Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2139/20.7T8BRG.G1
Relator: MARIA DOS ANJOS NOGUEIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
ERRO JUDICIÁRIO
ARTº. 13º
Nº. 2
DA LEI Nº. 67/2007 DE 31/12
PRÉVIA REVOGAÇÃO
VIOLAÇÃO DO DIREITO COMUNITÁRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – O primeiro pressuposto para a efectivação da responsabilidade civil do Estado é a existência de um erro judiciário que consubstancie um facto ilícito. Tal erro judiciário pode consistir em erro de direito (“decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais”) ou erro de facto (decisões jurisdicionais “injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto”).
II - Acresce que o erro judiciário atendível é apenas aquele especialmente qualificado. Estando em causa um erro de direito, apenas é relevante para efeitos de responsabilidade civil aquele que seja manifestamente ilegal ou inconstitucional, isto é, deve “tratar-se de um erro evidente, crasso e indesculpável de qualificação, subsunção ou aplicação de norma jurídica". Por outro lado, existe um erro de facto especialmente qualificado quando este é “clamoroso e grosseiro, no que toca à admissão e valoração dos meios de prova e à fixação dos factos materiais da causa”.
III - Por outro lado, à luz do n.º 2 do artigo 13.º do RCEEP, constitui requisito processual fundamental para a efectivação da responsabilidade por erro judiciário que ocorra uma prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente, ou seja, exige-se um reexercício da função jurisdicional, prévio a uma eventual acção de indemnização, concluindo-se que se verifica um erro judiciário imputável ao órgão jurisdicional que proferiu a decisão.
IV - O erro judiciário terá de ser invocado e demonstrado, não na própria acção de indemnização que visa ressarcir o cidadão lesado por essa decisão danosa, mas sim em sede de recurso da decisão em que aquele erro foi cometido.
V – O n.º 2 do artigo 13.º do RCEEP não é aplicável quando esteja em causa a responsabilidade dos Estados membros por acções ou omissões dos órgãos jurisdicionais que violem o direito comunitário, com fundamento último no princípio do primado da União Europeia.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. Relatório

A autora V. C., NIF ………, com a profissão de empregada de limpeza, emigrante no Luxemburgo, onde reside em .., Rue … e com morada em Portugal na Rua …, freguesias de … e …, comarca de Braga, veio instaurar acção Comum de indemnização com base em responsabilidade civil extracontratual - Lei n. 67/2007, de 31-12, contra o Réu Estado Português, contribuinte nº ………, com sede na Praça … Lisboa, representado pelo Ministério Público, deduzindo os seguintes pedidos:

“- Julgar-se a presente acção procedente por provada, condenando-se o Réu a pagar à Autora:
a)- A quantia de € 53.894,05 (71.589,05 € - 18.000,00€),
b)- A quantia de € 3.233,64, relativa aos juros de mora, sobre tal quantia de € 35.894,28, contados nos termos das ditas sentenças, desde a data da prolacção da sentença de 1ª Instância, em 12.10.2018 até ao momento da instauração da presente acção (…)”.
Como fundamento, alega, em suma, a responsabilidade civil decorrente de erro de direito praticado no exercício da função jurisdicional quanto à decisão proferida no processo 2281/15.6T8VCT, por si instaurado contra a Companhia de Seguros X, S.A., respeitante a um acidente de viação de que foi vítima, por ocorrência de um erro no cálculo final respeitante ao dano biológico que aí foi fixado.
*
Devidamente citado, o Ministério Público contestou a acção, impugnando os factos e arguindo não existir decisão revogatória da alegada decisão danosa, como pressuposto necessário para a procedência da demanda, que, por inexistente consubstancia excepção peremptória que importa a absolvição total do pedido.
*
Foi agendada audiência prévia e conferida às partes a possibilidade de se pronunciarem quanto às excepções invocadas na contestação, tendo-se, atendendo à causa de pedir e aos factos tidos como assentes, proferido decisão de mérito que julgou procedente a excepção peremptória invocada pelo Réu, da falta do pressuposto a que alude o n.º 2 do art. 13.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro e, consequentemente, absolvido o Estado Português do pedido.
*
II-Objecto do recurso

Não se conformando com a decisão proferida, veio a A. interpor recurso, juntando, para o efeito, as suas alegações, e apresentando, a final, as seguintes conclusões:

A.
Tendo as duas sentenças,
declarado que a autora tem direito e receber uma indemnização de € 71.859,05, à qual se deduz a quantia de € 18.000,00, ou seja, a quantia de € 53.859,05;
Tendo ambas as sentenças,
cometido o erro judiciário - palmar, supino, crasso, gravemente negligente, intolerável, grosseiro e que conduziu a uma decisão aberrante - de, após reconhecerem tal direito de a ora recorrente receber da ré seguradora tal quantia, a condenaram a pagar apenas a quantia de € 18.000,00,
Tendo a autora,
recorrido de ambas essas decisões, nenhuma delas reparou tal tipo de erro, esgotando a autora todas as instâncias,
Tendo a sentença, ora recorrida,
absolvido o réu do pedido, por não haver a ora recorrente obtido previamente a revogação de tal danosa decisão, impõe se conclua que:
1º.
- A ORA RECORRENTE tem direito a receber a quantia de € 53.859,05, a título de dano biológico, por força das próprias sentenças transitadas em julgado.
2º.
- É absolutamente irrelevante - por desnecessária e sem sentido algum, porque violadora dos principios consagrados no nosso ordenamento jurídico - a exigência de uma prévia revogação da decisão danosa, conferindo ou reconhecendo um direito, porquanto o mesmo se encontra já atribuído pelas próprias 2 sentenças recorridas, ambas transitadas em julgado.
B.
Tendo a sentença de 1ª instância declarado, com contas detalhadas:
“ Aplicando estes dados obtemos o resultado de € 71.859,05 (€1.287,22 * 55 anos * 1,5% = 71.859,05”.
“ Dada a circunstância de a antecipação do recebimento do capital constituir um benefício para quem o recebe, por não ser a mesma coisa receber uma quantia de uma só vez ou recebê-la em diversas parcelas ao longo do tempo, justificar-se-ia que àquele valor se descontasse ¼, com o que se obteria o valor final de € 17.964,76.” - Fls. __. dos presentes autos.
Tendo o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, mantido - na íntegra “ipsis verbis” - tal decisão de 1ª Instância,
Tendo ambas as sentenças, condenado a Ré Seguradora a pagar à ora Recorrente uma indemnização de apenas € 18.000,00, não obstante haverem declarado ter direito a receber a quantia de 71.859,05, à qual mandava deduzir a quantia de € 18.000,00, ou seja, a quantia de € 53.859,05,
Impõe se conclua que:

- Ambas as sentenças cometeram erro judiciário palmar, supino, crasso, gravemente negligente, intolerável, grosseiro.

- Tal tipo de erro conduziu a uma decisão aberrante, com grave prejuízo material para a ora recorrente.
C.
Atentas as conclusões anteriores,
importa concluir que:
- No caso concreto dos autos, a exigência, de uma prévia revogação da decisão danosa, como decorre da sentença recorrida, sempre constituiria um manifesto atentado ao princípio da proporcionalidade, no caso concreto, em favor do lesante, como decorre – v.g.- do recente Acórdão do STJ de 5 de Junho de 2018 - Ana Paula Boularot (Relatora), acima transcrito.
D.
A PREVISÃO, NO ARTIGO 13.º DO RJRCEE, de que haverá responsabilidade por actos jurisdicionais “stricto sensu”, em caso de decisões manifestamente inconstitucionais ou ilegais inspirou-se na jurisprudência comunitária, que decidiu, atendendo às especificidades da função jurisdicional, que só poderá haver responsabilidade do Estado resultante de uma violação do direito comunitário por decisão jurisprudencial no caso excepcional de o juiz ter ignorado, de modo manifesto, o direito aplicável.
E.
O DISPOSTO NO ARTIGO 13.º, N.º 2, DO RJRCEE revela-se em oposição á jurisprudência do TJUE, porquanto exige que haja prévia revogação da decisão considerada violadora do direito comunitário, o que, no caso dos autos, é inaplicável,
POIS QUE:
a)- Estamos perante duas decisões judiciais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto,
Isto é,
b)- Não se trata de responsabilidade do Estado por actos de simples interpretação do direito e valoração dos factos.
c)- Invoca-se como causa de pedir da responsabilização civil extracontratual do Estado, tal erro grosseiro.
d)- A Autora (lesada) interpôs recurso de ambas as decisões, impugnando-as, primeiro junto do Tribunal da Relação de Guimarães, depois junto do Supremo Tribunal de Justiça e, finalmente, por força da não admissibilidade do recurso de revista, por o valor do processo não o admitir, novamente junto do Tribunal de 2ª Instância,
Ou seja,
e)- Percorreu/esgotou todas as instâncias recorríveis, impugnando as decisões das duas referidas instâncias, não só relativamente à questão da indemnização ora em causa, mas também relativamente a outros danos morais e patrimoniais, conforme resulta dos documentos juntos aos autos com a Petição Inicial, com a contestação - vide fls. 260 destes autos.
F.
DECLARANDO AMBAS AS DECISÕES, transitadas em julgado:
a)- “ Ora, tendo em conta os critérios jurisprudenciais e as circunstâncias concretas do caso, e adoptando a fundamentação e a fórmula de cálculo da indemnização proposta no acórdão da Relação de Guimarães de 10.04.2014, a sua expectativa de vida da autora em termos estatísticos (pelo menos, mais 55 anos) – de acordo com os elementos fornecidos pelo Instituto Nacional de Estatística, actualmente a esperança de vida à nascença foi estimada em 80,41 anos para o total da população, sendo de 77,36 anos para os homens e de 83,23 anos para as mulheres -, o grau de incapacidade que a afecta (0,06), e ainda julgando como equitativo para o efeito de base de cálculo, a média de € 1.533,00 mensais temos o seguinte: para o rendimento anual de € 21.462,00 (€1.533x14 meses), uma IPG de 0,06, uma taxa de juro de 1,5% 12/13, a perda salarial cifra-se em €1.287,72 (€21.462x0,06); aplicando estes dados obtemos o resultado de € 71.859,05 (€1.287,22x55 anos x 1,5%= € 71.859,05), valor ao qual é deduzida a quantia de € 18.000,00.

IMPORTA CONCLUIR QUE:

- Cabendo à autora o declarado direito, que é o de receber a diferença entre esses valores - € 53.859,05 - é absolutamente irrelevante, por desnecessária e sem sentido algum, a exigência de uma revogação da decisão danosa, conferindo/ reconhecendo exactamente um direito, que já se encontra atribuído por tais sentenças, transitadas em julgado.

- Reconhecido que está o direito a receber € 53.859,05, mas condenando-se a pagar apenas € 18.000,00, “in casu”, só há uma coisa a fazer:- Declarar tal tipo de erro e indemnizar a Autora, nos termos do disposto na Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro.

- Ao decidir de forma diferente, a sentença subverteria, desde logo, com/sagrado princípio da divisão dos poderes, assim como o da efetivação de um direito constitucionalmente previsto no artº 22 da CRP.
G.
A SENTENÇA RECORRIDA viola as Directivas Comunitárias,
PORQUANTO:

- As jurisdições nacionais devem, dentro do possível, interpretar o respectivo direito nacional à luz das Directivas Comunitárias no caso aplicáveis, mesmo que não transpostas ou incorrectamente transpostas. É a chamada obrigação de interpretação conforme” (Ac. do STJ de 4 de Outubro de 2007, R.L.J., Ano 137.°, n.° 3946, pg. 44).

- Impõe-se, por isso, com vista ao respeito pelo princípio da primazia do direito comunitário em relação ao direito infra-constitucional e pelas soluções que o próprio legislador nacional sufragou, o entendimento de que o regime emergente do Dec.-Lei n.° 14/96, de 6 de Março, pretende regular não apenas as situações ocorridas posteriormente à sua entrada em vigorcomo também as anteriores que ainda não tenham sido objecto de decisão transitada em julgado.
G.
O legislador pode densificar os pressupostos da obrigação de indemnizar e o regime da responsabilidade, cabendo-lhe designadamente delimitar o conceito de ilicitude relevante e esclarecer em que medida uma ideia de culpa [...] constitui pressuposto da responsabilidade.
Conforme as alusões que acima fizemos à Jurisprudência e a Doutrina, a Lei não pode restringir arbitrária ou desproporcionadamente o direito fundamental à reparação dos danos consagrado no artigo 22º da Constituição.
H.
NO CASO CONCRETO DOS AUTOS, comprovada fica a incompatibilidade com o direito da União Europeia da solução consagrada no artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP.
Com efeito, na sequência dos desenvolvimentos do direito da União Europeia, em especial por força da jurisprudência Köbler e Traghetti, é hoje consensual a admissibilidade da responsabilidade de um Estado membro da União, em consequência da violação do direito da União imputável ao exercício da função jurisdicional, mesmo que tal violação resulte da decisão de um tribunal que decida em última instância.
No caso dos autos, a norma do n.º 2 do artigo 13.º do RCEEP viola o princípio da igualdade, por força do tratamento discriminatório imposto aos lesados que sofrem danos causados por erros judiciários correspondentes a sentenças que, por um ou outro motivo, não podem ser objeto de recurso
I.
NO CASO CONCRETO DOS AUTOS - porque houve recurso e, após irem os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, um pedido de reapreciação ou reforma da sentença recorrida, já em 2ª Instância - a exigência de uma prévia revogação sempre representaria: a)- Retirar da esfera do lesado a via indemnizatória de reparação "por circunstâncias estritamente processuais" significa uma ilegítima restrição do direito fundamental à efetiva tutela jurisdicional, "tanto mais chocante quanto o dano sofrido não resulta de ilicitudes comuns, mas de ilegalidades manifestas e de erros grosseiros, imputáveis precisamente aos órgãos a quem a Constituição comete a tarefa de proteger os direitos e interesses legalmente protegidos
b)- O reexercício da função jurisdicional sobre a mesma questão
J.
No presente processo, que é indemnizatório, o Juiz não vai rever as duas sentenças para as confirmar ou revogar, antes tem de apreciá-la sob uma perspetiva específica - que é a sua relevância como fonte de um dever de indemnizar - e com um objetivo específico - que é o de reconhecer o correspondente direito indemnizatório.
Ou seja,
- Neste processo indemnizatório, o que está em causa é efeito jurídico-material decorrente da sentença, e não a sentença como acto decisório com certo conteúdo e com determinados efeitos.
L.
Pode haver razões de peso que justifiquem a modelação do direito à indemnização, sempre que este interfira com a lógica de organização e funcionamento do próprio sistema judiciário.
São tais razões que também podem justificar a solução do artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP, mas sempre cotejada com os parâmetros constitucionais da igualdade ou da tutela jurisdicional efetiva.
POR ISSO, IMPORTA CONCLUIR QUE:

- No caso dos autos, e pelas razões acima invocadas, de todo se não justifica a intervenção da figura contida no nº 2 do artº 13º, do RCEEP, PORQUANTO:
a)- Disso não resulta a desautorização de uma decisão transitada em julgado, desde logo porque o direito material da ora Recorrente àindemnização de € 53.859,05, existe reconhecido e declarado nas duas sentenças, transitadas em julgado.
b)- No quadro do direito da União Europeia, e face à impossibilidade de os cidadãos demandarem diretamente os Estados membros junto do Tribunal de Justiça, é assegurada a primazia e a efetividade do direito da UE e da jurisprudência do TJUE, juntamente com a tutela jurisdicional efetiva dos particulares diante das decisões dos tribunais nacionais de última instância que violem direitos e interesses legalmente protegidos
pelo direito da EU.
M.
TENDO EM CONTA:
O DIREITO QUE AMBAS AS SENTENÇAS RECONHECEM À ORA AUTORA - receber uma indemnização de € 53. 53.859,05, mas condenando a Ré Seguradora a pagar, apenas, a quantia de € 18.000,00,
IMPORTA CONCLUIR QUE:
1.
- Não se pode falar em “probabilidade séria” de ocorrer um “erro grosseiro”, antes tem que se considerar verificado um óbvio erro grosseiro, o que, por si só, dispensa a intervenção do RRCEE através do pressuposto da prévia revogação da decisão jurisdicional, PELA SIMPLES RAZÃO DE QUE A OBJECTIVIDADE, A SEGURANÇA E A CERTEZA JURÍDICA, DE MODO ALGUM FICAM POSTAS EM CAUSA,
2.
- Sequer necessário é recorrer à existência no processo de documentos ou outro meio de prova plena, que impliquem, necessariamente, decisão diversa da proferida, porquanto em ambas as sentenças está reconhecido – expressamente – o referido direito à indemnização por dano biológico.
N.
A sentença recorrida violou o disposto nos artºs 22º e 202º, nº 2, da CRP, 576º, nº 3, o disposto no artº 607º, nºs 3 e 4 do CPC, o artº 13º daRJRCEE, assim como o primado do direito da União Europeia sobre o direito nacional.

TERMOS EM QUE,
Deve revogar-se a sentença recorrida, substituindo-a por outra que julgue a presente acção procedente por provada, como é de elementar JUSTIÇA.
*
O Ministério Público veio, em representação do Estado, responder à motivação de recurso apresentada pela recorrente, concluindo nos seguintes termos:

1 – Não se verifica nenhum dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por danos resultantes do exercício da função jurisdicional, inexistindo, desde logo, qualquer ato ilícito.
2 – Mesmo que se verificassem os pressupostos da responsabilidade civil do Estado por danos resultantes da função jurisdicional, a falta do requisito da prévia revogação da decisão danosa pela instância competente, determina só por si, a improcedência da ação, conduzindo à absolvição do pedido, uma vez que impede o efeito jurídico dos factos articulados pela autora.
3 – Não foram violadas quaisquer disposições legais, nomeadamente o disposto nos art.s 22º e 202º da Constituição da República Portuguesa, 576º, nº 3 e nº 4 do C.P.C., 607º, nºs 3 e 4 do C.P.C. ou no art. 13º do RJRCEE.
4 – Sendo totalmente correta a sentença, deverá julgar-se totalmente improcedente o recurso interposto pela autora V. C..
*
Recebido o recurso foi recebido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
*
Foram colhidos os vistos legais.
*
III - O Direito

Como resulta do disposto nos artos. 608º., nº. 2, ex vi do artº. 663º., nº. 2, 635º., nº. 4, 639.º, n.os 1 a 3, 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem das conclusões que definem, assim, o âmbito e objecto do recurso.
Deste modo, e tendo em consideração as conclusões acima transcritas cumpre apreciar e decidir se é de revogar a decisão proferida que considerou verificar-se a falta do requisito de prévia revogação da decisão danosa, imposta pelo art. 13.º, n.º 2, da Lei 67/2007, de 31.12.
*
1-Fundamentação de facto

Factos dados como provados:

1 - No dia 11 de Junho de 2015, a ora Autora instaurou no Tribunal Judicial da comarca de Viana do Castelo uma acção cível de indemnização contra a Companhia de Seguros X, S.A, acção que ali correu termos com o nº 281/15.6T8VCT.
2 - Nesse processo foi proferida decisão com o seguinte dispositivo:
“DECISÃO:
Pelo exposto, decide-se julgar a presente acção parcialmente procedente, e consequentemente, condenar a ré Companhia de Seguros X, S.A. a pagar à autora V. C., as seguintes quantias:
- €4.223,25 (quatro mil duzentos e vinte e três euros e vinte e cinco cêntimos), a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos, acrescida de juros à taxa legal de 4%, contados desde a citação da ré e até efectivo e integral pagamento;
- €9.000,00 (nove mil euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais, acrescida de juros legais, à taxa de 4%, contados desde a data da prolação da presente sentença até efectivo e integral pagamento;
- € 18.000,00 (dezoito mil euros), a título de indemnização pelo dano biológico, acrescida de juros legais, à taxa de 4%, contados desde a data da prolação da presente sentença até efectivo e integral pagamento.”
3. A autora apresentou recurso de apelação de tal decisão para o Tribunal da Relação de Guimarães o qual manteve a decisão da primeira instância.
4. A autora apresentou recurso extraordinário para o Supremo Tribunal de Justiça, mas não foi admitido.
5. A autora não arguiu qualquer nulidade ou correção de lapsos materiais ou rectificação das duas decisões judiciais proferidas na primeira instância e na Relação de Guimarães.
6. Não existe decisão revogatória das decisões judiciais supra referidas.
*
2-Fundamentação jurídica

A A. baseia a acção na alegada existência de decisões judiciais manifestamente inconstitucionais, ilegais e injustificadas, resultantes de erro grosseiro, crasso, palmar, indesculpável, gravemente negligente ou meramente culposo em que não teria caído qualquer juiz minimamente cuidadoso que as tivesse proferido na acção de processo comum n.º 2281/15.6T8VCT do Juízo local Cível de Viana do Castelo, juiz 2, instaurada pela aqui também autora/recorrente contra a Companhia de Seguros X, S.A.”.
Aduz, a esse título, o erro que diz ter ocorrido na fixação do montante da indemnização que lhe foi arbitrada por danos patrimoniais por si sofridos, em consequência da redução da sua capacidade de trabalho e de ganho/défice funcional/dano biológico, decorrente do acidente de viação que sofreu, ao ter-lhe sido fixado o valor arredondado do desconto de ¼, correspondente a 18.000,00€, pela antecipação do recebimento do capital, que deveria antes ter sido descontado ao montante de cerca de 70.000,00€, apontado como sendo o valor a atribuir por esse dano biológico, o que daria a quantia de 53.894,29€ resultante dessa operação.
Conclui, assim, integrando a factualidade que articula, na verificação do intitulado erro grosseiro que diz ter sido cometido, coarctando o seu alegado direito de ser indemnizada pelo referido dano que sofreu e cujo ressarcimento peticiona, com base na responsabilidade civil extracontratual do Estado.
Ora, tendo em conta a base em que assenta o pedido formulado, importa considerar que, de forma inovatória, a Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, com a alteração introduzida pela Lei n.º 31/2008, de 17 de Julho, veio consagrar, pela primeira vez, ao nível infra-constitucional o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, contemplando a responsabilidade civil do Estado por facto resultante da função legislativa e jurisdicional, posto que o DL n.º 48 051, de 21 de Dezembro de 1969 - que aquela Lei veio revogar e substituir -, apenas se dirigia à Administração Pública.
A referida lei veio, assim, dar resposta ao imperativo constitucional presente no artigo 22.º da Constituição da República Portuguesa – princípio geral de responsabilidade patrimonial do Estado e entidades públicas –, e romper com o paradigma do Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967, que assentava unicamente na responsabilidade civil da Administração. Com a nova lei, procedeu-se, inovatoriamente, à divisão da responsabilidade pelas várias funções do Estado: i) função administrativa (artigos 7.º a 11º); ii) função jurisdicional (artigos 12.º a 14.º); iii) função político-legislativa (artigo 15.º), criando-se um regime unitário, com um carácter e âmbito global – cfr. J. CARDOSO DA COSTA, “Sobre o novo regime da responsabilidade civil do Estado por actos da função judicial”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel Henrique Mesquita, vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 502.
Dentro do capítulo III do RCEEP, correspondente à responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional, encontra-se o regime da responsabilidade por erro judiciário, aí se verificando, do seu n.º 1, do artigo 13.º, que o erro judiciário, em sentido amplo, se decompõe em i) erro judiciário relativo a situações de privação da liberdade (primeira parte do n.º 1) e ii) erro judiciário em geral (segunda parte do n.º 1).
O primeiro pressuposto para a efectivação da responsabilidade civil do Estado é a existência de um erro judiciário que consubstancie um facto ilícito, na medida em que, nos termos do citado preceito “(...) o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto.”
Tal erro judiciário pode consistir em erro de direito (“decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais”) ou erro de facto (decisões jurisdicionais “injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto”).
Acresce que o erro judiciário atendível é apenas aquele especialmente qualificado. Estando em causa um erro de direito, apenas é relevante para efeitos de responsabilidade civil aquele que seja manifestamente ilegal ou inconstitucional, isto é, deve “tratar-se de um erro evidente, crasso e indesculpável de qualificação, subsunção ou aplicação de norma jurídica". Por outro lado, existe um erro de facto especialmente qualificado quando este é “clamoroso e grosseiro, no que toca à admissão e valoração dos meios de prova e à fixação dos factos materiais da causa”.
Na expressão do Prof. Manuel de Andrade o erro terá de ser «escandaloso, crasso, supino, que procede de culpa grave do errante» (in Teoria Geral da Relação Jurídica, 1974, 2.º, 239).
Por outro lado, à luz do n.º 2 do artigo 13.º do RCEEP, constitui requisito processual fundamental para a efectivação da responsabilidade por erro judiciário “o pedido de indemnização (...) ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente”, ou seja, exige-se um reexercício da função jurisdicional, prévio a uma eventual acção de indemnização, concluindo-se que se verifica um erro judiciário imputável ao órgão jurisdicional que proferiu a decisão.
Entende-se que assim seja à luz do nosso sistema jurídico em que o recurso surge como um meio de tutela primária no sentido em que o seu objectivo é a eliminação do acto lesivo – no caso concreto, o erro judiciário –, e a consequente reposição da legalidade. Ressalve-se, contudo, a hipótese de a revogação da decisão danosa ser efectuada pelo próprio juiz que a proferiu, a pedido do lesado, mediante reclamação ou através de pedido de reforma da sentença – neste sentido v. SILVA, “A ideia de Estado”, O Direito, p. 70; COSTA, “Sobre o novo regime”, vol. I, p. 514; e CADILHA, Regime, p. 272.
Face ao exposto, esse erro terá de ser invocado e demonstrado, não na própria acção de indemnização que visa ressarcir o cidadão lesado por essa decisão danosa, mas sim em sede de recurso da decisão em que aquele erro foi cometido. Isto porque o recurso surge como um meio de tutela primária no sentido em que o seu objectivo é a eliminação do acto lesivo, e a consequente reposição da legalidade.
Neste sentido, abordando esta questão em artigo publicado já na vigência do actual Regime, o Prof. Cardoso da Costa («Sobre o novo regime da responsabilidade do Estado por actos da função judicial», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel Henrique Mesquita, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, vol. I, 2009, pág.512), escreveu que o instrumento para superar e corrigir a incorrecção das decisões judiciais – vale por dizer, «o erro judiciário» - há-de ser primacialmente o do «recurso» (e «reclamação), não o instituto da responsabilidade civil do Estado. É uma razão dogmático-institucional, ligada à própria natureza da função judicial, que impõe a condição estabelecida pelo n.º 2 do artigo 13.º - e exclui que a ocorrência e o eventual relevo do erro judiciário possam ser aferidos directamente, e sem mais, em sede de responsabilidade e pelo tribunal competente para o apuramento desta.
A decisão revogatória há-de ser definitiva e provir de um tribunal hierarquicamente superior, pois, como afirma a Prof. Paula Costa e Silva, seria anómalo que a acção de indemnização fosse um meio de tal modo autónomo de impugnação que uma decisão, eventualmente proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça, viesse a ser controlada pela primeira instância (A ideia de Estado de direito e a responsabilidade do Estado por erro judiciário, in O Direito 142º (2010), I, pág. 71).
A ratio legis do n.º 2 do artigo 13.º do RCEEP visa, assim, salvaguardar o princípio da segurança jurídica e a autoridade do caso julgado (corolário do primeiro), ou seja, garantir tanto a estabilidade/imutabilidade do direito e das relações jurídicas como uma boa administração da justiça. Por outro lado, entende-se que a norma visa também defender a hierarquia dos tribunais prevista nos artigos 210.º e 212.º da CRP, evitando-se que uma decisão de um tribunal superior venha depois, na acção de indemnização, ser apreciada por um tribunal da mesma instância ou até hierarquicamente inferior (à partida, o tribunal de primeira instância da jurisdição competente).
A este respeito, já no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 90/84, de 30.07.1984, proferido no Proc. nº 82/83, se tinha questionado se a apreciação da legalidade material (ou constitucionalidade) de uma decisão judicial para meros efeitos indemnizatórios não deveria fazer-se noutra sede, que não a do recurso ou recursos de que a mesma decisão poderia ser objecto, considerando-se que uma tal solução seria um ilogismo institucional, traduzindo-se na subversão do princípio da divisão dos poderes, enquanto também aplicável à organização judiciária, pois permitiria a ulterior desautorização de uma decisão consolidada na ordem jurídica - por não ter sido impugnada ou, como quer que seja, apreciada pela competente instância de recurso -, doutrina que outros acórdãos do mesmo Tribunal perfilharam.
E, actualmente, já esse mesmo Tribunal Constitucional se pronunciou também sobre a compatibilidade do n.º 2 do artigo 13.º do RCEEP, com a CRP, tendo-se decidido, no acórdão n.º 365/2015, publicado no DR 2.ª, n.º 186, de 23.9.2015, pela não inconstitucionalidade do preceito em análise.
No citado acórdão, tendo como ponto de apoio a jurisprudência do TJUE, no sentido dos problemas não se situarem no “plano técnico-processual do respeito do caso julgado (...) ou no plano institucional da independência e autoridade do juiz (...)”, considerou-se que o que está em causa é a “racionalidade sistémica e a coerência institucional” e, como tal, apoiando-se na orientação seguida por aquele Tribunal desde o acórdão n.º 90/84, entendeu-se que é “na própria natureza da função jurisdicional e no modo como o respectivo exercício se encontra estruturado – o sistema de recursos e a hierarquia dos tribunais – que se pode encontrar justificação para a não arbitrariedade e para a justificação de uma limitação como a estatuída no n.º 2 do artigo 13.º do RCEEP.
In casu, a A., no referido processo 2281/15, não se conformando, para além do mais, com as indemnizações arbitradas, veio recorrer, mencionando ter o tribunal recorrido arbitrado à A. uma indemnização de 18.000,00€, requerendo que, perante os fundamentos invocados, fosse antes fixada uma indemnização de 70.000,00€, pela compensação do dano da perda de capacidade de ganho futuro.
Recurso esse que foi julgado improcedente, mantendo, assim, o decidido.
Daqui decorre que a A. recorreu, mas não aludiu a um erro material, por manifesto lapso, requerendo a sua rectificação, nos termos do art. 614.º, do Cód. Proc. Civil.
Ora, como se sabe, “[p]roferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa”, tal como se preceitua no n.º 1 do art. 613.º do CPC, o que significa que o “juiz não pode, por sua iniciativa, alterar a decisão que proferiu; nem a decisão, nem os fundamentos em que ela se apoia e que constituem com ela um todo incindível” (cfr. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 4ª edição, Almedina, p. 41), assente na necessidade de assegurar a estabilidade das decisões dos tribunais.
Contudo, o enunciado princípio da intangibilidade da decisão, como resulta do n.º 2 do art. 613º do CPC, não é absoluto, uma vez que é lícito “ao juiz rectificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença nos termos dos artigos” 614.º a 616º do CPC.
Entre os defeitos susceptíveis de rectificação contempla o art.º 614º/1, do CPC, o erro de escrita e de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto.
Tal erro ocorre quando se verifica um «...erro “na expressão”, não no pensamento; somente a leitura da sentença deve tomar evidente que o juiz, ao manifestar o seu pensamento, usou nomes, palavras ou algarismos diversos daqueles que devia ter usado para exprimir fiel e correctamente as ideias que tinha em mente. Pertence ao conceito de erro material ainda o erro de cálculo, que pode ser rectificado também simplesmente, refazendo-se as operações aritméticas executadas ao formular o julgamento. Por outras palavras, o erro material é o que fica a dever-se a uma desatenção ou a um engano ocorrido na operação de redacção do acto» - cfr. Ac. do TRP n.º 3953/12.2TBVNG-B.P1.
Estão em causa erros cognoscíveis, isto é, deficiências que se revelam no próprio contexto da sentença (ou despacho), à semelhança do que sucede com o regime previsto no art. 249.º do Cód. Civil para os negócios jurídicos, cuja rectificação não interfere com a substância, nem com a fundamentação da decisão. O que importa é que os erros ou lapsos sejam evidentes, ostensivos ou manifestos, ou seja, que resultem de forma clara da mera leitura da decisão ou dos termos que a precederam. A retificação de erros materiais nunca poderá, em caso algum, determinar uma alteração substancial ao conteúdo da decisão, mas apenas explicitar ou corrigir aquilo que, ainda que de uma forma implícita, resultava já do teor da decisão ou do processo – cfr. António Júlio Cunha, Direito Processual Civil Declarativo, 2ª ed., Quid Juris, p. 366, Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, p. 685, e Helena Cabrita, A fundamentação de facto e de Direito da Decisão Cível, Coimbra Editora, p. 255.
Sendo vícios formais não se corrigem pela revogação da decisão, mas por mero acto de rectificação, i.e., de substituição da parte viciada por outra escrita ou cálculo que correspondam à vontade decisória. Ao contrário da arguição da nulidade da decisão e do pedido de reforma da decisão (cf., os referidos artigos 615.º, n.º 4, e 616.º, n.º 2, parte inicial), a rectificabilidade de uma decisão em nada depende da admissibilidade de recurso ordinário.
Contudo, em caso de recurso, a rectificação só pode ter lugar antes de ele subir, podendo as partes alegar perante o tribunal superior o que entendam de seu direito no tocante à matéria da rectificação. Se nenhuma das partes recorrer, a rectificação pode ter lugar a todo o tempo, mesmo depois do trânsito em julgado – neste sentido o Ac. STJ 26-11-2015/Proc. 706/05.6TBOER.L1.S1 (MARIA DOS PRAZERES BELEZA).
Em ambos os casos, a rectificação é da competência do tribunal que proferiu a decisão, por sua iniciativa oficiosa ou a requerimento das partes, deduzido em 10 dias (cf. artigo 149.º, n.º 1) a contar da notificação ou conhecimento da decisão, nos termos do artigo 638.º - cfr. Rui Pinto, in Rev. Julgar Online, Maio/20, referente ao tema “Os meios reclamatórios comuns da decisão civil (artigos 613.º a 617.º CPC)”, pg. 8). O tribunal ad quem não tem competência para rectificar decisão alheia, mas sim para revogar a rectificação na respectiva sede recursória – cfr. ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil anotado V, (reimp. 1984), p. 188). Se for deduzido fora de prazo, sem justo impedimento, o pedido de rectificação não deverá ser conhecido, não sendo defensável que a mesma parte possa vir, em acção posterior, invocar procedentemente o valor que entendia ser o correcto.
Embora, seja esta a posição que maioritariamente vinga, o Ac. STJ 23-11-2011/Proc. 4014/07.1TVLSB.L1.S1 (FONSECA RAMOS)) admitiu que na acção de consignação em depósito do valor da indemnização em que certa seguradora havia sido condenada, com erro de cálculo, a “obrigação em que foi condenada” a recorrida seria a obrigação realmente por si devida, em relação ao qual não se formou caso julgado.
Acontece que, in casu, a A. interpôs recurso da decisão proferida pugnando pelo aumento do valor fixado que indicava como sendo de 18.000,00, atribuído pela afectação da sua capacidade de ganho, como dano biológico por si sofrido, não tendo, nem na 1.ª Instância, nem em sede de recurso, vindo pedir a rectificação de um qualquer erro material, ao abrigo do disposto no art. 614.º, do Cód. Proc. Civil, como depois veio a apontar existir, tal como o faz na presente acção por si instaurada contra o Estado Português.
Acontece que a decisão proferida no proc. 2281/15 foi mantida, tendo o recurso interposto sido julgado improcedente, tendo já transitado em julgado.
Assim, tendo em conta a opção tomada pelo legislador, de acordo com a qual constitui conditio sine qua non a prévia revogação da decisão danosa, de forma a operar o direito a uma indemnização, terá, em primeiro lugar, de se demonstrar que um qualquer tribunal, independentemente da jurisdição a que pertence, cometeu um erro judiciário em decisão fixada em última instância, isto é, em decisão da qual não cabe recurso ou reclamação. Quer isto dizer que, desde que, previamente, em sede de recurso da decisão proferida por tribunal de primeira instância, segunda instância, ou mesmo por um tribunal supremo, respeitados os requisitos de admissibilidade desses recursos, se revogue a decisão danosa, poderá haver lugar à propositura de uma acção tendo em vista a obtenção de uma indemnização por erro judiciário. Daqui decorre uma natural interdependência entre o regime constitucional e legal do direito ao recurso e a hipótese de efectivação da responsabilidade do Estado por erro judiciário – cfr. CADILHA, Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas Anotado, 2a Ed., Coimbra Editora, 2011, p. 272/275.
Como tal, proferida que seja a revogação da decisão danosa pela jurisdição competente, o lesado poderá propor uma acção de indemnização destinada à consumação da responsabilidade do Estado pela prática de erro judiciário.
Já quanto à interligação do referido regime com o direito comunitário, constata-se que de todo o diploma onde se encontra vertido o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades púbicas, não se retira qualquer referência à questão da responsabilidade do Estado-Juiz por violação do direito comunitário. Todavia, ainda que assim seja, tal omissão não determina a irresponsabilidade do Estado Português, preenchidos os pressupostos anteriormente mencionados – cfr. neste sentido MESQUITA, “Âmbito”, Revista do CEJ, pp. 284 e 285.
Denotam-se, no entanto, algumas desconformidades entre o RCEEP e o regime comunitário aplicável, por o apontado pressuposto processual estabelecido no n.º 2 do artigo 13.º do RCEEP não se compatibilizar com a responsabilidade dos Estados no direito comunitário, nomeadamente à luz do princípio da efectividade que proíbe a exigência de requisitos (como o que decorre do n.º 2 do artigo 13.º) que tornem impossível ou excessivamente difícil a obtenção da reparação, violando, deste modo a proibição de obstrução e a obrigação de eficiência, corolários do princípio da efectividade (Cfr. acórdão do TJUE de 9.9.2015, processo C-160/14, pesquisável em https://curia.europa.eu/jcms/jcms/j_6/pt/, acórdão do TJUE de 25.11.2010, processo n.º C-429/09 (Günter Fuß/Stadt Halle), n.º 62 e acórdão do TJUE de 30.9.2003, processo C-224/01, n.º 58, pesquisáveis em https://curia.europa.eu/jcms/jcms/j_6/pt/).
Perante esta diferenciação apontada, tem-se, então, entendido e defendido que o n.º 2 do artigo 13.º do RCEEP não é aplicável quando esteja em causa a responsabilidade dos Estados membros por acções ou omissões dos órgãos jurisdicionais que violem o direito comunitário, com fundamento último no princípio do primado da União Europeia (concluem neste sentido, entre outros, MACHADO, “A responsabilidade”, Revista de Legislação e de Jurisprudência, p. 273, M. RANGEL DE MESQUITA, O Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas e o Direito da União Europeia, Coimbra, Almedina, 2009, p. 56, e L. FÁBRICA, “Anotação ao artigo 13.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro”, in Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2013, p. 359).
Por conseguinte, conclui-se que existem, actualmente, em Portugal dois regimes com pressupostos diferentes a regular a responsabilidade do Estado por erro judiciário, consoante se esteja perante uma violação de direito da União Europeia ou uma violação de direito interno, imputáveis a um órgão jurisdicional.

A respeito desta questão, pronunciou-se já a jurisprudência, que aqui se deixa expressa, tendo-se decidido no âmbito do acórdão proferido no proc.2519/18.8T8LRA.C1, de 13-11-2019, que:

I - O regime geral aplicável à responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional corresponde ao regime da responsabilidade por factos ilícitos cometidos no exercício da função administrativa, com as ressalvas que decorrem do regime próprio do erro judiciário e com a restrição que resulta do facto de não se admitir que os magistrados respondam diretamente pelos ilícitos que cometam com dolo ou culpa grave.
II - Para o reconhecimento de uma obrigação de indemnizar, por parte do Estado, por facto do exercício da função jurisdicional, é necessária a existência de um erro judiciário, o qual implicará que haja a certeza de que um juiz normalmente preparado e cuidadoso não teria julgado pela forma a que se tiver chegado, sendo esta inadmissível e fora dos cânones minimamente aceitáveis, quer se esteja perante erro de direito ou de facto.
III- Essa certeza, enquanto requisito da ilicitude da responsabilidade em causa, tem de advir da prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente, comportando-se, pois, esta revogação, como um pré-requisito da responsabilidade civil pelo exercício da função jurisdicional.
IV – Não se trata, no entanto, de uma qualquer revogação de uma decisão judicial, mas de uma revogação que implique, pelo seu conteúdo, o reconhecimento judicial do erro, com as características de manifesto, quando de direito, ou de grosseiro, quando de facto.
V – A jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia entendeu dever ter-se por definitivamente afastada a exigência da prévia revogação da decisão danosa quando esteja em causa a apreciação da responsabilidade civil do Estado por acto da função jurisdicional em função da violação do direito comunitário por um órgão jurisdicional nacional que decida em última instância.
VI – Por isso, apenas quando o erro judiciário que origina o dever de indemnizar proceda do órgão jurisdicional que decida em última instância e se reporte à devida interpretação ou aplicação do direito comunitário pode e deve ser dispensada a prévia revogação da decisão que alegadamente contém aquele erro.

Por sua vez, também o Ac.RL, proc. 2103/19.9T8LRS-7, de 12-10-2021, sumariou nos seguintes termos:

I.–A norma do Artigo 13º, nº2, da Lei nº 67/2007, de 31.12 (responsabilidade civil do Estado por erro judiciário), ao exigir a prévia revogação da decisão danosa, não padece de inconstitucionalidade material porquanto: a natureza da função jurisdicional e o modo como o respetivo exercício se encontra estruturado (o sistema de recursos e a hierarquia dos tribunais) justificam tal limitação; uma decisão judicial definitiva sobre uma dada questão, em princípio, e salvo razões juspositivas de especial relevo, não deve poder ser desconsiderada por outra decisão judicial, uma vez que inexiste qualquer critério jurídico-positivo para fazer prevalecer a segunda sobre a primeira; a segurança jurídica, associada às decisões judiciais transitadas em julgado, e a autoridade das decisões dos tribunais superiores constituem bens constitucionais reconhecidos; tal solução legal não elimina o direito à indemnização por erro judiciário, limitando-se a acomodar no regime respetivo, às exigências correspondentes à estrutura e ao modo de funcionamento do sistema judiciário constitucionalmente consagrado; não exclui, nem cerceia arbitrária e desproporcionadamente o princípio da responsabilidade do Estado, consagrado no Artigo 22º da CRP.
II.–O apelante não invoca nem demonstra que o julgamento, ocorrido na ação finda, demande a aplicação de direito comunitário, isto é, que haja que formular um juízo de conformidade entre as normas de Direito interno aplicadas no processo, em que o erro judiciário pretensamente ocorreu, e as normas de Direito da União Europeia cuja inobservância originou o erro judiciário. Pelo contrário, trata-se de um puro conflito de direito privado atinente à celebração de um contrato-promessa de compra e venda e vicissitudes daí emergentes.
III.–Assim sendo, improcede a argumentação do apelante no sentido de que tal regime viola os princípios da lealdade comunitária e do primado do direito comunitário.
IV.–A regra decorrente do Artigo 13º, nº2, da Lei nº 67/2007, de 31.12, no segmento atinente à prévia revogação da decisão danosa, não consubstancia uma norma atinente a um formalismo processual, não fixa os requisitos formais ou o tempo da prática de um ato processual, tido como indispensável para o exercício de um direito, qual seja o de responsabilizar o Estado por erro judiciário.
V.–Tal segmento normativo estabelece antes um pressuposto processual específico.

Por último, igualmente se decidiu no acórdão proferido no proc. 8819/18.0T8PRT.P1, de 10-07-2019, que:

I - O n.º2 do artigo 13.º da Lei 67/2007, de 31 de dezembro, faz depender da existência de prévia revogação da decisão danosa a responsabilidade civil do Estado pelos danos ocorridos na sequência de atos materialmente jurisdicionais, fundados em erro evidente ou grosseiro.
II - Tal norma não é inconstitucional por violação do disposto no artigo 22.º da CRP que consagra a responsabilidade civil direta do Estado pelos atos e omissões praticados, pelos seus agentes, no âmbito das funções que lhe estão cometidas, entre as quais, a função jurisdicional, uma vez que a concretização de tal princípio foi atribuída ao legislador ordinário, que, em cumprimento dessa incumbência, elaborou e aprovou a Lei 67/2007, de 31 de dezembro, na qual se incluí o artigo 13.º, n.º1, que prevê a responsabilidade pelos erros judiciários, bem como o seu n.º2, que prevê, como condição de procedibilidade, a existência de prévia revogação da decisão danosa.
III - Também a concretização de tal direito, porque não se mostra arbitrária, mas antes adequada e proporcional face aos outros interesses constitucionais em confronto – designadamente a segurança, a certeza jurídica e a estrutura dos recursos e hierarquização dos tribunais, respeita, dessa forma, o regime previsto no artigo 18.º, n.º2 da CRP.
IV - Não se estará igualmente perante qualquer violação do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) e da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE), cujo valor jurídico lhe é dado pelo artigo 6.º do TUE, mas que, face ao seu artigo 51.º (da CDFUE), apenas é aplicável aos Estados quando estes estejam a aplicar direito comunitário, o que não é o caso.

Conclui-se assim que, tendo a materialidade que a A. quer sindicar nestes autos, sido já apreciada em 1.ª e 2.ª instâncias por decisão que não lhe foi favorável, sem que aí tenha suscitado nos termos do art. 614.º, do Cód. Proc. Civil, a rectificação de erro material agora apontado, não pode o recurso proceder, pelas razões expostas.
Acrescenta-se que não tendo a A. exercido, em tempo, o seu direito de rectificação, não pode agora pretender fazer recair essa responsabilidade de omissão sobre outrem, inverificados que são os seus pressupostos para tal, concretamente a condição de procedibilidade, de existência de prévia revogação da decisão danosa.
Nestes termos, tem, pois, o recurso de improceder.
*
III-Decisão

Nestes termos, acordam os Juízes na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar o recurso improcedente, confirmando, consequentemente a decisão proferida.
Custas pela recorrente.
Registe e notifique.
*
Guimarães, 10.03.2022
(O presente acórdão foi elaborado em processador de texto pela primeira signatária, sem observância do novo acordo ortográfico, a não ser nas partes transcritas que a ele atendam, e é por todos assinado electronicamente)

Maria dos Anjos S. Melo Nogueira
Desembargador José Carlos Dias Cravo
Desembargador António Manuel Antunes Figueiredo de Almeida