Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3888/17.2T8GMR.G1
Relator: ALCIDES RODRIGUES
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SOBRESSEGURO
VALOR REAL
VALOR EM NOVO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/26/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Inexistindo qualquer situação de subseguro – pois que o valor seguro corresponde ao do preço pago pela aquisição da máquina segurada, em 2ª mão –, nem se estando perante um denominado seguro de valor em novo (valor de substituição), mas de seguro pelo valor real do bem e correspondente, nos termos legais, ao da efetiva responsabilidade e risco da seguradora, não é aceitável que na fixação do montante indemnizatório esta pretenda recorrer à regra da proporcionalidade tendo por referência o valor da substituição em novo da máquina objeto do seguro.

II – Tratando-se de uma máquina usada e considerando que não ocorreu qualquer renovação do contrato, nem nenhuma desvalorização da máquina segurada usada no escasso período em que o seguro vigorou antes do sinistro, é de aceitar que o preço que a segurada pagou pela sua aquisição e que corresponde ao valor efetivamente seguro equivalerá ao valor de substituição deduzido da correspondente desvalorização pelo uso.

III – Caso o valor seguro fosse o da substituição em novo da máquina estar-se-ia perante uma situação de sobresseguro em que, se aquele não fosse reduzido ao valor do bem segurado, a seguradora se locupletaria com prémios superiores e não correspondentes aos limites do seu risco e da sua responsabilidade.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

SC & AR Lda. intentou, no Juízo Central Cível de Guimarães - Juiz 2 - do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra X, Companhia de Seguros S.A., pedindo a condenação da ré no pagamento à autora dos seguintes montantes:

- € 70.000,00 a título de indemnização do veículo;
- € 2.500,00 pelo transporte da máquina;
- 42.500,00 pela privação da utilização da máquina.

Acrescem a esses valores os juros de mora desde a citação à taxa legal até ao seu pagamento integral e efetivo.

Para o efeito e em síntese, alegou a autora que, em 11 de dez de 2013, comprou um auto carregador usado pelo valor de 70 mil euros e, em janeiro de 2014, transferiu para a R., por contrato de seguro, titulado através da apólice n.º …, a responsabilidade por perdas e danos materiais; greves, tumulto e alteração ordem pública e avarias internas, para além da responsabilidade civil extracontratual, estendendo-se a responsabilidade da ré nos termos acordados a território Espanhol.

No dia 09/07/2014, no monte de S. Martinho na Comunidade de Montes de Santa Marina, em Espanha, o referido equipamento incendiou-se “devido a curto-circuito ocorrido num condutor elétrico do equipamento sinistrado na zona das baterias” e ardeu completamente.

A ocorrência tem enquadramento nas garantias da apólice nos termos do n.º 2 da Condição Especial 06 – Avarias Internas” e cujo capital seguro foi de € 70.000,00, sendo de deduzir a franquia de 10% do prejuízo (neste caso, € 70.000,00 x 10% = €7.000,00).

A A. para remover a máquina do local para as suas instalações gastou ainda o valor de € 2.500,00.

Tendo reclamado o valor da ré a coberto do referido contrato, esta propôs pagar quinze mil euros.
Durante o tempo que a autora esteve privada do uso da máquina teve de recorrer a empréstimos que custam 2.500 euros por mês, tendo despendido 12.500,00 € no ano de 2014 e 30.000,00€ em 2015, valor que reclama da ré a título de responsabilidade extracontratual.
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Regularmente citada, a ré apresentou contestação, nos termos constantes de fls. 14 a 18, concluindo que a ação deverá ser julgada de acordo com a prova que vier a produzir-se em audiência de julgamento.

Aceitando o contrato de seguro, assim como o sinistro, a sua participação e assunção da responsabilidade, a mesma invocou a perda total da máquina e ao abrigo da cláusula 58ª a obrigação da ré ser apenas a de pagar ao tomador de seguro uma indemnização alcançada tendo em conta uma regra proporcional com base no custo de um equipamento novo para substituição do danificado, tendo proposto também um valor pela remoção da máquina no total de 15.050,00 euros.
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A autora pronunciou-se quanto à exceção invocada pela Ré na contestação, nos termos constantes de fls. 45 e 46.
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Foi dispensada a audiência prévia, tendo sido elaborado despacho saneador, no qual se fixou o valor da causa, foi afirmada a validade e regularidade da instância; procedeu-se à identificação do objeto do processo, à enunciação dos temas da prova, à concretização dos factos assentes e controvertidos, bem como foram admitidos os meios de prova (cfr. fls. 53 a 55).
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Procedeu-se à realização de audiência de discussão e julgamento (cfr. acta de fls. 69).
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Posteriormente, a Mmª. Julgadora a quo proferiu sentença (cfr. fls. 71 a 75), nos termos da qual, julgando a presente acção parcialmente procedente, decidiu condenar a Ré «a pagar à Autora a quantia de 63.000,00 € acrescida de juros de mora à taxa legal contados desde a citação até integral pagamento», improcedendo quanto ao mais a demanda.
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Inconformada, a Ré interpôs recurso da sentença (cfr. fls. 78 a 86) e formulou, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões (que se transcrevem (1)):

«1. A aplicação das regras contratuais negociadas entre a seguradora recorrente e a recorrida, designadamente, o princípio da regra proporcional na satisfação da indemnização, contidas nos artigos 58º e 61º das condições do contrato de seguro celebrado entre ambas, não podem ser preteridas pela douta decisão recorrida.
2. Com interesse para a questão sub-judice, a douta sentença considerou o seguinte acervo de factos provados:

“a) A A. dedica-se à exploração florestal e comércio de madeiras.
b) No desenvolvimento da sua atividade, e em 11/12/2013, comprou um auto carregador florestal de marca Timberjack, modelo 1110C (usado) pelo valor de € 70.000,00 (setenta mil euros) + IVA.
c) Em Janeiro/2014, a A. transferiu para a R. através da apólice n.º … (máquinas cascos) a responsabilidade perdas e danos materiais; greves, tumulto e alteração ordem pública e avarias internas, para além da responsabilidade civil extracontratual.
d) Tal responsabilidade estendia-se também ao território espanhol, onde a A. desenvolve a sua actividade com grande frequência.
e) A R. aceitou a responsabilidade civil extracontratual pelo valor da compra da máquina de € 70.000,00, nomeadamente para a cobertura de “avarias internas”;
f) no dia 09/07/2014, no monte de S. Martinho na Comunidade de Montes de Santa Marina, em Espanha, o referido equipamento incendiou-se e ardeu completamente.
g) A máquina da autora ficou irrecuperável, sendo considerada a sua perda total.
(…)
j) A ré propôs o pagamento de indemnização no valor de 15.050,00€ englobando o valor venal da máquina e parte do valor da remoção da máquina.
k) Dou por reproduzido o teor das cláusulas contratuais gerais e particulares do contrato de seguro junto ao processo.

Da instrução da causa provaram-se os seguintes factos:

1. O custo da reparação da máquina é de 62.000 euros mais IVA.
2. A produção do modelo de máquina referido em b. foi descontinuada.
3. O custo de um equipamento novo para substituição seria de 270.000,00€ + Iva.”
3. Na motivação da decisão da matéria de facto, a douta sentença refere terem sido valorados os seguintes documentos:

“Fls. 6 verso – fatura de compra do autocarregador pelo preço de 70 mil euros ao que acresce IVA pela autora datada de 10 de janeiro de 2014
Fls. 7 – apólice, verso – recibo do pagamento do premio
Fls. 18 verso a 20 – impressão de emails
Fls. 20 verso- cópia de carta enviada pela AXA à autora em 20 de fevereiro de 2015
Fls. 24 condições gerais
Fls. 65 verso/66 verso – proposta de contrato de seguro
Fls. 67 documento elaborado pela PER AVA”.
4. Na douta sentença partiu-se do princípio de que, tendo a máquina sido adquirida em estado de uso pelo valor de 70.000,00€ + Iva (conforme consta da factura de fls. 6 verso dos autos), e tendo o seguro sido celebrado por igual montante, é esse o valor real da máquina e portanto esse será o valor a considerar para o cálculo da indemnização.
5. No entanto, tal conclusão é abusiva, já que o que se sabe é que a máquina, de acordo com a factura de fls. 6 verso, foi adquirida por 70.000,00€ + Iva e que foi convencionado o capital de 70.000,00€ para a cobertura do seguro.
6. A máquina sinistrada sofreu perda total - do elenco dos factos provados consta que “a máquina da autora ficou irrecuperável, sendo considerada a sua perda total” – cfr. alínea g) dos factos provados.
7. Do exposto decorre que haverá que aplicar à situação em concreto as regras previstas no contrato de seguro para o caso de perda total, e não quaisquer outras.
8. O artigo 58º das Condições Gerais do contrato celebrado (fls. 24 dos autos) estipula o seguinte:

“Artigo 58.º — Base da indemnização

1. PERDA TOTAL

1.1. Se os danos sofridos pelos bens seguros não forem reparáveis, o Segurador garante ao Segurado uma indemnização correspondente ao valor que tinham à data do sinistro (VALOR VENAL).
1.2. Para os efeitos do número anterior, entende-se por valor à data do sinistro o de compra, em novo, de bens com idênticas características e capacidade, acrescido das despesas de transporte, direitos alfandegários e custos de montagem, se os houver, deduzindo-se, no entanto, o valor relativo à depreciação sofrida pelos bens danificados.”
9. Ficou provado que o valor da máquina, em novo, é de 270.000,00€ + Iva – cfr. o ponto 3. dos factos provados.
10. Por sua vez, o artigo 61º das Condições Gerais do contrato, sob a epígrafe “subseguro”, estipula o seguinte:

“Artigo 61.º — Subseguro

1. Salvo convenção em contrário nas Condições Particulares, se o capital seguro for inferior ao valor dos bens ou interesses seguros, o Segurador só responde pelo dano na respectiva proporção.
2. O disposto no número anterior aplica-se:
• separadamente a cada verba;
• quer em caso de sinistro parcial quer em caso de sinistro total.”
11. Idêntica norma é consagrada no artigo 134º do DL 72/2008.
12. Sendo o valor da máquina em novo de 270.000,00€ e o capital seguro de 70.000,00€ verifica-se a hipótese de subseguro prevista nesta regra contratual, pelo que a recorrente responde apenas na proporção de 25,93% (70.000,00€:270.000,00€), respondendo o próprio segurado pelo restante, como se fosse segurador.
13. No mapa organizado pela PERI AVA junto a fls. 67 dos autos – que não foi impugnado pela recorrida e foi considerado como meio probatório pela Mmª Juiz a quo – calculou-se a indemnização no montante de 16.722,22€ a que se subtraiu a franquia de 10%, pelo que o valor a indemnizar seria de 15.050,00€ sendo certo que nesse montante se encontrava comtemplada a verba de 2.500,00€ para remoção da sucata.
14. A douta sentença recorrida andou mal ao considerar que “tratando-se de uma máquina em 2ª mão, parece-nos não oferecer qualquer dúvida que o preço que a Autora pagou pela máquina e correspondente ao valor efectivamente seguro, equivalerá ao valor de substituição deduzido da correspondente desvalorização pelo uso”, e bem assim ao concluir que “em suma, não estamos perante qualquer situação de subseguro, mas de seguro pelo valor real do bem e correspondente, nos termos legais, ao da efetiva responsabilidade e risco da seguradora.”
15. Ao assim concluir, a douta sentença desconsiderou as regras fixadas contratualmente entre a recorrida e a recorrente e que presidiram à celebração do contrato de seguro, ou seja, os citados artigo 58º nº 1 e 61º das condições do contrato, bem como o estipulado no artigo 134º do DL 72/2008.
16. Se a recorrida pretendia receber a totalidade do capital seguro à data do sinistro, teria de segurar a máquina pelo seu valor em novo, e não pelo valor em estado de uso.
17. Este entendimento vem sendo confirmado na Jurisprudência, citando-se a título de exemplo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.9.2011, proferido no processo 710/06.9TCGMR.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt:

1.No contrato de seguro têm particular relevância os deveres do tomador do seguro, em especial o dever de prestar informações correctas relativas ao seu objecto, decorrentes do princípio da boa fé. Devendo esclarecer a seguradora de tudo o que respeita ao objecto segurado. Incluindo-se tais informações, em princípio, nas chamadas “Condições Particulares”.
2. O denominado seguro de valor em novo corresponde à derrogação do princípio segundo o qual a indemnização será medida pelo valor do bem à data do sinistro (art. 439.º, § 1.º do CComercial), passando antes a mesma a fixar-se a partir do valor de substituição.
3. Sendo o seguro inferior ao valor do objecto (sub-seguro), responderá o segurado, salvo convenção em contrário, por uma parte proporcional às perdas e danos (art. 433.º do CComercial).
4. Havendo, assim, no caso do sub-seguro, implicações prejudiciais para o seu tomador, devido à designada “regra proporcional”, que determina o pagamento de uma percentagem sobre o valor dos danos sofridos. Considerando-se, então, que o tomador é parcialmente segurador (na parte resultante da diferença entre o valor real e o valor garantido pelo seguro).
5. No caso de prejuízo total – continuamos a falar do sub-seguro – o segurado não pode exigir mais do que o valor seguro, na proporção do prejuízo efectivamente sofrido.”
18. Impõe-se, pois, a revogação da douta sentença recorrida.
19. Foram violadas as normas dos artigos 58º e 61º das Condições Gerais do contrato de seguro celebrado entre as partes, e o artigo 134º do DL 72/2008.
Termos em que deve a douta sentença recorrida ser revogada, com o que se fará a melhor JUSTIÇA.».
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Não consta que tenham sido apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido por despacho de fls. 91, como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a única questão que se coloca à apreciação deste Tribunal prende-se com a aplicação, ou não, do princípio da regra proporcional na satisfação da indemnização, em concreto quanto às regras contidas nos artigos 58º e 61º das condições do contrato de seguro celebrado entre as partes.
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III. Fundamentos

A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos:

1) A A. dedica-se à exploração florestal e comércio de madeiras.
2) No desenvolvimento da sua atividade, e em 11/12/2013, comprou um auto carregador florestal de marca Timberjack, modelo 1110C (usado) pelo valor de € 70.000,00 (setenta mil euros) + IVA.
3) Em Janeiro/2014, a A. transferiu para a R. através da apólice n.º … (máquinas cascos) a responsabilidade perdas e danos materiais; greves, tumulto e alteração ordem pública e avarias internas, para além da responsabilidade civil extracontratual.
4) Tal responsabilidade estendia-se também ao território espanhol, onde a A. desenvolve a sua actividade com grande frequência.
5) A R. aceitou a responsabilidade civil extracontratual pelo valor da compra da máquina de € 70.000,00, nomeadamente para a cobertura de “avarias internas”;
6) no dia 09/07/2014, no monte de S. Martinho na Comunidade de Montes de Santa Marina, em Espanha, o referido equipamento incendiou-se e ardeu completamente.
7) A máquina da autora ficou irrecuperável, sendo considerada a sua perda total.
8) A causa do sinistro deveu-se a curto-circuito ocorrido num condutor elétrico do equipamento sinistrado na zona das baterias.
9) A A. para remover a máquina do local para as suas instalações, gastou ainda o valor de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos).
10) A ré propôs o pagamento de indemnização no valor de 15.050,00 englobando o valor venal da máquina e parte do valor da remoção da máquina.
11) Dou por reproduzido o teor das cláusulas contratuais gerais e particulares do contrato de seguro junto ao processo
12) O custo da reparação da máquina é de 62.000 euros mais IVA
13) A produção do modelo de máquina referido em b. foi descontinuada.
14) O custo de um equipamento novo para substituição seria de 270.000,00€ + Iva.
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E deu como não provado:

a) A A. despendeu no aluguer de máquina equivalente à referida em b. no ano de 2014 a quantia de € 12.500 e em 2015 a quantia de 30 000,00 euros.
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IV. Do objeto do recurso.

1. Discute-se nos autos se a apelante deve ser condenada a pagar a indemnização correspondente aos danos e o valor seguro, deduzida a franquia, ou apenas o montante proporcional, tendo em consideração o valor seguro e o preço em novo da máquina segurada.
Não oferece controvérsia que os danos objeto da indemnização pretendida pela A., no âmbito de cobertura do contrato de seguro invocado, decorrem do sinistro, traduzido num incêndio do auto carregador florestal de marca Timberjack, modelo 1110C, tendo sido considerada a sua perda total.
Não se mostra igualmente controvertido estarmos no âmbito de um contrato de seguro multi-riscos.
De facto, segundo se prova, em janeiro de 2014, a A. transferiu para a R., através da apólice n.º … (máquinas cascos), a responsabilidade perdas e danos materiais; greves, tumulto e alteração ordem pública e avarias internas, para além da responsabilidade civil extracontratual, tendo a R. aceite esta responsabilidade civil pelo valor da compra da máquina usada de € 70.000,00, nomeadamente para a cobertura de “avarias internas” que para o bem segurado adviessem de diversas ocorrências, entre elas a de incêndio.

Segundo o art. 1º do Dec. Lei n.º 72/2008, de 16/04 (doravante, abreviadamente, designado por RJCS), que estabelece o regime jurídico do contrato de seguro, «[p]or efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente».

Atento o princípio da liberdade contratual (art. 405.º do Código Civil), expressamente reafirmado no artigo 11.º do RJCS, o contrato de seguro é regulado pelas estipulações da respetiva apólice, que não sejam proibidas pela lei e, subsidiariamente, pelas disposições do RJCS aprovado pelo citado Decreto Lei e, subsidiariamente, pelas disposições da lei comercial e da lei civil (artigo 4.º do RJCS).

Vigora, em sede de seguros, o princípio indemnizatório (art. 128.º do RJCS), nos termos do qual o seguro deve, em princípio, cobrir apenas o risco assumido pelo seguro, sem o exceder, a fim de o segurado ficar indemne, mas não enriquecido. O mencionado princípio visa evitar que o segurado (ou o beneficiário, se for o caso) venha a enriquecer por via do seguro contratado, recebendo uma quantia superior ao dano sofrido e cujo risco o seguro foi outorgado para cobrir (2).

Estabelece o referido art. 128º do RJCS que:

A prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro”.
Em causa nestes autos estão os arts. 58º, 60º e 61º das Condições Gerais do contrato de seguro, que têm a seguinte redação:

“Artigo 58º - Base da indemnização

1. PERDA TOTAL

1.1. Se os danos sofridos pelos bens seguros não forem reparáveis, o segurador garante ao segurado uma indemnização correspondente ao valor que tinham à data do sinistro (VALOR VENAL)
1.2. Para efeitos do número anterior, entende-se por valor à data do sinistro o de compra em novo de bens com idênticas características e capacidade, acrescido das despesas de transporte, direitos alfandegários e custos de montagem, se os houver, deduzindo-se no entanto, o valor relativo à depreciação sofrida pelos bens danificados”.
(…).
Artigo 60º - Sobresseguro

1. Se o capital seguro exceder o valor dos bens ou interesses seguros, é aplicável o disposto no n.º 3 do Art. 57º destas condições Gerais, podendo as partes pedir a redução do contrato de seguro.
2. Estando o Tomador do seguro ou o segurado de boa fé, o Segurador deve proceder à restituição dos sobreprémios que tenham sido pagos nos 2 anos anteriores ao pedido de redução do contrato, deduzidos os curtos de aquisição calculados proporcionalmente.
3. Ocorrendo um sinistro antes de efectuada a redução referida no número anterior, o Segurador indemnizará apenas o dano efetivamente causado, até ao limite do valor dos bens ou interesses seguros.
Artigo 61º - Subseguro:

1. Salvo convenção em contrário nas Condições Particulares, se o capital seguro for inferior ao valor dos bens ou interesses seguros, o segurador só responde pelo dano na respetiva proporção”
2. O disposto no número anterior aplica-se:
. Separadamente a cada verba;
. Quer em caso de sinistro parcial, quer em caso de sinistro total”.

A apelante estriba a apelação nestas condições gerais para pugnar pela aplicação do princípio da regra proporcional na satisfação da indemnização, bem como das regras previstas no contrato de seguro para o caso de perda total, e não quaisquer outras, dizendo que, sendo o valor da máquina em novo de 270.000,00€ e o capital seguro de 70.000,00€, verifica-se a hipótese de subseguro, pelo que responderá apenas na proporção de 25,93% (70.000,00€:270.000,00€), respondendo o próprio segurado pelo restante, como se fosse segurador.

Constata-se, por outro lado, que o valor seguro foi o correspondente ao valor da compra daquela máquina usada, ou seja, de 70.000,00 €, e não o valor da máquina em nova e contratualmente qualificado como valor de substituição ou em novo (270.000,00€ + IVA).
No caso, não poderá falar-se em subseguro (art. 61º das condições gerais e art. 134º (3) do RJCS), já que o valor seguro correspondia, efetivamente, ao valor do bem segurado, sendo de observar que o tomador de seguro cumpriu com verdade e boa fé o seu dever de informação (arts. 24º a 26º do RJCS).
Acresce não decorrer da factualidade provada que as partes outorgantes do contrato tenham pretendido que o valor atribuído à máquina objeto do contrato de seguro correspondesse ao da substituição em novo do valor do respetivo equipamento.
Não se evidencia, pois, estarmos perante um denominado seguro de valor em novo, que corresponde à derrogação do princípio segundo o qual a indemnização será medida pelo valor do bem à data do sinistro, passando a mesma a fixar-se antes a partir do valor da substituição (4).

Por outro lado, a celebração do contrato pelo valor de substituição correspondente ao valor em novo da máquina (270.000,00€), quando o valor real da máquina usada era apenas de 70.000,00 €, configuraria uma situação de sobresseguro prevista no art. 61º das condições gerais e no art. 132º (5) do RJCS, pelo que a prestação da seguradora teria sempre como limite máximo o do valor real do bem (“a prestação devida pelo Segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro”, nos termos do art. 57º, n.º 3 “ex vi” do art. 60º das Condições Gerais do contrato de seguro).

Dito por outras palavras, mesmo que o valor seguro tivesse sido fixado nos termos daquela condição geral e, como tal, em 270.000,00€, correspondente ao preço daquela máquina em novo para substituição, por força da transcrita norma o seguro só seria válido até ao valor da máquina usada segurada, ou seja, 70.000,00 €. Daí que não colha a solução propugnada pela recorrente no sentido de que, se a recorrida pretendia receber a totalidade do capital seguro à data do sinistro, teria de segurar a máquina pelo seu valor em novo (que, no caso, era de 270.000,00€ (+ IVA), e não pelo valor em estado de uso.
Com efeito, sendo o prémio de seguro pago em função do valor seguro, a seguradora, face aos citados preceitos, estar-se-ia a locupletar ilegitimamente com valores não correspondentes ao seu risco efetivo, o que, em bom rigor, poderia configurar uma situação de enriquecimento sem causa (6).
De qualquer modo, do ponto 1.2 do art. 58º das Condições Gerais depreende-se que o valor da indemnização não teria que corresponder ao de substituição em novo, já que a este haverá que deduzir “o valor relativo à depreciação sofrida pelos bens danificados”.

Ora, tratando-se de uma máquina usada, temos como adquirido que o preço que a apelada pagou pela máquina e que corresponde ao valor efetivamente seguro equivalerá ao valor de substituição deduzido da correspondente desvalorização pelo uso. Na verdade, resultando dos termos do contrato de seguro objeto dos autos que o propósito dos contraentes foi o de segurar um equipamento já usado, pelo valor correspondente ao preço dessa aquisição, havendo, por conseguinte, total equivalência ente o valor seguro e o valor do bem segurável, não é aceitável que na fixação do montante indemnizatório a seguradora pretenda agora recorrer à regra da proporcionalidade tendo por referência o valor da substituição em novo da máquina objeto do seguro, sendo certo, desde logo, que não ocorreu qualquer renovação do contrato, nem, certamente, nenhuma substancial desvalorização da máquina segurada usada nos escassos cerca de seis meses em que o seguro vigorou antes do sinistro.

Nesta conformidade, é de concluir não estarmos perante qualquer situação de subseguro, nem de seguro de valor em novo (valor de substituição) (7), mas de seguro pelo valor real do bem e correspondente, nos termos legais, ao da efetiva responsabilidade e risco da seguradora. A sufragar-se a pretensão da apelante/seguradora, estaríamos colocados perante uma situação de sobresseguro e, por isso, com o valor seguro ou, pelo menos, com a responsabilidade indemnizatória, sempre redutível ao valor real do bem segurado.

Logo, mostrando-se apurado que o valor da reparação da máquina ascende a 62.000,00€ mais IVA, tendo a máquina ficado irrecuperável, é de sufragar o juízo proferido na sentença recorrida no sentido de, nos termos legais e contratuais, a ré seguradora ser responsável pelo total do capital segurado deduzida a franquia contratual de 10%, no equivalente a 63.000,00€ (70.000,00 x 10%).
A sentença recorrida merece, assim, plena confirmação, improcedendo as conclusões da apelante.
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Sumário (ao abrigo do disposto no art. 667º, n.º 3 do CPC):

I - Inexistindo qualquer situação de subseguro – pois que o valor seguro corresponde ao do preço pago pela aquisição da máquina segurada, em 2ª mão –, nem se estando perante um denominado seguro de valor em novo (valor de substituição), mas de seguro pelo valor real do bem e correspondente, nos termos legais, ao da efetiva responsabilidade e risco da seguradora, não é aceitável que na fixação do montante indemnizatório esta pretenda recorrer à regra da proporcionalidade tendo por referência o valor da substituição em novo da máquina objeto do seguro.
II – Tratando-se de uma máquina usada e considerando que não ocorreu qualquer renovação do contrato, nem nenhuma desvalorização da máquina segurada usada no escasso período em que o seguro vigorou antes do sinistro, é de aceitar que o preço que a segurada pagou pela sua aquisição e que corresponde ao valor efetivamente seguro equivalerá ao valor de substituição deduzido da correspondente desvalorização pelo uso.
III – Caso o valor seguro fosse o da substituição em novo da máquina estar-se-ia perante uma situação de sobresseguro em que, se aquele não fosse reduzido ao valor do bem segurado, a seguradora se locupletaria com prémios superiores e não correspondentes aos limites do seu risco e da sua responsabilidade.
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V. Decisão

Perante o exposto acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso de apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas da apelação a cargo da apelante (art. 527º do CPC).
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Guimarães, 26 de abril de 2018


Alcides Rodrigues
Espinheira Baltar
Eva Almeida


1. Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo gralhas evidentes e a ortografia utilizada.
2. Cfr. Pedro Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, vol. I, Almedina, p. 256.
3. Prescreve o citado normativo que, «[s]alvo convenção em contrário, se o capital seguro for inferior ao valor do objecto seguro, o segurador só responde pelo dano na respectiva proporção». Como se refere no Ac. do STJ de 22/09/2011 (relator Serra Baptista), in www.dgsi.pt., no caso do sub-seguro, que corresponde a um seguro ajustado com valor inferir ao do bem segurado, há implicações prejudiciais para o tomador do seguro, devido à designada “regra proporcional”, que determina o pagamento de uma percentagem sobre o valor dos danos sofridos. Tendo o tomador do seguro indicado um valor para o objecto seguro inferior ao real, com violação do seu dever de informação, a seguradora só terá de pagar uma percentagem do dano sofrido, considerando-se que o tomador é parcialmente segurador (na parte resultante da diferença entre o valor real e o valor garantido pelo seguro). Justifica-se a regra proporcional, desde logo, pela falta de correspectividade entre o prémio pago e o bem assegurado, na relação com o risco assumido pela seguradora. Sendo certo que, no caso de prejuízo total, o segurado não pode exigir mais do que o valor seguro, na proporção do prejuízo efetivamente sofrido.
4. Cfr. José Vasques, Contrato de Seguro, Coimbra Editora, pp. 218 e 219. Esta modalidade de seguro, o de valor em novo (valor de substituição), designa a forma em que os bens seguros são estimados sobre a base de bens novos com as mesmas características - cfr. Ac. do STJ de 22/09/2011 (relator Serra Baptista), in www.dgsi.pt.
5. O citado normativo, sob a epígrafe “sobresseguro”, diz que “se o capital seguro exceder o valor do interesse seguro é aplicável o disposto no artigo 128º, podendo as partes pedir a redução do contrato”. Estamos perante a verificação de uma situação de sobresseguro ou “seguro excedente” sempre que, “ab initio” ou no decurso do contrato, se verifica que o objecto do seguro tenha um valor inferior ao valor declarado, ou seja, um valor inferior àquele pelo qual se encontra seguro. Em caso de sobresseguro (originário ou posterior) o contrato deve, por força do princípio do indemnizatório, na forma em que este se encontra consagrado na legislação sobre seguros, ser considerado ferido de invalidade na parte excedente, ou seja, na parte em que o valor exceda o do objecto segurado – arts. 128º e 132º, n.º 1 do Decreto lei nº 72/2008, de 16 de Abril. [cfr. Ac. do STJ de 24/04/2012 (relator Mário Mendes), in www.dgsi.pt.]. Daí que se entenda que, em caso de sobresseguro, a seguradora apenas responde pelo valor real do bem segurado, nos termos do art. 128º da LCS, nos termos do qual “a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro” [cfr. Ac. do STJ de 18-06-15 (Relator Abrantes Geraldes), in www.dgsi.pt.].
6. Cfr., no mesmo sentido, o Ac. da RE de 26.01.11 (relator António Manuel Ribeiro Cardoso), proc. n.º 79/10.7T2GDL.E1, in www.dgsi.pt, cuja fundamentação vimos seguindo de perto na exposição em apreço, dada a sua similitude fáctica e jurídica (conquanto tenha aplicado o regime dos arts. 425º a 462º do Código Comercial, não deixou de fazer menções ao regime jurídico estabelecido pelo Dec. Lei n.º 72/2008, de 16.04).
7. Refira-se que a solução jurídica firmada no Acórdão do STJ citado pela apelante [de 22/09/2011, (relator Serra Baptista), proferido no processo n.º. 07A1999], não é transponível para a situação em apreço nos presentes autos, pois naquele processo estava em causa um seguro de valor em novo, em que o valor declarado pelo tomador alegadamente correspondia ao valor em novo do respetivo equipamento, tendo-se ulteriormente vindo a constatar que o valor constante no seguro não correspondia ao valor de substituição em novo do respetivo equipamento.