Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5031/21.4T8GMR.G1
Relator: JOSÉ CRAVO
Descritores: ILEGITIMIDADE ACTIVA
HERANÇA INDIVISA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – A actuação em juízo de uma herança indivisa pressupõe a intervenção de todos os herdeiros, correspondendo a uma situação de litisconsórcio necessário, decorrente do art. 2091º/1 do CC.
II – Diversamente do que sucede com a chamada petição de herança, reportando-se os autos a uma acção declarativa de condenação, intentada pela cabeça-de-casal de uma herança aberta por óbito de alguém, desacompanhada dos demais herdeiros, carece ela de legitimidade para tal, dado estar-se perante uma situação de litisconsórcio necessário (cfr. arts. 33º/1 do CPC e 2091º/1 do CC).
III – Efectivamente, o disposto no art. 2078º do CC não tem aqui aplicação e, como resulta do preceituado no nº 2 deste art. e do nº 1 do art. 2088º do mesmo diploma, o cabeça-de-casal só tem legitimidade para pedir a entrega de bens e para usar de acções possessórias.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães
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1 RELATÓRIO

A. B., por si e na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de A. S., intentou a presente acção declarativa comum (1) contra A. P., por si e na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de A. J., filho da primeira, pedindo a condenação da R. a restituir à A. metade do valor (capital e juros) cuja restituição nesta acção é pedida, e bem assim ser a ré igualmente condenada a restituir à autora a restante metade dos valores (capital e juros) pedidos na presente acção, na qualidade de cabeça de casal aberta por óbito do seu marido, A. S..
Para tanto e em suma alegou que no período compreendido entre 2002 e 2004, ainda no estado de casada com A. S., emprestou ao filho A. J., entretanto falecido e à data casado com a ora R., a quantia de € 55.000,00, a qual venceria juros, os quais totalizavam € 44.000,00 à data da propositura da acção.
O empréstimo foi do casal formado pelos pais do falecido marido da ora R., ao casal formado pela ora R. e pelo falecido filho da A., sendo a dívida, por conseguinte, comum.
Em Janeiro de 2021 a A., já viúva, reclamou o pagamento da quantia mutuada, o que a R., também já viúva, não satisfez.
Devidamente citada, a R. excepcionou, designadamente, com a ilegitimidade activa, alegando que não há risco de insolvência da herança e que a sua filha (da R.) também é herdeira, pelo que não se verifica a situação a que alude o art. 2089º do CC e a A. carece de legitimidade activa para propor a acção desacompanhada dos demais herdeiros.
A A., pronunciou-se quanto à matéria de excepção, pugnando pela improcedência.
Foi proferido, em 10-03-2022, despacho (2) a convidar a A. a fazer intervir os herdeiros do seu falecido cônjuge, a fim de assegurar a legitimidade activa, mas a mesma não o fez e defende que não tem de o fazer.

Pronunciando-se sobre a questão, em 27-04-2022, o Tribunal a quo decidiu nos seguintes termos:
Como se referiu já em anterior despacho, a autora funda o seu pedido num contrato de mútuo que admite ser nulo nos termos do disposto no art. 220º do Código Civil.
De harmonia com o disposto no art. 286º do Código Civil, a nulidade pode ser invocada a todo o tempo por qualquer interessado ou oficiosamente declarada pelo tribunal e os efeitos da declaração de nulidade são os previstos no art. 289º do Código Civil – determinando a restituição de tudo o que tiver sido prestado ou, não sendo isso possível, do valor correspondente.
A autora é interessada, para estes efeitos.
No entanto, não é a única interessada e não pode agir em representação dos demais herdeiros.
Efectivamente, não está em causa uma herança jacente, mas sim indivisa, pois, como resulta da contestação, houve aceitação e a filha da ré representará o seu falecido pai na herança por morte do avô – de quem a autora é viúva.
Estando em causa um direito de crédito inserível no disposto no art. 2091º do CC, todos os herdeiros têm que intervir.
Como se refere no Ac. do TRC de 26.02.2019, Rel.: ANTÓNIO CARVALHO MARTINS, «[a] actuação em juízo de uma herança indivisa pressupõe a intervenção de todos os herdeiros, correspondendo a uma situação de litisconsórcio necessário, decorrente do artigo 2091º, nº 1 do CC».
Ademais, dispõe o art. 2089º do mesmo diploma que «[o] cabeça-de-casal pode cobrar as dívidas activas da herança quando a cobrança possa perigar com a demora ou o pagamento seja feito espontaneamente», acrescentando o nº 1 do art. 2091º que «[f]ora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no art. 2078º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros» – vd., a este propósito, o Ac. do TRC de 26.02.2019, Rel. ANTÓNIO CARVALHO MARTINS, in: www.dgsi.pt.
Do exposto resulta que, quer se considere que estamos perante uma dívida activa da herança, quer se considere que está em causa o exercício de um direito de crédito, seria necessária a intervenção de todos os herdeiros.
Note-se que a autora não explica de modo atendível porque razão a cobrança da alegada dívida não se compadeceria com esse chamamento: a questão da prescrição colocar-se-ia nos mesmos termos, quer a mesma se apresentasse sozinha, como sucedeu; quer se apresentasse pedindo, concomitantemente, a intervenção que asseguraria a legitimidade activa, nos termos do nº 1 do art. 316º do CPC; quer ainda, se tivesse acedido ao convite formulado pelo tribunal – vd. art. 323º do CC. Na verdade, possibilitada que está, pela actual lei de processo, que a parte proponha a acção e peça, em simultâneo, a intervenção de outros sujeitos para o lado activo – nº 1 do art. 316º do CPC –, o argumento da prescrição afigura-se insuficiente, tanto mais que ela se interrompe com a citação, a qual, ademais, pode ser pedida com carácter urgente (vd. art. 561º, nº1, do CPC).
Como afirmam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA na anotação ao artigo 2089º (Código Civil Anotado, Vol. VI, Coimbra Editora, 1998, p. 149), «[a] regra, neste capítulo, é, por conseguinte, a de que a cobrança dos créditos (dívidas activas) da herança não cabe no pelouro do cabeça-de-casal, atento o carácter temporário bastante limitado da sua função. Só nas circunstâncias especiais destacadas no art. 2089º é natural e legítima a sua intervenção nesse foro».
Pelo exposto, não sendo possível concluir pela verificação da situação a que alude a norma citada, a presente acção teria que ser interposta conjuntamente por todos os herdeiros, como impõe o art. 2091º do CC. Consequentemente, a cabeça-de-casal, desacompanhada dos demais herdeiros, não tem legitimidade para a presente acção (vd. Ac. cit.).
Esta excepção de ilegitimidade da cabeça de casal por preterição de litisconsórcio necessário era sanável por via do incidente de intervenção de terceiros, conforme decorre do art. 316º, nº 1, do actual CPC, “impondo-se mesmo ao juiz o dever de providenciar pela sanação dessa excepção, convidando as partes a deduzir o incidente adequado à intervenção dos herdeiros em falta (cfr. art. 6º, nº 2, do CPC)» (Cf. Ac. RC, de 24.02.2015, Proc. nº 1530/12.7TBPBL.C1, Relatora: Catarina Ramalho Gonçalves)” – vd. Ac. citado.
Sucede, porém, que o convite foi formulado e a autora declinou-o. Não considero que seja devido um novo convite.
Pelo exposto, julgo verificada a excepção de ilegimidade activa e, consequentemente absolvo a ré A. P. da instância.
Custas pela autora – nº 1 do art. 527º do CPC.
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Inconformada com essa decisão, a A. interpôs recurso de apelação contra a mesma, visando a revogação do decidido, cujas alegações finalizou com a apresentação das seguintes conclusões:

A
A Autora / Recorrente A. B., interpôs a presente ação, por si, enquanto viúva e como cabeça de casal da herança por óbito de seu marido, contra a Ré, alegando nos artigos 7 a 11 da petição inicial dificuldades no contacto com a Ré e recusa sucessiva desta em receber as convocatórias para a resolução extrajudicial da sua pretensão e alegou ainda no artigo 11 da petição inicial que não era possível aguardar mais pelo recurso à via judicial, e, de direito, alegou e fundou a sua pretensão no disposto no artigo 2089º do Código Civil, (conforme expressamente consta no capítulo II da petição inicial), e, confirmando o receio da Autora de que a cobrança da dívida podia perigar com a demora da citação da Ré, foi que a Ré, para além da recusa em receber as cartas da Autora e do seu Mandatário anteriores à propositura da ação, continuou em igual senda furtando-se também à sua própria CITAÇÃO, recusando-se em receber a citação postal remetida pelo Tribunal, e tendo vindo apenas a ser citada por OFICIAL DE JUSTIÇA, (conforme consta nos autos), alegando a Ré na sua contestação quer a prescrição da dívida, nos artigos 16 e seguintes da contestação, quer a prescrição dos juros, nos artigos 52 e seguintes da contestação, donde se apresenta justificada a atuação da Autora / Recorrente nos termos e ao abrigo do disposto no cit. Artigo 2089º do Código Civil.
B
Em Despacho de 10-03-2022 a M.ma Juiz a quo conclui relativamente à Autora / Recorrente nos seguintes termos:
- “…deverá fazer intervir em Juízo todos os herdeiros daquele, sob pena de ilegitimidade ativa, conducente à absolvição da instância.
Prazo: 15 dias”.
E deste Despacho foi interposto pela Autora / Recorrente RECURSO, que não foi admitido e do qual está pendente RECLAMAÇÃO dirigida a este Tribunal da Relação de Guimarães, pelo que é extemporâneo o Despacho proferido em 27-04-2022, o qual é do seguinte teor:
“…Será do despacho que conheça da ilegitimidade, em seguida proferido, que as partes poderão recorrer, caso dele discordem.”
C
Não tendo ainda transitado em julgado o referido Despacho de 10-03-2022, (por força do disposto no artigo 628º do CPC), está ainda a Autora / Recorrente em tempo para requerer, (se assim entender) a intervenção em Juízo dos restantes herdeiros de seu falecido marido.
D
A Decisão sub judice de 27-04-2022, que julgou verificada a “ilegitimidade ativa” da Autora / ora Recorrente, e consequentemente absolveu a Ré da instância, É EXTEMPORÂNEA, considerando que a Decisão de 10-03-2022 é do seguinte teor:
- “…deverá fazer intervir em Juízo todos os herdeiros daquele, sob pena de ilegitimidade ativa, conducente à absolvição da instância.
Prazo: 15 dias”.
E ainda não transitou em julgado, pelo que a Autora / Recorrente está ainda em tempo para requerer a intervenção em Juízo dos restantes herdeiros de seu falecido marido, (caso entenda fazê-lo).
SEM CONCEDER,
(da improcedência da Decisão sub judice, que julgou verificada a ilegitimidade ativa da Autora / Recorrente e consequentemente absolveu a Ré da instância)
E
A Autora / Recorrente propôs a presente ação, agindo por si e na qualidade de cabeça de casal aberta por óbito de seu marido - e propôs ela própria a presente ação, desacompanhada dos restantes herdeiros de seu falecido marido, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 2089º do Código Civil, e justificadamente face ao aproximar da verificação do prazo de prescrição da dívida e à conduta da Ré que recusou sucessivamente receber cartas da Autora e do seu Mandatário para resolução extrajudicial deste litígio, e veio ainda, conforme era receio da Autora / Recorrente a recusar sucessivamente as cartas do Tribunal para a sua citação postal, tendo havido necessidade da sua CITAÇÃO POR OFICIAL DE JUSTIÇA, justificando-se ainda o agir da Autora / Recorrente ao abrigo do disposto no artigo 2089º do Código Civil, dado a aproximação perigosa de vir a ser completado o prazo de prescrição e dado ainda que este perigo só seria concretizado com a CITAÇÃO DA RÉ, dado que a prescrição só é interrompida por efeito da citação nos termos do disposto no artigo 323º, n.º 1 do Código Civil, pelo que agindo a Autora ao abrigo do disposto no cit. artigo 2089º do Código Civil ficou assim estabilizada a instância.
F
Além de ter agido ao abrigo do disposto no cit. artigo 2089º do Código Civil, a Autora / Recorrente agiu ainda cumprindo a sua responsabilidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de seu falecido marido e em conformidade com o disposto no artigo 2078º do Código Civil, que atribui legitimidade à Autora / Recorrente, na sua qualidade de cabeça de casal e como herdeira de seu falecido marido, para pedir separadamente a totalidade dos bens em poder da Ré, conforme sucede no presente processo, assistindo assim à Ré o direito de pedir a entrega dos bens (dinheiro e juros), para como cabeça de casal os administrar até à partilha, nos termos do disposto no cit. artigo 2078º do Código Civil como sucede no presente processo.
G
Foi violada a disposição legal do artigo 628º do C.P.C.
Tal disposição deveria ter sido interpretada e aplicada e com o sentido de que o Despacho de 10-03-2022 ainda não transitou em julgado e de que consequentemente a Autora / Recorrente está ainda em tempo para requerer, (se assim entender) a intervenção em Juízo dos restantes herdeiros do seu falecido marido.
H
Foi violado ainda o disposto nos artigos 2089º e 2078º, do Código Civil.
Tais disposições deveriam ter sido interpretadas e aplicadas e com o sentido de que foi justificada a propositura da presente ação pela Autora / Recorrente, desacompanhada dos restantes herdeiros do seu falecido marido ao abrigo do disposto no artigo 2089º do Código Civil, agindo a Autora em cumprimento das suas obrigações do exercício do seu cargo de cabeça de casal e que assistiu ainda à Ré tal direito ao abrigo do disposto do cit. artigo 2078º do Código Civil para pedir à Ré a entrega dos bens pertencentes à herança aberta por óbito de seu falecido marido (dinheiro e juros), para como cabeça de casal os administrar até à partilha.

Termos em que pede a procedência do Recurso, declarando-se:
- Que o Despacho de 10-03-2022, referência CITIUS 178126227 de 10-03-2022, - que decidiu terem de intervir na ação os restantes herdeiros do falecido cônjuge da Autora / Recorrente sob pena de ilegitimidade ativa da Autora / Recorrente, Despacho este que se transcreve:
- “…deverá fazer intervir em Juízo todos os herdeiros daquele, sob pena de ilegitimidade ativa, conducente à absolvição da instância.
Prazo: 15 dias
Ainda não transitou em julgado e que consequentemente a Autora / Recorrente está ainda em tempo para, querendo, requerer a intervenção em Juízo dos restantes herdeiros de seu falecido marido;
- Que, consequentemente, os identificados Despachos sub judice de 27-04-2022, são extemporâneos, (em virtude de o referido Despacho de 10-03-2022 ainda não ter transitado em julgado;
- E, subsidiariamente, que o Despacho sub judice de 27-04-2022, (que julgou verificada a “ilegitimidade ativa” da Autora / ora Recorrente, e consequentemente absolveu a Ré da instância), deve ser julgado improcedente,
E assim a realização de JUSTIÇA.
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Não consta dos autos terem sido apresentadas contra alegações.
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A Exmª Juiz a quo proferiu despacho a admitir o interposto recurso, providenciando pela subida dos autos.
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Facultados os vistos aos Exmºs Adjuntos e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
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2QUESTÕES A DECIDIR

Como resulta do disposto no art. 608º/2, ex vi dos arts. 663º/2, 635º/4, 639º/1 a 3 e 641º/2, b), todos do CPC, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
Consideradas as conclusões formuladas pela apelante, a questão a decidir consiste em aferir se o despacho supra descrito deve ser revogado e substituído por outro, nos termos pedidos pela recorrente.
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3OS FACTOS

Os pressupostos de facto a ter em conta para a pertinente decisão são os que essencialmente decorrem do relatório que antecede.
Mais se consigna que a “Reclamação” supra aludida, designadamente em B, C e D das conclusões das alegações, já conheceu decisão neste Tribunal da Relação de Guimarães em 21-09-2022, tendo sido indeferida, “mantendo-se a decisão que não admitiu o recurso à luz da al. a), do nº 2 do artº 641º do Código de Processo Civil.”.
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4 – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Entende a recorrente não ter sido acertada a decisão recorrida, já que a mesma é extemporânea, pois o despacho de 10-03-2022 que decidiu terem de intervir na acção os restantes herdeiros do falecido cônjuge da Autora/Recorrente sob pena de ilegitimidade activa da Autora/Recorrente ainda não transitou em julgado, estando, pois, a mesma ainda em tempo para, querendo, requerer a intervenção em Juízo dos restantes herdeiros de seu falecido marido. Acresce que, propôs ela própria a presente ação, desacompanhada dos restantes herdeiros de seu falecido marido, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 2089º do Código Civil, e justificadamente face ao aproximar da verificação do prazo de prescrição da dívida e à conduta da Ré que recusou sucessivamente receber cartas da Autora e do seu Mandatário para resolução extrajudicial deste litígio, além de o ter feito em conformidade com o disposto no artigo 2078º do Código Civil, que atribui legitimidade à Autora / Recorrente, na sua qualidade de cabeça de casal e como herdeira de seu falecido marido, para pedir separadamente a totalidade dos bens em poder da Ré, (…) para como cabeça de casal os administrar até à partilha.
Ora, tendo ficado, entretanto, prejudicado o entendimento/argumento da extemporaneidade da decisão recorrida, com a decisão da reclamação supra mencionada que possibilitou o trânsito em julgado do despacho de 10-03-2022, resta a também alegada violação pela decisão recorrida do disposto nos arts. 2089º e 2078º do CC.
Quid iuris?

Antecipando desde já a decisão, podemos dizer que não tem razão a recorrente.
Com efeito, como assertivamente se refere na decisão recorrida, estamos perante a actuação em juízo de uma herança indivisa, pois, como resulta da contestação, houve aceitação e a filha da ré representará o seu falecido pai na herança por morte do avô – de quem a autora é viúva. Esta, contrariamente ao que sucede com a herança jacente – “Diz-se jacente a herança aberta, mas ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado”, art. 2046º do CC –, que dispõe de personalidade judiciária [art. 12º, a) do CPC], carece da intervenção de todos os herdeiros, activa ou passiva, para exercício dos direitos respectivos. Vale aqui o regime decorrente do art. 2091º/1 do CC: “[…] os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros”, sendo neste sentido que se fala, relativamente à herança indivisa, de litisconsórcio necessário activo ou passivo.
Assim, entende-se que a A., na sua qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de A. S., não tem legitimidade para a presente acção desacompanhada dos demais herdeiros, por se considerar haver um litisconsórcio necessário (cfr. arts. 33º/1 do CPC e 2091º/1 do CC).
É que, segundo o nº 1 do art. 2078º do CC, “Sendo vários os herdeiros, qualquer deles tem legitimidade para pedir separadamente a totalidade dos bens em poder do demandado, sem que este possa opor-lhe que tais bens lhe não pertencem por inteiro”.
O disposto no número anterior não prejudica o direito que assiste ao cabeça-de-casal de pedir a entrega dos bens que deva administrar, nos termos do capítulo seguinte” – nº 2 do mesmo artigo.
Como diz o Conselheiro RODRIGUES BASTOS, em anotação a este artigo (3), “No caso em apreço, considera-se legitimado activamente, para exercer a petição da herança, qualquer herdeiro, que pode assim pedir separadamente a totalidade da herança àquele que a possuir ou detiver, sem que este possa opor-lhe que tais bens lhe não pertencem por inteiro. Para se legitimar, o autor não terá necessidade de provar mais do que dois requisitos: a sua qualidade de herdeiro, e que os bens em poder do demandado pertencem à herança respectiva”.
Estabelece o nº 1 do art. 2091º do mesmo diploma que “Fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no artigo 2078º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros”.
A administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de-casal” – art. 2079º.
No comentário a este preceito, escreveu o referido Conselheiro RODRIGUES BASTOS (4): “A administração do cabeça-de-casal abrange todo o património hereditário, pelo que lhe é permitido pedir aos herdeiros, ou a terceiros, a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, e usar contra eles de acções possessórias, de modo a ser mantido ou restituído à posse dessas coisas (art. 2088º, nº 1). Pertence-lhe praticar os actos de administração geral a que se referem, designadamente, os arts. 2089º e 2090º, mas para o exercício de outros direitos relativos à herança regula o art. 2091º”.
Prescreve o nº 1 do art. 2087º que “O cabeça-de-casal administra os bens próprios do falecido e, tendo este sido casado em regime de comunhão, os bens comuns do casal”.
Por seu lado, o nº 1 do art. 2088º refere que “O cabeça-de-casal pode pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, e usar contra eles de acções possessórias a fim de ser mantido na posse das coisas sujeitas à sua gestão ou a ela restituído”.
Logo, o disposto no art. 2078º não tem aqui aplicação e, como resulta do preceituado no nº 2 deste artigo e do nº 1 do art. 2088º, o cabeça-de-casal só tem legitimidade para pedir a entrega de bens e para usar de acções possessórias (5). É que, diversamente do que sucede com a chamada petição de herança, no caso de uma acção declarativa de condenação relativa a bens pertencentes a uma herança, não tem aplicação o disposto no art. 2078º do CC, funcionando, no que respeita à legitimidade, a regra do art. 2091º/1 do CC (6).
Como assim, repisa-se, por se tratar de um litisconsórcio necessário (art. 33º/1 citado), a Autora/Recorrente, carece de legitimidade para a presente acção declarativa de condenação, por estar desacompanhada dos demais herdeiros.
Resta referir-se, por fim, ser falacioso o argumento também invocado pela recorrente para a propositura da presente ação, desacompanhada dos restantes herdeiros de seu falecido marido, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 2089º do CC e para não aceder ao convite formulado pelo Tribunal para sanação por via do incidente de intervenção de terceiros da excepção de ilegitimidade da cabeça de casal por preterição de litisconsórcio necessário, face ao aproximar da verificação do prazo de prescrição da dívida e à conduta da Ré que recusou sucessivamente receber cartas da Autora e do seu Mandatário para resolução extrajudicial deste litígio, pois, como bem se referiu na decisão recorrida, a questão da prescrição colocar-se-ia nos mesmos termos, quer a mesma se apresentasse sozinha, como sucedeu; quer se apresentasse pedindo, concomitantemente, a intervenção que asseguraria a legitimidade activa, nos termos do nº 1 do art. 316º do CPC; quer ainda, se tivesse acedido ao convite formulado pelo tribunal – vd. art. 323º do CC. Na verdade, possibilitada que está, pela actual lei de processo, que a parte proponha a acção e peça, em simultâneo, a intervenção de outros sujeitos para o lado activo – nº 1 do art. 316º do CPC –, o argumento da prescrição afigura-se insuficiente, tanto mais que ela se interrompe com a citação, a qual, ademais, pode ser pedida com carácter urgente (vd. art. 561º, nº1, do CPC).
Improcedem, assim, todas as conclusões de recurso.

A recorrente sucumbe no recurso. Deve por essa razão, satisfazer as custas dele (art. 527º/1 e 2 do CPC).
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5 – SÍNTESE CONCLUSIVA (art. 663º/7 CPC)

I – A actuação em juízo de uma herança indivisa pressupõe a intervenção de todos os herdeiros, correspondendo a uma situação de litisconsórcio necessário, decorrente do art. 2091º/1 do CC.
II – Diversamente do que sucede com a chamada petição de herança, reportando-se os autos a uma acção declarativa de condenação, intentada pela cabeça-de-casal de uma herança aberta por óbito de alguém, desacompanhada dos demais herdeiros, carece ela de legitimidade para tal, dado estar-se perante uma situação de litisconsórcio necessário (cfr. arts. 33º/1 do CPC e 2091º/1 do CC).
III – Efectivamente, o disposto no art. 2078º do CC não tem aqui aplicação e, como resulta do preceituado no nº 2 deste art. e do nº 1 do art. 2088º do mesmo diploma, o cabeça-de-casal só tem legitimidade para pedir a entrega de bens e para usar de acções possessórias.
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6 – DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar a presente apelação improcedente, assim se confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Notifique.
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Guimarães, 10-11-2022

(José Cravo)
(António Figueiredo de Almeida)
(Maria Cristina Cerdeira)



1 - Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Guimarães - JC Civel - Juiz 4.
2 - Nos seguintes termos:
Da ilegitimidade activa:
A autora fundou o seu pedido num contrato de mútuo que admite ser nulo. De facto, não observando a forma estabelecida por lei, que exigia a forma escrita – vd. art. 1143º, do Código Civil, na redacção introduzida pelo D.L. 163/95, de 13.07 –, o alegado contrato de mútuo celebrado entre, por um lado e como mutuantes, a autora e o falecido marido, por outro e como mutuários, o filho entretanto falecido e a nora, ora ré, é nulo, por falta de forma legal, nos termos do disposto no art. 220º do Código Civil.
De harmonia com o disposto no art. 286º do Código Civil, a nulidade pode ser invocada a todo o tempo por qualquer interessado ou oficiosamente declarada pelo tribunal e os efeitos da declaração de nulidade são os previstos no art. 289º do Código Civil – determinando a restituição de tudo o que tiver sido prestado ou, não sendo isso possível, do valor correspondente.
A autora é interessada, para estes efeitos.
No entanto, mesmo que se considere que não está em causa uma dívida activa da herança, para os efeitos do disposto no art. 2089º do CC, e antes a reivindicação de quantia entregue ao abrigo de um contrato nulo, ou seja, um direito de crédito inscrito no disposto no art. 2091º do CC, o certo é que também nestes casos se exige a intervenção de todos os herdeiros.
Nessa medida, uma vez que a autora peticiona por si e também em representação da herança do seu falecido cônjuge, deverá fazer intervir em juízo todos os herdeiros daquele, sob pena de ilegitimidade activa, conducente à absolvição da instância.
Prazo: 15 dias.
3 - Notas ao Código Civil, Vol. VII, 2002, pág. 296.
4 - Obra citada, pág. 297.
5 - Neste sentido, entre outros, cfr. os Acs. do STJ de 6-10-2009 e da RP de 8-02-2021, prolatados respectivamente nos Procs. nºs 158/1999.S1 e 5674/19.6T8VNG.P1, ambos acessíveis in www.dgsi.pt.
6 - Neste sentido, cfr. o Ac. da RC de 9-03-2010, prolatado no Proc. nº 121/08.1TBANS.C1 e acessível in www.dgsi.pt.