a ser proferida poderia originar a formação de caso julgado, nos termos e com o alcance previstos pelo artº 48º do RGIT.---
Aliás, não estando, como não estava, a ser discutido na oposição nenhum facto passível de contender com a qualificação criminal e que fosse de conhecimento reservado e privativo da jurisdição administrativa, a verdade é que o processo penal se rege, por efeito do que se prescreve no artº 7º do Cód. de Proc. Penal, pelo princípio da suficiência, que dita, justamente, que o processo penal é promovido independentemente de qualquer outro, nele se resolvendo todas as questões que interessem à decisão da causa.---
A acrescer a tudo, e ainda que se entendesse de forma diversa, a decisão proferida pelo TAF de Braga radicou na verificação de invalidade formal do despacho de reversão, ou seja, no fundo, na invalidade do título dado à execução. E não tendo, embora, como vimos já, qualquer efeito de caso julgado sobre a presente causa penal, julgou, apenas e especificamente, aquela matéria e nos precisos termos em que o fez.---
De registar, aliás, que a existência ou não de reversão fiscal contra o arguido, avultando no estrito domínio das relações jurídico-administrativas de natureza fiscal, é circunstância totalmente irrelevante para o processo penal tributário.-
Serve tudo quanto vem de dizer-se para significar que a decisão proferida pelo TAF de Braga, no âmbito do Proc. nº 418/15.4BEBRG, não produziu qualquer efeito de caso julgado com incidência sobre os presentes autos, pelo que não se verifica concorrer exceção impeditiva da apreciação do mérito da causa.---»

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO
No presente recurso está apenas em causa saber se a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal, que julgou procedente a oposição deduzida pela aí oponente, anulando o despacho de reversão que a visou, com fundamento na falta de fundamentação do mesmo, por não conter a alegação de factos bastantes para suportar a conclusão da efetiva gerência de facto da revertida relativamente à devedora originária, produziu efeito de caso julgado no presente processo penal tributário em que a mesma figura como arguida.
Conhecendo dessa questão prévia na sentença, a Exma. Juíza a quo concluiu em sentido negativo, entendimento contra o qual se insurge a recorrente, invocando a violação do caso julgado previsto no art. 48º do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05 de junho.
Vejamos de que lado, em nossa opinião, está a razão.
3.1 - A noção de caso julgado, embora não expressamente prevista no regime processual penal, decorre claramente do princípio ne bis in idem, consagrado no art. 29º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, comportando a dimensão subjetiva de garante ao cidadão de que não será julgado mais do que uma vez pelos mesmos factos.
Noutra perspetiva, o fundamento central do caso julgado radica na necessidade de garantir a certeza e a segurança do direito. Mesmo com um possível sacrifício da justiça material, através dele quer-se assegurar aos cidadãos a sua paz jurídica e afastar definitivamente o perigo de decisões contraditórias. Uma adesão à segurança com um eventual detrimento da verdade, eis assim, o que está na base do instituto (3).
Dispõe o art. 48º do RGIT, invocado pela recorrente, que “a sentença proferida em processo de impugnação judicial e a que tenha decidido da oposição de executado, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, uma vez transitadas, constituem caso julgado para o processo penal tributário apenas relativamente às questões nelas decididas e nos precisos termos em que o foram.”
Como bem salienta a decisão recorrida, este preceito tem de ser articulado com a previsão do antecedente art. 47º, cujo n.º 1, prescreve que “se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados, o processo penal tributário suspende-se até que transitem em julgado as respetivas sentenças”.
Este preceito prevê um desvio ao princípio da suficiência do processo penal, consagrado no art. 7º do Código de Processo Penal, segundo o qual devem ser resolvidas nele todas as questões relevantes para o conhecimento do seu objeto.
Tal suspensão não é automática, na medida em que, conforme claramente resulta do texto legal, não basta a pendência de impugnação judicial tributária ou oposição à execução fiscal para a determinar, sendo ainda necessário que nelas se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados.
Assim, a suspensão do processo penal tributário só será obrigatória quando a questão em discussão na impugnação judicial ou na oposição à execução se apresente como uma verdadeira questão prejudicial no processo penal em curso, nos termos do preceituado pelo n.º 2 do citado art. 7º, segundo o qual “quando, para se conhecer da existência de um crime, for necessário julgar qualquer questão não penal que não possa ser convenientemente resolvida no processo penal, pode o tribunal suspender o processo para que se decida essa questão no tribunal competente”.
Tal sucederá quando a decisão dessa questão (prejudicial) seja absolutamente indispensável para a decisão do crime fiscal ou tributário (questão prejudicada), relativamente à qual se assume como um verdadeiro “antecedente jurídico-concreto”, de caráter autónomo (4).
Como referem Jorge Lopes de Sousa e Simas Santos (5) “… neste artigo 47.º do RGIT tem-se por assente que as questões que são objeto de apreciação no processo de impugnação judicial ou de oposição à execução, nos termos do CPPT, constituem questões não penais que não podem ser convenientemente resolvidas no processo penal. Naturalmente que a suspensão só se justificará nos casos em que a existência de infração criminal depende da resolução de uma questão de natureza fiscal … Infere-se do regime previsto neste artigo que existe uma opção legislativa no sentido da primazia da jurisdição fiscal para apreciação de questões tributárias, o que tem plena justificação no carácter especializado das questões desta natureza, que está subjacente à atribuição constitucional de competência para o seu conhecimento a uma jurisdição especializada e não à jurisdição comum, em que se inserem os tribunais criminais.”
Essa suspensão do processo penal tributário decorre e opera por força da própria lei e mantém-se até ao trânsito em julgado da decisão da questão prejudicial pela jurisdição tributária, diferentemente do que sucede com o regime geral previsto no n.º 2 do art. 7º do Código de Processo Penal para os casos de prejudicialidade de questões não penais em processo penal, em que o tribunal pode suspendê-lo, por determinado prazo, ainda que prorrogável, findo o qual a questão será decidida no próprio processo penal.
Significa isto que, tal como também é corretamente referido na decisão recorrida, não é qualquer impugnação judicial ou qualquer oposição à execução que determina a suspensão do processo penal tributário, sendo necessário que nela seja posta em causa situação tributária de cuja definição dependa a verificação do ilícito penal.
Consequentemente, também só a decisão proferida no processo de impugnação judicial ou de oposição à execução que tenha esse alcance é que pode ter efeito de caso julgado no processo penal tributário.
Acresce que, como o art. 48º do RGIT expressamente refere, essa eficácia de caso julgado apenas opera relativamente às questões decididas e nos precisos termos em que o foram.
3.2 - Posto isto, vejamos se a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal no âmbito da oposição aí deduzida pela ora arguida tem a virtualidade de pôr em causa a infração criminal pela qual esta foi condenada no presente processo penal tributário, por se ter pronunciado sobre matéria em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos que lhe são imputados.
Em causa está o despacho de reversão contra a arguida, enquanto devedora subsidiária, despacho esse que a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal anulou, por falta de fundamentação, ao não conter articulação fática bastante que permitisse concluir pela efetiva gestão de facto da revertida relativamente à pessoa coletiva devedora originária.
Para responder àquela questão, importa ter presente o regime da responsabilidade subsidiária e do instituto da reversão, decorrente das disposições da Lei Geral Tributária (LGT), aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de dezembro.
Dispõe o art. 18º, n.º 3, desse diploma que “o sujeito passivo é a pessoa singular ou coletiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte direto, substituto ou responsável.
Acrescenta o art. 20º, n.º 1, que “a substituição tributária verifica-se quando, por imposição da lei, a prestação tributária for exigida a pessoa diferente do contribuinte.
Nos termos do art. 22º, n.ºs 2 e 4, “para além dos sujeitos passivos originários, a responsabilidade tributária pode abranger solidária ou subsidiariamente outras pessoas” e “a responsabilidade tributária por dívidas de outrem é, salvo determinação em contrário, apenas subsidiária.
Por seu lado, com a epígrafe “Responsabilidade tributária subsidiária”, dispõe o art. 23º, n.º 1, que “a responsabilidade subsidiária efetiva-se por reversão do processo de execução fiscal”, acrescentando o n.º 2 que “a reversão contra o responsável subsidiário depende da fundada insuficiência dos bens penhoráveis do devedor principal e dos responsáveis solidários, sem prejuízo do benefício da excussão”.
Por último, estatui o art. 24º, sob a epígrafe “Responsabilidade dos membros dos corpos sociais e responsáveis técnicos”, o seguinte:
1 - Os administradores, diretores e gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas coletivas e entes fiscalmente equiparados são subsidiariamente responsáveis em relação a estas e solidariamente entre si:
a) Pelas dívidas tributárias cujo facto constitutivo se tenha verificado no período de exercício do seu cargo ou cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado depois deste, quando, em qualquer dos casos, tiver sido por culpa sua que o património da pessoa coletiva ou ente fiscalmente equiparado se tornou insuficiente para a sua satisfação;
b) Pelas dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado no período do exercício do seu cargo, quando não provem que não lhes foi imputável a falta de pagamento. (…)”
Por seu turno, nos termos do disposto no art. 153º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aprovado pelo DL n.º 433/99, de 26 de outubro, “o chamamento à execução dos responsáveis subsidiários depende da verificação de qualquer das seguintes circunstâncias:
a) Inexistência de bens penhoráveis do devedor e seus sucessores;
b) Fundada insuficiência, de acordo com os elementos constantes do auto de penhora e outros de que o órgão da execução fiscal disponha, do património do devedor para a satisfação da dívida exequenda e acrescido.”.
E de acordo com o art. 159º do mesmo diploma, “no caso de substituição tributária e na falta ou insuficiência de bens do devedor, a execução reverterá contra os responsáveis subsidiários.”
A reversão traduz-se, assim, num ato administrativo que acarreta uma modificação subjetiva da instância executiva, ampliando-a, através da intervenção de um terceiro, igualmente sujeito passivo da relação tributária, enquanto responsável (art. 18º, n.º 3, da LGT), porque vinculado ao cumprimento da prestação tributária nos termos do art. 23º, n.º 2, da LGT e do art. 153º, n.º 2, do CPPT.
A reversão é uma figura processual privativa do processo executivo tributário, com objetivos e pressupostos próprios, quais sejam fazer responsabilizar os devedores fiscais pessoas singulares com responsabilidade subsidiária pelas dívidas fiscais de empresas ou pessoas jurídicas institucionais, com fundamento na fundada insuficiência patrimonial dos bens penhoráveis do devedor principal e dos responsáveis solidários ou dos seus sucessores, no exercício de funções de administração ou gestão em pessoas coletivas e entes fiscalmente equiparados e na culpa no não pagamento da prestação tributária, bem como na insuficiência patrimonial.
Por força da reversão, a execução reverte contra pessoa distinta da que figura no título executivo como devedor, verificando-se quanto a ela, não os pressupostos do facto tributário, mas os da responsabilidade subsidiária, estendendo-se a obrigação de cumprimento da prestação tributária a pessoa diversa do contribuinte direto.
Diferentemente se passam as coisas no processo penal, em que a fonte da responsabilização criminal e civil do arguido e demandado não emerge de uma responsabilidade tributária, mas outrossim da prática de um facto criminoso, gerador de responsabilidade criminal e civil nos termos gerais, com elementos típicos próprios, que transcendem o incumprimento da obrigação tributária, ainda que o pressuponham.
A responsabilidade tributária e a responsabilidade penal tributária são, pois, realidades distintas, que surgem, se mantêm e se extinguem de forma independente entre si.
No presente processo penal não está em causa a responsabilidade tributária, mas exclusivamente a responsabilidade criminal da arguida, isto é, a sua conduta para efeitos criminais, enquanto representante legal de uma sociedade comercial (art. 6º do RGIT) e a conexa responsabilidade civil decorrente da prática de um crime, que é de natureza extracontratual ou aquiliana (art. 483º do Código Civil), para cujo exercício não se torna necessária qualquer reversão, típica do processo tributário.
Assim, a reversão não surge como pressuposto da sujeição da arguida ao procedimento criminal ou do preenchimento dos elementos típicos do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelo art. 107º, n.º 1, com referência ao art. 105º, n.º 1, ambos do RGIT, pelo qual foi condenada.
A existência ou não da reversão fiscal contra a arguida apenas releva no domínio das relações jurídico-administrativas de natureza fiscal, sendo totalmente irrelevante para o processo penal tributário.
Enquanto que a arguida, na qualidade de gerente de facto da sociedade devedora no plano da execução fiscal tem uma responsabilidade tributária meramente subsidiária, no âmbito do processo criminal, em que está em causa a prática de um crime e a conexa responsabilidade civil, é sujeito processual principal.
Refira-se, ainda, que a culpa no processo de reversão não coincide com a culpa jurídico-penal do crime de abuso de confiança contra a segurança social em apreço, que é mais exigente, exigindo-se o dolo, reportado à falta da prestação tributária (com a inversão do título de posse), enquanto que no processo de reversão, para além de a culpa não ter de ser dolosa, reporta-se ao destino dado aos bens patrimoniais que constituem as garantias da execução fiscal.
De resto, como mais uma vez bem assinala a decisão recorrida, a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal pronunciou-se apenas pela verificação da invalidade formal do despacho de reversão, por falta de fundamentação, ao não conter a explicitação suficiente dos motivos fácticos quanto ao exercício da gestão de facto, tendo, inclusivamente, expressamente referido que "trata-se de questão que, naturalmente, se situa no âmbito da validade formal do ato - não se trata de saber se esses motivos correspondem à realidade e se, correspondendo, são suficientes para legitimar a concreta atuação administrativa".
Atenta o teor dessa decisão, não é a mesma contraditória com o efetivo exercício da gestão de facto por parte da arguida, pelo que, ao apurar-se e dar-se este facto como provado nos presentes autos, daí retirando as respetivas consequências jurídico-criminais, não houve violação de caso julgado.
Em síntese conclusiva, a reversão e a respetiva impugnação deduzida na execução fiscal não constitui uma questão prejudicial ou da qual dependa a qualificação jurídico criminal dos factos objeto do processo penal tributário. Consequentemente, a decisão proferida pela jurisdição tributária, a julgar procedente a oposição e a anular o despacho de reversão, não produz efeito de caso julgado com incidência sobre o processo penal tributário, constituindo exceção impeditiva da apreciação do mérito da causa, nos termos previstos no art. 48º do RGIT.
Improcede, pois, a única questão suscitada no recurso.


III. DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso, interposto pela arguida A. C., confirmando a sentença recorrida.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quantia correspondente a 3 unidades de conta (art. 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal, art. 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma).
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(Texto elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP)
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Guimarães, 08 de maio de 2017

(Jorge Bispo)

(Pedro Miguel Cunha Lopes)

(1) - Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo gralhas evidentes e a ortografia utilizada, sendo a formatação da responsabilidade do ora relator.
(2) - Como é o caso, nomeadamente, das situações previstas nos art.s 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, e 410º, n.º 2, al.s a), b) e c), todos do Código de Processo Penal, e resulta do acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I Série, de 28-12-1995.
(3) - Vd. Eduardo Correia, A Teoria do Concurso em Direito Criminal – Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz, Almedina, 1983, pág. 302.
(4) - Vd. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal I, págs. 164 e 165.
(5) - In Regime Geral das Infrações Tributárias, Anotado, 3.ª e dição, Áreas Editora, 2008, pág. 400 e ss.