Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
304/13.2GAVRM.G1
Relator: PEDRO CUNHA LOPES
Descritores: RECONHECIMENTO FOTOGRÁFICO
REQUISITOS LEGAIS
VALORAÇÃO PROBATÓRIA
ARTºS 147º
DO CPP E 32º
Nº 1
DA CRP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/07/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1 - O reconhecimento fotográfico pressupõe que sejam mostradas à testemunha várias fotografias, além da do suspeito.

2 - Ao reconhecimento fotográfico deve seguir-se o reconhecimento pessoal em banda.

3 - É lesivo dos direitos de defesa do arguido (art.º 32º/1 C.R.P.), o reconhecimento feito sem observância de nenhuma das regras previstas no art.º 147º C.P.P.

4 - Quando o depoimento identificativo da testemunha se baseia apenas em reconhecimento sem observância das disposições legais, seria contraditório dizer-se que não vale o reconhecimento, mas vale o depoimento.

5 - Nestes casos, não se devem considerar provados os factos constantes da acusação apenas com base no referido depoimento.
Decisão Texto Integral:
1 – Relatório

Por sentença proferida e depositada em 30 de Janeiro de 2 017, foi José condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3º/1 e n.º 2), D.L. n.º 2/98, 3/1, por referência aos arts.º 121º, ns.º 1) e 4) e 123º/1, Código da Estrada, na pena de 110 (cento e dez) dias de multa, à taxa diária de 9€ (nove euros).

Inconformados com o decidido, desta decisão recorreu o arguido para este Tribunal da Relação, recurso que terminou com as seguintes conclusões:

I. “Dos factos nº1 e nº2 da Sentença objeto de recurso, indevidamente dados como provados:

1º. - O Tribunal a quo, apesar de motivar e justifica a sentença objecto do presente recurso, aprecia e valora a prova com base em critérios arbitrários e exclusivamente subjetivos, espelhando na decisão apenas o seu intimo e as sua convicções pessoais, pré concebidas e pré conceituosas.
2º.- Mesmo sabendo que o principal meio de prova – prova por reconhecimento -, indispensável para imputar o crime de condução sem habilitação legal ao Arguido, era inadmissível, o Tribunal a quo, sem pejo algum, preterindo as mais elementares regras axiológicas do processo penal, condenou o Arguido pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3º, nº1 e nº2 do DL nº 2/98, de 3/1, por referencia aos art. 121º, nº 1 e 4 e art. 123º, nº1 do Código da Estrada, na pena de 110 dias de multa à taxa diária de € 9,00, num total de € 990,00.

Ora,
3º.- O Arguido, aqui Recorrente, vem acusado de que “No dia 14 de Novembro de 2013, pelas 12h05, conduzir o veiculo ligeiro de passageiros com a matricula XX, na Rua de Riolongo, Freguesia de Mosteiro, Vieira do Minho, quando embateu no veículo ligeiro de de passageiros, com a matricula IF, conduzido por Manuel, sem que fosse titular de carta de condução ou de qualquer outro documento que o habilitasse a conduzir aquele tipo de veículo.
4º.- E ainda que “conhecia as características do referido veículo e do local onde conduzia, sabendo também que não era titular da carta de condução ou de qualquer outo documento que o habilitasse a conduzir”
5º.- Dos factos descritos, o Tribunal a quo considerou-os como provados - facto provado nº1 e nº2 respetivamente.
6º.- Na formação da sua convicção, o Tribunal a quo teve em consideração o acervo documental junto aos autos, designadamente o auto de noticia, o auto de participação do acidente, a informação prestada pelo IMT, comprovativo do pedido de renovação do cartão de cidadão, e ainda o depoimentos das testemunhas André (Militar da GNR), Manuel e R. P..
7º.- Atento aos factos descritos na Acusação, a sua subsunção no tipo de crime imputado ao Arguido, carece, inevitavelmente, da produção de prova que associe o Arguido ao condutor do veiculo descrito na Acusação, de forma inequívoca e indubitável.
8º.- Todo o acervo documental junto aos autos, assim como o depoimento das testemunhas que não presenciaram e contactaram diretamente com os factos descritos na Acusação, são por si só, absolutamente irrelevantes, por nada provarem.
9º.- É, assim, imprescindível que as mesmas sejam corroboradas pelo depoimento escorreito, claro e inequívoco de quem tenha conhecimento direto dos factos.
10º.- Ora, das testemunhas inquiridas, apenas o sr. Manuel teve conhecimento direto e ocular dos factos descritos na Acusação.
11º.- Cujo depoimento seria preponderante para determinar e identificar quem conduzia o veiculo de matricula XX, que contra si embateu.
12º.- A despeito de prestar um depoimento claro e coerente, a testemunha em caso algum confirmou de forma inequívoca que o condutor do veiculo era o Arguido.
13º.- Mesmo sendo-lhe sugeridas as respostas, tanto pela Meritíssima Juiz, como pela Ilustre Srª Procuradora do MP, a testemunha manteve-se firme nas suas convicções, não afirmando em circunstância alguma, que o Arguido era o condutor do automóvel XX.
14º.- Em sede julgamento, sendo a testemunha Manuel confrontada com um documento, que alegadamente, à data dos factos, lhe foi exibida pelos militares da GNR, e que se encontrava no interior do automóvel, teve dificuldades em reconhecer se seria o mesmo.
15º.- Note-se bem, em caso algum a testemunha afirmou, sem qualquer dúvida, que o documento ali exibido seria o mesmo apresentado pelo militar da GNR, à data dos factos – cfr. o depoimento da testemunha Manuel, aos 6.19 min. aos 6.37 min. e aos 8.27 min., transcrito nas alegações.
16º.- Perante as respostas espontâneas da testemunha, fica claro que esta tinha serias dúvidas se o documento apresentado, em sede de julgamento, correspondia àquele que lhe foi exibido pelos militares da GNR, à data dos factos.
17º.- Mostrou as mesmas hesitações quando inquirido sobre o reconhecimento da fotografia constante naquele documento – cfr. depoimento da testemunha Manuel, aos 8.40 min., e aos 9.15 min., transcrita nas alegações.
18º.- A sinceridade, espontaneidade e coerência do depoimento da testemunha Manuel, deixou bem claro e sem qualquer margem para dúvida, que não tinha a certeza de quem conduzia o automóvel de matricula XX, de tal modo, que o Tribunal a quo concordou que a testemunha já não tinha muito presente quem seria o condutor do referido automóvel – cfr. Afirmação da Mª. Juiz, aos 9.20 min. do depoimento da testemunha Manuel, transcrito nas alegações.
19º.- A determinação e identificação do agente do crime, passaria sempre pelo depoimento de quem tenha presenciado e vivenciado o facto.
19º.- No caso sob judice a única testemunha com conhecimento direto e ocular dos factos foi o Sr. Manuel.
20º.- Que, apesar de mostrar boa orientação espacial e temporal dos factos, com um depoimento escorreito e sem contradições, não associou, de forma clara e inequívoca, o Arguido ao condutor do veículo de matricula XX.
21º.- Aliás, consta da declaração amigável de participação de sinistro às seguradoras que, o condutor do veiculo XX, era senhor G. R., pai do Arguido.
22º.- Perante tal circunstância, o advogado do Arguido, exibiu à testemunha Manuel duas fotografias, uma do Arguido e outra do seu pai, e aos 13.29 min. do depoimento da referida testemunha, interrogando-a se conseguiria dizer sem qualquer dúvida, quem, daquelas duas pessoas, conduzia o veículo XX.
23º.- Em resposta a Testemunha respondeu que não podia garantir – cfr. depoimento da testemunha Manuel, aos 13.44 min, transcrito nas alegações.
24º.- Assim, é incompreensível que o tribunal a quo firme a sua convicção num depoimento, que em caso algum, foi perentório relativamente ao condutor do aludido automóvel, como sendo o Arguido.
25º.- A determinação do condutor do veiculo, em sede de julgamento, passou essencialmente pelo seu reconhecimento fotográfico.
26º.- A testemunha Manuel, afirma no seu depoimento, aos 6.43min., que os militares da GNR lhe exibiram um documento e que este tinha uma fotografia e que conseguiu identificar como condutor – cfr. o depoimento do militar da GNR, aos 3.40 min., transcrito nas alegações.
27º.- Conclui-se portanto, sem dúvida alguma, que a identificação do Condutor foi feita mediante reconhecimento fotográfico, nos termos do art. 147º, nº 5 do CPP.
28º.- Determina o referido preceito que o reconhecimento fotográfico só vale como meio de prova, somente caso seja posteriormente realizado um reconhecimento presencial.
29º.- O art. 147º, nº5 CPP define o reconhecimento fotográfico como um passo prévio ao reconhecimento físico integrante da investigação, não possuindo autonomia como meio de prova.
30º.- Para ser válido, este reconhecimento fotográfico deve ser seguido de um “verdadeiro reconhecimento” conforme ao art. 147º, nº2.
31º.- No caso em escrutínio, a identificação do Condutor por reconhecimento fotográfico não foi, em momento ulterior, confirmada com o reconhecimento físico, nem em sede de inquérito, nem em sede de julgamento, uma vez que foi julgado na ausência.
32º.- Face o exposto, a identificação do Arguido por reconhecimento fotográfico é inadmissível, não valendo como meio de prova, independentemente da fase do processo, conforme estatui o art. 147º, nº7 ex vi nº5 do CPP.
33º.- Assim, o tribunal a quo deveria ter julgado não provado os factos nº1 e 2 constantes da Sentença, objeto de recurso.
34º.- Pelo que, para efeitos do 412º, nº2, al. a) e nº3, al. a) e b) do CPP, foram violadas as normas relativas à obtenção de prova mediante reconhecimento e em consequência, a restante prova produzida sugeria outra decisão – absolvição -, tendo sido, portanto, a matéria de facto incorretamente julgada.

II. Da Prova Produzida e da Livre Apreciação da Prova

35º.- Conforme o já propalado e reiterado, da prova produzida, apenas a testemunha Manuel teve conhecimento direto e ocular dos factos,
36º.- Que a despeito da identificação do condutor aquando dos factos, por reconhecimento fotográfico, conforme o concluído supra, nunca no seu depoimento associou o Arguido ao condutor do veiculo XX.
37º.- Aliás, das suas declarações resulta, inequivocamente, que nunca viu, falou ou contactou com o Arguido.
38º.- Ora, estranha-se que alguém, como a testemunha Manuel, não reconheça com firme certeza alguém com quem se haja envolvido num acidente de viação nas circunstâncias descritas na Acusação, mesmo decorridos três anos
39º.- Episódios destes não serão muito frequentes para a generalidade das pessoas, marcando-as inevitavelmente.
40º.- Assim, a conclusão será obvia: a testemunha Manuel nunca viu o Arguido.
41º.- Por conseguinte, os restantes meios de prova são irrelevantes, atento que por si só nada provam.
42º.- Destarte, o Tribunal a quo, ao dar como provados os factos nº 1 e2 da Sentença objeto de recurso, os quais resultaram de prova inadmissível e não produzida em audiência de julgamento, violou, alarvemente, o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127º do CPP.
43º.- Ensina Figueiredo Dias, que livre apreciação significa ausência de critérios legais pré- fixados e, simultaneamente, “liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada verdade material – de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e susceptíveis de motivação e controlo”
44º.- A este respeito, são ainda pertinentes as lições de Cavaleiro de Ferreira, salientando que aa “livre convicção como meio de descoberta da verdade” não é “uma afirmação infundada de verdade”.
45º.- Esclarece ainda Figueiredo Dias que a verdade que se procura é uma verdade prático-jurídica, resultado de um convencimento do juiz sobre a verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável.
46º.- Concretizando o “alvoroço” dogmático acerca da livre apreciação da prova, o TRC, processo nº 3/07.4GAVGS.C2, esclarece:

“(…)
III. - O julgador é livre, ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja “vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório”.
IV. - A livre convicção não pode confundir-se com a íntima convicção do julgador, impondo-lhe a lei que extraia das provas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso, e valoradas segundo parâmetros da lógica do homem médio e as regras da experiência.”
47º.- Parece que aquela distinção – livre convicção versus intima convicção - não está ainda bem cimentada no intimo da julgadora do Tribunal a quo, porquanto, e tendo em conta a decisão proferida, a distinta magistrada fez um julgamento unicamente com base em juízos pré concebidos.
48º.- Com efeito, violou o disposto no art. 355º, nº1 do CPP, porquanto a convicção do julgador, do Tribunal a quo, fundou-se em prova inadmissível e inócua, não podendo, portanto, ser valorada.

III. Da Violação do Principio in dúbio pro reu

49º. Conforme se disse supra, a prova produzida é insuficiente para imputar qualquer responsabilidade criminal ao Recorrente.
50º.- Desde logo, o único interveniente com conhecimento direto dos factos, a testemunha Manuel, confrontado com fotografias do Arguido não o associou de forma inequívoca ao condutor do Veículo XX.
51º.- Mesmo que o fizesse, essa reconhecimento, fotográfico, era inadmissível, não valendo como meio de prova, conforme o concluído supra.
52º.- Consequentemente, os restantes meios de prova são inócuos, porquanto se desconhece quem é o Autor material dos facto, elemento incontornável e essencial do tipo objetivo de ilícito.
53º.- Pela análise da motivação e da convicção do julgador do Tribunal a quo, chega-se à conclusão que este, não pôde ficar com a firme certeza da autoria dos factos, e mesmo que tivesse, assentava num meio de prova inadmissível.
54º.- Há, portanto, um erro notório na apreciação da prova.
55º.- Isso acontece quando se dão factos como provados que, face às regras da experiência comum e à lógica normal da vida, não se poderiam ter verificado ou são contraditados por documentos que fazem prova plena e que não tenham sido arguidos de falsidade – vide Ac. TRC, processo nº 42/13.6GCMBR.C1
56º.- Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, evidenciada pela simples leitura do texto da decisão, erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, pois as provas revelam um sentido e a decisão recorrida extrai ilação contrária, incluindo quanto à matéria de facto provada.
57º.- Não obstante disso, e mesmo com sérias dúvidas acerca do autor material dos factos, foi proferida decisão de condenação contra o Recorrente, violando grosseiramente o princípio do in dúbio pro reo.
58º.- “O princípio do in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa” – Ac. STJ, processo nº 07P1769.
59º.- O princípio in dubio pro reo é uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP) contempla, impondo uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo” – vide, Ac. STJ, processo nº 07P1769.
60º.- Retira-se daqui que a sua preterição exige que o julgador não tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes,
61º.- No caso sob judice, relativamente à Autoria dos mesmos, esse estado de dúvida persistiu e o tribunal decidiu contra o Arguido.
62º.- Perante o exposto, a interpretação e aplicação do art. 127º do CPP, conforme o Tribunal a quo, condenando o Recorrente, viola o art. 32º, nº2 da CRP.
63º.- Com efeito, a interpretação deste preceito deveria ser interpretado e aplicado no sentido da Absolvição do Arguido.

Nestes termos e nos mais de direito e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida substituindo-se por outra que decida de harmonia com as antecedentes conclusões, absolvendo-se o Arguido dos factos de que vem acusado, sendo assim feita uma correcta aplicação da lei e a mais elementar JUSTIÇA.”

O M.P. não contra-alegou, em 1ª instância.

neste Tribunal da Relação teve vista no Proc.º a Dignm.ª Procuradora Geral Adjunta. Defendeu que a convicção do Tribunal se baseou num conjunto de provas admissíveis, que levou à prova dos factos imputados. Conclui pois a final, pela improcedência do recurso interposto pelo arguido.
Notificado nos termos do disposto no art.º 417º/2 C.P.P., o arguido respondeu. Voltou a sustentar o anteriormente referido, referindo que o parecer do M.P. se baseia em asserções genéricas e que a prova é insuficiente para sustentar os factos provados. Conclui pois e de novo, pela procedência do recurso.
Os autos vão ser julgados em conferência, como dispõe o art.º 419º/3, c), C.P.P.

2 – Fundamentação

Para uma melhor apreciação do caso concreto, transcrever-se-á de seguida a decisão recorrida, na parte pertinente – relatório, factos provados e sua motivação:

SENTENÇA
*
I. Relatório

O Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum, com intervenção de Tribunal Singular de

José, solteiro, filho de … e …, nascido a …, natural da Póvoa de Lanhoso, titular do cartão de cidadão n.º …, residente em …

Imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, nºs1 e 2, do Decreto-Lei nº 2/98, de 03/01, com referência aos artigos 121º, n.ºs1 e 4 e 123º, n.º1, do Código da Estrada.
*
Foi saneado o processo, recebida a acusação e designado dia para a audiência de discussão e julgamento (fls.243-244).
*
O arguido não apresentou contestação, mas juntou os documentos de fls.258-261.
*
Procedeu-se à realização de audiência de discussão e julgamento, com observância das formalidades legais, conforme resulta da presente ata.
*
Após o despacho que designou dia para a audiência de julgamento, não ocorreram nulidades, exceções, questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer. Por isso, nada obsta ao conhecimento do mérito da causa.
*
II. Fundamentação de Facto

2.1. Factos Provados

Da audiência de julgamento e com interesse para a decisão da causa resultaram provados os seguintes factos:

Acusação pública

1. No dia 14 de novembro de 2013, pelas 12h05, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula XX, na Rua de Riolongo, em Mosteiro, Vieira do Minho, quando embateu no veículo automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula IF, conduzido por Manuel, sem que fosse titular de carta de condução ou qualquer outro documento que o habilitasse a conduzir aquele tipo de veículo.
2. O arguido conhecia as características do referido veículo e do local onde conduzia, sabendo também que não era titular de carta de condução ou de qualquer outro documento que o habilitasse a conduzir o mesmo.
3. Não obstante, quis conduzir aquele veículo, bem sabendo que não podia conduzi-lo, em vias públicas, sem possuir a necessária carta de condução.
4. Agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Mais se provou que

5. O arguido é possuidor, desde 04/02/2016, da carta de condução n.º16AC38798, da República Francesa, para veículos das categorias AM, B1 e B.
6. O arguido reside e trabalha em França, auferindo o rendimento mensal bruto de €1.472,72.

Antecedentes criminais

7. Por decisão de 29/01/2015, do Tribunal Correcional de Brest, o arguido foi condenado pela prática em 28/01/2014, do crime de roubo por astúcia, arrombamento ou escalada num local de habitação ou lugar de armazenamento agravado por uma outra circunstância, em dois meses de pena suspensa.
*
2.2. Factos Não Provados

Dos que teriam interesse para a decisão da causa, não ficaram por provar quaisquer factos.
*
2.3. Fundamentação da Decisão de Facto

A convicção do Tribunal assentou na análise crítica da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, assim como na documentação junta aos autos, designadamente o auto de notícia de fls.3-4, o auto de participação de acidente de fls.5-6, a informação prestada pelo IMTT a fls.9, o comprovativo do pedido de renovação do cartão de cidadão de fls.43, a declaração de fls.62, o assento de nascimento de fls.149, o registo fotográfico de fls.221, o CRC e tradução de fls.254-255 e 269, a cópia da carta de condução de fls.258 e o contrato de trabalho de fls.259-261, tudo devidamente valorado e conjugado com as regras da experiência comum, nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal.
Assim, para a prova da materialidade descrita em 1-2 dos “factos provados” valorou-se, além do auto de notícia de fls.3-4, o auto de participação de acidente de fls.5-6, a informação prestada pelo IMTT a fls.9, o comprovativo do pedido de renovação do cartão de cidadão de fls.43 e a declaração de fls.62, os depoimentos prestados por André (militar da GNR que se deslocou ao local onde ocorreu o acidente de viação), Manuel (condutor do outro veículo interveniente no acidente de viação), que primaram pela espontaneidade e objectividade, e R. P. (avô do arguido).

De facto, André afiançou que, no final do ano de 2013, no período da manhã, após o recebimento de uma chamada a dar conta da ocorrência de um acidente de viação em Riolongo, no exercício das suas funções, se deslocou ao local e aí chegado apenas encontraram um dos condutores dos veículos intervenientes no acidente. O outro veículo, marca e modelo Volkswagen Golf, de cor azul escuro, com matrícula francesa, estava no local, contudo, o seu condutor tinha desaparecido. No interior desse veículo encontraram o comprovativo do pedido de renovação do cartão do cidadão do arguido e exibido ao condutor do outro veículo, este confirmou tratar-se do condutor daquele veículo. Posteriormente, removeram o veículo do local e entregaram-no ao avô do arguido. Confrontado com o documento de fls.43, confirmou respeitar ao comprovativo do pedido de renovação do cartão do cidadão que encontraram no interior do veículo com a matrícula francesa.

Corroborando este depoimento, Manuel, com conhecimento direto e ocular, asseverou que, em dia que não se recorda, mas no período da manhã, quando conduzia o veículo automóvel com a matrícula IF, em Riolongo, Vieira do Minho, foi embatido por um veículo automóvel, da marca e modelo Volkswagen Golf, de cor escura, com matrícula francesa, cujo condutor era um jovem, aparentemente com cerca de 18 anos, que, após o embate, saiu do veículo e, dizendo que ia chamar um colega para o auxiliar, desapareceu do local. Chamou a GNR, que aí chegada e após revistar o outro veículo automóvel, lhe exibiu um documento referente à renovação do bilhete de identidade, que encontraram no interior daquele veículo e, nessa altura, não teve qualquer dúvida em identificar a pessoa em causa como sendo o condutor do veículo.

Por último, R. P., apesar de inicialmente ter hesitado em assumir que o arguido, seu neto, conduzia o veículo automóvel em questão – propriedade da sua filha [mãe do arguido] que reside e trabalha em França -, instado, acabou por fazê-lo, afirmando que chegou a ver o arguido a conduzir o mencionado veículo sem ser titular de carta de condução.
Estes depoimentos reforçam, assim, o auto de notícia de fls.3-4, o auto de participação de acidente de fls.5-6 e a declaração de fls.62, que constituem dados probatórios de cariz objetivo e apontam no sentido da versão veiculada pela acusação.

Por seu turno, a informação prestada pelo IMTT a fls.9 é clara em afirmar que, à data dos factos, o arguido não era possuidor de carta de condução que o habilitasse a conduzir veículos automóveis, o que se mostra reforçado pela cópia da carta de condução junta a fls.258, da qual se conclui que entretanto – em fevereiro de 2016 - o arguido se habilitou com carta de condução para veículos automóveis da categoria B.

Portanto, cotejados os depoimentos produzidos em audiência de julgamento com a documentação que compõe os autos e as regras do normal acontecer e do senso comum, podemos raciocinar-se sem margem para qualquer dúvida pela veracidade dos factos dados como provados, por ser essa a versão mais consentânea com a realidade, desde logo, pelo modo escorreito, espontâneo e circunstanciado com que André e Manuel depuseram.

É certo que, em julgamento, Manuel não logrou identificar o arguido como sendo o condutor do referido veículo, o que se mostra compreensível tendo em conta o tempo entretanto decorrido, no entanto, importa considerar, por um lado, que tal testemunha afiançou que, no dia dos factos, não teve a mínima dúvida em identificar a pessoa constante do comprovativo de renovação do documento de identificação, encontrado no interior do veículo, como sendo o seu condutor do veículo e, por outro, André confirmou que o documento que constitui fls.43 corresponde ao que encontraram no interior do veículo em questão.
Urge dizer-se ainda que não obsta à convicção a que se chegou, a circunstância de na declaração amigável que compõe fls.89-90 constar como condutor do veículo automóvel o pai do arguido [v. assento de nascimento de fls.149], pois cremos que tal visou obstruir o accionamento do direito de regresso por parte da correspondente companhia de seguros.
O elemento subjetivo resulta da conjugação dos factos objetivamente apurados com as regras da experiência comum e do normal acontecer. Na verdade, a conduta do arguido - que após o embate desapareceu do local, com o pretexto de que iria chamar um colega para o auxiliar -, espelha a vontade em praticar os factos acima descritos e o conhecimento das suas consequências. Além disso, é do conhecimento do senso comum que a condução de veículo automóvel sem habilitação legal constitui ilícito criminal.
No que respeita à voluntariedade dessa conduta e à sua consciência da ilicitude, dos relatos feitos pelas testemunhas, sobressai que o arguido tem capacidade de distinguir entre o bem e o mal e de se determinar de acordo com essa avaliação. Aliás, o arguido, consciente da ilicitude da sua conduta, após o embate no veículo tripulado por Manuel, imediatamente, se ausentou do local, aí deixando o veículo que conduzia.

Para a prova da materialidade descrita em 5 e 6 dos “factos provados” valorou-se os documentos que compõem fls.258 e 259-261, cujo teor não foi impugnado nem contraditado pela prova produzida em julgamento.
No que toca ao pretérito criminal ao arguido foi decisivo o certificado de registo criminal junto aos autos a fls.254-255 e a correlativa tradução de fls.269, devidamente examinado.
Não se respondeu à restante matéria por ser irrelevante, conclusiva ou respeitar a matéria de direito.”

2.1. – Questão a Resolver

2.1.1. – Da Matéria de Facto Fixada

2.2. – Da Matéria de Facto Fixada

É uma única, a questão suscitada neste recurso: a de saber se é suficiente a prova produzida em julgamento, no sentido de que era o arguido quem conduzia o veículo em causa nos autos.

Recorde-se que este foi interveniente em acidente de viação e se ausentou do local, já ali não estando quando chegou a G.N.R. (depoimento de André, Militar da G.N.R.). No carro, estaria uma fotocópia de pedido de renovação do B.I. do arguido, que a testemunha Manuel, a outra interveniente no acidente, reconheceu como sendo do próprio – depoimentos concorrentes de André e de Manuel.

Manuel não conheceria antes o arguido, pelo que o seu depoimento identificatório do arguido se faz valer unicamente de tal ato de reconhecimento, que não foi seguido de qualquer reconhecimento presencial. Aliás, a própria fotografia do arguido não lhe é mostrada, de entre outras.
Trata da prova por reconhecimento, o atual art.º 147º C.P.P., que a partir da revisão de 2 007 passou a conter uma norma que se refere aos reconhecimentos por fotografia, filme ou gravação. Nos termos do respetivo n.º 5), o “reconhecimento fotográfico” só vale como meio de prova, se seguido de reconhecimento feito nos termos do n.º 2), desse mesmo normativo – o reconhecimento pessoal em banda, em que o arguido surge com pelo menos duas outras pessoas o mais semelhantes possível, cabendo à testemunha indicar quem participou nos factos.

Na verdade, nem um reconhecimento fotográfico existe pois este pressupõe que seja mostrada a fotografia do arguido, acompanhada de uma série de outras. Como se diz no Acórdão do S.T.J. de 15/3/2 007, proferido no Proc.º n.º 07P659, de 15/3/2 007 e reproduzido em “www.BDJur.pt”

“Assim, por exemplo, não é admissível que se mostre uma única fotografia do suspeito. É preciso que se exiba a fotografia do suspeito em conjunto com uma ampla variedade de outras fotos de pessoas de características similares.”

No caso, a testemunha Manuel, única que reconhece o arguido no local dos factos, identifica-o apenas com base numa fotocópia do respetivo pedido de renovação do B.I. Acresce que não foi feito reconhecimento pessoal, como determina o art.º 147º/5 C.P.P., o que leva a que tal reconhecimento não possa valer como meio de prova – art.º 147º/7 C.P.P.

Até aqui, a questão parece pacífica, no sentido da não admissão de tal meio de prova.
Não pode porém esquecer-se que a Jurisprudência tem distinguido a invalidade da prova por reconhecimento, do depoimento identificativo por parte da testemunha, legítimo e a ser livremente apreciado pelo Tribunal, nos termos do disposto no art.º 127º C.P.P. É o caso, por exemplo, dos reconhecimentos na sala de audiências, inválidos ante o disposto nos arts.º 147º/2 e n.º 7), C.P.P., mas que a Jurisprudência vem entendendo como identificações válidas, no âmbito de um depoimento e a serem livremente apreciadas pelo Tribunal, nos termos do disposto no art.º 127º C.P.P. Por todos, como se diz no Acórdão da Relação do Porto de 10/12/2 016, Proc.º 223/14.5CPMTS.P1, Élia São Pedro,

“A invalidade do reconhecimento fotográfico e presencial apenas afasta esses especiais meios de prova, mas não contamina algo que lhes é anterior, como a perceção físíca que a ofendida captou de uma das pessoas que a “roubou” e que a mesma afirma ter reconhecido.”

Ou seja: não vale o reconhecimento – que aliás não tem qualquer valor reforçado como meio de prova e que antes, deve ser livremente apreciado pelo Tribunal, também nos termos do disposto no art.º 127º C.P.P. – mas pode valer o depoimento identificativo, também no âmbito da livre apreciação do Tribunal.
Esta corrente Jurisprudencial já sedimentada não é isenta de críticas.

Como diz Marta Dinis Ferreira, “Prova por Reconhecimento e Proibições de Prova”, em “repositório.ucp.pt”, pág. 49,

“A nosso ver, não podendo o reconhecimento ilegal ser valorado como meio de “prova por reconhecimento”, não podendo tão-pouco ser tomado em consideração como “prova testemunhal”. Na verdade, as diferenças entre estes dois meios de prova foram salientadas por nós e aceitar tal posição não só tornaria inútil o estabelecimento dos requisitos do art.º 147º C.P.P., como subverteria o instituto das proibições de prova por “proibir de um lado e permitir do outro”.

E, o caso dos autos é disso paradigmático. É que, a prova crucial é o “reconhecimento fotográfico” realizado pela testemunha Manuel. O Avô do arguido e testemunha R. P., admitiu que o carro interveniente no acidente dos autos e em que pretensamente o arguido se deslocava, de matrícula estrangeira, é pertença de sua filha, Mãe do arguido e acabou por admitir que, por vezes o neto o conduzia. Referiu ainda que, à data dos factos a sua filha não estava em Portugal, mas referiu ainda que o Pai do arguido também o conduzia, por vezes.
Ora, este depoimento reforça o de Manuel, mas sozinho é insuficiente para que se dê como provado que era o arguido José quem o conduzia. E, se é certo que que Manuel incrimina o arguido José, também o é que só o faz, porque o reconheceu, fotograficamente.

Dito de outra forma: só através do citado “reconhecimento” identifica o arguido, pessoa que não conhecia, anteriormente. Ora, o citado “reconhecimento” não foi feito acompanhado de fotografias de outras pessoas, nem seguido de reconhecimento pessoal, o que contraria o disposto nos ns.º 2), 5) e 7) do C.P.P. e o torna inválido, como meio de prova.

O Tribunal Constitucional decidiu já que

“é claramente lesivo do direito de defesa do arguido consagrado no n.º 1 do art. 32º da Constituição, interpretar o art.º 127º do C.P.P. no sentido de que o princípio da livre apreciação da prova permite valorar, em julgamento, um ato de reconhecimento realizado sem a observância de nenhuma das regras previstas no art.º 147º do mesmo diploma” – Acórdão do T.C. n.º 137/2 001, de 28/3, proferido no âmbito do Proc.º 778/00, publicado na 2ª Série do “D.R.”, de 29/6.

Com efeito, o legislador consciente dos modernos conhecimentos de Psicologia do Testemunho que dão conta do caráter altamente falível deste meio de prova, quis disciplinar de forma muito precisa o processamento do mesmo, de forma a reduzir esta álea.
Ora, se no caso dos autos a prova decisiva contra o arguido provém do dito ato de “reconhecimento”, que por si só é claramente “contra-legem”, não cumprindo qualquer dos requisitos previstos no art.º 147º C.P.P.
Seria completamente contraditório, neste caso, dizer que o reconhecimento não vale, mas que vale o depoimento, pois este baseia-se apenas naquele, na parte referente à incriminação do arguido.
Pelo que e com base no disposto nos arts.º 127º e 147º/7 C.P.P. deve ter-se a prova produzida como insuficiente para a incriminação do arguido. Pelo que e com base no disposto no art.º 412º/3, b), C.P.P., o recurso deve proceder considerando-se a prova produzida como insuficiente para a condenação do arguido.
Termos em que, o arguido deve ser absolvido.
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Razões por que,

3 – Decisão

a) se julga procedente o recurso interposto pelo arguido José e, por via disso, se altera a decisão recorrida, absolvendo-se o mesmo do imputado crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3º/1 e n.º 2), D.L. n.º 2/98, 3/1, por referência ao disposto nos arts.º 121º/1 e n.º 4) e 123º/1 C.E.
b) Sem custas.
c) Notifique.

(Pedro Cunha Lopes)
(Fátima Bernardes)