Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2313/11.7TBFLG.G1
Relator: MANUELA FIALHO
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/22/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: Os Tribunais portugueses não dispõem de competência internacional para os litígios em matéria contratual se, no caso de venda de bens, estes foram, por força do contrato celebrado, entregues noutro Estado.
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

C…, L.DA., sedeada na…, Felgueiras, interpôs recurso do despacho saneador que declarou a incompetência internacional dos tribunais portugueses.
Pede a respectiva revogação, com improcedência da excepção de incompetência absoluta por preterição das normas de incompetência internacional.
Funda-se nas seguintes conclusões:
1.ª – A questão a decidir no presente recurso é se os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para dirimir o presente pleito;
2.ª – A lei aplicável em tal matéria é o Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, de origem comunitária;
3.ª – Em termos de direito substantivo, estamos perante um contrato de compra e venda de natureza comercial;
4.ª – Como regra geral, o Regulamento (CE) n.º 44/2001 estabelece que as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado, elegendo o domicílio como factor de conexão relevante para a determinação da competência internacional do tribunal (art. 2º, n.º 1);
5.ª – Contudo, para o caso ora em análise, e uma vez que se está perante um contrato de compra e venda, a al. a) do n.º 1 do art. 5º do Regulamento estabelece um critério especial de determinação da competência jurisdicional: em matéria contratual, uma pessoa com domicílio no território de um Estado-Membro pode ser demandada noutro Estado-Membro, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão;
6.ª – Para o caso presente releva ainda a alínea b) do referido n.º 1 do art. 5º, segundo a qual, para efeito da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será, no caso de venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues;
7.ª – Por conseguinte, a obrigação relevante para efeito de determinação da competência internacional no confronto dos tribunais portugueses e dos tribunais franceses é a de entrega do objecto mediato do contrato de compra e venda celebrado entre a recorrente e a recorrida;
8.ª – E sobre o local onde os bens vendidos foram entregues não existe qualquer discordância entre recorrente e recorrida, antes pelo contrário, ambas estão de acordo em que a entrega dos bens ocorreu em Moreira da Maia, distrito do Porto;
9.ª – Com efeito, na contestação, onde foi suscitada a excepção de incompetência em apreço, foi alegado pela Ré que a mercadoria foi entregue pela Autora em Moreira da Maia, no Distrito do Porto (al. b) do art. 24º), e que tal acontecera, aliás, em conformidade com as condições de entrega estipuladas nos recibos de encomenda juntos como documentos n.º 1, 2 e 3, onde constam os termos “Incoterm FCA PORTO” (Artºs. 15º e 16º);
10.ª – Na réplica, a ora recorrente não só não contestou tais factos como até confessou expressamente que o calçado vendido tinha de ser entregue pela A. na Av. Vasconcelos Costa, em Moreira da Maia, comarca da Maia (art. 5º);
11.ª – Assim sendo, as partes pronunciaram-se nos autos sobre o lugar da entrega dos bens, estando ambas de acordo que essa entrega ocorreu em Moreira da Maia, ou seja, em Portugal;
12.ª – Mas se tal não se verificasse, ter-se-ia então de recorrer aos “termos do contrato”, quer seja estipulado expressamente o lugar de entrega quer seja tacitamente;
13.ª – E como bem defende Luís de Lima Pinheiro, “no caso da venda de bens à distância, a determinação desse lugar deve ter em conta todos os termos e todas as cláusulas pertinentes desse contrato que permitam designar de maneira clara esse lugar, incluindo os termos e cláusulas geralmente reconhecidos e consagrados pelos usos do comércio internacional, como os Incoterms” (Luís de Lima Pinheiro, in “Direito Internacional Privado”, Vol. III, Almedina, 2.ª edição refundida, 2012, pág. 112);
14.ª – Ora, como a R. alegou na contestação, o contrato de compra e venda de mercadorias celebrado entre recorrente e recorrida foi submetido ao regime do incoterm FCA, significando isto que o vendedor completa as suas obrigações quando entrega a mercadoria, desembaraçada para exportação, aos cuidados do transportador internacional indicado pelo comprador no local designado do país de origem, no caso presente Moreira da Maia;
15.ª – As condições de venda lançam, pois, luz sobre o lugar da entrega dos bens, permitindo estabelecer uma diferenciação entre o destino e o lugar em que a vendedora tinha de entregar a mercadoria, que era na sede do transportador internacional indicado pela compradora, em Moreira da Maia, comarca da Maia, Portugal, ficando o resto por conta da compradora;
16.ª – Na verdade, o local efectivo da entrega do bem vendido não tem de coincidir, necessariamente com o respectivo lugar de destino (Ac. do TRP de 26-04-2007 in www.dgsi.pt, tendo como relator Teles de Menezes);
17.ª – Por estarem bem cientes de tudo isto é que recorrente e recorrida estão de acordo que foi em Moreira da Maia que os bens vendidos foram efectivamente entregues;
18.ª – E assim sendo, são internacionalmente competentes para dirimir a presente acção os tribunais portugueses (Ac. do STJ de 10-05-2007 in www.dgsi.pt, tendo como relator Gil Roque);
19.ª – E pertencendo Moreira da Maia, no distrito do Porto, à comarca da Maia, será o Tribunal Judicial da Comarca da Maia o tribunal competente para a presente acção;
20.ª – Ao julgar procedente a excepção da incompetência dos tribunais portugueses, valorando o local de destino dos bens vendidos, mas ignorando o local onde a recorrente entregou efectivamente os bens vendidos, a sentença recorrida violou o disposto nas alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 5º do Regulamento (CE) n.º 44/2001.
Não foram proferidas contra-alegações.
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Eis, para melhor compreensão, um breve resumo dos autos.
C…, Lda. veio propor a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra SAS M…, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 64.340,09.
Fundamenta a sua pretensão nos seguintes factos:
- a Autora dedica-se ao fabrico e comercialização de calçado;
- a Ré dedica-se à comercialização de calçado;
- no âmbito das respectivas actividades, a Autora forneceu à Ré, várias quantidades de calçado;
- a Ré pagou parcialmente o preço.
Regularmente citada para os termos da presente acção, a Ré apresentou a
contestação através da qual vem alegar a verificação da excepção dilatória nominada de incompetência absoluta deste Tribunal em razão da incompetência internacional, pois o Tribunal competente para o conhecimento da presente acção é o Tribunal francês da área da sede da Ré.
Alega para o efeito e, em síntese, que nos termos do Regulamento (CE) n.º 44/2001, os critérios de conexão para aferir da competência do Tribunal são o da sede da Ré (França) e em matéria contratual o local da entrega dos bens (Maia).
Assim, pede em primeiro lugar que se julgue competente para apreciar o presente litígio a Jurisdição Francesa – local da sede da Ré –; ou o Tribunal Judicial da comarca da Maia – local da entrega dos bens por ser a sede da Intercom onde os bens vendidos foram entregues.
Em sede de réplica a Autora insurge-se quanto à incompetência deste Tribunal pois como a própria Ré reconhece os bens foram entregues na Maia, mas tal nada releva pois o local do cumprimento da obrigação pecuniária é o que determina a competência territorial do Tribunal e o preço do calçado deveria ser pago em Felgueiras.
Proferiu-se, após, despacho saneador que concluiu pela incompetência internacional dos tribunais portugueses, absolvendo a R. da instância.
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Das conclusões que exarámos acima extrai-se uma única questão a decidir, a saber, se os tribunais portugueses, concretamente o da Maia, são competentes para conhecer do litígio.
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Não foi fixada matéria fáctica na decisão em recurso.
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Com relevo para a discussão damos como assente, por admissão por acordo, que:
1 – A A. dedica-se ao fabrico e comercialização de calçado e a R. dedica-se à comercialização de calçado.
2 - No âmbito da actividade comercial de ambas, a R., para revenda à sua
cliente B…, encomendou à A. o fabrico das seguintes botas de senhora:
a) 1.724 pares com a referência 3797-1 da A. e 5207007 da R., de cor preta, pelo preço de 34.476,55€;
b) 3.371 pares com a referência 2967-1 da A. e 5207001 da R., de cor taupe, pelo preço de 63.408,51€;
c) 1.500 pares com a referência 2967 da A. e 5207001 da R., de cor preta, pelo preço de 28.215,00€.
3 - Essas referidas mercadorias estavam prontas para entrega à R. na data
combinada, ou seja, em 28 de Julho de 2011, tendo sido efectivamente entregues apenas em 5 de Setembro de 2011, a pedido e por conveniência da R..
4 - O valor do fornecimento destas botas de senhora foi apurado no documento contabilístico denominado factura, com o n.º 06267, de 20 de Julho de 2011, no valor global de 127.373,80€, que após a dedução do desconto de 1%, perfaz o montante de 126.100,06, valor esse que a R., face ao acordado com a A., deveria ter pago 60 dias após a data da factura.
5 - Contudo, a R. só pagou parcialmente tal débito, e já no mês de Novembro de 2011.
6 – A R. é uma sociedade francesa cuja actividade consiste na distribuição e comercialização de artigos de calçado, tendo a sua sede social em França, na localidade denominada…, não dispondo de outro estabelecimento.
7 – No âmbito do contrato de compra e venda celebrado com a R. a A. comprometeu-se a entregar a mercadoria nas exactas condições estipuladas nos recibos de encomenda que a R. lhe comunicara.
8 – Nesses recibos definem-se como condições de entrega: “Incoterm, FCA, PORTO”.
9 – Em conformidade com essas condições FCA PORTO e com o convencionado com a R., a A. entregou a mercadoria nas instalações do transitário A…, LDA., sitas na Avenida…, Moreira da Maia, Porto.
10 – É essa a direcção de onde partiu o transporte principal da mercadoria até ao seu destino final.
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Analisemos, então, a questão objecto do recurso – se os tribunais portugueses, concretamente o da Maia, são competentes para dirimir o litígio.
A competência internacional, tal como a nacional, afere-se em função do objecto da acção tal como o mesmo é configurado na petição inicial.
Conforme resulta dos factos que acima expusemos, em causa nestes autos está um incumprimento contratual, designadamente no que toca ao pagamento do preço.
Na verdade, celebrado pelas partes em litígio um contrato de compra e venda, o respectivo preço não foi pago na totalidade.
Não oferece discussão que, em matéria de competência internacional, está em vigor o Regulamento (CE) nº 44/2001, do Conselho, de 22/12/2000.
E, apresentando o litígio conexão com duas distintas ordens jurídicas – a portuguesa e a francesa – cabe indagar da competência internacional dos tribunais portugueses, visto não estarmos em presença de nenhuma das situações previstas no Artº 65ºA do CPC, em que o Estado se arvora de exclusivamente competente.
De acordo com o Regulamento comunitário supra mencionado, a regra geral em matéria de competência é a do domicílio.
Contudo, tratando-se, como no caso concreto, de matéria contratual, consagram-se competências especiais e, assim, uma pessoa com domicílio no território de um Estado-membro pode ser demandada noutro Estado-membro, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão (Artº 5º/1-a)).
Para efeitos de aplicação daquela disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação, no caso de venda de bens, é o lugar do Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues (b).
A matéria de facto é absolutamente omissa a propósito do convencionado acerca do local do cumprimento.
Na verdade, a partir dela não se obtém qualquer convenção sobre o lugar do cumprimento. Pelo que importa determinar o lugar onde, efectivamente, os bens foram entregues, sendo irrelevante, para este efeito, o local de entrega da mercadoria em trânsito, visto esse não ser o destino final da mesma.
Como se escreveu na sentença, citando o Ac. do STJ de 23/10/2007 (disponível no sítio www.dgsi.pt) os “Incoterms”, “ou seja, os termos ou condições de venda definem, nas transacções internacionais de mercadorias, as condições em que os produtos devem ser exportados consistindo em fórmulas contratuais que definem direitos e obrigações, tanto do exportador, como do importador”, sendo definidos pela Câmara de Comércio Internacional. A sua importância reside na determinação precisa do momento da transferência de obrigações, ou seja, do momento em que o exportador é considerado isento de responsabilidades legais sobre o produto exportado.
Não é, assim, a partir de tal figura que se define o lugar do cumprimento.
A resposta à questão enunciada depende, pois, de uma outra – qual o lugar onde, nos termos do contrato, os bens foram ou deveriam ter sido entregues.
Ora, decorrendo da matéria fáctica que acima expusemos que a R., adquirente, tem a sua sede em França, não dispondo de outro estabelecimento, e que a mercadoria lhe foi entregue, outra resposta não cabe senão a de que os bens transaccionados foram ali entregues.
E, assim, o tribunal competente é o do lugar de tal entrega e não qualquer tribunal português.
Donde, bem se decidiu ao declarar a incompetência internacional dos tribunais portugueses para o litígio.
Termos em que a apelação improcede.
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Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
Notifique.
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MANUELA BENTO FIALHO
EDGAR GOUVEIA VALENTE
PAULO DUARTE BARRETO FERREIRA