Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2777/13.4TBBCL.G1
Relator: JORGE TEIXEIRA
Descritores: ACÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
PRAZO
IMPRESCRITIBILIDADE
INCONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/06/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I- Incide sobre o mérito da causa, independentemente da solução dada – procedência ou improcedência - ou da posterior evolução processual, o despacho saneador em que se apreciem excepções peremptórias, como a caducidade, a prescrição, a compensação, a nulidade ou a anulabilidade, ainda que a decisão não determine a extinção total da instância, prosseguindo esta para apreciação de outras questões, estando, por consequência, tal despacho, sujeito a recurso de apelação autónomo e imediato, nos termos do disposto no artigo 644, nº 1, al. b), do C.P.C..

II- O artigo 1817, nº 1), do C. Civil, na redacção que lhe f oi dada pelo artigo 1º, da Lei, 1/04, é materialmente inconstitucional, por contrariar o princípio da imprescritibilidade do direito à obtenção, por parte do respectivo interessado, da maternidade e/ou da paternidade (neste caso «ex vi» do art. 1873°), proclamado nos artigos 18º e 26°, da CRP.

III- E isto, porque, conflituando o direito ao conhecimento da ascendência e verdade biológica com a «tranquilidade» do suposto pai, sempre deve prevalecer o direito a conhecer a paternidade, valor social e moral da maior relevância, que se insere no direito de personalidade, e que é um direito inviolável e imprescritível.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.

I – RELATÓRIO.

Recorrente: B…

Recorrido: R…

Tribunal Judicial de Barcelos – 3º Juízo Cível.

Veio o autor, R…, instaurar a presente acção de investigação de paternidade demandando R., B…, pedindo seja reconhecido como como filho do réu, com todas as legais consequências. A título de questão prévia, veio o A. suscitar a questão da inconstitucionalidade dos arts 1817º, nº 1 ex vi 1873º do CC..

Citado que foi de forma válida e regular, o R. contestou em tempo, e, pronunciando-se no sentido da improcedência da acção, pugnou ainda pela constitucionalidade do art. 1817º do CC e pela consequente caducidade do direito alegado pelo autor.

Foi proferido despacho saneador, no âmbito do qual se decidiu a aludida questão prévia tendo sido declarado que o artigo 1817º, nº 1, na redacção dada pela Lei nº 14/2009, aplicável ex vi artigo 1873.°, ambos do Código Civil, porque viola os arts 18.º, n.ºs 2 e 3, 26.º, n.º 1, e 36.º, n.º 1, da CRP, é materialmente inconstitucional, não se verificando, por decorrência, a excepção de caducidade ou de preclusão quanto ao exercício o direito do autor, nos termos invocados pelo réu, julgando-se, consequentemente, improcedente essa alegada excepção.

Inconformada com tal decisão, apela o Réu, pugnando pela revogação da decisão, formulando nas suas alegações as seguintes conclusões:

“1ª

Nesta acção de investigação e reconhecimento da paternidade, mostram os autos que o Autor tem 48 anos de idade, enquanto o Recorrente tem 70 anos de idade.

E na petição o Autor alega que, desde cerca dos 13 anos, já considerava o Recorrente como seu pai.

Por outro lado, os autos mostram que nunca foi intentada contra o Recorrente, nem pelo Ministério Publico nem pela mãe do Autor, qualquer acção tendente a averiguar se o Recorrente era pai do Autor.

Assim, com base no disposto no art.º 1817.º, 1 do C.C, o direito que o Autor exerce na presente acção esta extinto.

2.a

O Tribunal recorrido, no despacho saneador, julgou aquela norma inconstitucional, e assim, os autos prosseguem para instrução e julgamento, pois, no dizer do Tribunal recorrido, o disposto no art.º 1817.º, 1 do C.C viola o disposto nos art.ºs 18.º, 2 e 3, 26.º, 1 e 36.º, 1 do C.R.P.

3.a

Ao decidir assim o Tribunal desconsiderou direitos fundamentais do Recorrente, que o entendimento que fez vencimento assim viola, nomeadamente a sua integridade moral e psíquica e a estabilidade familiar, postos em causa pela incerteza da sua situação perante um suposto filho, que, caso assim o queira, só tira o suposto pai da dúvida, quando quiser. Por isso, o exercício do direito de investigação da paternidade não pode ser exercido a qualquer tempo, mas durante um período temporal razoável.

4.a

Assim, atendendo ao facto do Ministério Publico poder intentar a acção de investigação da paternidade nos primeiros dois anos de vida do investigante, podendo a sua mãe (ou outro seu representante legal, caso o não seja a sua mãe), intentar essa acção enquanto ele for menor, seguindo-se os primeiros mais 10 anos, apos o inicio da maioridade, tais períodos são bem razoáveis, nada justificando a incerteza perpetua do investigando.

5.a

A interpretação do tribunal coloca o Autor – e todos aqueles que estejam em idêntica situação – em situação de sujeição perpétua perante o Autor. Tal interpretação viola os direitos fundamentais do Recorrente, consagrados nos artigos 25.º, 26.º e 36.º, da C.R.P., bem como os princípios, também consagrados na Constituição, da dignidade da pessoa humana e de justiça (art.º 1.º); da alteridade e da segurança jurídica decorrentes da ideia do Estado de direito (art.º 2.º); o princípio da igualdade (art.º 13.º); o princípio da proporcionalidade (art.º 18.º, 2); bem como o princípio do auto-responsabilidade, também decorrente da ideia do Estado de direito e do princípio de direito, que só existem, esta ideia e princípio, em sociedades de pessoas livres, por isso responsáveis, perante si e perante outros”.

*

Contra alegou o Apelado, pugnando pela improcedência do recurso, defendendo a manutenção da decisão recorrida.

*

- Questão prévia.

Suscitou ainda o Apelado uma questão prévia, defendendo o indeferimento do recurso, pois que, não se estando perante um despacho saneador que decida sobre o fundo da causa, que conheça, mesmo que parcialmente, do pedido ou pedidos formulados pelas partes, e determine o prosseguimento do processo para conhecimento da parte restante, a decisão de improcedência da excepção só poderia ser impugnada com o recurso que viesse a ser interposto da decisão final, ao abrigo do disposto no artigo 644, nº 3, do C.P.C., e não através de um recurso imediato, a subir nos próprios autos e com efeito suspensivo, como veio a suceder, devendo, por consequência, ser indeferido o requerimento de recurso interposto.

Como supra se referiu, na sequência de questão suscitada e discutida pelas partes nos articulados, foi proferido despacho saneador em que se decidiu declarar que o artigo 1817º,1, na redacção dada pela Lei nº 14/2009, aplicável ex vi artigo 1873.°, ambos do Código Civil, porque viola os arts 18.º, n.ºs 2 e 3, 26.º, n.º 1, e 36.º, n.º 1, da CRP, é materialmente inconstitucional, não se verificando, por decorrência, a excepção de caducidade ou de preclusão quanto ao exercício o direito do autor, nos termos invocados pelo réu, julgando-se, consequentemente, improcedente essa alegada excepção.

Impõe-se, assim, apreciar da admissibilidade do recurso.

A interposição de recurso constitui o principal instrumento de impugnação de decisões judiciais (cfr. art. 627º do C.P.C.), visando a intervenção de tribunal de categoria hierarquicamente superior, com a finalidade de obter a sua anulação, por erro de procedimento ou de julgamento, ou a sua substituição por outra[1].

A admissibilidade dos recursos constitui um dos reflexos do direito constitucionalmente consagrado de acesso aos tribunais, pois que a reapreciação da decisão por um órgão jurisdicional hierarquicamente superior se confere maiores garantias de acerto na solução do conflito que o processo tem por finalidade alcançar[2].

Contudo, o direito de acesso aos tribunais não integra, necessariamente, o direito ao recurso ou duplo grau de jurisdição, podendo o legislador ordinário (e vedada que lhe está a possibilidade de proceder, em bloco, à supressão do duplo grau de jurisdição), ampliar ou restringir os recursos civis, designadamente através dos pressupostos de admissibilidade[3].

Além do preenchimento de requisitos ou pressupostos gerais para a admissibilidade dos recursos ordinários (só estes interessam à análise da questão), importa ainda considerar a existência de normas que restringem a recorribilidade, isto é, impedem a interposição de recurso.

No caso dos autos, o despacho saneador apenas apreciou, considerando-as improcedentes, duas excepções peremptórias interligadas entre si – a da inconstitucionalidade de uma norma do código civil e a da eventual caducidade da presente acção.

Todas as demais questões suscitadas no âmbito da oposição foram, pois, relegadas para a decisão final, para tanto se organizando o despacho a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas de prova.

Ora, o artigo 644º, nº 1, alíneas a) e b), do C.P.C., elencando as decisões susceptíveis de recurso, estabelece caber recurso das decisões do tribunal de 1ª instância que ponham termo ao processo ou incidente processado autonomamente, e bem assim, do despacho saneador que, sem pôr termo ao processo, decida do mérito da causa.

As restantes decisões proferidas pelo tribunal de 1ª instância – não compreendidas no nº 1 ou nas diversas alíneas do nº 2 do referido artigo – podem ser impugnadas no recurso que venha a ser interposto da decisão final (nº 3 do artigo em causa) ou, se não houver recurso da decisão final, podem as decisões interlocutórias que tenham interesse para o apelante independentemente da decisão final ser impugnadas em recurso único, a interpor após o trânsito daquela decisão (cfr. nº 4 do art. 644º do C.P.C.).

Ora, salvo o muito e devido respeito, afigura-se-nos como incontroverso que a decisão ora em apreço, em contrário do que defende o Recorrido, se enquadra, indubitavelmente na situação prevista na alínea b), do nº 2, do art. 644º do C.P.C., no qual se prescreve que “cabe recurso de apelação do despacho saneador que, sem pôr termo ao processo, decida do mérito da causa (…)”.

Como refere Abrantes Geraldes, “o despacho saneador que, independentemente do seu fundamento, ponha termo ao processo, está incluído na previsão da alínea a). Na alínea b), inscreve-se o despacho sanador que não ponha termo ao processo.

Ao invés do que se dispunha no art. 691, nº 2, do C.P.C., (anterior à reforma de 2007 e onde se dispunha que “a sentença e o despacho saneador que julguem da procedência ou improcedência de alguma excepção peremptória decidem do mérito da causa”), inexiste um preceito delimitador do conceito de decisão que incida sobre o “mérito da causa”. Apesar disso, considerando a evolução histórica, é possível concluir que o conceito que agora se retoma na alínea b), do nº 1), se encontra definitivamente estabilizado sem necessidade de expressa consagração legal.

Assim, pode asseverar-se que o despacho saneador incide sobre o mérito da causa quando nele se julga procedente ou improcedente algum ou alguns dos pedidos relativamente a todos ou algum dos interessados; outrossim quando, independentemente da solução dada ou da posterior evolução processual, nele se apreciem excepções peremptórias, como a caducidade, a prescrição, a compensação, a nulidade ou a anulabilidade. Em qualquer dos casos, ainda que a decisão não determine a extinção total da instância, prosseguindo esta para apreciação de outras questões, está sujeita a recurso imediato”.[4]

Aliás, e pese embora a já supra referida inexistência de norma delimitadora deste conceito de “decisão incidente sobre o mérito da causa”, o certo é que na actual legislação processual se pode encontrar disposições que perfilham este conceito, com a mesma amplitude acabada de descrever, como sucede com o artigo 595, nº 1, al. b), do C.P.C., no qual se estipula que “o despacho saneador destina-se a conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória”.

Destarte, e por tudo quanto se acaba de expor, como inelutável se impõe concluir pela recorribilidade do despacho saneador, que decidiu das aludidas excepções peremptórias, através de apelação autónoma, face ao preceituado no art. 644º, nº, nº 1), al. b), do C.P.C.), embora não com o regime de subida e efeitos fixados, sendo que, e não obstante o disposto no artigo 641, nº 5, do mesmo diploma legal, uma vez que se vai conhecer de imediato do objecto do presente recurso, e que, por decorrência disso, a alteração do regime do recurso não viria a produzir qualquer efeito útil, não se procede à sua alteração, pois que, se por um lado, daí não resulta qualquer prejuízo para qualquer das partes, por outro, a rectificação desses aspectos, no presente momento processual, apenas iria provocar mais e inúteis delongas processuais na resolução do recurso.

Pelo exposto, por legalmente admissível, atenta a recorribilidade imediata da decisão impugnada, admite-se o recurso interposto.

*

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

*

II- Do objecto do recurso.

Sabendo-se que o objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formuladas, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso, a questão decidenda é, no caso, a seguinte:

- Apreciar da inconstitucionalidade ou não do disposto no artigo 1817º, nº 1 ex vi 1873º, ambos do CC., e por decorrência, da verificação ou não da excepção da caducidade da presente acção.

*

III- FUNDAMENTAÇÃO.

Fundamentação de facto.

Na sequência da questão prévia suscitada pelo Recorrente/A., foi proferido nos presentes autos o seguinte despacho, do qual consta, com relevância para a presente decisão, o seguinte teor:

(…)

A questão que cumpre decidir não é nova e já tivemos oportunidade de nos pronunciar sobre mesma, no sentido defendido pelo autor.

Por uma questão de simplicidade e por considerarmos correcta a posição sustentada no recente Acórdão do STJ de 14.01.2014 (www.dgsi.pt.) passamos a reproduzir o seu teor.

Cumpre, desde já, assinalar que o autor nasceu em 27 de Janeiro de 1965 e que a presente acção foi instaurada em 05.09.2013.

“ (…) A questão da caducidade da acção resolve-se pela apreciação da constitucionalidade material da norma que a previne no Código Civil – o seu art. 1817.º, n.º 1, na redacção emergente da Lei n.º 14/2009 (…).

A Lei n.º 14/2009 alterou a redacção original do art. 1817.º, n.º 1, do CC, alargando o prazo de caducidade das acções de investigação de maternidade e de paternidade, de dois para dez anos após a maioridade ou emancipação do investigante.

Regressando ao princípio da “imprescritibilidade” das acções de investigação de paternidade, o mesmo tem merecido larguíssimo acolhimento na jurisprudência do STJ, quer antes, quer após a entrada em vigor daquele diploma legislativo, nessa medida se continuando a sustentar a inconstitucionalidade do normativo vertido no art. 1817.º, n.º 1, do CC, irrelevando a ampliação do prazo de propositura da acção em mais 8 anos.

Como tem sido acentuado em vários acórdãos, as razões que militavam para a previsão de um prazo limitativo, de caducidade, das acções de investigação de paternidade – segurança jurídica; envelhecimento das provas; e, argumento caça fortunas –, têm de ceder perante uma plêiade de direitos fundamentais que militam no sentido da imprescritibilidade daquela tipologia de acções – direito de constituir família; direito à identidade pessoal; direito à integridade pessoal e direito à não discriminação (cfr., especial, os arts. 26.º, n.º 1, e 36.º, n.º 1, do CRP).

Por outro lado, o direito fundamental do suposto pai, decorrente da reserva da intimidade da vida privada e familiar, deve ceder perante aqueles.

Nessa jurisprudência, continua a notar-se a manifesta e directa influência da posição doutrinal assumida por Guilherme de Oliveira, expressa no artigo “Caducidade das Ações de Investigação”, que mantém plena actualidade. Escreve o mesmo, reponderando a sua anterior perspectiva sobre a questão da caducidade: “Voltando hoje ao assunto, penso que alguns dados mudaram. Nesta balança em que se reúnem os argumentos a favor do filho e da imprescritibilidade da acção, e os argumentos a favor da protecção do suposto progenitor e da caducidade, creio que os pratos mudaram de peso. Desde logo parece claro o movimento científico e social em direcção ao conhecimento das origens. Os desenvolvimentos da genética, nos últimos vinte anos, têm acentuado a importância dos vínculos biológicos e do seu determinismo, porventura com exagero; e com isto têm sublinhado o desejo de conhecer a ascendência biológica [Se não fosse esta tendência não se teria notado o movimento no sentido de acabar com o segredo acerca da identidade dos progenitores biológicos na adopção e na inseminação com dador]. Nestas condições, o «direito à identidade pessoal» e o «direito à integridade pessoal» ganharam uma dimensão nova que não pode ser desvalorizada. Devemos acrescentar, também, um novo direito fundamental implicado na questão: o «direito ao desenvolvimento da personalidade» [art. 26.º da CRP], introduzido pela revisão constitucional de 1997 — um direito de conformação da própria vida, um direito de liberdade geral de acção cujas restrições têm de ser constitucionalmente justificadas, necessárias e proporcionais. É certo que tanto o pretenso filho como o suposto progenitor têm o direito de invocar este preceito constitucional, mas não será forçado dizer que ele pesa mais do lado do filho, para quem o exercício do direito de investigar é indispensável para determinar as suas origens, a sua família, numa palavra, a sua localização no sistema de parentesco”.

Harmonicamente, o citado autor termina: “Em conclusão, creio que os progressos técnicos e os movimentos sociais de valorização das origens e de responsabilidade individual estão contra a limitação de investigar que resulta do prazo de caducidade. Em face do quadro de direitos constitucionais implicados e de uma valoração particular dos interesses gerais defendidos pela caducidade, julgo que a limitação de agir que resulta do prazo estabelecido pela lei vigente significa uma restrição não justificada, desproporcionada, do direito do filho. Julgo, em suma, que se tornou sustentável alegar a inconstitucionalidade dos prazos estabelecidos nos arts. 1817.° e 1873.° CCiv”.

Arrimando-se a esta posição, Jorge Duarte Pinheiro tece, outrossim, os seguintes argumentos: “Em minha opinião, já não é razoável a imposição de prazos para a investigação da paternidade ou maternidade. Os testes de ADN permitem determinar com grande segurança a maternidade ou paternidade de uma pessoa, muitos anos após a morte do hipotético progenitor, o que afasta o risco da incerteza das provas. Quanto à caducidade da acção de investigação enquanto instrumento de tutela da segurança jurídica dos herdeiros e de combate da «caça às heranças», estão em causa argumentos de índole predominantemente patrimonial que não superam o interesse do filho no estabelecimento da respectiva filiação. Por fim, a tutela da segurança do pretenso pai está novamente aquém do interesse do filho, em especial num contexto de fiabilidade da prova do parentesco e de prevalência da ideia de responsabilidade parental pelo ser humano que foi gerado.

Num ordenamento como o nosso, em que a acção de investigação da paternidade ou maternidade constitui o meio que assiste ao pretenso filho para obter o reconhecimento judicial da sua ascendência biológica, penso que os prazos de caducidade configuram uma restrição desproporcionada do direito à identidade pessoal, mais precisamente do direito à identidade pessoal relativa ou à historicidade pessoal, consagrado no art. 26.º, n.º 1, da CRP”.

E, se semelhante entendimento foi acolhido nos vários acórdãos que já citámos, antes da alteração introduzida no art. 1817.º, n.º 1, do CC, pela Lei n.º 14/2009, o mesmo entendimento continuou/continua a ser sustentado nos mais recentes acórdãos do STJ que se debruçaram sobre este tema, após a entrada em vigor daquele diploma – cfr. Acórdãos de 21.09.2010, Proc. nº 495/04 (desta secção), 08-06-2010, Proc. n.º 1847/08.5TVLSB-A.L1.S1; de 21-09-2010, Proc. n.º 4/07.2TBEPS.G1.S1; de 27-01-2011, Proc. n.º 123/08.8TBMDR.P1.S1; e, de 06-09-2011, Proc. n.º 1167/10.5TBPTL.S1.

Como se apreciou, de forma certeira, no Acórdão do STJ, de 27-01-2011, o prazo de dez anos não tem cabimento constitucional, não porque não tenha uma razoabilidade processual, mas porque cerceia de forma injustificada um direito individual, qual seja o direito à história pessoal.

Assim sendo, a investigação da paternidade nunca deve ser considerada tardia, retirando-se o pouco fundamento do prazo de 10 anos até do facto do mesmo ser inferior ao prazo geral da prescrição de 20 anos, previsto no art. 309.º do CC.

Ou seja, a entender-se que aquela norma é constitucional, seria mais fácil defender direitos patrimoniais do que um direito estruturante da personalidade.

Por outro lado, a estipulação de um prazo de caducidade mais alargado, constante do artigo 1817.º, n.º 1, na redacção da Lei n.º 14/2009, não deixa de constituir uma restrição do direito ao conhecimento e reconhecimento da paternidade, enquanto direito fundamental, sendo que por imperativo do art. 18.º, n.º 2, da CRP, só são admissíveis restrições a esses direitos quando necessárias para salvaguardar direitos e interesses constitucionalmente protegidos, acrescentando o n.º 3 que elas têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo, nem diminuir a extensão e o conteúdo essencial dos preceitos constitucionais – no mesmo sentido, cfr. o Acórdão do STJ, de 21-09-2010 (Proc. n.º 4/07.2TBEPS.G1.S1).

No fundo, a identidade pessoal, caracterizadora de cada pessoa, enquanto ser único e irrepetível, que se diferencia de todos os outros, ramifica-se em vários ângulos, nomeadamente no direito fundamental ao reconhecimento da paternidade e da maternidade, direito esse que tem de sobrelevar, em nosso entendimento, a qualquer tipo de prazo ordinário que coarcte o direito de cada um de nós saber quem é e de onde vem, quais os seus antecedentes, onde estão as raízes familiares, geográficas, culturais e também genéticas.

Não se nos afigura, assim, que as razões tradicionalmente invocadas em favor da fixação de um prazo de caducidade das acções de investigação da paternidade – mormente, segurança jurídica, envelhecimento das provas, e, argumento caça fortunas –, como aliás consta do Acórdão do STJ, de 06-09-2011, “possam estribar razões de sentido restritivo, por via legislativa, para limitação dos direitos fundamentais «absolutos» que competem neste confronto (…)”

De resto, como salientado no Acórdão do STJ, de 21-09-2010 (Proc. n.º 495/04.3TBOR.C1.S1), há que ponderar, igualmente, que o direito à verdade biológica não é só do investigante mas é também do Estado: a ordem pública impõe o impedimento dirimente absoluto do casamento entre duas pessoas parentes na linha recta ou no segundo grau da linha colateral (art. 1602.º do CC).

Em suma, a circunstância de a lei contemplar um prazo certo para a caducidade da acção de investigação de paternidade, ao prever que o investigante, no máximo, não poderá ter mais de 28 anos de idade, tem como consequência a impossibilidade, para este, de vir a constituir o vínculo de paternidade ao qual aspira. Por isso, o respeito pela verdade biológica e pela descoberta da real identidade pessoal apontam, claramente, no sentido da imprescritibilidade das acções de investigação de paternidade.

Destarte, o regime legal criado pela Lei n.º 14/2009, ao alterar os prazos de caducidade das acções de investigação de paternidade, excluindo a possibilidade de investigar judicialmente a paternidade após os 28 anos de idade, tem como consequência necessária uma compressão intolerável do alcance do conteúdo essencial dos direitos fundamentais à identidade pessoal e a constituir família, que incluem o direito ao conhecimento da paternidade ou da maternidade.

Conclui-se assim, em consonância com os ditames constitucionais vertidos nos artigos 18.º, n.ºs 2 e 3, 26.º, n.º 1, e 36.º, n.º 1, da CRP, que o actual artigo 1817.º, n.º 1, do CC, ao fixar o prazo de 10 anos posteriores à maioridade ou emancipação para a instauração da acção de investigação de maternidade/paternidade (esta, por via do art. 1873.º do CC), está ferido de inconstitucionalidade (…)”.

Atento o exposto, declaro que o artigo 1817º,1, na redacção dada pela Lei nº 14/2009, aplicável ex vi artigo 1873.°, ambos do Código Civil, viola os arts 18.º, n.ºs 2 e 3, 26.º, n.º 1, e 36.º, n.º 1, da CRP, sendo materialmente inconstitucional, não se verificando, assim, a excepção de caducidade ou de preclusão quanto ao exercício o direito do autor, nos termos invocados pelo réu e, como tal, julga-se improcedente a alegada excepção.

Notifique.”

(…)

Fundamentação de direito.

Como fundamento da sua pretensão recursória alega o Recorrente que o Tribunal recorrido, ao considerar inconstitucional, no despacho saneador, o disposto no artigo 1817, nº 1, do C. Civil, desconsiderou os seus direitos fundamentais, nomeadamente a sua integridade moral e psíquica e a estabilidade familiar, postos em causa pela incerteza da sua situação perante um suposto filho, que, caso assim o queira, só tira o suposto pai da dúvida, quando quiser.

O exercício do direito de investigação da paternidade não pode ser exercido a qualquer tempo, mas durante um período temporal razoável, razão pela qual, a interpretação do tribunal coloca o Réu em situação de sujeição perpétua perante o Autor, violando os direitos fundamentais do Recorrente, consagrados constitucionalmente e, designadamente, os da dignidade da pessoa humana e de justiça (art.º 1.º); da alteridade e da segurança jurídica decorrentes da ideia do Estado de direito (art.º 2.º); o princípio da igualdade (art.º 13.º); o princípio da proporcionalidade (art.º 18.º, 2); bem como o princípio do auto-responsabilidade, também decorrente da ideia do Estado de direito e do princípio de direito, que só existem, esta ideia e princípio, em sociedades de pessoas livres, por isso responsáveis, perante si e perante outros.

Ora, com relação à questão suscitada, cumprirá desde logo referir que, à semelhança do que parece ter sucedido com o tribunal de 1ª instância, o exaustivo e aprofundado tratamento de que o questão em litígio tem sido objecto na jurisprudência e doutrina, e considerada ainda a inexistência de novos e relevantes argumentos passíveis de ressuscitarem ou renovarem os termos em que se tem definido e desenvolvido o tratamento de toda a ponderação de interesses que tem sido efectuada, dispensam um muito minucioso e detalhado desenvolvimento da questão jurídica em apreço.

Como é consabido, o Tribunal Constitucional, no Acórdão 23/2006, declarou, com força obrigatória geral, a propositura de acções de investigação de paternidade deixaram de estar sujeitas a qualquer prazo de caducidade.

Como se fez constar da fundamentação desse Acórdão, na origem da inconstitucionalidade declarada esteve o entendimento de que as acções de investigação de maternidade e de paternidade são imprescritíveis por visarem o reconhecimento de um direito fundamental à identidade pessoal, consagrado no art. 26º da CRP., que pode ser definida como sendo aquilo que caracteriza cada pessoa enquanto unidade individualizada que se diferencia de outras por uma dada vivência pessoal e o direito a essa identidade como um direito fundamental e que tem como componente essencial a identidade genética, e consideram que o conhecimento e reconhecimento da paternidade e da maternidade integram e são uma das dimensões relevantes desse direito.[5]

Mas esta ideia da imprescritibilidade das acções de investigação da maternidade e da paternidade estava já a ser perfilhada pelo Tribunal Constitucional, que vinha a entender que “alteração dos dados do problema constitucionalmente relevantes a favor do filho e da imprescritibilidade da acção, designadamente, com o impulso científico e social para o conhecimento das origens, os desenvolvimentos da genética, e a generalização dos testes genéticos de muito elevada fiabilidade” e que “esta alteração não deixa incólume -o equilíbrio de interesses e direitos, constitucionalmente protegidos, alcançado há décadas, e sancionado também pela jurisprudência, empurrando-o claramente em favor do direito de conhecer a paternidade”.[6]

Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 23/ 11/ 2010, “contrariando esta tendência sucessivamente reafirmada pelo citado Tribunal, a Lei 14/2009, prevendo embora prazos mais dilatados que os que permitia o art. 1817º na redacção dada pela Reforma de 1977, não deixa de constituir um volte-face e um manifesto recuo àquele princípio da imprescritibilidade das ditas acções [e direitos que com elas se visam acautelar]. E é evidente que na sua origem esteve uma ideia ou um objectivo de segurança jurídica e a protecção da «paz da família do pretenso pai ou da pretensa mãe.

Só que, como o STJ já frisou [nos Acs. de 17/04/2008, proc. 08A474 e de 21/09/2010, supra mencionado], “conflituando o direito ao conhecimento da ascendência e verdade biológica com a «tranquilidade» do suposto pai (e muito menos de herdeiros a defenderem interesses puramente patrimoniais), sempre deveria prevalecer o primeiro já que (…) esse direito a conhecer a paternidade, valor social e moral da maior relevância, que se insere no direito de personalidade, é um direito inviolável e imprescritível”, e não podem “privilegiar-se direitos patrimoniais perante os direitos pessoalíssimos de personalidade e de identidade e os danos eventualmente causados à reserva da vida privada e familiar do pretenso pai não ficarão agravados com o decurso do tempo” [cfr. também Guilherme de Oliveira, in “Caducidade das Acções de Investigação” – Comemorações dos 35 anos do Código Civil, vol. I, pg. 29 e segs. e 53].

E no que diz respeito à defesa da paz da família do pretenso pai [caso que nos interessa] ou do seu agregado familiar, não deixam também de ser principalmente interesses de ordem patrimonial que lhe estão subjacentes [as expectativas dos herdeiros conhecidos e o evitar de acções com o propósito de «caça fortunas»], os quais, como decorre do que atrás se disse, devem claramente ceder no confronto com o direito pessoalíssimo à identidade pessoal do investigante, de muito maior dignidade constitucional que o da protecção da paz familiar do investigado e/ou dos interesses e expectativas dos herdeiros deste.

Por isso é que, como salientam os doutos arestos do STJ supra referenciados, o direito do investigante à descoberta e/ou à declaração da sua ascendência parental não pode ter entraves temporais ao seu exercício, podendo apenas sofrer restrições em casos em que este exercício constitua um abuso de direito, excedendo manifestamente os limites impostos pela boa fé ou pelo fim social daquele direito – art. 334º do CCiv. -, como acontecerá necessariamente nos casos em que se demonstre que o único objectivo do investigante é a obtenção de benefícios patrimoniais decorrentes do acesso, como herdeiro, ao património do pretenso pai, em posterior liquidação resultante do seu decesso.[7]

Este entendimento, no entanto, surgiu fruto de uma evolução no pensamento jurídico. Na verdade, começou por defender Guilherme de Oliveira que “devemos acrescentar, também, um novo direito fundamental implicado na questão: o «direito ao desenvolvimento da personalidade», introduzido pela revisão constitucional de 1997, «um direito de conformação da própria vida, um direito de liberdade geral de acção cujas restrições têm de ser constitucionalmente justificadas, necessárias e1 proporcionais. É certo que tanto o pretenso filho como o suposto progenitor têm o direito de invocar, do lado do filho, para quem o exercício do direito de investigar é indispensável para determinar as suas origens, a sua famí1ia, numa palavra, a sua «localização» no sistema de parentesco”.

Sem embargo, adiantava ainda que, “do ponto de vista do suposto pai, deve ter sido considerado o seu «direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar». De facto, a revelação de um filho desconhecido pode ser perturbadora, sobretudo quando, por circunstâncias ligadas à pessoa do suposto pai, ou pelo decurso do tempo, a revelação é muito surpreendente. Além de surpreendente, pode provocar danos efectivos no agregado familiar do interessado”.[8]

Razões pelas quais, concluía o mencionado Professor que o legislador, com a reforma de 1977, impondo para a propositura da acção, o prazo da menoridade do investigante ou nos dois primeiros anos posteriores à sua maioridade ou emancipação (artigo 1817º, n.º 1, aplicável por força do artigo 1873º do mesmo Código), constituía uma restrição proporcional do direito de investigar a paternidadepara defesa de interesses basilares do sistema jurídico, como eram a segurança jurídica, a viabilidade prática dos processos judiciais no sentido de atingirem a verdade, e o exercício dos direitos conforme às suas finalidades legais» porque era disto que se tratava quando se falava da necessidade de garantir «segurança» aos pretensos pais, do perigo de «envelhecimento das provas» e do uso do direito de investigar só para obter heranças. A Comissão terá pensado que a limitação resultante da caducidade não retirava ao pretenso filho uma ampla liberdade de intentar a acção”.[9]

Todavia, reponderando a sua perspectiva sobre a questão da caducidade escreve o mesmo autor que, “voltando hoje ao assunto, penso que alguns dados mudaram. Nesta balança em que se reúnem os argumentos a favor do filho e da imprescritibilidade da acção, e os argumentos a favor da protecção do suposto progenitor e da caducidade, creio que os pratos mudaram de peso.

Desde logo parece claro o movimento científico e social em direcção ao conhecimento das origens. Os desenvolvimentos da genética, nos últimos vinte anos, têm acentuado a importância dos vínculos biológicos e do seu determinismo, porventura com exagero; e com isto têm sublinhado o desejo de conhecer a ascendência biológica [Se não fosse esta tendência não se teria notado o movimento no sentido de acabar com o segredo acerca da identidade dos progenitores biológicos na adopção e na inseminação com dador]. Nestas condições, o «direito à identidade pessoal» e o «direito à integridade pessoal» ganharam uma dimensão nova que não pode ser desvalorizada.

Devemos acrescentar, também, um novo direito fundamental implicado na questão: o «direito ao desenvolvimento da personalidade» [art. 26.º da CRP], introduzido pela revisão constitucional de 1997 — um direito de conformação da própria vida, um direito de liberdade geral de acção cujas restrições têm de ser constitucionalmente justificadas, necessárias e proporcionais. É certo que tanto o pretenso filho como o suposto progenitor têm o direito de invocar este preceito constitucional, mas não será forçado dizer que ele pesa mais do lado do filho, para quem o exercício do direito de investigar é indispensável para determinar as suas origens, a sua família, numa palavra, a sua localização no sistema de parentesco”.

Assim, conclui citado autor: “Em conclusão, creio que os progressos técnicos e os movimentos sociais de valorização das origens e de responsabilidade individual estão contra a limitação de investigar que resulta do prazo de caducidade. Em face do quadro de direitos constitucionais implicados e de uma valoração particular dos interesses gerais defendidos pela caducidade, julgo que a limitação de agir que resulta do prazo estabelecido pela lei vigente significa uma restrição não justificada, desproporcionada, do direito do filho. Julgo, em suma, que se tornou sustentável alegar a inconstitucionalidade dos prazos estabelecidos nos arts. 1817.° e 1873.° CCiv”.[10]

Mais recentemente, Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira sustentam que os tempos correm a favor da imprescritibilidade das acções de filiação, a propósito da caducidade do direito a investigar a paternidade, escrevendo quenão tem sentido, hoje, acentuar o argumento do enfraquecimento das provas; e não pode atribuir-se o relevo antigo à ideia de insegurança prolongada, porque este prejuízo tem de ser confrontado com o mérito do interesse e do direito de impugnar a todo o tempo, ele próprio tributário da tutela dos direitos fundamentais à identidade e ao desenvolvimento da personalidade. Diga-se, numa palavra, que o respeito puro e simples pela verdade biológica sugere claramente a imprescritibilidade”. [11]

E isto porque, como refere Jorge Duarte Pinheiro,já não é razoável a imposição de prazos para a investigação da paternidade ou maternidade. Os testes de ADN permitem determinar com grande segurança a maternidade ou paternidade de uma pessoa, muitos anos após a morte do hipotético progenitor, o que afasta o risco da incerteza das provas. Quanto à caducidade da acção de investigação enquanto instrumento de tutela da segurança jurídica dos herdeiros e de combate da «caça às heranças», estão em causa argumentos de índole predominantemente patrimonial que não superam o interesse do filho no estabelecimento da respectiva filiação. Por fim, a tutela da segurança do pretenso pai está novamente aquém do interesse do filho, em especial num contexto de fiabilidade da prova do parentesco e de prevalência da ideia de responsabilidade parental pelo ser humano que foi gerado.[12]

E esta mesma posição da inconstitucionalidade do artigo 1817, nº 1), do C. Civil, é defendida em recente acórdão do S.T.J., onde expressamente se refere que “A propósito da hipótese concreta da acção de impugnação de paternidade ser movida pelo filho maior ou emancipado, foi decidido, neste particular, pelo Tribunal Constitucional, que “as razões que estiveram na origem da declaração da inconstitucionalidade do mencionado artigo 1817º, nº 1, do Código Civil estão outrossim para a disposição contida no artigo 1842º nº 1, alínea c) do mesmo Código, não se antevendo que o mencionado prazo de caducidade se justifique, quer dizer, que seja necessário e proporcional face aos valores que estão em causa, sempre que uma questão de filiação é colocada e que se afaste a possibilidade do direito ser conforme à realidade em homenagem a essas restrições

(…)

E, continua: “a limitação temporal não encontra grande apoio na natureza, predominantemente, moral e pessoal, do estado civil, com larga repercussão de interesse geral.

Na verdade, aqui e agora, o autor está a defender um direito próprio à verdade biológica, em matéria de paternidade, e a pretender esclarecer a sua posição social e jurídica, quer em relação ao seu estatuto de filho presumido, quer em relação ao agregado familiar em que se integra, quer ainda ao meio social em que se insere, encontrando-se, igualmente, a garantir o direito à sua identidade, assente na situação de presumido filho.

Efectivamente, o Código Civil Português entende a relação paterno-filial, no sentido restrito de filiação, exclusivamente, biológica, senão real, pelo menos, presumida (…), sendo ”sempre, o direito à identidade da filiação, o direito a ter um pai, que está em causa, embora repartido pelo direito do pai presumido ilidir a presunção de paternidade que sobre ele incide, enquanto duas faces opostas de uma mesma realidade.

E, nem se diga, em sentido contrário, em nome da defesa de valores, como o da segurança das relações familiares, que, uma vez estabelecida a paternidade, por presunção legal, já não é assim tão relevante saber da sua correspondência com a realidade biológica, como se à tranquilidade da boa consciência apenas interessasse a paternidade, independentemente da fonte de onde a mesma provenha.

Efectivamente, as razões de segurança jurídica, fundadas na paz social que advém dum quadro jurídico-familar estabilizado, mesmo não correspondendo à verdade biológica, deixam de fazer sentido perante o devir social.

Numa altura em que a sorte da relação jurídica de paternidade se joga na certeza da prova científica, e em que os testes de ADN são um instrumento privilegiado para alcançar esse fim, fora do sortilégio da prova testemunhal, constituiria fonte de incompreensão e de surpresa social que aquela prova ficasse prisioneira da prova por presunção, alcançada num contexto em que a realidade nada tem a ver com a verdade sociológica que está subjacente à presunção de paternidade que decorre do estipulado pelo artigo 1826º, nº 1, do CC[13]

“Daí que outra solução não reste senão a de considerar que o actual art. 1817º, na redacção dada pela indicada Lei, ao fixar prazos para a propositura de acções de investigação de maternidade e de paternidade [neste caso, «ex vi» do disposto no art. 1873º], contraria abertamente o prescrito nos arts. 18º nº 2 e 26º nº 1 da CRP que proíbem restrições ao direito à identidade pessoal, a não ser em casos que visem salvaguardar outros direitos ou interesses de maior ou idêntica protecção/garantia constitucional - que não acontece com a simples defesa da segurança jurídica e da «paz familiar do pretenso pai» ou do seu agregado familiar -, sendo, por via disso, materialmente inconstitucional.[14]

Improcede, assim, e na íntegra, a presente apelação.

Sumário – artigo 663, nº 7, do C.P.C..

I- Incide sobre o mérito da causa, independentemente da solução dada – procedência ou improcedência - ou da posterior evolução processual, o despacho saneador em que se apreciem excepções peremptórias, como a caducidade, a prescrição, a compensação, a nulidade ou a anulabilidade, ainda que a decisão não determine a extinção total da instância, prosseguindo esta para apreciação de outras questões, estando, por consequência, tal despacho, sujeito a recurso de apelação autónomo e imediato, nos termos do disposto no artigo 644, nº 1, al. b), do C.P.C..

II- O artigo 1817, nº 1), do C. Civil, na redacção que lhe f oi dada pelo artigo 1º, da Lei, 1/04, é materialmente inconstitucional, por contrariar o princípio da imprescritibilidade do direito à obtenção, por parte do respectivo interessado, da maternidade e/ou da paternidade (neste caso «ex vi» do art. 1873°), proclamado nos artigos 18º e 26°, da CRP.

III- E isto, porque, conflituando o direito ao conhecimento da ascendência e verdade biológica com a «tranquilidade» do suposto pai, sempre deve prevalecer o direito a conhecer a paternidade, valor social e moral da maior relevância, que se insere no direito de personalidade, e que é um direito inviolável e imprescritível.

IV- DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo Apelante.

Guimarães, 06/ 11/2014

Jorge Teixeira

Manuel Bargado

Helena Melo

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[1] Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 2ª edição revista e actualizada, p. 19

[2] Cfr. Autor e obra citados, p. 20.

[3] Cfr. Autor e obra citados, pags. 20 e 21.

[4] Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, p. 152-153.

[5] Cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, in “Constituição Portuguesa Anotada”, tomo 1, pgs. 284-285.

[6] Cfr. Acs. nºs 486/2004, de 07/06; de 11/2005, de 09/03 e 282/2005, de 04/08.

[7] Cfr. Acórdão da Relação do Porto, de 23/11/2010, processo nº 49/07.2TBRSD.P1, in www.dgsi.pt.

[8] Cfr. o artigo “Caducidade das Acções de Investigação”, publicado na revista Lex Familiae, n.º 1, 2004, págs. 7-13, e na obra Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, Volume I, 2004, págs. 52 e 53.

[9] Cfr. ob e autor cit, pág. 52 e 53.

[10] Cfr. ob. e autor cit. págs. 49-58.

[11] Cfr. Curso de Direito de Família, Volume II, Tomo I, 2006, pág. 139.

[12] Cfr. Inconstitucionalidade do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, Cadernos de Direito Privado, n.º 15 Julho/Setembro 2006, págs. 32-52.

[13] Cfr. Acórdão do S.T.J., de 16/09/2014, in www.dgsi.pt.

[14] Cfr. o citado Acórdão da Relação do Porto, de 23/11/2010