Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
182/19.8T9BCL-A.G1
Relator: FERNANDO MONTERROSO
Descritores: CONFLITO ATÍPICO MAGISTRADOS
IMPEDIMENTO JUIZ
INEXISTÊNCIA CONFLITO COMPETÊNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
Decisão: NÃO OCORRE O IMPEDIMENTO
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I – A circunstância de em julgamento anterior o juiz ter tido conhecimento direto dos factos que são objeto do processo, não é causa de impedimento, enquanto o juiz não tiver sido ouvido ou oferecido como testemunha.

II – Nesses casos, o incidente de escusa ou recusa do juiz é o meio para se obter a declaração de inabilidade do juiz.
Decisão Texto Integral:
I – Em 31-1-2019, no decurso do julgamento efetuado no Proc. 425/16.0T9BCL do Juízo Local Criminal de Barcelos – J1, presidido pelo sr. juiz R. S., o arguido M. B. proferiu expressões alegadamente atentatórias da honra e consideração de C. V..

Por causa dessas declarações, o M. B. veio a ser acusado como autor de um crime de difamação no Proc. 182/19.8T9BCL, o qual veio a ser distribuído para julgamento ao Juízo Local Criminal de Barcelos – J1, de que é titular o mesmo juiz R. S., que efetuara o anterior julgamento.

II – Concluso o processo, o sr. juiz R. S., invocando a norma do art. 39 nº 1 al. d) do CPP, declarou-se impedido de exercer funções no processo.

Transcrevo do seu despacho (1):

«Independentemente da fase em que o processo se encontre, está impedido o juiz que nele tenha sido ouvido como testemunha ou deva vir a sê-lo (art. 39.º-1, d) [, do CPP]). Em princípio, tal acontece quando o próprio juiz possui conhecimento direto de factos que constituam objeto da prova a realizar no processo (arts. 124.º-1 e 128.º-1), o que pode comprometer irremediavelmente a sua capacidade para conhecer da causa sem um juízo prévio sobre o sentido da decisão a tomar, assim ficando imediatamente em risco a garantia de imparcialidade. Com o impedimento, dá-se ainda satisfação, de forma mediata, à finalidade de descoberta da verdade material, já que sem o afastamento do juiz poderia frustrar-se a produção de prova (sc., o depoimento testemunhal do juiz) com relevo para um cabal esclarecimento da causa».

III – Remetido o processo ao sr. juiz substituto M. C., o mesmo proferiu despacho a considerar não existir o invocado impedimento, porquanto (transcrevo) “é sempre pressuposto do funcionamento deste impedimento o facto do juiz em questão já ter sido ouvido como testemunha (em sede de inquérito), ou então dever ser ouvido nessa qualidade no julgamento, em resultado de ter sido oferecido como testemunha (…). Pois bem, compulsados os autos verifica-se, por um lado, que o Juiz titular do processo não foi ouvido em sede de inquérito como testemunha e (…) também não foi o arrolado como testemunha…”.
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IV – Suscitado o conflito, foi observado o disposto no art. 36 nºs 1 do CPP.

Nesta Relação de Guimarães o sr. procurador-geral adjunto emitiu parecer no sentido de que “deverá ser atribuída a competência para a tramitação do supra identificado processo ao Sr. “Juiz Titular” do Juízo Local Criminal de Barcelos - J1”.
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FUNDAMENTAÇÃO

Uma primeira nota.

Não estamos perante um verdadeiro conflito de competência, pois este só existe quando “dois ou mais tribunais (…) se considerarem competentes ou incompetentes para conhecer do mesmo crime…” – art. 34 nº 1 do CPP.
No caso, não se suscitam dúvidas de que a competência é do Juízo Local Criminal de Barcelos – J1.
Estamos, antes, em presença de um conflito atípico entre magistrados, que importa decidir nos mesmos termos dos conflitos de competência, tendo em vista o disposto no art. 4 do CPP quanto à integração de lacunas.
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Está causa saber se existe impedimento legal de um juiz exercer a sua função num processo quando tem conhecimento direto dos factos objeto do julgamento.

Dispõe o art. 39 do CPP, sob a epígrafe «Impedimentos»

1 - Nenhum juiz pode exercer a sua função num processo penal:
(…)
d) Quando, no processo, tiver sido ouvido ou dever sê-lo como testemunha.
2 - Se o juiz tiver sido oferecido como testemunha, declara, sob compromisso de honra, por despacho nos autos, se tem conhecimento de factos que possam influir na decisão da causa. Em caso afirmativo verifica-se o impedimento; em caso negativo deixa de ser testemunha.

Os factos ocorreram durante um julgamento presidido pelo juiz que se declarou impedido, mas nada nas normas transcritas particulariza a situação. A solução não pode ser distinta da adotada para todos os outros casos em que o juiz, por qualquer razão, profissional ou não, tomou conhecimento dos factos que vão ser objeto do julgamento.
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O texto da norma do art. 39 nº 1 al. d) do CPP refere que o impedimento abrange apenas o juiz que já “tiver sido ouvido ou dever sê-lo como testemunha”. Não o juiz que “puder” ser ouvido como testemunha.

Só se pode afirmar que «deve» ser ouvido como testemunha quem já tiver sido arrolado nessa qualidade. Só este alcance dá sentido à norma do nº 2 do mesmo art. 39, que é harmoniosa e se conjuga com a al. a) do nº 1. O juiz que «deve» ser ouvido como testemunha é o que tiver sido oferecido como testemunha. O nº 2 estabelece o regime a observar nesses casos.
Ora, o sr. juiz R. S. não foi ouvido nem foi oferecido como testemunha.
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A inabilidade do juiz pode ser consequência quer de impedimento (arts. 39 e 40 do CPP), quer de recusa ou escusa (art. 43 do CPP).

Mas a declaração de impedimento, por um lado, e a decisão sobre a recusa e a escusa, por outro, têm procedimentos diferentes.

Os impedimentos são taxativos. Os casos de impedimento estão tipificados na lei, sendo objetivos. Por exemplo, a circunstância de constituir impedimento o facto do juiz ser, ou ter sido cônjuge do arguido ou do ofendido [art. 39 nº 1 al. a) do CPP], não deixa significativa margem para dúvidas ou interpretações subjetivas sobre o alcance da norma. Ter sido ouvido ou arrolado como testemunha também não.

Daí que seja o próprio juiz a declarar-se impedido. Verificada uma situação tipificada na lei, o juiz declara-a imediatamente por despacho dos autos – art. 41 nº 1 do CPP.

É diferente o regime da recusa e da escusa. Aqui requer-se que perante o caso concreto seja formulado o juízo de que “há risco de a intervenção do juiz ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade” – art. 43 nº 1 do CPP. A redação da norma é ampla.

Coerentemente, sendo necessária a formulação dum juízo sobre o caso concreto, a decisão sobre a inabilidade não cabe ao próprio juiz, mas ao tribunal imediatamente superior – art. 45 nº 1 do CPP.
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Este enfoque esclarece as eventuais dúvidas que possam ser suscitadas pela redação da al. d) do nº 1 art. 39 do CPP.

Em abstrato, o conhecimento que um juiz tem dos factos que vão a julgamento ou de parte deles, poderá nuns casos torna-lo inábil para julgar, mas noutros ser irrelevante, por o conhecimento ser sobre aspetos marginais.

Nesses casos, o percurso para a eventual constatação da inabilidade do juiz passa por se suscitar o incidente de recusa ou de escusa e não pela declaração de impedimento.
[Naturalmente, não cabe no âmbito deste despacho formular qualquer juízo sobre se o caso dos autos configura uma situação que possa validamente fundamentar um pedido de recusa ou escusa de juiz].

Assim, sem necessidade de mais considerações, conclui-se que a razão está do lado do sr. juiz M. C..

DECISÃO

Decido que não ocorre o impedimento invocado no despacho em conflito pelo sr. juiz R. S. para efetuar o julgamento no Proc. 182/19.8T9BCL.
Não é devida tributação.
Observe-se o disposto no art. 36 nº 3 do CPP.
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23-3-2020

Fernando Monterroso


1 - Citação do Prof. Figueiredo Dias (in Sujeitos Processuais Penais: O Tribunal, Texto de apoio ao estudo da unidade curricular de Direito e Processo Penal do Mestrado Forense da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (2015/2016), p. 25).