Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1155/18.3T9BGC.G1
Relator: JORGE BISPO
Descritores: ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE IMPROCEDENTE
REJEIÇÃO
IDENTIFICAÇÃO ARGUIDO
REVOGAÇÃO DESPACHO RECORRIDO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) - A razão de ser da exigência legal de a acusação conter a identificação mais completa possível do arguido, incluindo, para além do seu nome, outros elementos identificativos essenciais, como os que são referidos no art. 141º, n.º 3, do CPP, prende-se com as garantias constitucionais dos seus direitos de defesa, de modo a não deixar dúvidas sobre a pessoa concreta que está a ser acusada e que poderá vir ser sujeita a julgamento. O que se pretende é uma identificação que garanta que a pessoa acusada é precisamente aquela que o devia ser e não qualquer outra.
II) - Em situações de insuficiente identificação do arguido na acusação, unicamente pelo nome, com ou sem remissão para outras peças do processo, estamos perante uma mera irregularidade, que deve considerar-se sanada se não for invocada por quem tem legitimidade para isso e no momento próprio (art. 123º do CPP).
III) - A acusação só será manifestamente infundada, para efeitos de rejeição, por omissão total da identificação do arguido ou indicação insuficiente de sinais tendentes ao reconhecimento inequívoco do mesmo, designadamente quando nem sequer o seu nome é mencionado, gerando a nulidade do libelo acusatório.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

1. No processo comum, com intervenção de tribunal singular, com o NUIPC 1155/18.3T9BGC, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Bragança, no Juízo Local Criminal de Bragança, foi proferido despacho, nos termos do art. 311º, n.ºs 2, al. a), e 3, al. a), do Código de Processo Penal, a rejeitar, por manifestamente infundada, a acusação particular deduzida pela assistente, M. F., contra o arguido, A. J., imputando-lhe a prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo art. 181º do Código Penal.

2. Desta decisão recorreu a assistente, finalizando a respetiva motivação nos seguintes termos (transcrição)[1]:
«CONCLUSÕES

1. O Tribunal a quo rejeitou a acusação da recorrente por a considerar manifestamente infundada, por, no seu entendimento, a mesma ser omissa no que se refere à identificação do arguido (artigo 283.º, n.º 2, alínea a), e n.º 3, alínea a), do Código de Processo Penal, uma vez que apenas foi indicado o nome e a morada do arguido, sem indicação da filiação, freguesia, e concelho de naturalidade, data de nascimento, estado civil, profissão e local de trabalho.
2. Com o devido respeito, entende a recorrente que o Tribunal a quo ao decidir como fez, violou o disposto nos artigos 283.º, n.º 3, alínea a), 311.º, n.º 2, alínea a), e n.º 3, alínea a), e 141.º n.º 3 todos do CPP.
3. A ratio legis destes normativos legais é permitir ter por seguro que o indivíduo acusado é um certo e determinado e que não haverá possibilidade de confusão com qualquer outra pessoa.
4. Para cumprir com a identificação do arguido, basta assim que a acusação, embora não contendo todos os elementos de identificação pessoal do arguido, contenha os elementos que permitem identificá-lo, para que não haja dúvidas de que é ele, e não outra, a pessoa a quem se imputam os factos constantes da acusação e que devem ser julgados.
5. Ora, a acusação particular deduzida pela assistente indica o nome e a morada do arguido, acrescentando ainda “melhor identificado nos autos”, o que claramente remete para os restantes elementos identificativos do arguido, aos quais se refere o artigo 141.º, n.º 3, do CPP, e que constam do processo de inquérito. Deste modo, o arguido está suficientemente identificado para que lhe possam ser imputados os factos nela inscritos, não existindo qualquer dúvida sobre a pessoa visada.
6. A jurisprudência maioritária tem decidido que não é manifestamente infundada a acusação em cujo texto o arguido, com o respetivo nome, está suficientemente identificada, ao ponto de, a partir dos elementos do inquérito, não existir qualquer dúvida sobre a pessoa visada pelos factos”.
7. No caso dos autos, o arguido está suficientemente identificado para não existir qualquer dúvida sendo admissível a remissão para os elementos identificativos já constantes dos autos uma vez que a lei apenas exige “indicações tendentes à identificação do arguido”. Nestes termos, e salvo o devido respeito, a acusação particular apresentada nos presentes autos, não poderia ter sido rejeitada por manifestamente infundada, em virtude de não conter a identificação do arguido.
8. Nesta senda, vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19/12/2017, proc. 218/17.7T9VIS.C1, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 03/12/2003, proc. n.º 3444/03, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14/06/2006, proc. n.º 1008/06, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 13/03/2001, proc. n.º 00105995 e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 02/04/2008, todos em www.dgsi.pt.
9. A acusação só pode ser rejeitada com fundamento na falta de identificação do arguido quando há omissão completa dessa identificação, o que não acontece in casu, onde a acusação particular contém o nome e a morada do arguido e ainda remete para os elementos identificativos constantes dos autos. Não se podendo ignorar que não há qualquer hipótese de confusão e/ou incerteza quanto à identificação do arguido, tanto mais que o mesmo prestou Termo de Identidade e Residência, a fls. 31 dos autos.
10. O Tribunal a quo deveria, por isso, ter considerado suficiente, ao abrigo dos artigos 311.º, n.º 2, al. a), e n.º 3, al. a), do CPP, a identificação do arguido constante da acusação deduzida pela aqui assistente, ao não o fazer esta claramente a violar estes normativos legais.
11. Pelo que o Tribunal a quo aplicou erradamente o artigo 283.°, n.° 3, alínea a), e o artigo 311.º, n.° 2, alínea a) e n.° 3, alínea a), todos do Código de Processo Penal, devendo ser revogado o douto despacho e substituído por outro que designe o dia e hora para a audiência de discussão e julgamento nos termos do previsto no n.º 1 do artigo 311.º do CPP.

Termos em que, e nos mais de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se o despacho recorrido, sendo o mesmo substituído por outro que designe dia e hora para a realização da audiência de discussão e julgamento nos seus precisos termos, imputando ao arguido a prática do crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º do Código Penal, fazendo-se assim, a habitual e necessária JUSTIÇA!»

3. O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto da primeira instância respondeu ao recurso, opinando que o despacho recorrido deve ser revogado, porquanto, em suma, «[o] arguido contra quem foi deduzida a acusação está suficientemente identificado, de forma a afastar qualquer dúvida que pudesse, eventualmente, surgir, até porque o inquérito correu sempre contra uma pessoa determinada e identificada, e essa determinação e identificação resulta claramente da acusação, motivo pelo qual merece censura o despacho em crise.».
4. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, no parecer que emitiu, pronunciou-se no sentido de o recurso merecer provimento[2], por entender que «[o] art. 311º, n.º 3, al. a) CPP deve ser interpretado restritivamente, no sentido de que só a total omissão da identificação do arguido é causa de rejeição da acusação, bastando a indicação do nome, seguida de qualquer outra menção individualizante (no caso, a morada respetiva), não sendo causa de rejeição da acusação a não indicação nesta dos elementos de identificação previstos nos arts. 141º, n.º 3 ou 342º CPP pois o que a lei pretende é uma identificação que permita ter por garantido que a pessoa acusada é precisamente aquela que o devia ser e não um qualquer outra, questão que, à partida, fica resolvida, quer com a menção da residência do visado, quer os "sinais" atinentes constantes do inquérito.».
5. Cumprido o disposto no art. 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, sem que tenha sido apresentada qualquer resposta a esse parecer, foram colhidos os vistos, após o que o processo foi presente à conferência, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c) do mesmo diploma.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Delimitação do objeto do recurso

Sendo entendimento pacífico que o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso[3], no caso presente, a única questão a decidir consiste em saber se, em virtude de na acusação o arguido apenas ser identificado pelo seu nome, morada e com a menção "melhor identificado nos autos", ou seja, sem indicação de quaisquer outros elementos identificativos, tal acusação é, ou não, manifestamente infundada, pressuposto da sua rejeição ao abrigo do art. 311º, n.º 2, al. a), e n.º 3, al. a), do Código de Processo Penal, diploma a que pertencem os demais preceitos citados sem qualquer menção.

2. Da decisão recorrida

O despacho recorrido tem o seguinte teor (transcrição):
«Porquanto a acusação particular é omissa no que se refere à identificação do arguido, uma vez que apenas é indicado o nome e a morada daquele, sem indicação da filiação, freguesia e concelho de naturalidade, data de nascimento, estado civil, profissão, e local de trabalho, nos termos exigidos pelo art. 283.º, n.º 3, a.l a) ex vi do art. 285.º, n.º 3, por referência ao art. 141.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal, é manifestamente infundada, rejeitando-se a mesma, nos termos do art. 311.º, n.ºs 2, al. a) e 3, al. a), do Cód. Proc. Penal.
Notifique.
Oportunamente, arquive e dê baixa.»

3. Apreciação do recurso

A assistente e ora recorrente deduziu acusação particular contra o arguido, identificando-o da seguinte forma: "A. J., residente na Rua …, melhor identificado nos autos".
Remetido o processo para julgamento, sem ter havido instrução, a Mmª. Juíza a quo, no despacho de saneamento do processo (decisão recorrida), entendendo que a acusação é omissa quanto à identificação do arguido, por apenas conter o seu nome e morada, sem indicação dos demais elementos exigidos pelo art. 283º, n.º 3, al. a), ex vi art. 285º, n.º 3, por referência ao art. 141º, n.º 3 (filiação, freguesia e concelho de naturalidade, data de nascimento, estado civil, profissão e local de trabalho), considerou-a manifestamente infundada, razão pela qual a rejeitou nos termos do art. 311º, n.ºs 2, al. a), e 3, al. a), determinando o arquivamento dos autos.
Em contraposição, a recorrente defende que o arguido está suficientemente identificado na acusação para que lhe possam ser imputados os factos nela descritos, não existindo qualquer dúvida sobre a pessoa visada, pelo que não poderia aquela ser rejeitada por manifestamente infundada, pedindo, assim, a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que receba tal acusação.
Entendimento esse que é secundado pelo Ministério Público, em ambas as instâncias.

Vejamos, então.

3.1 - Como decorre do art. 262º, n.º 1, o inquérito é a fase processual que visa «(…) investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação.».
Tendo o processo penal uma estrutura acusatória, por imposição constitucional (art. 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa) e sendo primacialmente orientado para a proteção das garantias da defesa, o respetivo objeto tem de ser fixado com rigor e precisão.
A acusação, enquanto manifestação formal da pretensão de que o arguido seja submetido a julgamento pela prática de determinado crime e por ele condenado, constitui o pressuposto indispensável da fase de julgamento, por ela se definindo e fixando o seu objeto[4], ou seja, a infração e o autor acusado da mesma.
Daí que, atenta a função de segurança e a vinculação temática da acusação, esta tenha de conter, por si só, todos os elementos essenciais constitutivos do crime imputado, começando pela imputação dos mesmos a um determinado agente.
Dispõe o art. 283º, n.º 3, al. a), aplicável à acusação particular por força do n.º 3 do art. 285º, que a acusação contém, sob pena de nulidade, “[a]s indicações tendentes à identificação do arguido”.
A este respeito Germano Marques da Silva[5], refere que “[d]a acusação devem constar todos os elementos necessários à identificação do arguido e, pelo menos, o seu nome.”.
A nulidade cominada naquele n.º 3 não é insanável, uma vez que não é referida como tal no preceito nem está abrangida na enumeração taxativa do art. 119º.
Em sede de primeiro interrogatório, seja judicial ou não judicial (arts. 141º, n.º 3, e 143º, n.º 2), "[o] arguido é perguntado pelo seu nome, filiação, freguesia e concelho de naturalidade, data de nascimento, estado civil, profissão, residência, local de trabalho (…)".
Sobre esses mesmos elementos é o arguido perguntado no início do julgamento, quando o juiz procede à sua identificação (art. 342.º, n.º 1).
Todavia, mesmo que da acusação não constem algumas dessas indicações tendentes à completa identificação do arguido, nada impede que o juiz questione a pessoa que tem perante si, como arguido, acerca dos elementos identificativos em falta e os tenha em consideração, mais tarde, aquando da elaboração da sentença. Com efeito, a respeito dos requisitos da sentença, dispõe o art. 374º que: “1 – A sentença começa por um relatório, que contém: a) As indicações tendentes à identificação do arguido; (…).”.
Por se lado, decorre do art. 311º, n.º 2, que, "[s]e o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada.".
Clarificando este conceito, o n.º 3 do mesmo artigo estabelece que «[p]ara efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada: a) Quando não contenha a identificação do arguido; (…).".
Uma interpretação sistemática destes normativos, em conjugação com o disposto no art. 283º, n.º 3, al. a), impõe que se conclua que a acusação que não contém a identificação do arguido é aquela que não contém as indicações tendentes à sua identificação.
Acresce que o emprego do advérbio "manifestamente" inculca a ideia de que só poderá ser rejeitada a acusação que se mostre elaborada de tal modo que, face à extensão das suas deficiências ou ao teor da sua descrição factual, torne evidente que não permite de forma alguma a identificação da pessoa a quem são imputados os factos nela descritos.
Contrariamente, já não deverá conduzir a tal rejeição a circunstância de a acusação padecer de vícios ou lacunas não essenciais ou proceder a uma descrição incompleta dos factos ou da identificação do agente, desde que essa insuficiência não conduza inexoravelmente à sua não procedência.
A razão de ser da exigência legal de a acusação conter a identificação mais completa possível do arguido, incluindo, para além do seu nome, outros elementos identificativos essenciais, como os que são referidos no art. 141º, n.º 3, prende-se com as garantias constitucionais dos seus direitos de defesa, de modo a não deixar dúvidas sobre a pessoa concreta que está a ser acusada e que poderá vir ser sujeita a julgamento. O que se pretende é uma identificação que garanta que a pessoa acusada é precisamente aquela que o devia ser e não qualquer outra.
3.2 - Na situação em apreço, entendeu o tribunal a quo que a acusação particular é manifestamente infundada, alicerçando-se no argumento de que a mesma é omissa quanto à identificação do arguido, uma vez que este apenas é identificado pelo nome e morada, sem indicação dos restantes elementos.
Todavia, ainda que incompletamente, o arguido está identificado, posto que a acusação não foi deduzida contra alguém inominado ou incerto. Dela consta expressamente, como o próprio despacho recorrido reconhece, o nome e a morada do arguido, seguidos da menção "melhor identificado nos autos".
Com este último segmento, a assistente, comodamente, remeteu para os demais elementos de identificação do arguido constantes dos autos.
A queixa que deu origem aos presentes autos foi apresentada contra "A. J., residente na Rua …" (cf. fls. 2).
A única pessoa visada na investigação, formalmente constituída como arguido (cf. auto de fls. 20), interrogada como tal (cf. auto de fls. 22) e que prestou termo de identidade e residência (cf. fls. 21) foi A. J..
Ora, desses documentos constam os demais elementos de identificação do arguido, concretamente o estado civil, a profissão, a data de nascimento, a filiação, a naturalidade, a residência, o n.º de telemóvel e o n.º de cartão de cidadão.
Apesar de a morada fornecida pelo arguido no momento em que foi constituído e interrogado como tal e em que prestou termo de identidade e residência (Av. …, Bragança) não coincidir com a morada indicada pela assistente na queixa, tal circunstância nada tem de estranho, podendo ter várias explicações.
É indesmentível que a imposição legal de identificar o arguido na acusação não se mostra cumprida na perfeição, sendo certo que estava ao alcance da assistente proceder à completa identificação do mesmo, como seria desejável, designadamente por recurso aos elementos constantes dos autos.
Contudo, como referimos, nos autos existe um único arguido, como tal constituído e interrogado, devidamente identificado em várias peças processuais, com indicação de todos os seus elementos de identificação, tendo prestado termo de identidade e residência.
Em face dos elementos constantes dos autos, não pode restar a mínima dúvida, tanto mais que só a ele se faz referência como autor dos factos em apreço, sobre a identidade do indivíduo a quem a assistente imputa dos factos descritos na acusação particular.
Naturalmente que o nome não fornece a identificação completa do arguido. Todavia, os restantes elementos tendentes a essa completude constam das referidas peças processuais.
Assim, é de concluir que o objetivo visado pela lei ao estabelecer a imposição de a acusação conter a identificação do arguido foi inteiramente alcançado.
Em suma, como sustenta a recorrente, o arguido contra quem é deduzida a acusação particular está suficientemente identificado, desde logo pelo nome (A. J.) e pela morada (ainda que esta não coincida com a fornecida por este aquando da sua constituição como tal e prestação de termo de identidade e residência), mas também pelos restantes elementos identificativos constantes dos autos, ao ponto de afastar qualquer dúvida que pudesse surgir, pois o inquérito correu sempre contra uma única pessoa, determinada e identificada, cuja identificação completa resulta dos autos de constituição e de interrogatório de arguido e do respetivo termo de identidade e residência.

Face ao explanado, uma vez que só a ausência total de identificação do arguido (ou a indicação insuficiente de sinais tendentes ao reconhecimento inequívoco do arguido no processo) poderia gerar a nulidade prevista no art.º 283º, n.º 3, al. a), ex vi art. 285º, n.º 3, e, consequentemente, desencadear a rejeição da acusação por manifestamente infundada ao abrigo do art. 311º, n.ºs 2, al. a), e 3, al. a), é de concluir que a acusação deduzida pela assistente, embora deficiente quanto à identificação completa do arguido, não deve, por esse fundamento, ser rejeitada.
Não existe, assim, fundamento para a rejeição da acusação por falta de identificação do arguido, na medida em que não subsiste qualquer dúvida sobre quem é a concreta pessoa física acusada e a submeter a julgamento, por existirem nos autos elementos suficientes que, além do nome, permitem atribuir essa identidade concreta e individualizar a pessoa do arguido.
Tem sido este o entendimento seguido pelos Tribunais da Relação, ao considerarem que, em situações de insuficiente identificação do arguido na acusação, unicamente pelo nome, com ou sem remissão para outras peças do processo, estamos perante uma mera irregularidade, que deve considerar-se sanada se não for invocada por quem tem legitimidade para isso e no momento próprio (art. 123º), e que a acusação só será manifestamente infundada, para efeitos de rejeição, por omissão total da identificação do arguido, ou indicação insuficiente de sinais tendentes ao reconhecimento inequívoco do mesmo, designadamente quando nem sequer o seu nome é mencionado, gerando a nulidade do libelo acusatório[6].
Também o Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 21-06-2017[7], citando Maia Costa (Código de Processo Penal Comentado, 2ª edição, 2016, 950), considerou que «(…) como vem sendo entendido, só a ausência de indicações que conduzam à impossibilidade de identificação do arguido, ou seja, a sua individualização sem quaisquer ambiguidades, integra a nulidade da acusação prevista na alínea a) do n.º 3 do artigo 283º (…).».
No mesmo sentido se pronuncia Germano Marques da Silva[8], a referir «(…) que se deve entender ser apenas caso de acusação manifestamente infundada a falta de arguido e não apenas a deficiência da sua identificação na acusação, quando suprível com outros elementos constantes dos autos, salvo se arguida a nulidade.».
Entendimento diferente ao perfilhado obstaculizaria desproporcionadamente o acesso ao direito, constitucionalmente reconhecido (cf. art. 20º, n.º 1, da Constituição).

Impõe-se, pois, conceder provimento ao recurso.

III. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em, concedendo provimento ao recurso interposto pela assistente, revogar o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que não rejeite a acusação com fundamento na falta de identificação do arguido.
Sem tributação em custas (art. 515º, n.º 1, al. b), a contrario, do Código de Processo Penal).
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(Elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários - art. 94º, n.º 2, do Código de Processo Penal)

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Guimarães, 13 de julho de 2020


(Jorge Bispo)
(Pedro Miguel Cunha Lopes)
(assinado eletronicamente, conforme assinaturas apostas no canto superior esquerdo da primeira página)


[1] - Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo a correção de gralhas evidentes, a ortografia e a formatação utilizadas que são da responsabilidade do relator.
[2] - Ainda que, na parte final do seu parecer, tenha escrito o contrário, o que se deveu a evidente lapso, como inequivocamente resulta do restante texto do parecer.
[3] - Como sucede, nomeadamente, nos casos previstos nos art.s 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, e 410º, n.º 2, al.s a), b) e c), do Código de Processo Penal, e resulta do acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I Série-A, de 28-12-1995.
[4] - Vd. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, 2ª Edição, Revista e atualizada, pág. 113.
[5] - Obra e volume citados, pág. 114.
[6] - Cf., entre outros, os acórdãos da RC de 03-12-2003 (processo n.º 3444/03), 14-06-2006 (processo n.º 1008/06) e de 19-12-2017 (processo n.º 218/17.7T9VIS.C1), do TRE de 11-10-2011 (processo n.º 69/10.0GBVVC.E1), do TRL de 07-03-2001 (processo n.º 00104843), 13-03-2001 (processo n.º 00105995), 26-09-2001 (processo n.º 0070793), 27-05-2009 (processo n.º 7434/06.5TDLSB-3, 21-10-2015 (processo n.º 2183/11.5PBSNT.L1-3) e do TRP de 29-11-2006 (processo n.º 0614418), 20-12-2006 (processo n.º 0615408), 15-10-2007 (processo n.º 0714741), 02-04-2008 (processo n.º 0811452), 30-05-2012 (processo n.º 69/11.2PSPRT.P1), 11-10-2017 (processo n.º 96/16.3GBPFR.P1), todos disponíveis em http//www.dgsi.pt.
[7] - Proferido no processo n.º 39/16.4TRGMR, disponível em http://www.dgsi.pt.
[8] - Obra e volume citados, pág. 207.