Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
13/20.6T8MDL.G1
Relator: AFONSO CABRAL DE ANDRADE
Descritores: CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
ALTERAÇÃO DE ACORDO
DIVÓRCIO POR MÚTUO CONSENTIMENTO
COMPETÊNCIA
CONSERVATÓRIA DO REGISTO CIVIL
TRIBUNAL JUDICIAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/12/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Quando o autor pretende alteração do acordo relativo à casa de morada de família, na sequência de processo de divórcio por mútuo consentimento que correu termos numa Conservatória do Registo Civil, por força do disposto no Decreto-Lei n.º 272/2001, de 13 de Outubro, o Tribunal de Comarca tem sempre competência material para conhecer de tal questão.
II- O que sucede é que, se houver acordo dos interessados, devem os mesmos ir intentar esse processo junto da Conservatória do Registo Civil, por ser essa a tramitação pretendida pelo legislador, com o objectivo de desonerar os tribunais de processos que não consubstanciem verdadeiros litígios.
III. Se, tentada a conciliação das partes perante o Conservador, a mesma falhar, o processo será sempre remetido para a fase judicial, perante o Tribunal de Comarca competente.
IV. Assim, se resultar desde logo da petição inicial que esse acordo não existe, seria um acto inútil tentar primeiro o recurso à fase pré-contenciosa junto da Conservatória, pelo que pode e deve ser a questão levada logo perante o Tribunal Judicial competente, através da instauração da respectiva acção.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

No Tribunal Judicial da Comarca de Bragança, Juízo de Competência Genérica de Mirandela - Juiz 2, L. P. intentou contra M. P. (ambos com os sinais dos autos) acção declarativa de condenação, na qual alega ser dono de um prédio urbano descrito na CRP de … sob o nº …, que recebeu por herança de seu falecido pai. O autor foi casado com a ré no regime de comunhão de adquiridos, casamento esse dissolvido por divórcio em 19.7.2018, e o dito imóvel era a casa de morada da família, cujo direito de utilização por acordo ficou atribuído à ré. O autor pretende recuperar a posse do dito imóvel, ou então ser remunerado. Pede por isso que a ré seja condenada a:

a) Reconhecer que a casa de habitação identificada no art. 1º da petição inicial é propriedade do autor;
b) Devolver a posse da referida casa ao autor livre de pessoas e bens

Alternativamente:
c) Entendendo-se que ali continua a ter direito de habitar, deverá pagar mensalmente uma renda de 300,00€ mensais.

A ré foi citada e apresentou contestação, na qual invoca a existência de erro na forma de processo, dizendo que o pedido formulado nos autos “não tem enquadramento jurídico, pois o que estará em causa é uma alteração ao regime fixado quanto à casa de morada de família no âmbito de um processo de divorcio. Donde, a petição inicial é inepta e a Ré deve ser absolvida da instância”.
E deduziu reconvenção contra o autor, na qual pede que o autor seja condenado no pagamento de trinta mil euros ou no valor das benfeitorias realizadas em bem próprio deste em montante que se vier a quantificar, nunca inferior a trinta mil euros.

O autor respondeu à excepção e à reconvenção.

Chegando à fase de saneamento dos autos, o Tribunal proferiu despacho no qual considerou que o tribunal é materialmente incompetente para decidir as pretensões do Autor, e, em consequência, absolveu a Ré da instância.

Notificado dessa decisão o autor veio apresentar reclamação, dizendo que a matéria em apreço foi já objecto de jurisprudência do STJ sobre conflito de competência, dirimida no sentido de se entender que nos termos do artigo 990º, nº 4 do Código de Processo Civil, ainda que estejam findos os autos de divórcio, deve correr por apenso aos mesmos, o pedido de alteração da decisão de atribuição da utilização da casa de morada de família, na medida em que se está perante uma competência por conexão, que de acordo com o disposto no DL 272/2001 também pode existir nas Conservatórias do Registo Civil. No entanto, se o processo de divórcio tiver corrido na Conservatória do Registo Civil e aí tenha sido homologado o acordo relativo à atribuição da utilização da casa de morada de família, a alteração deste acordo, também por consenso, deve ser pedida perante a Conservatória do Registo Civil, nos termos do Decreto-Lei 272/2001. Ao revés, se não existir acordo quanto à alteração, este pedido já não será da competência da Conservatória do Registo Civil, mas sim dos Tribunais materialmente competentes, fundando-se esta competência no nº 4, do artigo 990º do Código de Processo Civil, tomando em conta que com o Decreto-Lei 272/2001 a competência das Conservatórias do Registo Civil se cinge aos procedimentos tendentes à formação do acordo das partes.

O Tribunal, por despacho de 9.7.2020, e com fundamento no esgotamento do poder jurisdicional do juiz (artigo 613º,1,3 CPC), indeferiu à reclamação apresentada.

Inconformados com tal decisão, quer o autor quer a ré dela interpuseram recurso, que foram recebido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, em conformidade com o preceituado nos artigos 627º, 629º,1, 631º,1, 638º,1,7, 639º,1, 644º,1,a, 645º,1,a, e 647º,1, todos do Código de Processo Civil.

O autor termina a respectiva motivação com as seguintes conclusões:

a) Discute-se nos presentes autos uma alteração material ao acordo de atribuição da casa de morada de família, celebrado aquando do divórcio operado entre A. e R., sendo que a casa é bem próprio do A..
b) O Tribunal considerou-se materialmente incompetente por entender que no caso seria competente a CRC de Chaves, onde o acordo foi celebrado, constituindo esta a matéria do presente recurso.
c) Nos termos do art. 990º,4 CPC, as alterações posteriores ao processo de divórcio, devem correr por apenso a esta acção, assim como devem correr por apenso aos procedimentos de divórcio que tenham corrido nas conservatórias de registo civil.
d) No entanto, esta competência das Conservatórias, está limitada à prévia existência de consenso entre as partes, nomeadamente para as alterações que se pretendem.
e) A competência da Conservatória é pois limitada à existência de consenso, e esse consenso também tem que existir para posteriores alterações, nomeadamente no que à atribuição da casa de morada de família respeita. A competência das Conservatórias é pois, no espírito que presidiu às normas introduzidas pelo DL 272/01, limita-se aos procedimentos tendentes à formação do acordo das partes, matéria para as quais estão vocacionadas e não, quando há litígio.
f) Se não existir acordo quanto à alteração, este pedido já não será da competência da Conservatória do Registo Civil, mas sim dos Tribunais materialmente competentes, fundando-se esta competência no nº 4, do artigo 990º do Código de Processo Civil.
g) Neste aresto, julgamos que a sentença proferida deverá ser objecto de alteração e declarando o Tribunal recorrido materialmente competente, na medida em que esta matéria já objecto de decisão proferida pelo STJ em conflito de competências semelhante (Acórdão nº STJ_07A2167 in http://bdjur.almedina.net, também já seguida pelas Relações, indicando-se exemplificativamente o Acórdão da Relação de Coimbra, de 7 de Fevereiro de 2017, in http://www.dgsi.pt/jtrl.
h) Ou seja, a competência da CRC nestas situações é reservada para os casos em que as alterações ao destino da casa de morada de família resulte de um acordo e nessa medida se classifique como processo de jurisdição voluntária, o que manifestamente, até pelas posições já assumidas pelas partes nos autos, não é o caso.

Deve pois a douta sentença ser revogada e substituída por outra que declare o Tribunal recorrida materialmente competente, ordenando-se o prosseguimento dos autos.

A termina a respectiva motivação com as seguintes conclusões:

1. O Código do Processo Civil consagra o princípio geral de apreciação autónoma dos pedidos da acção e da reconvenção;
2. A improcedência da acção e a absolvição do réu da instância não obstam à apreciação do pedido reconvencional regularmente deduzido;
3. Na reconvenção há um pedido autónomo formulado pelo réu contra o autor, sendo, assim, uma nova acção dentro do mesmo processo;
4. O pedido reconvencional formulado nos autos não está dependente do pedido formulado pelo Autor.
5. O Tribunal recorrido não se pronunciou quanto ao pedido reconvencional, quando dele devia conhecer;
6. A omissão de pronúncia é causa de nulidade da sentença, nos precisos termos da d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC.

Nos indicados termos e nos mais de direito, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, revogada a decisão e ordenado o prosseguimento dos autos para conhecimento do pedido reconvencional.

Não houve contra-alegações.

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando as referidas conclusões, as questões a decidir consistem em saber se:

a) O Tribunal recorrido é materialmente competente para conhecer desta acção ?
b) Em caso de resposta negativa, deveriam os autos prosseguir para conhecimento do pedido reconvencional ?

III
A decisão recorrida tem o seguinte teor:

Nos presentes autos veio L. P. propor contra M. P. acção declarativa de condenação da mesma a reconhecer que a casa de habitação identificada é propriedade do Autor e a devolver a posse da referida casa livre de pessoas e bens ou alternativamente a pagar mensalmente uma renda que se fixe em € 300,00 mensais.
Para tal alega que em 2018 foi dissolvido o casamento entre ambos, na Conservatória de Registo Civil ..., tendo aí sido celebrado acordo quanto à utilização da casa de morada de família mediante o qual “o direito de uso e fruição da casa de morada de família (…), fica atribuído à requerente mulher, para o bem estar dos seus dois filhos menores, até que estes atinjam a maioridade e se tornem independente dos progenitores, embora seja, um bem do requerente homem supra identificado”.
Mais alega que actualmente precisa da casa para viver, até porque regressou ao país.
A Ré, regularmente citada, contestou, aceitando a propriedade da casa do Autor, mas, além do mais, pugnando pela manutenção do acordo anteriormente celebrado.
Cumpre apreciar.
Estamos em crer que o que o Autor pretende é a alteração do acordo relativo à casa de morada de família (o pedido relativo ao reconhecimento da propriedade, além de desnecessário, não contém em si qualquer controvérsia).
Tal acordo foi celebrado na pendência de divórcio que correu termos na Conservatória do Registo Civil ....
Nos termos do disposto no artigo 5.º n.º 1, alínea b) e 7. º do Decreto-lei n.º 272/01, de 13 de Outubro (que opera a transferência de competência decisória em determinados processos de jurisdição voluntária dos tribunais judiciais para o Ministério Público e as conservatórias do registo civil), o processo de atribuição da casa de morada de família deve ser intentado na conservatória de registo civil.
Acresce que, não se verifica no caso dos autos qualquer das situações aludidas no n.º 2, do artigo 5.º do Decreto-lei n.º 272/01 em referência, que constitua uma excepção àquela competência da conservatória do registo civil para apreciar e conhecer desta acção.
Na verdade, por um lado, o pedido de atribuição da casa de morada de família constitui um processo autónomo, com a causa de pedir e pedido próprios de uma acção de atribuição da casa de morada de família.
Por outro lado, o presente pedido de atribuição da casa de morada de família não constitui incidente ou dependência de acção pendente, sendo que o divórcio correu termos na Conservatória.
Perante o exposto, é lícito concluir que, com o Decreto-lei n.º 272/01, cessou a competência dos tribunais para decidirem o presente litígio, pois que a apreciação da mesma cabe, em primeira linha, às Conservatórias.
Conclui-se, assim, que este tribunal é materialmente incompetente para decidir as pretensões do Autor.
A incompetência material constitui excepção dilatória, de conhecimento oficioso, que conduz à absolvição da Ré da instância (artigos 96.º alínea a), 99.º, n.º 1, 278.º n.º 1 alínea a), 576.º n.º 2 e 577.º alínea a), todos do Código de Processo Civil).
Pelo exposto, absolvo a Ré da instância. *
Custas pelo Autor.
Registe e notifique”.

IV
Conhecendo do recurso.

Vamos à questão principal, que é a da competência material (ou falta dela) do Tribunal recorrido.
A competência é a medida de jurisdição de um tribunal. O tribunal é competente para o julgamento de certa causa quando os critérios determinativos da competência lhe atribuem a medida de jurisdição que é suficiente e a adequada a essa apreciação (Miguel Teixeira de Sousa, “A Competência Declarativa dos Tribunais Comuns”, pág. 31).
De acordo com o art. 37º,1 LOSJ, “na ordem jurídica interna, a competência reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território”.
A competência fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei. São igualmente irrelevantes as modificações de direito, excepto se for suprimido o órgão a que a causa estava afecta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecia para o conhecimento da causa (art. 38º).
Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (art. 40º,1).
A competência material para conhecer de uma determinada acção afere-se pelo pedido e pela causa de pedir apresentados pelo autor. Como escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, in CPC anotado, anotação ao art. 96º, “a competência absoluta do Tribunal , maxime a competência em razão da matéria, é aferida através do confronto entre as normas que a definem e o teor da petição inicial, com destaque para o pedido e a causa de pedir (STJ 7.3.19, 13688/16 e STJ 9.11.17, 8214/13, cf, desenvolvidamente, notas 2 e 4 ao art. 577º”.

No caso em apreço, assiste inteira razão ao Tribunal recorrido quando chama a atenção para que o que o Autor pretende é a alteração do acordo relativo à casa de morada de família, pois o pedido de reivindicação, relativo ao reconhecimento da propriedade, além de desnecessário, não contém em si qualquer controvérsia, já que a ré não contesta esse direito de propriedade, e nem sequer vem alegada na petição uma situação em que esse direito de propriedade do autor tivesse sido posto em causa.
O acordo relativo à casa de morada de família em causa foi celebrado no âmbito do processo de divórcio por mútuo consentimento nº …/2018, que correu termos na Conservatória do Registo Civil ....
O art. 1793º,3 CC, com a epígrafe “Casa de morada da família”, dispõe: o regime fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária”.

Dando cobertura processual a este regime substantivo, o art. 990º CPC consagra um processo de jurisdição voluntária para atribuição da casa de morada de família. Dispõe o seguinte:

“1 - Aquele que pretenda a atribuição da casa de morada de família, nos termos do artigo 1793.º do Código Civil, ou a transmissão do direito ao arrendamento, nos termos do artigo 1105.º do mesmo Código, deduz o seu pedido, indicando os factos com base nos quais entende dever ser-lhe atribuído o direito.
2 - O juiz convoca os interessados ou ex-cônjuges para uma tentativa de conciliação a que se aplica, com as necessárias adaptações, o preceituado nos n.os 1, 5 e 6 do artigo 931.º, sendo, porém, o prazo de oposição o previsto no artigo 293.º.
3 - Haja ou não contestação, o juiz decide depois de proceder às diligências necessárias, cabendo sempre da decisão apelação, com efeito suspensivo.
4 - Se estiver pendente ou tiver corrido acção de divórcio ou separação, o pedido é deduzido por apenso.”

Este nº 4 do art. 990º CPC consagra um típico caso de competência por conexão, em que a competência de um tribunal se fixa, ou é alargada, através de uma ligação estabelecida em função das partes ou do objecto da causa, solução de cunho eminentemente prático e evidente, considerando que para poder conhecer devidamente dos pressupostos da alteração (circunstâncias supervenientes que revelem a necessidade de alterar o anteriormente definido) é fundamental analisar aqueles que estiveram subjacentes à fixação.

No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 272/2001, de 13 de Outubro o legislador explica o que pretendeu com tal regime: “importa desonerar os tribunais de processos que não consubstanciem verdadeiros litígios, permitindo uma concentração de esforços naqueles que correspondem efectivamente a uma reserva de intervenção judicial. (…) Procede-se ainda à transferência de competências para as conservatórias de registo civil em matérias respeitantes a um conjunto de processos de jurisdição voluntária relativos a relações familiares - a atribuição de alimentos a filhos maiores e da casa de morada da família, a privação e autorização de apelidos de actual ou anterior cônjuge e a conversão da separação em divórcio -, na estrita medida em que se verifique ser a vontade das partes conciliável e sendo efectuada a remessa para efeitos de decisão judicial sempre que se constate existir oposição de qualquer interessado”.
Assim, na prossecução de tal desiderato, o legislador consagra na secção I do Capítulo III de tal diploma um procedimento perante o Conservador do Registo Civil que, nos termos do art. 5º,1,b, se aplica aos pedidos de atribuição da casa de morada da família. E o art. 6º,1 dispõe que “os processos previstos no artigo anterior podem ser instaurados em qualquer Conservatória do registo civil”.
O art. 7º regula o procedimento na Conservatória. Dele se retira, de importante, que tal procedimento, respeitando o que fora afirmado no preâmbulo, se destina apenas aos casos em que exista acordo dos interessados. Assim, havendo oposição, tem lugar uma tentativa de acordo perante o Conservador, a qual, se falhar, dá lugar à remessa dos autos ao tribunal judicial de 1.ª instância competente em razão da matéria no âmbito da circunscrição a que pertence a conservatória.

Recordemos agora o art. 5º,2 do DL citado: “o disposto na presente secção não se aplica às pretensões referidas nas alíneas a) a d) do número anterior que sejam cumuladas com outros pedidos no âmbito da mesma acção judicial, ou constituam incidente ou dependência de acção pendente, circunstâncias em que continuam a ser tramitadas nos termos previstos no Código de Processo Civil”.
Ou seja, as Conservatórias do Registo Civil não serão competentes para conhecer destes pedidos de atribuição da casa de morada da família quando, entre outros casos, tal pretensão constitua dependência de acção pendente. E bem se compreende que assim seja, pois nesse caso a pretensão de alteração será instaurada por apenso à acção principal.
À primeira vista, no caso de divórcio por mútuo consentimento que correu termos e foi decidido na Conservatória do Registo Civil, a natureza incidental do pedido de alteração da atribuição da casa de morada de família levará a que seja na Conservatória que esse pedido será deduzido.
Porém, como se escreve no Acórdão do TRE de 14 de Fevereiro de 2019 (Cristina Dá Mesquita), “não podemos, no entanto, perder de vista o objectivo do legislador com a atribuição e transferência de competências para o Ministério Público e Conservatórias do Registo Civil operada pelo D/L n.º 272/2001, de 13.10, a saber, desonerar os tribunais de processos que não consubstanciem verdadeiros litígios, permitindo uma concentração de esforços naqueles que correspondem efectivamente a uma reserva de intervenção judicial (cfr. Preâmbulo do diploma em apreço), desta forma contribuindo para uma tutela judicial eficaz e em tempo útil, emanação do direito a uma tutela jurisdicional efectiva (art. 20º,1 da Constituição da República). O que (também) implica que nos casos em que haja elementos bastantes para concluir que já existe um verdadeiro litígio, não sendo previsível qualquer solução consensual sobre a fixação dos alimentos peticionados, deva ser admitido o pedido deduzido perante o tribunal judicial que seja competente, porquanto a sua devolução para a fase conciliatória junto da Conservatória do Registo Civil redundaria num procedimento inútil, que a própria lei proíbe (cfr. art. 130.º, do CPC)”.
Mas podemos ir ainda mais longe.
Decorre da análise do DL 272/2001 de 13/10 que fizemos supra, que é incorrecto defender que o Tribunal comum é incompetente em razão da matéria para decidir a acção para alteração da atribuição da casa de morada da família, pois como vimos, havendo litígio a competência é sempre deste tribunal.
O que sucede é que os artigos 5º,1,b e 6º a 8 do DL 272/01 estruturaram essas acções de forma a haver uma fase inicial, ou preliminar, que corre termos na Conservatória do Registo Civil. Assim, a petição, em principio, deve dar entrada em qualquer Conservatória do Registo Civil, nos termos do art. 6º,1 do citado DL, na redacção dada pelo DL n.º 324/2007, de 28.09 e não no Tribunal de Família e Menores ou Tribunal de Comarca. Daí poder-se-ia afirmar que, quando muito, se a acção fosse intentada directamente no Tribunal verificar-se-ia uma excepção dilatória inominada.
E existe um entendimento jurisprudencial, com o qual concordamos integralmente, que tem decidido que quando há elementos que demonstrem existir um verdadeiro litígio entre as partes, não se justifica o recurso prévio ao procedimento tendente à formação de acordo das partes a que alude o citado art. 5º,1, podendo a acção ser instaurada, desde logo, no tribunal judicial (cf. Acórdão do TRL de 10.07.2008, no processo nº 5243/2008.6 e Acórdão do TRG proferido em 01.02.2007, no processo nº 64/07.2, relatado pela Desembargadora Rosa Tching – www.dgsi.pt).
E, diga-se, não se vislumbra que a circunstância do processo correr termos deste o início nos Tribunais Judiciais possa acarretar para qualquer das partes menor protecção dos seus direitos, mesmo quanto à obtenção em tempo razoável de uma decisão definitiva.
Neste sentido veja-se ainda o Acórdão do TRP de 5.5.2011 (Leonel Gentil Marado Serôdio).
Diga-se, para terminar, que esta é a solução mais condizente com a filosofia exposta pelo próprio legislador, de reservar o procedimento perante a Conservatória para os casos em que exista acordo dos interessados.
No caso dos autos é desde logo evidente pela leitura da petição inicial que não existe acordo das partes, pelo que seria um acto inútil, contraproducente, e redundaria em pura perda de tempo, forçar o autor a ir deduzir a sua pretensão perante a Conservatória, pois esta limitar-se-ia a remeter o processo de volta para o Tribunal competente.

E aqui chegados, resta concluir que assiste razão ao recorrente autor.
E assistindo-lhe razão, torna-se inútil o conhecimento do recurso interposto pela ré.

V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso do autor procedente, e em consequência declara que o Tribunal recorrido é materialmente competente para conhecer da presente acção, revogando a sentença recorrida e determinando o prosseguimento dos autos.

Custas pela ré, por ter defendido a absolvição da instância por razões processuais, embora diferentes daquelas que o Tribunal acolheu, mas que levaram ao mesmo resultado (art. 527º,1,2 CPC).
Data: 12/11/2020

Relator (Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto (Alcides Rodrigues)
2º Adjunto (Joaquim Boavida)