Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1452/21.0T8VRL.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: VENDA DE VEÍCULO AUTOMÓVEL
CONSUMIDOR
PRESUNÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/20/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – Quando no recurso seja impugnada a decisão da matéria de facto, o recorrente deve proceder à identificação clara e rigorosa dos meios probatórios sobre os quais pretende que o tribunal superior faça uma reapreciação, sob pena de rejeição do recurso sobre a matéria de facto.
2 – Assim, deve especificar, relativamente a cada ponto de facto que considera incorretamente julgado, os concretos meios probatórios que impunham uma decisão diversa da recorrida.
3 – Caso pretenda invocar provas gravadas, o recorrente deve indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o recurso ou transcrever os excertos que considere relevantes para uma decisão diversa da recorrida sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
4 – Para o exercício dos direitos conferidos pelo artigo 4º, nº 1, do Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de abril, no âmbito de uma relação de consumo, incumbe ao adquirente de um veículo novo a prova da falta de conformidade do bem com o contrato de compra e venda celebrado.
5 – A mera demonstração da ocorrência de um incêndio no interior de uma construção, que produziu danos em dois veículos, um dos quais o adquirido, e noutros bens, não traduz falta de conformidade do bem.
6 – Consubstancia litigância de má-fé a negação pela parte de factos que sabe serem verdadeiros.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

1.1. AA, AA e BB intentaram ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra R... – Venda e Reparação de Máquinas Agrícolas, Unipessoal, Lda., e M... - Equipamentos, SA, formulando os seguintes pedidos:

«A) Seja declarado resolvido o contrato de compra e venda celebrado entre o 1º autor e o 1º réu, nos termos do disposto no nos termos dos n.ºs 1 e 4 do artigo 4º do D.L. n.º 67/2003, de 08.04, na sua redação atual;
B) Seja o 1º réu condenado ao pagamento de quantia não inferior a € 25.000,00 - sem prejuízo da sua ampliação nos termos do artigo 265º do C.P.C. – pela devolução do preço pago pelo 1º autor, por conta da aquisição do trator ..-ZA-.., deduzido do valor correspondente ao uso e desgaste sofrido pelo veículo desde a data da sua aquisição – 12/07/2019 - até à data do incêndio – 12/03/2021;
C) Sejam os 1º e 2º RR. solidariamente condenados ao pagamento de quantia não inferior a € 1.500,00, a título de dano patrimonial suportado pelo 1º autor, para reparação dos danos causados às alfaias agrícolas identificadas em 21º e 22º supra;
D) Sejam os 1º e 2º RR. solidariamente condenados ao pagamento, ao 1º autor, de quantia de € 1.000,00 a título de danos não patrimoniais;
E) Sejam os 1º e 2º RR. solidariamente condenados ao pagamento, ao 2º autor, de quantia não inferior a € 2.500,00, - sem prejuízo da sua ampliação nos termos do artigo 265º do C.P.C. - a título de dano patrimonial para reparação dos danos elencados em 19º e 20º supra;
F) Sejam os 1º e 2º RR. solidariamente condenados ao pagamento, aos 2º 3º AA., de quantia não inferior a € 10.000,00, a título de dano patrimonial suportado por estes, para reparação dos danos identificadas em 49º e 50º supra;
G) Sejam os 1º e 2º RR. solidariamente condenados ao pagamento dos juros de mora à taxa de legal contados desde a data da citação até efectivo pagamento, bem como a condenação em custas e condigna procuradoria.

CASO ASSIM NÃO SEJA ENTENDIDO – o que por mera hipótese de raciocínio se admite – e, SUBSIDIARIAMENTE, pede que:
H) Sejam os 1º e RR. solidariamente condenados a proceder à substituição do trator vendido por outro com idênticas caraterísticas, tudo sem prejuízo do pagamento dos danos reclamados;

CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA, e SUBSIDIARIAMENTE, pede que:
I) Seja reduzido o preço acordado, tudo sem prejuízo do pagamento dos danos reclamados.»
Para o efeito, alegaram que o 1º Autor adquiriu à 1ª Ré um trator agrícola, o qual, decorridos poucos meses, começou a apresentar defeitos, nomeadamente problemas de caráter elétrico, tendo mesmo acabado por avariar, motivo que o levou a colocar, no dia 09.03.2021, o trator na oficina da 1ª Ré para reparação, ao abrigo do direito de garantia que lhe assistia; a 1ª Ré efetuou a reparação e a revisão, mas no dia 12.03.2021 o trator começou a arder, provocando um incêndio no interior de um anexo da casa de habitação propriedade dos 2º e 3º Autores, da qual é usufrutuário o 1º Autor, incêndio esse que se propagou a tudo à sua volta, designadamente a outro trator e equipamentos agrícolas, provocando danos cujo ressarcimento peticionam.
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Ambas as Rés contestaram, tendo a 1ª Ré invocado a exceção de caducidade e alegado que efetuou a reparação dos travões, que o trator se encontrava munido de um sistema de corta-corrente, o qual impede qualquer incêndio desde que esteja acionado, e que o incêndio resultou de o trator se encontrar guardado junto de um bidão de gasóleo de 1000 litros, sem acondicionamento, de uma caldeira elétrica de 1000 litros e de um sistema de fios elétricos do próprio armazém, soltos e sem acondicionamento. Terminou pedindo a condenação dos Autores como litigantes de má-fé.
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Os Autores exerceram o contraditório relativamente à matéria de exceção alegada pelas Rés.
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1.2. Dispensada a audiência prévia, proferiu-se despacho saneador, no qual se julgou improcedente a exceção perentória de caducidade e procedente a exceção de ilegitimidade passiva da 2ª Ré, que foi absolvida da instância. Mais se definiu o objeto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.
Realizada a audiência de julgamento, lavrou-se sentença, a julgar improcedente a ação, absolvendo a Ré R... de todos os pedidos formulados, e condenando os Autores «na qualidade de litigantes de má-fé numa multa de 4UC e em indemnização à parte contrária, a fixar em liquidação de sentença».
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1.3. Inconformados, os Autores interpuseram recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

«1ª) Ao abrigo dos artigos 629º, 631º e 644º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Civil, de ora em diante C.P.C., vem o presente recurso interposto da douta sentença, que julgou a ação totalmente improcedente;
2ª) Os Recorrentes impugnam a decisão da matéria de facto e a decisão de Direito;
3ª) No presente recurso requer-se a reapreciação da prova documental e da prova gravada.
4ª) Os Autores impugnam a decisão de facto proferida sobre os pontos 7, 11, 17, 18, 19 dos factos provados e os pontos 23, 24, 25 e 26 dos factos não provados.
5ª) Da decisão da matéria de facto, a Meritíssima Juiz a quo apreciou erroneamente a matéria de facto constante dos pontos 7, 11, 17, 18, 19, 23, 24, 25 e 26, que devem ser alterados da forma seguinte:
Ponto 7 – Nenhuma prova foi produzida quanto à estipulação de um prazo convencional diferente do estipulado no artigo 5º, n.º 1 do DL n.º 67/2003, de 08.04, pelo que deve o mesmo ser considerado provado nos seguintes termos: O equipamento agrícola em causa de marca ..., Modelo ..., foi vendido ao 1º A. pelo 1º R. R... Unipessoal Lda., no estado de novo, com a garantia de bom funcionamento pelo período de dois anos, nos termos legais, atenta à ausência de estipulação, por acordo, de qualquer outro prazo.
Ponto 11– Nenhuma prova inequívoca foi produzida quanto a tal matéria de facto, pelo que este ponto deve ser dado como não provado;
Ponto 17 – Nenhuma prova inequívoca foi produzida quanto a tal matéria, na parte em que refere “impeditivo de deflagração de qualquer incêndio”, pelo que o mesmo deve ser restringido nos seguintes termos: o trator com matrícula »ZA«, referido em 4) estava equipado com um sistema de corta-corrente.
Ponto 18 – Nenhuma prova inequívoca foi produzida quanto a tal matéria de facto, pelo que este ponto deve ser dado como não provado;
Ponto 19 – Nenhuma prova foi produzida quanto à matéria do facto constante deste ponto, pelo que o mesmo deve ser dado como não provado;
Por outro lado, devem ser dados como provados os seguintes factos:
Ponto 23 - Poucos meses após a venda, o trator de matrícula »ZA« começou a apresentar problemas no sistema elétrico.
Ponto 24 - A deslocação à oficina da ré, no dia 09/03/2021, foi efetuada por motivos de avaria no sistema elétrico, para a ré proceder à sua reparação, ao abrigo do direito de garantia que lhe assistia.
Ponto 25 - A Ré aproveitou para fazer uma revisão ao estado geral do veículo, com substituição de peças de desgaste natural.
Ponto 26 - O incêndio referido em 12) teve a sua origem numa avaria da parte elétrica do trator com matrícula »ZA«.

Deve ainda ser aditado à matéria de facto dada como provada, os seguintes pontos:
a) No dia 12/03/2021, o trator com a matrícula ..-ZA-.. começou a arder, provocando um incêndio no interior do anexo, que por sua vez se propagou a tudo à sua volta;
b) No dia do incêndio, o 1º A. interpelou a Ré R... para lhe dar conhecimento do incêndio e denunciar a existência de defeitos no trator com a matrícula ..-ZA-...
6ª) Deve ser proferida decisão que altere a matéria de facto nos termos referidos em 5ª supra, em consonância com a prova pericial, as declarações de parte do Autor CC, das testemunhas indicadas pelo Autor, pelas testemunhas indicadas pelos Réus, e o depoimento de parte da legal representante da Ré, que se encontram gravadas e referidas nas alegações supra;
7ª) Face a análise conjugada de todos os meios de prova produzidos, a experiência comum e as regas do conhecimento empírico, não é verosímil a alegação da Ré, para excluir a obrigação de prestar garantia aos AA., que imputa a origem do incendio à existência de um bidão de gasóleo que nem sequer ardeu!
8ª) A Ré não demonstrou qualquer outra causa de exclusão da garantia.
9ª) Atento o exposto, e a aplicação do Direito aos factos que considerarmos terem resultado provados, deve ser reconhecida a obrigação de garantia da Ré e que a avaria do tractor ZA, que está na origem do incendio, estava coberta pela obrigação de garantia de bom funcionamento prestada pela Ré;
10ª) A sentença recorrida, para além de assentar em factos que não foram provados, fez errada interpretação e aplicação do direito porquanto violou o disposto no artigo 5º, n.º 1 do DL n.º 67/2003, de 08.04, ao considerar que o prazo de garantia de um ano, na ausência de estipulação, por acordo, de qualquer outro prazo, sendo certo que se trata de uma presunção legal juris tantum.
11ª) A sentença recorrida para além de assentar a sua convicção numa presunção, sem qualquer fundamento de facto e de direito, fez errada interpretação e aplicação do direito porquanto violou o disposto no artigo 542º do C.P.C, porquanto é patente que, in casu, os recorrentes não violaram nenhum dos mais elementares deveres de cooperação e de boa-fé que devem pautar a atuação das partes.
12ª) Pelo que, in casu, não se verificam nenhum dos pressupostos da condenação dos apelantes no pagamento de multa e de uma indemnização à recorrida, como litigante de má-fé.
13ª) Muito pelo contrário, à luz dos concretos factos apurados, não é possível formular um juízo de censura sobre o comportamento dos AA. que se revele desconforme com um processo justo e leal, que constitui uma emanação do princípio do Estado de Direito.
14ª) A sentença recorrida violou, para além do mais, o disposto nos artigos e 542º, 607º n. 4 e 5 do Código de Processo Civil, artigos 344º n.º 1, 921º, 762º, 798º e 799º do Código Civil, e artigo 5º, n.º 1 do DL n.º 67/2003, de 08.04.
15ª) Deve ser proferido acórdão que altere a decisão da matéria de facto nos termos referidos na conclusão 5ª) supra e, em consequência, revogue a douta sentença recorrida e julgue a acção declarativa comum totalmente procedente, por provada, condenando-se a Ré conforme peticionado na PI.»
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Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido.
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1.4. Questões a decidir

Nas conclusões do recurso, as quais delimitam o seu objeto (artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, os Recorrentes suscitam as seguintes questões:
i) Erro no julgamento da matéria de facto quanto aos pontos 7, 11, 17, 18 e 19 dos factos provados, aos pontos 23, 24, 25 e 26 dos factos não provados e aos dois pontos cujo aditamento preconizam na conclusão 5ª das suas alegações – conclusões 3ª a 7ª;
ii) Consequências em sede de direito da eventual modificação da matéria de facto – conclusões 8ª a 10ª –, traduzido em apurar se a Ré deve ser responsabilizada ao abrigo da obrigação de garantia de bom funcionamento por si prestada (conclusão 9ª) e se ocorreu uma errada interpretação do disposto no artigo 5º, nº 1, do DL 67/2003, de 08/04, no que respeita ao prazo de garantia (conclusão 10ª);
iii) Falta dos pressupostos para a condenação dos Autores como litigantes de má-fé – conclusões 11ª a 13ª.
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II – Fundamentos

2.1. Fundamentação de facto
2.1.1. Na decisão recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:

«1. O 1º autor encontra-se reformado, praticando uma agricultura de subsistência nos terrenos agrícolas de que é proprietário para ocupar os seus tempos livres.
2. A Ré R... - Venda e Reparação de Máquinas Agrícolas Unipessoal Lda. é uma empresa que se dedica ao comércio por grosso, manutenção e reparação de máquinas, veículos e equipamentos agrícolas.
3. A ré tem a sua sede e estabelecimento comercial instalados na Rua ..., na localidade de ..., ..., onde procedeu à colocação à venda do referido equipamento agrícola
4. No dia 12 de julho de 2019, o 1º autor adquiriu por compra à ré R... Unipessoal Lda., que lho vendeu no âmbito da actividade comercial por si exercida, no estabelecimento desta, sito no lugar ..., ..., ..., um trator agrícola de marca ..., Modelo ..., matrícula ..-ZA-.., pelo preço global de €29.000,00.
5. Para pagamento do preço ajustado, o 1º autor entregou à ré um trator usado, a que foi atribuído o valor de €12.000,00, e contraiu um empréstimo pessoal, na instituição financeira ..., pelo valor remanescente, no montante de €17.000,00.
6. O 1º autor pagou à ré R... Unipessoal, Lda., o respectivo preço, nos moldes supra descritos e este fez-lhe a entrega do referido trator que o 1º autor, dessa forma, fez seu.
7. O equipamento agrícola em causa de marca ..., Modelo ..., foi vendido ao 1º A. pelo 1º R. R... Unipessoal Lda., no estado de novo, com a garantia de bom funcionamento de pelo menos, o período de um ano, nos termos legais, atenta à ausência de estipulação, por acordo, de qualquer outro prazo.
8. O tractor referido em 4) foi adquirido com o propósito único de ser usado no cultivo dos seus prédios rústicos, onde desenvolve uma agricultura de subsistência, desde que se encontra reformado, sem qualquer benefício ou contrapartida económica directa para o autor.
9. O 2º e 3º autores são proprietários e o 1º réu é usufrutuário do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana da freguesia ... sob o artigo ...67, não descrito na Conservatória de Registo Predial ....
10. Ao lado do prédio referido em 9) existe um anexo onde se encontravam armazenadas:
a. Diversas alfaias e equipamentos agrícolas;
b. O tractor de matrícula »ZA« referido em 4);
c. O tractor de marca ..., modelo ...6, matrícula PG-..-.., do ano de 1988;
11. No dia 09/03/2021, o autor deslocou-se com o tractor às instalações da ré, para realização de uma operação de revisão por conta de problemas nos travões, tendo dado origem à factura ...20, a qual foi paga pelo autor em 11/03/2021.
12. No dia 12/03/2021, por volta das 07h00, no interior do anexo agrícola referido em 10), ocorreu um incêndio que propagou, queimando tudo à sua volta.
13. As chamas consumiram e destruíram, por completo, os tractores de matrícula »ZA« e »PG«.
14. As chamas consumiram e destruíram, por completo, as alfaias agrícolas, no valor de €1500,00.
15. As chamas provocaram danos avultados no anexo onde os tractores e as alfaias se encontravam armazenadas, provocando prejuízos no valor de €10.571,40.
16. Os tractores tinham o seguinte valor de mercado:
a. matrícula »PG«: valor de mercado de €2500,00.
b. matrícula »ZA«: valor de mercado de €25.000,00.
17. O tractor com matrícula »ZA«, referido em 4) estava equipado com um sistema de corta-corrente, impeditivo da deflagração de qualquer incêndio.
18. O autor AA foi avisado e esclarecido do sistema.
19. No interior do armazém onde se encontravam armazenados os tractores e as alfaias, encontravam-se ainda:
a. um bidão de gasóleo de, pelo menos, 500L, sem qualquer acondicionamento;
b. uma caldeira eléctrica de 1000L;
c. um sistema de fios elétricos do próprio armazém soltos, sem acondicionamento algum;
20. Após o incêndio referido em 12), a ré emprestou ao 1º autor um trator com a matrícula ..-MR-.., desde o dia .../.../2023 até ao dia 10 de maio de 2021, data em que o funcionário da ré procedeu ao seu levantamento no domicílio do 1º autor.
21. O 1º autor sofreu desgosto devido ao prejuízo causado no anexo e no outro tractor, propriedade do 2º autor.»
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2.1.2. Factos não provados

O Tribunal a quo julgou não provados os seguintes factos:
«22. Que o 1º autor leve a cabo trabalhos remunerados que presta em explorações de terceiros, sendo esta também uma das suas fontes de rendimento.
23. Que poucos meses após a venda, o tractor de matrícula »ZA« tenha começado a apresentar problemas no sistema eléctrico.
24. Que a deslocação à oficina da ré, no dia 09/03/2021, tenha sido por motivos de avaria no sistema eléctrico, para a ré proceder à sua reparação, ao abrigo do direito de garantia que lhe assistia.
25. Que a ré tenha aproveitado para fazer uma revisão ao estado geral do veículo, com substituição de peças de desgaste natural.
26. Que o incêndio referido em 12) tenha tido a sua origem numa avaria da parte eléctrica do tractor com matrícula »ZA«.»
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2.2. Do objeto do recurso
2.2.1. Impugnação da decisão da matéria de facto

Os Recorrentes impugnam a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal de 1ª instância no que concerne aos pontos 7, 11, 17, 18 e 19 dos factos provados, aos pontos 23, 24, 25 e 26 dos factos não provados e aos dois pontos cujo aditamento preconizam na conclusão 5ª das suas alegações.

Para que a Relação possa conhecer da apelação da decisão de facto é necessário que se verifiquem os requisitos previstos no artigo 640º do CPC, que dispõe assim:

«1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. O disposto nos nºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do nº 2 do artigo 636º».

No fundo, recai sobre o recorrente o ónus de demonstrar o concreto erro de julgamento ocorrido, apontando claramente os pontos da matéria de facto incorretamente julgados, especificando os meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida e indicando a decisão que, no seu entender, deverá ser proferida sobre a factualidade impugnada.

Delimitado pela negativa, segundo Abrantes Geraldes[1], o recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto será, total ou parcialmente, rejeitado no caso de se verificar «alguma das seguintes situações:

a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º, nº 4, e 641º, nº 2, al. b);
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640º, nº 1, al. a);
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação».

Analisadas as alegações, conclui-se que os Recorrentes especificaram os concretos pontos de facto que consideram incorretamente julgados, mas não deram integral cumprimento aos ónus impostos pelo artigo 640º, nº 1, al. b), e nº 2, al. a), do CPC, requisitos que condicionam a admissibilidade da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Isto porque, sob a epígrafe «Análise da prova constante dos autos», descreveram as «declarações de parte do autor AA», transcrevendo uma extensa parte das mesmas, alegaram o que no seu entender resulta do depoimento de parte da legal representante da Ré (sem indicar qualquer passagem da gravação), transcreveram vários excertos dos depoimentos das testemunhas (págs. 30 a 58), alegaram o que entendem ter resultado da inspeção judicial ao local (págs. 58 e 59) e descreveram os elementos probatórios juntos aos autos (págs. 60 e 61), após o que passaram a abordar o que denominaram de «IV- Da Parte Dispositiva da Sentença», ou seja, a alegar em matéria de direito, afirmando que «a sentença recorrida também fez errada interpretação e aplicação do direito».
Por conseguinte, os Recorrentes utilizaram uma metodologia que não obedece ao determinado no artigo 640º, nºs 1, al. b), e 2, al. a), do CPC. Deveriam ter indicado relativamente a cada ponto de facto que consideram incorretamente julgado os concretos meios probatórios que impunham uma decisão diversa da recorrida, sendo que quanto à prova gravada incumbia-lhes, «sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes».
Daí que só relativamente a alguns pontos de facto impugnados sejam percetíveis os concretos fundamentos do recurso. Relativamente a outros pontos de facto é elevada a dificuldade de esta Relação se pronunciar sobre uma impugnação que não segue a metodologia legalmente imposta, devido à concreta falta de relacionação de um concreto meio probatório com o ponto de facto em causa.
Não obstante, como somos avessos a decisões formais, iremos na medida do possível apurar se existe fundamento para a modificação da decisão da matéria de facto nos termos propugnados na conclusão 5ª.
Com vista a apreciar a impugnação, procedemos à análise dos articulados, requerimentos, documentos e actas (onde constam, com relevo, a assentada relativa ao depoimento de parte e as fotografias emergentes da inspeção judicial ao local) e à audição integral da gravação da audiência final, incluindo as alegações dos Srs. Advogados.
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2.2.1.1. Ponto 7 dos factos provados

O ponto referido em epígrafe tem o seguinte teor:
«7. O equipamento agrícola em causa de marca ..., Modelo ..., foi vendido ao 1º A. pelo 1º R. R... Unipessoal Lda., no estado de novo, com a garantia de bom funcionamento de pelo menos, o período de um ano, nos termos legais, atenta à ausência de estipulação, por acordo, de qualquer outro prazo.»
Os Recorrentes alegam, na conclusão 5ª, que «[n]enhuma prova foi produzida quanto à estipulação de um prazo convencional diferente do estipulado no artigo 5º, n.º 1 do DL n.º 67/2003, de 08.04, pelo que deve o mesmo ser considerado provado nos seguintes termos: O equipamento agrícola em causa de marca ..., Modelo ..., foi vendido ao 1º A. pelo 1º R. R... Unipessoal Lda., no estado de novo, com a garantia de bom funcionamento pelo período de dois anos, nos termos legais, atenta à ausência de estipulação, por acordo, de qualquer outro prazo

Assiste parcialmente razão aos Recorrentes.
O que consta deste ponto nº 7, a partir da expressão “novo”, é uma pura valoração jurídica, de natureza conclusiva e até desconforme, como veremos infra, com a norma jurídica aplicável, do facto de a Ré ter vendido ao 1º Autor um trator agrícola no estado de novo, sem se ter acordado qualquer prazo para a garantia de bom funcionamento.
Não há que confundir julgamento de facto com julgamento de direito, que são dois planos distintos. Pese embora se assista ao emergir de teses propugnando pela artificialidade da separação entre facto e direito, que é uma forma de tornar tudo nebuloso e indistinto, para nós facto é facto e direito é direito. De harmonia com o disposto no artigo 607º, nº 4, do CPC, quando «o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados», limita a sua apreciação a questões factuais e não opera uma valoração de direito, designadamente de outro facto já considerado provado, pois para isso existe a parte da decisão destinada aos fundamentos de direito, em que compete «indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes» (art. 607º, nº 3, do CPC).

Pelo exposto, decide-se alterar o ponto de facto nº 7, que passará a ter a seguinte redação:

7. O trator agrícola com a matrícula ..-ZA-.. foi vendido ao 1º Autor pela Ré R... no estado de novo.
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2.2.1.2. Ponto 11 dos factos provados
O Tribunal recorrido julgou provado que:
«11. No dia 09/03/2021, o autor deslocou-se com o tractor às instalações da ré, para realização de uma operação de revisão por conta de problemas nos travões, tendo dado origem à factura ...20, a qual foi paga pelo autor em 11/03/2021.»
Sustentam os Recorrentes que «[n]enhuma prova inequívoca foi produzida quanto a tal matéria de facto, pelo que este ponto deve ser dado como não provado».

Além de não cumprir o requisito de especificação imposto pelo artigo 640º, nºs 1, al. b), e 2, al. a), do CPC, o que só por si já seria motivo para «imediata rejeição do recurso na respetiva parte», a prova é abundante e credível sobre a realidade deste facto.
Para começar, o Autor AA, durante as suas declarações de parte, referiu que o trator foi levado para as instalações da Ré, onde se procedeu à sua reparação, tendo sido emitida a devida fatura, a qual acompanhou a petição inicial como documento nº ...0, e o valor por ela titulado mostra-se pago. Daí que não se alcance como é que poderia ser dado como não provado um facto que, na parte referida, até foi admitido pelo 2º Autor.
Depois, a fatura, que é anterior ao evento em causa nos autos (e por isso o seu conteúdo não foi influenciado pelo posterior dissídio patente nestes autos), é explícita sobre a reparação, a qual incidiu somente sobre o sistema de travagem. Mesmo que houvesse dúvidas, que não há, entre a subjetividade inerente a depoimentos de testemunhas ou de declarações de parte e o teor objetivo de um documento que não foi objeto de impugnação, sempre se justificaria dar mais credibilidade ao documento.
Finalmente, foi ouvido como testemunha – DD – o mecânico que materialmente efetuou a reparação e que descreveu em pormenor tudo o que respeitava à mesma, em conformidade com o que se deu como provado. Além disso, também as testemunhas EE e FF, enquanto trabalhadores da Ré com conhecimento dessa matéria, prestaram depoimentos conformes com a realidade do facto levado ao ponto nº 11.
Termos em que improcede a impugnação quanto a este ponto.
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2.2.1.3. Ponto 17 dos factos provados
Este ponto de facto tem o seguinte teor:
«17. O tractor com matrícula »ZA«, referido em 4) estava equipado com um sistema de corta-corrente, impeditivo da deflagração de qualquer incêndio.»

Alegam os Recorrentes que «[n]enhuma prova inequívoca foi produzida quanto a tal matéria, na parte em que refere “impeditivo de deflagração de qualquer incêndio”, pelo que o mesmo deve ser restringido nos seguintes termos: o trator com matrícula »ZA«, referido em 4) estava equipado com um sistema de corta-corrente.»
 
Revistos os meios de prova produzidos sobre esta matéria factual, concluímos que o Tribunal recorrido decidiu bem.
Na motivação das alegações, afirma-se que «as próprias testemunhas da Ré – designadamente FF, EE e DD – confirmaram que nenhum dos tratores que ardeu possuía o mecanismo de corte de corrente».
Esta afirmação é falsa no que respeita ao trator de matrícula ..-ZA-.. e só se compreende que tenha sido proferida por lapso.
As testemunhas FF, EE e DD afirmaram, repetida e inequivocamente, que o trator ..-ZA-.. possuía “corta-corrente”. Todas estas testemunhas, no exercício das suas profissões, lidam diretamente com tratores, especialmente da aludida marca e modelo.
Também não corresponde à verdade que a testemunha FF «acabou por referir ter tido conhecimento de ter ardido um trator recente, em ..., nas mesmas condições dos autos».
Com efeito, perguntado pela Exma. Mandatária dos Autores se «já teve uma situação idêntica em ...», respondeu: «Em ..., não me lembro, e o trator que ardeu [foi interrompida a resposta e, ao dizer o que ardeu, estava a aludir ao trator dos autos]».
A seguir, a inquirição prosseguiu nos seguintes termos:
Mandatária dos Autores: «Não se lembra?»
FF: «Em ..., não foi comigo…»
Mandatária dos Autores: «Mas ardeu um trator nas mesmas condições?»
FF: «Nem foi da mesma marca (…)».
Além disso, a testemunha afirmou várias vezes que em Portugal nunca ardeu um trator daquela marca e modelo (v. por exemplo, aos 17:00 minutos).
Por outro lado, as testemunhas FF, EE e DD afirmaram que o sistema de corta-corrente, desde que acionado, impede a deflagração de incêndio, naturalmente com origem no sistema elétrico do veículo. Utilizado o referido dispositivo, o trator fica sem energia elétrica, por ser “cortada” (desligada), em todos os seus mecanismos (não buzina, não acende as luzes, etc.), tudo factos que qualquer pessoa compreende em face das explicações detalhadas dadas pelas referidas testemunhas.
Mais, em lado algum FF, quando «questionado sobre o funcionamento do sistema de corta-corrente», «explicou que pese embora a existência desse sistema, pode existir corrente elétrica no trator, o que milita em sentido contrário ao facto dado como provado sob o ponto 17) quando refere “impeditivo da deflagração de qualquer incendio”.» A testemunha afirmou precisamente o contrário do que os Autores alegam: que estando acionado o corta-corrente «é impossível» o trator incendiar-se.
Portanto, afigura-se correta a fundamentação constante da motivação da decisão relativamente a este ponto: «(…) o Tribunal valorou os depoimentos das testemunhas FF, EE e DD, funcionários da ré, cujo depoimento foi valorado por terem deposto com conhecimento directo dos factos, de uma maneira congruente e objectiva, logrando convencer o Tribunal.»
Pelo exposto, improcede a impugnação da decisão quanto a este ponto.
*

2.2.1.4. Ponto 18 dos factos provados

Neste ponto o Tribunal a quo julgou provado:
«18. O autor AA foi avisado e esclarecido do sistema.»
Os Recorrentes alegam que «[n]enhuma prova inequívoca foi produzida quanto a tal matéria de facto, pelo que este ponto deve ser dado como não provado».
Na motivação das alegações, referindo-se ao depoimento da testemunha FF, fizeram constar:
«Pese embora tivesse afirmado que o Autor AA foi esclarecido quanto a existência do sistema de corta-corrente no trator ZA, não logrou este testemunha indicar cabalmente o Tribunal, de forma precisa ou perentória, e com a certeza que lhe era exigível atenta a sua qualidade de vendedor do equipamento, quem, por parte da empresa, terá procedido a esse dever de informação sobre o funcionamento desse sistema em especial, e do equipamento em geral, tendo o mesmo partido do pressuposto que o Autor era experiente na utilização de tratores agrícolas - por já ser possuidor de outro trator -, sem, no entanto, curar de indagar se, de facto, os tratores até então propriedade dos AA. possuíam ou não aquele mecanismo de corte de corrente e se os AA. sabiam utilizá-lo - sendo que tal obrigação de informação competia à Ré, o que milita em sentido contrário do decidido pelo Tribunal a quo no ponto 18) dos factos dados como provados.»
Os Recorrentes esqueceram-se de mencionar que a testemunha EE afirmou de forma inequívoca ter sido ele que, pessoal e diretamente, explicou o funcionamento do sistema de corte da corrente ao 1º Autor, designadamente como se liga e desliga e no que consiste. E não o afirmou apenas uma vez: consta da gravação do seu depoimento, pelo menos, aos 5:15, 5:34 («Isso fui eu») e 6:15.
E a própria testemunha FF, ao contrário do alegado pelos Recorrentes, afirmou que foi EE quem informou o Autor sobre o funcionamento do aludido sistema. Aliás, até a testemunha GG afirmou que o trator, aquando da venda, foi entregue pelo EE, o qual explicou o funcionamento.
Assim, por não se verificar erro de julgamento, improcede a impugnação sobre o ponto nº 18 dos factos provados.
*

2.2.1.5. Ponto 19 dos factos provados

Este ponto de facto tem o seguinte teor:
«19. No interior do armazém onde se encontravam armazenados os tractores e as alfaias, encontravam-se ainda:
a. um bidão de gasóleo de, pelo menos, 500L, sem qualquer acondicionamento;
b. uma caldeira eléctrica de 1000L;
c. um sistema de fios elétricos do próprio armazém soltos, sem acondicionamento algum.»
Na conclusão 5ª das suas alegações, os Recorrentes alegam que «[n]enhuma prova foi produzida quanto à matéria do facto constante deste ponto, pelo que o mesmo deve ser dado como não provado
Ao contrário do alegado, quase todas as pessoas ouvidas durante a audiência final se pronunciaram sobre o que havia no armazém (que de armazém tem pouco, pois é um mero barracão – como bem o qualificou o 2º Autor cerca dos 14:50 minutos da gravação das suas declarações – que na parte da frente nem sequer é fechado). Somente a legal representante da Ré não foi ouvida sobre essa matéria. Além disso, estão juntas aos autos várias fotografias que permitem observar o que se encontrava no interior do “armazém”. Por isso, não é caso para se dizer que “nenhuma prova foi produzida”; se da prova produzida resulta o que se deu como provado neste ponto de facto, ou seja, aquele concreto resultado probatório, já é uma questão diferente.
Reapreciada toda a prova produzida, verifica-se existir um erro manifesto do Tribunal recorrido quando dá como provado que no interior do armazém existia «uma caldeira eléctrica de 1000L». Não só não se podia dar como provada a existência de tal caldeira, como até nos parece resultar evidente a prova do contrário: que não existia qualquer caldeira no interior do anexo[2].
Nenhuma pessoa ouvida durante a audiência final afirmou a existência da caldeira e nas fotografias não se observa qualquer rasto ou evidência da mesma. Também dificilmente se perceberia a razão de ser de uma caldeira elétrica, e logo de mil litros, num barracão situado a cerca de cem metros da casa de habitação dos Autores, num contexto rural. Qual o sentido de ter ali uma caldeira elétrica com tal capacidade? Para quê? A resposta parece-nos óbvia.
Para concluir que existia «um bidão de gasóleo de, pelo menos, 500L» e «um sistema de fios elétricos do próprio armazém soltos» basta olhar para as fotografias juntas aos autos, onde se observam os fios do sistema elétrico e o bidão. A dúvida é somente se a referida vasilha é de quinhentos ou de mil litros, pois algumas pessoas ouvidas afirmaram que tinha capacidade para quinhentos litros, enquanto outras afirmaram que era de mil litros. Daí que o Tribunal recorrido tenha corretamente expressado que era de pelo menos quinhentos litros.
Também nenhuma reserva nos merece o juízo formulado pelo Tribunal a quo relativamente à falta de acondicionamento tanto do bidão de gasóleo como dos fios elétricos, o que tem suporte nos depoimentos das testemunhas FF e EE (ambos visitaram o armazém no dia em que ocorreu o incêndio e puderam observar o que se deu como provado), bem como nas fotografias juntas aos autos. Apenas nos parece que devem ser retiradas, por desnecessárias (o que releva é se tinham ou não “acondicionamento” e não mais do que isso), as expressões “qualquer” e “algum”.

Assim, na parcial procedência da impugnação, a redação do ponto nº 19 passa a ser a seguinte:

19. No interior do armazém onde estavam recolhidos os tratores e as alfaias, encontravam-se ainda:
a) um bidão de gasóleo de, pelo menos, 500 litros, sem acondicionamento;
b) um sistema de fios elétricos do próprio armazém, soltos e sem acondicionamento.
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2.2.1.6. Ponto 23 dos factos não provados

Consta deste ponto o seguinte:
«23. Que poucos meses após a venda, o tractor de matrícula »ZA« tenha começado a apresentar problemas no sistema eléctrico.»
Os Recorrentes não indicaram, relativamente a este ponto de facto, os concretos meios probatórios que impunham uma decisão diversa da recorrida. Muito menos especificaram qualquer concreta passagem da gravação para fundar o seu recurso. Portanto, não cumpriram o ónus de especificação resultante do disposto no artigo 640º, nºs 1, al. b), e 2, al. a), do CPC, o que tem como consequência a «imediata rejeição do recurso na respetiva parte».
Por outro lado, não há qualquer suporte probatório que permita dar como provado o ponto nº 23. Tendo o trator sido vendido no dia 12 de julho de 2019, ninguém afirmou que em qualquer mês desse ano, ou sequer do ano seguinte, o veículo apresentou «problemas no sistema eléctrico» e muito menos no que consistiram e como foram resolvidos. Aliás, “poucos meses após a venda” é uma formulação muito pouco especifica sobre uma deficiência não concretizada do sistema elétrico.
A única pessoa que aludiu a esse género de “problemas” foi o 2º Autor nas suas declarações de parte, mas referindo-se a uma especifica situação, que é a ocorrida em 09.03.2021, o que já não é «poucos meses após a venda», mas sim cerca de vinte meses após a venda.
Daí a improcedência da impugnação relativamente a este ponto de facto não provado.
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2.2.1.7. Pontos 24 e 25 dos factos não provados

O Tribunal recorrido julgou não provado que:
«24. Que a deslocação à oficina da ré, no dia 09/03/2021, tenha sido por motivos de avaria no sistema eléctrico, para a ré proceder à sua reparação, ao abrigo do direito de garantia que lhe assistia.
25. Que a ré tenha aproveitado para fazer uma revisão ao estado geral do veículo, com substituição de peças de desgaste natural
Os Recorrentes pretendem que estes dois pontos de facto sejam considerados provados, mas não detetamos qualquer erro de julgamento por parte do Sr. Juiz a quo.
Tem inteira correspondência na prova produzida o resultado probatório expresso na decisão recorrida, na parte que se julgaram não provados tais factos com «fundamento nos depoimentos das testemunhas FF, EE e DD, funcionários da ré, os quais confirmaram a deslocação do tractor às suas oficinas mas negando a existência de quaisquer problemas no sistema eléctrico ou de intervenção no mesmo; a reforçar a credibilidade dos seus depoimentos, temos a factura junta como doc 10 da p.i, a qual não refere qualquer operação de manutenção no sistema eléctrico, afigurando-se, no mínimo, bizarro que não tenham intervencionado precisamente o alegado motivo justificativo da deslocação com o tractor à oficina; por seu turno, o Tribunal desvalorizou o depoimento do autor AA, o qual referiu a existência de problemas na parte elétrica que não soube especificar, na medida em que toda a remanescente produção probatória aponta a que o seu depoimento não mereça qualquer credibilidade porquanto é vago, não tem qualquer suporte documental e foi contraditado por outras testemunhas com conhecimento directo dos factos.»
Pelo exposto, improcede a impugnação quanto a estes dois pontos dos factos não provados.
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2.2.1.8. Ponto 26 dos factos não provados e aditamento de 2 novos factos

Os Recorrentes pretendem que sejam julgados provados os seguintes factos:

- O incêndio referido em 12) teve a sua origem numa avaria da parte elétrica do trator com matrícula »ZA«;
- «a) No dia 12/03/2021, o trator com a matrícula ..-ZA-.. começou a arder, provocando um incêndio no interior do anexo, que por sua vez se propagou a tudo à sua volta»;
- «b) No dia do incêndio, o 1º A. interpelou a Ré R... para lhe dar conhecimento do incêndio e denunciar a existência de defeitos no trator com a matrícula ..-ZA-..».

Revistos os meios de prova produzidos, concluímos inexistir fundamento substancial e inequívoco para alterar a decisão recorrida nos termos preconizados pelos Recorrentes.
Sabe-se que ocorreu um incêndio no anexo onde estavam recolhidos os dois tratores e as alfaias agrícolas, o qual afetou esses equipamentos e ainda o bidão de gasóleo e o sistema de fios elétricos do dito anexo. Tudo o mais, no que respeita às causas do incêndio, não resultou concretamente demonstrado.
Além de nenhuma pessoa ter presenciado a deflagração do fogo[3], ninguém consegue, em sã consciência, afirmar, sem sombra de dúvida, qual a causa do incêndio, designadamente onde deflagrou. Repare-se que isso não pode ser apurado pelo simples facto de um objeto gerar mais ou menos fumo ou de, ao queimar, produzir mais ou menos energia (calor). O facto de um objeto ao ser queimado produzir mais fumo ou energia não significa necessariamente que o incêndio se iniciou por esse objeto.
Tendo ardido quase tudo (ou seja, os produtos ou componentes suscetíveis de serem queimados pelo fogo, como é o caso do plástico, da borracha ou do combustível), não é possível a leigos determinar sem margem para dúvidas o que causou o incêndio. Uma coisa é especular ou opinar sobre o evento e as respetivas causas e outra, completamente diferente, é poder dar-se como assente, com o elevado grau de segurança sempre exigível a uma decisão judicial, a causa de um incêndio. Uma decisão judicial não se pode alicerçar num mero exercício especulativo, designadamente com base numa “avaria elétrica” de que não há evidência material.
A realidade é que as testemunhas e o 2º Autor se limitaram a emitir uma opinião sobre o que provocou o incêndio, o que é diferente de ter presenciado o deflagrar do fogo ou de apresentar um fundamento sólido e inequívoco sobre a causa do incêndio. Ver as chamas e os seus efeitos é uma realidade distinta de saber o que provocou o incêndio.
Depois, tendo o trator ZA um sistema de corte da corrente elétrica (isso resulta inequívoco dos depoimentos das testemunhas FF, EE e DD, e o próprio 2º Autor o afirmou durante as suas declarações), se o mesmo estivesse acionado, era impossível ocorrer um incêndio em consequência de uma avaria no sistema elétrico do dito veículo. Tal sistema existe precisamente para evitar a ocorrência de incêndios.
Também nenhuma prova foi produzida no sentido de que o sistema de corte da corrente elétrica não estava acionado, sendo que o normal, para quem recolhe um trator junto a um bidão com quinhentos litros de gasóleo, seria ligar tal sistema para evitar qualquer evento da natureza daquele que se veio a verificar. Era isso que faria uma pessoa minimamente diligente, sobretudo depois de ter executado um trabalho com o trator (situação que o 2º Autor afirmou durante as suas declarações – o veículo foi utilizado depois da reparação ocorrida no dia 09.03.2021). Mesmo que resultasse da prova produzida que o sistema de “corta-corrente” não tinha sido acionado e que a deflagração ocorrera no trator, a origem do incêndio seria inteiramente imputável ao demandante, na medida em que foi dado conhecimento ao 1º Autor da existência do sistema e do seu funcionamento.
Em suma, não existe qualquer elemento seguro e inequívoco que permita afirmar que ocorreu uma avaria da parte elétrica do trator ZA (muito menos que tipo de avaria foi essa e em que componente do veículo se registou) e, através de presunção judicial, que foi essa avaria que fez deflagrar o incêndio.
Finalmente, relativamente ao facto identificado sob a alínea b) na conclusão 5ª, para além de irrelevante para a decisão da causa, verifica-se que os Recorrentes não especificam os meios de prova que fundam o recurso sobre tal matéria. Todavia, não resulta da prova produzida a ocorrência de qualquer “interpelação” formal e denúncia “de defeitos no trator” por parte do 1º Autor. Tanto o 2º Autor como a testemunha FF referiram que foi o 2º Autor que telefonou para a testemunha EE e que a subsequente conversação foi mantida com o 2º Autor. Por outro lado, sendo certo que a própria formulação do alegado na petição inicial, ao aludir genericamente a “defeitos”, era imprecisa, também não resulta da prova produzida que concreto defeito foi “denunciado” no dia 12.03.2021.

Termos em que se julga improcedente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto no que concerne ao ponto 26 dos factos não provados e aos dois factos que na conclusão 5ª das alegações se pretendiam ver aditados aos factos provados.
*

2.2.1.9. Matéria de facto estabilizada

Em consequência do decidido anteriormente, a matéria de facto provada é a seguinte:

«1. O 1º autor encontra-se reformado, praticando uma agricultura de subsistência nos terrenos agrícolas de que é proprietário para ocupar os seus tempos livres.
2. A Ré R... - Venda e Reparação de Máquinas Agrícolas Unipessoal Lda. é uma empresa que se dedica ao comércio por grosso, manutenção e reparação de máquinas, veículos e equipamentos agrícolas.
3. A ré tem a sua sede e estabelecimento comercial instalados na Rua ..., na localidade de ..., ..., onde procedeu à colocação à venda do referido equipamento agrícola
4. No dia 12 de julho de 2019, o 1º autor adquiriu por compra à ré R... Unipessoal Lda., que lho vendeu no âmbito da actividade comercial por si exercida, no estabelecimento desta, sito no lugar ..., ..., ..., um trator agrícola de marca ..., Modelo ..., matrícula ..-ZA-.., pelo preço global de €29.000,00.
5. Para pagamento do preço ajustado, o 1º autor entregou à ré um trator usado, a que foi atribuído o valor de €12.000,00, e contraiu um empréstimo pessoal, na instituição financeira ..., pelo valor remanescente, no montante de €17.000,00.
6. O 1º autor pagou à ré R... Unipessoal, Lda., o respectivo preço, nos moldes supra descritos e este fez-lhe a entrega do referido trator que o 1º autor, dessa forma, fez seu.
7. O trator agrícola com a matrícula ..-ZA-.. foi vendido ao 1º Autor pela Ré R... no estado de novo.
8. O tractor referido em 4) foi adquirido com o propósito único de ser usado no cultivo dos seus prédios rústicos, onde desenvolve uma agricultura de subsistência, desde que se encontra reformado, sem qualquer benefício ou contrapartida económica directa para o autor.
9. O 2º e 3º autores são proprietários e o 1º réu é usufrutuário do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana da freguesia ... sob o artigo ...67, não descrito na Conservatória de Registo Predial ....
10. Ao lado do prédio referido em 9) existe um anexo onde se encontravam armazenadas:
a. Diversas alfaias e equipamentos agrícolas;
b. O tractor de matrícula »ZA« referido em 4);
c. O tractor de marca ..., modelo ...6, matrícula PG-..-.., do ano de 1988;
11. No dia 09/03/2021, o autor deslocou-se com o tractor às instalações da ré, para realização de uma operação de revisão por conta de problemas nos travões, tendo dado origem à factura ...20, a qual foi paga pelo autor em 11/03/2021.
12. No dia 12/03/2021, por volta das 07h00, no interior do anexo agrícola referido em 10), ocorreu um incêndio que propagou, queimando tudo à sua volta.
13. As chamas consumiram e destruíram, por completo, os tractores de matrícula »ZA« e »PG«.
14. As chamas consumiram e destruíram, por completo, as alfaias agrícolas, no valor de €1500,00.
15. As chamas provocaram danos avultados no anexo onde os tractores e as alfaias se encontravam armazenadas, provocando prejuízos no valor de €10.571,40.
16. Os tractores tinham o seguinte valor de mercado:
a. matrícula »PG«: valor de mercado de €2500,00.
b. matrícula »ZA«: valor de mercado de €25.000,00.
17. O tractor com matrícula »ZA«, referido em 4) estava equipado com um sistema de corta-corrente, impeditivo da deflagração de qualquer incêndio.
18. O autor AA foi avisado e esclarecido do sistema.
19. No interior do armazém onde estavam recolhidos os tratores e as alfaias, encontravam-se ainda:
a) um bidão de gasóleo de, pelo menos, 500 litros, sem acondicionamento;
b) um sistema de fios elétricos do próprio armazém, soltos e sem acondicionamento.
20. Após o incêndio referido em 12), a ré emprestou ao 1º autor um trator com a matrícula ..-MR-.., desde o dia .../.../2023 até ao dia 10 de maio de 2021, data em que o funcionário da ré procedeu ao seu levantamento no domicílio do 1º autor.
21. O 1º autor sofreu desgosto devido ao prejuízo causado no anexo e no outro tractor, propriedade do 2º autor.»
**
2.2.2. Reapreciação de Direito
2.2.2.1. Da ação

Os Autores interpuseram recurso de apelação da sentença, pretendendo a sua revogação e, em decorrência, que a ação seja julgada procedente.
O quadro factual relevante com vista à subsunção jurídica é essencialmente o mesmo que serviu de base à prolação da sentença recorrida, uma vez que a modificação parcial dos pontos nºs 7 e 19 dos factos provados é irrelevante para a solução jurídica.
No nosso entender, a eventual alteração da solução jurídica alcançada na decisão impugnada, quanto à defendida improcedência da ação, dependia da modificação da matéria de facto nos integrais termos  preconizados pelos Recorrentes, o que não sucedeu, pelo que se considera necessariamente prejudicado o conhecimento do pedido de alteração do decidido naquela decisão, objeto do recurso interposto pelos Autores, nos termos do artigo 608º, nº 2, do CPC ex vi do artigo 663º, nº 2, in fine, do mesmo diploma.
No entanto, importa fazer uma precisão quanto ao regime jurídico, uma vez que os Recorrentes salientaram no recurso, e bem, a contradição decorrente de no ponto nº 7 se ter feito constar, completamente a despropósito, que ao caso dos autos era aplicável a garantia de bom funcionamento pelo «período de um ano, nos termos legais, atenta à ausência de estipulação, por acordo, de qualquer outro prazo», enquanto em sede de direito se indicou que tal prazo, no que respeita aos bens móveis, é de dois anos.
É perfeitamente pacífico, nesta fase processual, que entre as partes foi celebrado um contrato de compra e venda (v. artigo 874º do CCiv.) e que o trator agrícola com a matrícula ..-ZA-.. foi vendido pela Ré, no exercício da sua atividade comercial (v. ponto 4 dos factos provados), ao 1º Autor, que o adquiriu com o propósito único de lhe dar um uso não profissional (v. ponto 8). Portanto, estamos perante um contrato de compra e venda de consumo, em conformidade com o disposto nos artigos 1º-A, nº 1, e 1º-B do Decreto-Lei nº 67/2003, de 08 de abril, na versão aplicável ao caso dos autos, que é a decorrente do Decreto-Lei nº 84/2008, de 21 de maio.
Com efeito, nos termos do seu artigo 1º-A, nº 1, o regime estabelecido no Decreto-Lei nº 67/2003 «é aplicável aos contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores», incluindo bens móveis e imóveis, novos e usados (v. al. b) do artigo 1º-B).
Segundo o artigo 1º-B, als. a) e c), do Decreto-Lei nº 67/2003, de 08 de abril[4], considera-se «“consumidor” aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios, nos termos do nº 1 do artigo 2º da Lei nº 24/96, de 31 de Julho», e «“vendedor”» qualquer pessoa singular ou colectiva que, ao abrigo de um contrato, vende bens de consumo no âmbito da sua actividade profissional».
De harmonia com as aludidas definições, o 1º Autor adquiriu o trator como consumidor, uma vez que o destinou a uso não profissional, enquanto a Ré transmitiu-lhe o direito de propriedade no âmbito do exercício com carácter profissional de uma atividade económica que visa a obtenção de benefícios. Por conseguinte, é inequivocamente um contrato de compra e venda celebrado entre um consumidor e uma profissional, portanto, uma relação de consumo.
Estabelece o artigo 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de abril, que «o vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda». Adotou-se assim a noção de conformidade, a qual tem a vantagem de abranger todas as situações que, se não fosse o mencionado diploma, teriam um tratamento diverso, como é o caso do vício ou defeito, da falta de qualidade do bem, da diferença de identidade e da diferença de quantidade. Em todas essas situações o regime é uniforme, relativo ao não cumprimento da obrigação.
A conformidade é apurada através da comparação entre a prestação estipulada no contrato e a prestação efetuada, mas o legislador consagrou várias referências a partir das quais se afere a conformidade com um contrato.

Assim, nos termos do nº 2 do artigo 2º, considera-se que os bens de consumo são desconformes com o contrato se se verificar algum dos seguintes factos:

«a) Não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo;
b) Não serem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado;
c) Não serem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo;
d) Não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem».

No artigo 3º estabelecem-se duas regras normativas muito relevantes. No nº 1 determina-se que «o vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue», daí emergindo que o momento relevante para apurar se o bem se encontra em conformidade com o contrato é o da entrega. No nº 2 prevê-se a presunção de anterioridade da falta de conformidade, reportada à data de entrega do bem: «as faltas de conformidade que se manifestem num prazo de dois ou de cinco anos a contar da data de entrega de coisa móvel corpórea ou de coisa imóvel, respetivamente, presumem-se existentes já nessa data, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade».
Portanto, em consonância com o disposto nos artigos 2º, nºs 1 e 2, e 3º, nº 2, o consumidor apenas tem de provar a celebração do contrato e a falta de conformidade, pois, em virtude da presunção, não necessita provar que essa desconformidade já se verificava no momento da entrega do bem.
Daí que recaia sobre o vendedor o ónus de ilidir a presunção, provando que a falta de conformidade não existia no momento da entrega, devendo-se a facto posterior que não lhe seja imputável, como é o caso do uso incorreto do bem pelo consumidor[5]. Como se decidiu no acórdão de 04.06.2015 do Tribunal de Justiça da União Europeia, «o consumidor não está obrigado a provar a causa dessa falta de conformidade nem que a origem da mesma é imputável ao devedor» e a responsabilidade «só pode ser excluída se o vendedor demonstrar cabalmente que a causa ou a origem da referida falta de conformidade reside numa circunstância ocorrida depois da entrega do bem».
Embora tratada como inexistência de falta de conformidade, também recai sobre o vendedor, nos termos do nº 3 do artigo 2º, o ónus de demonstrar que a falta de conformidade era do conhecimento do consumidor ou que não podia «razoavelmente ignorá-la ou se esta decorrer dos materiais fornecidos pelo consumidor». Também recai sobre o profissional a prova de que os defeitos traduzem o desgaste normal do bem (tal como relativamente a todas as desconformidades que resultem de factos posteriores não imputáveis ao vendedor).
Em decorrência da presunção estabelecida no artigo 3º, nº 2, o vendedor responde por qualquer desconformidade que se manifeste no prazo de dois anos a contar da data da entrega, no caso de bem móvel. O artigo 5º, nº 1, indica que os direitos de reparação do bem, substituição do bem, redução do preço e resolução do contrato (direitos esses especificados no art. 4º, nº 1) só podem ser exercidos, no caso de bem móvel, no prazo de dois anos a contar da entrega do bem, equiparando assim o prazo de garantia legal de conformidade ao da presunção da anterioridade dos defeitos. Tal prazo de garantia só pode ser reduzido a um ano, por acordo das partes, tratando-se de «coisa móvel usada» (art. 5º, nº 2).
Portanto, no caso vertente, como o trator foi vendido no estado de novo, o prazo de garantia nunca poderia ser reduzido a um ano por acordo das partes.
Por isso, além de se ter feito constar matéria de direito num ponto que deveria conter apenas um substrato factual, errou-se, aí, na determinação do direito aplicável quando se exarou que o trator, apesar de se apresentar «no estado de novo», foi vendido «com a garantia de bom funcionamento de pelo menos, o período de um ano, nos termos legais, atenta à ausência de estipulação, por acordo, de qualquer outro prazo».
O aludido prazo de garantia é, isso sim, de dois anos a contar da entrega do trator.
Assim sendo, no caso dos autos, o 1º Autor, enquanto consumidor que pretendia exercer um dos direitos previstos na lei, apenas tinha que provar uma falta de conformidade do bem móvel que lhe foi vendido pela Ré manifestada dentro do prazo de dois anos a contar de 12.07.2019.
Sucede que os Autores não lograram provar a existência de qualquer desconformidade do bem com o contrato, designadamente, a ocorrência de uma avaria elétrica no trator. Também nenhum nexo causal se mostra estabelecido entre essa suposta avaria elétrica e o incêndio.
Não tendo sido demonstrada a manifestação de uma falta de conformidade, não assiste ao 1º Autor qualquer dos direitos do consumidor previstos no artigo 4º, nº 1. Assente a não demonstração de que o incêndio decorreu de um facto imputável à Ré, improcedem todos os pedidos formulados com base nesse evento.
Por isso, nenhuma crítica merece a conclusão do Tribunal recorrido sobre o fenecimento das pretensões dos Autores, seja as deduzidas a título principal como as de carácter subsidiário.
Termos em que improcede a apelação.
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2.2.2.2. Da litigância de má-fé

Os Recorrentes propugnam pela revogação da decisão que os condenou como litigantes de má-fé, em multa e «em indemnização à parte contrária, a fixar em liquidação de sentença», por entenderem que inexiste fundamento para tal condenação.
Vejamos se procede tal alegação.
O artigo 20º da Constituição da República Portuguesa garante a todos o acesso ao direito e à tutela judicial efetiva. Em contraposição, tem de haver limites à forma como se exercem os direitos de ação e de defesa no âmbito do processo civil ou nos outros ramos de direito adjetivo. Nem tudo pode ser tolerado no processo, pois o exercício de um direito deve ser compatibilizado com os direitos dos outros.
No que respeita ao processo civil, toda e qualquer intervenção das partes no processo deve obedecer ao ditame imposto no artigo 8º do CPC: «as partes devem agir de boa-fé e observar os deveres de cooperação» previstos no artigo 7º daquele código, tendo em vista a obtenção, com brevidade e eficácia, da justa composição do litígio.
Para assegurar o aludido desiderato e um correto uso dos direitos processuais surge, a par de outros[6], o instituto da litigância de má-fé.
Partindo de um fundamento ético que deve presidir à exercitação dos direitos, a litigância de má-fé tem subjacente o interesse público na correta administração da justiça, pois a atuação abusiva dos direitos processuais, traduzida na instrumentalização do direito processual, é suscetível de retardar a realização da justiça, de afetar a eficácia da intervenção judicial ou, em casos mais graves, de prejudicar até a justa composição do litígio.
 Portanto, estamos perante um instituto processual, de tipo público e que visa o imediato policiamento do processo[7].
É possível descortinar no seu recorte normativo uma vertente sancionatória (v. o artigo 542º, nº 1, do CPC e o artigo 27º, nº 3, do Regulamento das Custas Processuais) e outra tendencialmente indemnizatória ou reparadora (v. artigo 543º do CPC).

Nos termos do nº 2 do artigo 542º do CPC, litiga de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
«a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão».

Na decisão recorrida, o Tribunal a quo considerou que os Autores litigaram de má-fé, com base na seguinte argumentação:

«Perante os factos, o Tribunal pode concluir pela má-fé dos autores, nos termos previstos no art 542º, n.º 2, al.a) e b) do Cód de Proc Civil.
Em primeiro lugar, o Tribunal não pôde deixar de achar estranho que os autores tenham sempre omitido o facto de o tractor que lhe foi vendido se encontrar equipado com um sistema de corta-corrente, o que impediria a deflagração de qualquer incêndio com origem no veículo. A ter tido origem no veículo, o incêndio apenas seria possível por culpa do próprio lesado, por não ter cumprido com as medidas de segurança e accionado o sistema de corta-corrente.
Em segundo lugar, o Tribunal continua a achar mais estranho ainda que os autores tenham igualmente omitido, nas suas alegações, a existência de um depósito de pelo menos 500L de gasóleo no mesmo anexo onde o tractor objecto do contrato de compra e venda se encontrava armazenado. Trata-se, a nosso ver, da omissão de factos extremamente relevantes para a decisão da causa.
Termos em que o Tribunal considera que se encontram preenchidas as hipóteses previstas no art 542º, n.º 2, al.a) e b) do Cód de Proc Civil, tendo os autores litigado de má-fé.
Em terceiro lugar, o Tribunal considera justa e adequada a aplicação de uma multa de 4UC a título de litigância de má-fé (art 542º, n.º 1 do Cód de Proc Civil); no que diz respeito ao teor da indemnização, na medida em que os autos não permitem fixar a mesma, relega-se para execução de sentença (art 543º, n.º 1 e n.º 3 do Cód de Proc Civil).»

Os Recorrentes contrapõem que «não violaram nenhum dos mais elementares deveres de cooperação e de boa-fé que devem pautar a atuação das partes», que «não se verificam nenhum dos pressupostos da condenação dos apelantes no pagamento de multa e de uma indemnização à recorrida» e que, «à luz dos concretos factos apurados, não é possível formular um juízo de censura sobre o comportamento dos AA. que se revele desconforme com um processo justo e leal, que constitui uma emanação do princípio do Estado de Direito».

Analisada a situação, concluímos não assistir razão aos Recorrentes.
No artigo 12º da contestação a Ré R... alegou o seguinte:
«Bem sabendo, o primeiro autor, que o identificado trator encontrava-se munido de um SISTEMA DE CORTA CORRENTE, o qual devidamente acionado mostrava-se desde logo impeditivo da deflagração de qualquer incêndio, nomeadamente o descrito nos autos».

Os Autores, ao exercerem o contraditório sobre essa matéria, alegaram no artigo 20º:
«Impugnam-se assim, os despropositados, descabidos, falsos e inventados pretensos factos vertidos nos artigos 7º a 15º da douta Contestação e ainda, por idêntica razão tudo o vertido de 16º a 20º do mesmo articulado

No artigo 25º alegaram:
«Mais se impugnam os factos vertidos nos artigos 11º, 12º e 13º da contestação, porquanto, quanto ao efeito e prova que com ele a 1ª Ré pretende fazer, por o mesmo não ter a virtualidade de provar aquilo que a Ré pretende provar.»

Por sua vez, no artigo 29º foi alegado:
«Nem lhe tendo, igualmente, sido explicado o funcionamento de qualquer de sistema de corta-corrente de que o trator em causa estivesse equipado».
Por conseguinte, em momento algum admitiram que o trator vendido estava equipado com sistema de corta-corrente. E acrescentaram que caso o «trator em causa estivesse equipado» com tal sistema, não foi explicado ao 1º Autor o seu funcionamento.
Ora, isto é rigorosamente falso.

Com efeito, demonstrou-se que:
«17. O tractor com matrícula »ZA«, referido em 4) estava equipado com um sistema de corta-corrente, impeditivo da deflagração de qualquer incêndio.
18. O autor AA foi avisado e esclarecido do sistema.»
Não só o trator de matrícula ..-ZA-.. «estava equipado com um sistema de corta-corrente, impeditivo da deflagração de qualquer incêndio», como o 1º Autor «foi avisado e esclarecido do sistema.»
Por isso, bem andou o Tribunal ao considerar que os Autores litigaram de má-fé por se encontrarem preenchidas as hipóteses previstas no artigo 542º, nº 2, als. a) e b), do CPC.

Acresce que na contestação a Ré R... também alegou no artigo 19º:
«Pelo que foi possível ver no armazém do primeiro autor, onde o incendio deflagrou, encontrava-se outro trator PG-..-.., um bidon de gasóleo de 1000 litros, sem qualquer acondicionamento, uma caldeira elétrica de 1000 litros e um sistema de fios elétricos do próprio armazém soltos, sem acondicionamento algum.»
Como já se referiu supra, ao exercerem o contraditório sobre essa matéria, alegaram no artigo 20º:
«Impugnam-se assim, os despropositados, descabidos, falsos e inventados pretensos factos vertidos nos artigos 7º a 15º da douta Contestação e ainda, por idêntica razão tudo o vertido de 16º a 20º do mesmo articulado
Portanto, para os Autores «tudo o vertido» no artigo 19º da petição inicial era despropositado, descabido, falso e inventado, inclusivamente a existência de «um bidon de gasóleo».
Porém, está demonstrado que existia no armazém o referido bidão com gasóleo, pelo que os Autores consideraram falso e inventado um facto inequivocamente real e do qual, pelo menos, os dois primeiros Autores tinham conhecimento pessoal.
Também esta conduta preenche a hipótese prevista no artigo 542º, nº 2, al. b), do CPC.

Nesta conformidade, o comportamento processual dos Autores, consubstancia litigância de má-fé, pelo que estavam reunidos os pressupostos da sua condenação, em multa e indemnização, como bem concluiu o Tribunal recorrido.
Por isso, também relativamente à questão da litigância de má-fé improcede a apelação.
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III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas a suportar pelos Recorrentes.
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Guimarães, 20.04.2023

(Acórdão assinado digitalmente)
Joaquim Boavida
Paulo Reis
Maria Luísa Duarte Ramos


[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, 2018, págs. 168 e 169.
[2] O que existia no barracão/anexo, conforme esclareceu a testemunha HH, era uma bomba elétrica para extrair o gasóleo do bidão e abastecer os tratores. Tal “bomba elétrica” (o 2º Autor, de forma imprópria, referiu-se por diversas vezes ao “bombo”) terá sido confundida com um objeto totalmente diferente, que é uma “caldeira elétrica de mil litros”.
[3] O Sr. Juiz a quo refere na motivação da decisão, com inteira pertinência, «que apesar de existirem testemunhas com conhecimento directo dos factos quanto à ocorrência do incêndio, rigorosamente nenhuma assistiu à sua deflagração; com efeito, quer o autor AA, nas suas declarações de parte, quer as testemunhas II, AA, JJ e FF, quer na a participação policial junta como doc 8 da p.i coincidiram em que os depoentes assistiram ao incêndio, tendo-se deslocado ao local mas não à sua deflagração; por outras palavras, viram as chamas, os seus efeitos mas não o que as provocou, o que obriga o Tribunal a um trabalho de indução».
[4] Pertencem ao Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de abril, as disposições que se citarem de ora em diante sem indicação da respetiva proveniência.
[5] Jorge Morais de Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 5ª edição, Almedina, pág. 310.
[6] V.g., o abuso do direito de ação.
[7] António Menezes Cordeiro, Litigância de Má-Fé, Abuso do direito de acção e Culpa “In Agendo”, Almedina, pág. 28.