Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
115/16.3T8VNC-B.G1
Relator: ALEXANDRA VIANA LOPES
Descritores: INSOLVÊNCIA
HABILITAÇÃO DE CESSIONÁRIO
ADMISSIBILIDADE
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/03/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário da Relatora:

1. A apresentação de pedido de habilitação de cessionário na pendência de procedimento de exoneração de passivo restante (arts. 235º a 248º do CIRE), após o encerramento do processo de insolvência, nos termos dos arts.230º/1-d) e 232º do CIRE e a extinção de processo de reclamação de créditos, nos termos do art.233º/2-b) do C. P. Civil, preenche os requisitos, para efeitos da referida habilitação de cessionário e de substituição processual do credor cedente pelo credor cessionário (arts.263º e 356º do C. P. Civil, ex vi do art.17º do CIRE): de pendência do processo (para efeitos da decisão de exoneração ou não do passivo restante, com efeitos de extinção ou não dos créditos dos credores sobre o devedor/insolvente); de transmissão de direito de crédito em litígio (entre a pretensão do devedor insolvente na extinção do crédito e a pretensão dos credores na não extinção, em caso de verificação de condições que permitam a recusa antecipada da exoneração ou a posterior revogação da exoneração).
2. A recusa da habilitação e da substituição processual do cedente pelo cessionário, por a cessão ter sido celebrada para dificultar a posição da contraparte no processo (arts.263º/2 e 356º/1-a)-2ª parte do C. P. Civil, ex vi do art.17º do CIRE): exige a prévia alegação prévia e prova de factos que permitam concluir não só a intenção da transmissão se destinar a dificultar os direitos da parte no processo mas também que a mesma causa uma real dificultação dos direitos processuais da parte no processo, neste caso, do direito de defesa do insolvente no procedimento equitativo da exoneração de passivo restante, onde lhe assistem direitos de contraditório e prova (arts.243º/3 e 246º/3 do CIRE; art.293º/1 do C. P. Civil, ex vi do art.17º do CIRE); não pode ser decretada pelo facto do cessionário pretender pedir a recusa da exoneração do passivo restante ao devedor/insolvente (art.243º do CIRE), recusa que evita a extinção do seu crédito (art.245º do CIRE) e o habilita a poder vir a cobrá-lo junto do devedor nos meios comuns (art.233º/1-c) do CIRE).
Decisão Texto Integral:
As Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam no seguinte:

ACÓRDÃO

I. Relatório:

A sociedade P. B. Unipessoal, Ld.ª intentou o presente incidente de habilitação de cessionário, nos termos do art.º 351.º do CPC, por apenso aos autos de insolvência de F. J., incidente no qual:
1. A requerente:
1.1. Alegou como fundamento, em síntese: que, por escrito de 4 de outubro de 2019, adquiriu ao Banco ..., S.A., entre o mais, os créditos emergentes, bem como suas garantias e acessórios, reclamados pelo referido cedente nos presentes autos, pelo seu montante total de € 16 000 000,00; que o preço convencionado nesse escrito foi pago; que a cessionária e o cedente comunicaram aquele contrato de cessão ao insolvente, respetivamente, por cartas registadas de 07.10.2019 e 18.10.2019, que foram por aquele recebidas; que o insolvente não manifestou oposição à cessão por qualquer forma.
1.2. Terminou, pedindo que fosse habilitada como credora para todos os efeitos legais, no lugar do cedente Banco ..., S.A. e na qualidade de cessionária dos créditos identificados e peticionados nos presentes autos.

2. O insolvente opôs-se ao presente incidente de habilitação, por exceção e por impugnação:
2.1. Defendeu que não é admissível o incidente de habilitação de cessionário por não estarem verificados os pressupostos da habilitação incidental dos arts.351º a 357º do C. P. Civil (não aplicável à ação executiva, de acordo com a interpretação do art.263º/3 do C. P: Civil), em referência à modificação subjetiva do art.262º/a) do C. P. Civil (que enumera como: 1.º a pendência de uma ação; 2.º a existência de uma coisa ou direito litigioso; 3.º a transmissão da coisa ou direito litigioso na pendência da ação por ato entre vivos; 4.º o conhecimento da transmissão durante a ação), tendo em conta:
a) Que com o encerramento do processo de insolvência deixou de haver processo pendente (art.233º CIRE).
b) Que a cessão de créditos não transmite uma coisa ou direito litigioso para o requerente/cessionário num processo de insolvência, uma vez:
b1) Que as características do processo de insolvência levam a que numa cessão de créditos de um credor primitivo não se esteja perante a transmissão de uma coisa ou de um direito em litígio: que o processo não é de partes, em que o direito subjetivo de um esteja em conflito com o direito subjetivo de outro e deva decidir-se esse conflito, sendo o devedor e os credores sujeitos em volta dos quais o processo de insolvência se desenvolve; que não se está perante um litígio entendido como conflito de interesses privados- sendo que depois do decretamento da insolvência a intervenção dos credores depende da reclamação de créditos, os credores veem modificada a estrutura dos referidos créditos (pelo princípio par conditio creditorum que impõe a comunhão nas perdas resultante da insuficiência do património do devedor) e limitado o uso dos instrumentos para a sua tutela (no exercício do seu direito de ação executiva- art. 88.º/1 do CIRE; na titularidade de certos direitos reais de garantia dos seus créditos, devido à suscetibilidade de extinção dos privilégios creditórios e garantias reais- art. 97.º do CIRE; no recurso a certos meios de extinção das obrigações, nomeadamente os condicionalismos impostos ao exercício do direito de compensação- art. 99.º do CIRE; no recurso a certas providências de conservação do património do devedor, pelos condicionamentos impostos ao direito de instauração de ações de impugnação pauliana- art. 127.º do CIRE; no gozo de certas posições processuais, por força das regras da inatendibilidade, na graduação de créditos, da preferência resultante da hipoteca judicial ou da prioridade da penhora- art. 140.º/ 3 do CIRE), elevando-se os seus interesses a um nível supra individual e adquirindo uma indiscutível dimensão objetiva.
b2) Que a exoneração do passivo restante, pela sua razão de ser e pelo seu regime, não constitui um litígio que oponha o devedor e os credores, pois: o seu fim é proporcionar um fresh start ao devedor e não a satisfação dos credores da insolvência; a cessão de rendimentos feita no período de cessão deve ser feita ao fiduciário, o único que pode, no final de cada ano do período de cessão, proceder aos pagamentos (sucessivamente: a) ao pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida; b) ao reembolso das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do próprio fiduciário que tenham sido suportadas pelo organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça; c) à distribuição do remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência- art. 241º/1 do CIRE). Assim, entende que, inexistindo uma relação substantiva em litígio, está vedado à requerente substituir processualmente o credor cedente através de um incidente de habilitação, o qual tem como condição sine qua non estar-se em presença de uma transmissão, por atos entre vivos, da coisa ou direito litigioso.
b3) Que apenas é admissível a habilitação em ações declarativas, sendo o processo de insolvência um processo executivo especial (de execução universal e concursal).
b4) Que a cessão de créditos não é um negócio em si mas o efeito de um dado negócio jurídico causal, sendo necessário a existência e a exigibilidade do crédito (art.578º do C. Civil), o que não acontece neste caso- em que, com a exoneração do passivo restante, o valor do crédito é praticamente nulo, tal como a sua exigibilidade; ao tempo da cessão, quer o Banco ... quer a requerente sabiam que o crédito cedido não tem expressão material, nem pode ser exigido judicialmente com sucesso, levando a que o negócio-base da cessão (a compra e venda do crédito) seja nulo por simulação absoluta (art. 240º do C. Civil), o que lhe pode opor (arts.585º do C. Civil, 286º do C. Civil, 356º/1-a) do C. P. Civil).
b5) Que a cessão de crédito (decorrente de antiga atividade do Banco …) é feita em fraude à lei, e, nesta medida, é nula (art.280º do C. Civil, arts. 1º/1-a) e 4º/1-a) do RGICSF), uma vez que as cessões (DL n.º 42/2019, de 28 de março) são apenas admitidas quando a cessionária seja uma instituição de crédito ou sociedade financeira sujeita à supervisão e ao controlo do Banco de Portugal ou ainda quando a cessionária seja uma sociedade de titularização de créditos, sujeita à supervisão e ao controlo da CMVM, o que não acontece com a “cessionária” requerente, sendo que, a coberto de um negócio aparentemente legal, se transfere a gestão e recuperação de crédito para uma entidade (a requerente) exterior ao sistema financeiro, que não está autorizada a praticar operações de crédito e escapa à supervisão e controlo do Banco de Portugal.
b6) Que a requerente (com capital de € 5 000, 00, com volume de negócios de € 30 000, 00, com objeto social de serviços administrativos, sem capacidade económica para pagar € 75 000, 00 ao cedente), age a mando e em representação dos interesses do … e do Banco … (que visam alcançar o controlo da X).
2.2. Alegou e defendeu: que o negócio-base da cessão (a compra e venda do crédito), é nulo por simulação absoluta, na medida em que nem o cedente Banco ... quis vender o crédito, nem a cessionária habilitanda o quis comprar, assim como nem a requerente pagou qualquer quantia nem o Banco ... a recebeu, tudo se resumindo a um expediente fraudulento gizado para tornar mais difícil a posição do devedor insolvente no procedimento de exoneração do passivo restante; que há uma nulidade da cessão de créditos emergente da violação de regra legal imperativa relativa ao exercício de atividade financeira.
2.3. Pediu ainda, a condenação da requerente, nos termos e ao abrigo do disposto no art.º 542.º e seguintes do C. P. Civil.
3. A requerente apresentou resposta à exceção de I-2 supra, na qual defendeu: que a exposição assenta numa falácia, evidenciada pela existência das normas dos arts. 235º, 233º/7 e 245º/1 do CIRE, pelas quais se verifica que o encerramento do processo de insolvência na sequência da admissão liminar da exoneração do passivo restante visa apenas dar início ao período de cessão de rendimento disponível, tendo em vista satisfazer, no seu decurso, o que for de satisfazer aos credores da insolvência e determinando a final a extinção dos créditos reclamados (arts.239º/3 e 241º/1-d) do CIRE), e conferindo aos credores o direito a, entretanto, exercerem os seus direitos adjetivos relativos ao cumprimento dos requisitos e pressupostos legais da exoneração, quer através do pedido de cessação antecipada do procedimento de exoneração, quer mediante a revogação da exoneração (arts.243º/1 e 246º/1 do CIRE), estando, assim, verificados os requisitos do art.356º do C. P. Civil; que, face aos factos que alega, nomeadamente em relação a ações pendentes, o insolvente tem património significativo, capaz de responder pelos créditos da insolvência; que, tendo tido conhecimento destes factos, considerou poder adquirir uma parte ou a totalidade dos créditos reclamados nos processos de insolvência, para, depois de promovidas as respetivas habilitações, requerer a cessação da antecipada da exoneração do passivo restante, para depois, na medida do possível e mediante o recurso aos mecanismos judiciais adequados, promover a recuperação dos respetivos créditos ou parte deles, não havendo qualquer expediente fraudulento na negociação que estabeleceu com o Banco ... para a aquisição dos créditos; que não existe qualquer nulidade da cessão por violação de regra legal imperativa relativa ao exercício de atividade financeira, pois a cessação não implica qualquer atividade financeira, nem existe qualquer norma jurídica que proíba ou restrinja a compra de créditos que tiveram origem em negócios ou operações bancárias, depois de findos os seus termos; que não foi alegado qualquer facto que permitisse concluir que a transmissão de crédito entre cedente e cessionário teve por concreto e específico fim dificultar a defesa do devedor.
4. A 26.01.2022 foi proferido despacho saneador, no qual:
a) Foi fixado o valor processual do incidente em € 75 000, 00.
b) Decidiu-se a admissibilidade do incidente, nos seguintes termos:
«Da impossibilidade/inutilidade da habilitação de cessionário
A admissibilidade da habilitação do adquirente, nos termos do art.º 356º do Cód. Proc. Civil depende da verificação dos pressupostos de aplicação do art.º 263º do mesmo diploma:---
a) a pendência da acção;
b) a existência de uma coisa ou de um direito litigioso;
c) a transmissão da coisa ou direito litigioso na pendência da acção por acto entre vivos;
d) o conhecimento da transmissão durante a acção.
Ora, como é sabido, é litigioso o direito que constitui o objecto processual, já que a coisa ou direito litigioso adquirem a natureza de “litigiosos” a partir do momento em que são objecto de um pedido formulado numa acção judicial. A litigiosidade surge, pois, com a propositura da acção, conforme se infere do n.º 1 do art.º 259.º do Cód. Proc. Civil. Porém, e quanto ao réu, e nos termos do n.º 2 do citado normativo, situação material somente se pode considerar litigiosa depois da sua citação.
Em relação à transmissão de posições jurídicas litigiosas pode assumir duas opções fundamentais: a proibição da transmissão de coisas ou direitos litigiosos, sob pena da sua invalidade; a permissão dessa transmissão, assegurando-se a protecção da parte estranha à transmissão. Tem-se entendido que esta segunda opção é a mais consentânea com os interesses em conflito, visto que a proibição da transmissão de direito e coisas em litígio criaria graves entraves ao comércio jurídico, tanto mais que a protecção da parte estranha à transmissão poderá facilmente ser obtida mediante mecanismos de natureza processual.
Na verdade, há que realçar que o incidente de habilitação não tem por finalidade resolver se o direito transmitido existe ou não, isto é, se a cedente tinha ou não o direito em causa no processo pendente – único que está aqui em questão – e que foi transmitido à adquirente.
Quanto ao modo procedimental de realizar esta substituição, o n.º 1 do art.º 376.º do Cód. Proc. Civil prescreve que a habilitação do adquirente ou cessionário da coisa ou direito em litígio, para com ele seguir a causa, far-se-á nos termos seguintes: lavrado no processo o termo da cessão ou junto ao requerimento de habilitação, que será autuado por apenso, o título da aquisição ou da cessão, é notificada a parte contrária para contestar: na contestação pode o notificado impugnar a validade do acto ou alegar que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo; se houver contestação, o requerente pode responder-lhe e em seguida, produzidas as provas necessárias, se decidirá; na falta de contestação, verificar-se-á se o documento prova a aquisição ou a cessão e, no caso afirmativo, declarar-se-á habilitado o adquirente ou cessionário.
Das disposições legais acabadas de transcrever decorre, em primeiro lugar, que, o incidente de habilitação de adquirente ou cessionário visa, tão só, produzir modificação nos sujeitos da lide (modificação subjectiva, como a designam os art.ºs 269.º e 270.º do Cód. Proc. Civil). Essa modificação opera-se colocando o adquirente ou cessionário da coisa ou direito em litígio no lugar e na posição processual que o cedente ocupava no processo, para que a causa prossiga entre os actuais titulares da relação jurídica controvertida. O habilitado, sucedendo na posição processual do cedente, passa a exercer os mesmos direitos e fica sujeito ao cumprimento das mesmas obrigações processuais que àquele competiam, sem interferir com o objecto da causa. Produz, deste modo, efeitos de natureza meramente processual, ao nível das partes que se defrontam na lide, sem interferir com a discussão do direito que constitui o objecto da causa, tal como é configurado pelo pedido e pela causa de pedir.
Não se compreendendo nas finalidades do incidente a discussão do direito substantivo em litígio na causa principal, justifica-se que a oposição à habilitação pela parte contrária esteja limitada a dois fundamentos, em alternativa, referidos na al. a) do n.º 1 do art. 376.º do Cód. Proc. Civil: a invalidade do acto de cessão ou transmissão, quer quanto ao objecto, quer quanto às pessoas que nele intervieram, ou que a cessão ou transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição na causa principal [cfr. Eurico Lopes-Cardoso, em Manual dos Incidentes da Instância em Processo Civil, actualizado por Álvaro Lopes-Cardoso, 1992, 360; J. Alberto dos Reis, em Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 3.º, p. 78; e Salvador da Costa, em Os Incidentes da Instância, p. 257].-
De modo que, havendo acordo, isto é, não sendo deduzida oposição, a habilitação, sendo embora facultativa, só pode ser recusada se o acto que é invocado como fundamento da habilitação não estiver documentado, for nulo ou não provar a aquisição ou cessão (art.ºs 271.º, n.º 2, e 376, n.º 1, al. b), 2.ª parte, do Cód. Proc. Civil).
Analisando o caso concreto em apreciação, constata-se que a sociedade requerente, através do presente incidente, pretende ocupar a posição processual que era ocupada, no processo de falência, pelo reclamante Banco ..., S.A.. Fundamenta, pois, este seu pedido de habilitação no contrato de cessão de créditos que está titulado pelo documento escrito junto como documento n.º 1 anexo ao requerimento inicial, no qual Banco ..., S.A. declara ceder à requerente o crédito que havia reclamado contra o insolvente, mantendo a natureza e acessórios a ele inerentes.
Por sua vez, o insolvente ora requerido contestou a peticionada habilitação, defendendo-se, desde logo, por excepção.
i. Por um lado, defende o contestante que, em face da natureza própria do processo de insolvência de que os presentes autos constituem instância incidental, se não pode falar da transmissão de uma coisa ou direito em litígio, tanto mais considerando-se o processo de insolvência, na sua configuração essencial, como um processo executivo especial.
Vejamos.
O processo de insolvência é, efectivamente, um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores (art.º 1º, n.º 1 do CIRE).
É um processo universal porque será por ele abrangido praticamente todo o património do devedor. É ainda um processo concursal, uma vez que todos os credores são chamados a intervir no processo, de modo a garantir a igualdade de todos aqueles que se encontrem nas mesmas condições, face às classes de créditos que invoquem, em conformidade com a previsão do art. 47º, n.º 4 do CIRE.
O processo de insolvência rege-se pelo Código de Processo Civil em tudo o que não contrarie as disposições do presente Código (art.º 17º do CIRE).
A reclamação de créditos está sujeita a condições temporais, objetivas, subjetivas e processuais.
A fase de verificação e graduação de créditos tem lugar logo após a declaração de insolvência, a qual determina o vencimento imediato das obrigações do insolvente, impondo a verificação do respetivo passivo. Constituindo um processo declarativo que corre por apenso ao processo de insolvência, a verificação e graduação de créditos compreende a reclamação de créditos (art.ºs 128.º a 135.º), o saneamento (art.º 136.º), a instrução (art.º 137.º) e, por último, a discussão e julgamento da causa (art.ºs 138.º e 139.º), que culmina na sentença (art.º 140.º).
Na sentença que declarar a insolvência, o juiz – se não concluir pela presumível insuficiência da massa insolvente, no condicionalismo a que alude o art. 39.º, n.º 1 do CIRE designará, além do mais, um prazo, «até 30 dias, para a reclamação de créditos», nos termos do art.º 36.º, n.º 1, al. j) do CIRE.
Feita a exposição em causa, e tendo por referência – como acima se expôs – que é litigioso o direito que constitui o objecto processual, ou seja, a partir do momento em que é objecto de um pedido formulado numa acção judicial, temos necessariamente de concluir que no processo de insolvência, declarada esta e aberta a fase de reclamação e, posterior, verificação e graduação de créditos, nos encontramos perante a litigiosidade necessária à admissibilidade do incidente de habilitação de cessionário, como é o caso do presente, instaurado precisamente por quem pretende ocupar a posição processual ocupada entretanto por credor reclamante.
ii. Por outro lado, defendem o contestante que, ante a abertura, com a prolação do respectivo despacho liminar, nos autos de insolvência do incidente de exoneração do passivo restante, não sendo o fim deste a satisfação dos credores, evidente se torna não constituir o mesmo um litígio que oponha o interesse daqueles ao dos devedores.
Vejamos.
O CIRE veio, entretanto, introduzir uma nova medida de protecção do devedor que seja uma pessoa singular, ao permitir que, caso este não satisfaça integralmente os créditos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento, venha a ser exonerado do pagamento desses mesmos créditos, desde que satisfaça as condições fixadas no incidente de exoneração do passivo restante destinadas a assegurar a efectiva obtenção de rendimentos para cessão aos credores.
Este incidente é uma solução que não tem correspondência na legislação falimentar anterior e que se inspirou no chamado modelo de fresh start, nos termos do qual o devedor pessoa singular tem a possibilidade de se libertar do peso do passivo e recomeçar a sua vida económica de novo, não obstante ter sido declarado insolvente [cfr. preâmbulo do DL 53/2004, de 18 de Março].
O procedimento em questão tem dois momentos fundamentais: o despacho inicial e o despacho de exoneração. A libertação definitiva do devedor quanto ao passivo restante não é concedida – nem podia ser – logo no início do procedimento, quando é proferido o despacho inicial a que alude o n.º 1 do art.º 239º do CIRE. Neste contexto, o CIRE veio estabelecer fundamentos que justificam a não concessão liminar da possibilidade de exoneração do passivo restante, os quais se traduzem em comportamentos do devedor relativos à sua situação de insolvência e que para ela contribuíram ou a agravaram [Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, pág. 188-190, da ed. de 2005, da Quid Iuris].
Não havendo razões para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, o juiz proferirá despacho inicial, determinando que durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, o fiduciário, para pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida, reembolso ao Cofre Geral dos Tribunais das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas, ao pagamento da remuneração vencida do fiduciário e despesas efectuadas e, por fim, distribuição do remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência, conforme dispõe o art.º 241º do CIRE.---
No final do período da cessão será proferida decisão sobre a concessão ou não da exoneração e, sendo esta concedida, ocorrerá a extinção de todos os créditos que ainda subsistam à data em que for concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados – art.º 241º, n.º 1 e 245º, ambos do C.I.R.E.
Em consequência do despacho inicial da exoneração o insolvente fica adstrito ao cumprimento das obrigações enumeradas no art.º 239º do CIRE, podendo a violação dolosa das mesmas, entre outras, determinar a cessação antecipada do procedimento de exoneração.
Neste âmbito, estamos indubitavelmente confrontados com dois interesses conflituantes: por um lado, a subsistência dos insolventes e, por outro, a finalidade primária do processo de insolvência que consiste no pagamento dos credores, à custa dos bens e dos rendimentos que deveriam ser canalizados para a massa insolvente.
O rendimento disponível é, assim, integrado por todos os recursos patrimoniais que o devedor aufira, a qualquer título, excepto os créditos previstos que tenham sido cedidos a terceiro, e durante o período de eficácia da cessão, o que seja razoavelmente necessário para o sustento do devedor e do seu agregado familiar (com o limite do triplo do salário mínimo nacional), para o exercício da sua actividade profissional e para outras despesas que, a requerimento do devedor, venham a ser consideradas pelo juiz, no próprio despacho inicial ou mais tarde, conforme resulta da interpretação conjugada do disposto no artigo 239º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Expostos os pressupostos do incidente em causa, concluímos mais uma vez que, considerando que o rendimento disponível do insolvente durante o período de cessão se considerará afecto à satisfação dos credores, nos encontramos perante a litigiosidade necessária à admissibilidade do incidente de habilitação de cessionário, como é o caso do presente, instaurado precisamente por quem pretende ocupar a posição processual ocupada entretanto por credor reclamante.

Assim, julgando-se admissível o presente incidente de habilitação de cessionário, o mesmo prosseguirá os seus termos, designadamente com vista à apreciação das demais questões suscitadas em sede de oposição (matéria de impugnação), relativamente às quais se mostra necessária a produção de prova.».
c) Foram admitidos e rejeitados requerimentos de prova.
d) Foi marcada audiência de julgamento.
5. Realizou-se a audiência de julgamento.
6. A 21.05.2022 foi proferida sentença, que decidiu:
«Pelo exposto, impõe-se, na procedência do incidente suscitado, julgar habilitada P. B. – Unipessoal, Ld.ª como cessionária na posição até então ocupada por Banco ..., S.A., credor reclamante no processo de que o presente constitui apenso, nos termos requeridos.
Ademais, julga-se improcedente o incidente de litigância de deduzido contra a Requerente.--
Custas pelo Requerido [art.º 539.º, n.º 1 do CPC].
Registe e notifique.».
7. O devedor insolvente interpôs recurso, no qual apresentou as seguintes conclusões:
«1.ª Não é exacto que se tenha verificado o trânsito em julgado da decisão que julgou improcedente a questão invocada pelo Recorrente da falta de verificação dos requisitos legais do incidente de habilitação, como é referido no relatório da sentença que julgou habilitada a Recorrida (cfr. pg. 1, 3º parágrafo).
2.ª Só são susceptíveis de recurso autónomo imediato as decisões taxativamente previstos nos n.ºs 1 e 2 do art. 644.º do CPC; todas as outras decisões só são impugnáveis no recurso da decisão final.
3.ª Sendo regra as decisões interlocutórias serem objecto de apelação diferida, o prazo recursório conta-se da decisão final do n.º 1 do art. 644.º em paralelo com prazo para o recurso desta.
4.ª A habilitação é um incidente processado autonomamente, pelo que o recurso das decisões interlocutórias proferidas no seu âmbito cai na previsão do n.º 3 do art. 644.º do CPC, só sendo impugnáveis com o recurso da decisão final da habilitação.
5.ª O despacho recorrido de fls. …, na parte em que julgou improcedente a falta de verificação dos pressupostos da habilitação de cessionário invocada pelo Recorrente, pode ser impugnado com o recurso da decisão final que, julgando procedente o incidente, declarou habilitada a Recorrida.
6.ª Cuidando-se esse despacho recorrido de uma decisão intercalar que não admite recurso imediato por não estar contida na previsão dos n.ºs 1 e 2 do art. 644.º do CPC, só podendo ser impugnada, como efectivamente é, no âmbito do recurso interposto da decisão final do incidente, de harmonia com o disposto no n.º 3 do mesmo preceito legal, não pode ser considerada como tendo transitado em julgado.
7.ª A habilitação tem apenas efeitos “ex nunc”, pelo que em caso de procedência do incidente, o cessionário apenas pode impulsionar o processo para o futuro, estando sujeito à actuação processual do cedente até à sentença que o julgue habilitado, momento em que cessa a substituição processual deste pelo transmitente.
8.ª A admissibilidade da habilitação do adquirente ou cessionário depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos: (i) pendência de uma acção;
(ii) existência de uma coisa ou direito litigioso;
(iii) transmissão da coisa ou direito litigioso na pendência da acção, por acto entre vivos, e
(iv) conhecimento da transmissão durante a acção.
9.ª Resulta clara e inequivocamente da redacção dos arts. 263º, n.º 1 e 356º, n.º 1, ambos do CPC, dada a utilização, respectivamente, do verbo “continuar” e da locução “para com ele seguir a causa”, que a habilitação só pode ter lugar na pendência de uma causa, sendo certo que uma coisa ou direito só podem ser litigiosos se, relativamente a eles, existir um litígio ou causa pendente.
10 Assim, é incontroverso, e incontornável, que a lei só permite a habilitação do adquirente ou cessionário se a transmissão ocorrer na pendência de uma causa, onde seja objecto imediato da controvérsia a dirimir nessa mesma causa.
11.ª O conflito jurídico, ou litígio, encontra o seu recorte conceptual no direito civil, uma vez que o direito processual civil não o faz, como a contraposição de interesses, em regra sobre um direito subjectivo, que surge de uma prestação não satisfeita ou negada; são elementos da litigiosidade a existência de uma acção e a dedução de contestação ou oposição pelo réu.
12.ª Para que se verifique a existência de direito litigioso é necessário que esteja pendente um litígio judicial surgido de uma pretensão objecto de oposição, cujo resultado seja incerto.
13.ª Por último, é ainda necessário o conhecimento dessa transmissão durante a acção, já que a norma do art. 263.º do CPC visa fundamentalmente proteger o sujeito adjectivo estranho à transmissão dos resultados negativos decorrentes da perda de legitimidade processual por parte do transmitente.
14.ª O processo de insolvência que nos ocupa foi encerrado em 26.4.2017, com a consequente extinção da instância falimentar, nos termos do disposto nos arts. 230º, n.º 1, al. d) e 232ª, n.º 2, do CIRE (verificação pelo AI de que a massa insolvente é insuficiente para satisfazer as custas do processo e restantes dividas da massa insolvente – cfr. acta de assembleia de credores, com a refª 40987964), consoante resulta do despacho proferido nessa data.
15.ª Porém, o crédito do Banco ... foi cedido à Recorrida em 4.10.2019 (cfr., requerimento de habilitação de fls. …), pelo que, nessa data, há muito que se encontrava encerrado o processo de insolvência.
16.ª Extinta a instância insolvencial em momento anterior à transmissão do crédito, a habilitação não é admissível, por já não fazer sentido a modificação (subjectiva) da instância, sendo certo que, como se deixou demonstrado supra, este incidente pressupõe, inter alia, que a causa esteja pendente.
17.ª O crédito do cedente Banco ... foi incluído na relação dos créditos reconhecidos apresentada pelo A. I. (cfr., requerimento de 12.5.2017, com a refª 25704524), tendo sido declarada a extinção da instância do processo de verificação de créditos com fundamento em inutilidade superveniente, dado o encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa insolvente, conforme despacho de 19.6.2017.
18.ª Reconhecido que foi o crédito cedido, por decisão transitada, deixou de ser litigioso, o que implica necessariamente que a sua existência deixou de ser controvertida, tendo-se formado caso julgado material.
19.ª Donde, a Recorrida, enquanto cessionária, adquiriu ao Banco ... um crédito não litigioso, na exacta medida em que a existência desse direito se tinha tornado certa e definitiva por força do seu reconhecimento no processo de insolvência, circunstância que afasta, sem mais, a admissibilidade do incidente de habilitação.
20 Tendo sido o processo de insolvência declarado encerrado por despacho de 26 de Abril de 2017, e comunicada pela Recorrida à Recorrente a aquisição do crédito ao Banco ... por carta de 7 de Outubro de 2019, segue-se que o conhecimento da cessão ocorreu num momento em que a causa já não estava pendente o que, por si só, afasta a possibilidade de dedução do pedido de habilitação.
21.ª A impugnação da sentença de fls. …, que julgou habilitada a Recorrida, pode ser sustentada na impugnação da decisão intercalar impugnada, que tem uma função prejudicial relativamente àquela decisão final.
22.ª Nessa conformidade, em sede de recurso da decisão final que julgou procedente o incidente de habilitação, por economia, dão-se por reproduzidos todos os fundamentos anteriormente aduzidos em sede de impugnação da decisão intercalar, dos quais resulta, salvo melhor opinião, a improcedência do incidente de habilitação.
23.ª A sentença recorrida não respeitou o disposto no art. 607º, n.º 4 do CPC, uma vez que a enunciação dos factos provados é manifestamente lacunosa (ao ponto de ser omitido o preço de aquisição do crédito do Banco ...), desconsiderando ainda um acervo de factos provados por documentos, dos quais resulta, de modo claro e seguro, a ilação de que a transmissão foi feita para tomar mais difícil a posição do Recorrente no incidente de exoneração do passivo restante.
24.ª Considerando a factualidade documentalmente provada, enunciada no corpo da alegação sob a epígrafe “Impugnação da decisão relativa à Matéria de Facto”, que, por economia, se dá aqui por integrada e reproduzida, segundo a normalidade das coisas, ninguém cede um crédito de mais de 16 milhões de euros pelo preço irrisório de setenta e cinco mil euros, salvo se entender que o mesmo é incobrável.
25.ª De igual modo, à luz da experiência comum, não é plausível que alguém se disponha a adquirir um crédito que não tem qualquer valor patrimonial, para se vir habilitar num processo de insolvência, já encerrado por insuficiência da massa insolvente.
26.ª Em processo de insolvência já encerrado, a aquisição por um terceiro, sem capacidade financeira para tanto, de um crédito do qual não há a expectativa séria e razoável de pagamento, não tem a mínima racionalidade económica ou justificação empresarial; e, não tendo, o motivo subjacente a essa tão estranha e especiosa operação só pode ser o de instrumentalizar a cessão de créditos para prejudicar o Recorrente no processo de exoneração do passivo restante.
27.ª Isso mesmo é reconhecido pela habilitanda quando, na comunicação ao recorrente da cessão de créditos, declara expressamente que a habilitação tem por finalidade “suscitar o incidente da cessação antecipada da exoneração do passivo restante, ao abrigo do estabelecido pelo artigo 243.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas” – cfr. doc. n.º 3 do requerimento de habilitação.
28.ª Os factos em apreço, provados que estão por documentos, devem ser aditados à matéria de facto provada, sendo certo que o Tribunal da Relação tem poderes para proceder a esse aditamento.
29.ª A intenção que determinou a Recorrida a adquirir o crédito e a habilitar-se como cessionária é matéria do foro interno, de natureza psicológica, cuja prova directa se torna assaz difícil; daí que constitua um domínio onde os recursos ás presunções judiciais se revela especialmente justificado, podendo a Relação delas fazer uso, tirando ilações de factos assentes no processo.
30 No caso dos autos, a conjunção dos factos provados documentalmente, vistos na sua literalidade e inteligência, convocam a ilação de que a cessão de crédito foi efectuada, não é ocioso repetir, para dificultar a posição processual do Recorrente, nomeadamente através da cessação antecipada doa exoneração do passivo restante; isso mesmo é, como se disse, confessado pela recorrida quando, ao comunicar ao Recorrente a cessão, diz expressamente que a habilitação tem por finalidade pedir a cessação antecipada da exoneração do passivo restante.
31.ª Em face dessa confissão espontânea da Recorrida, com força probatória plena (art. 358º, n.º 2, do CC), não se alcança o que mais é necessário provar para concluir que a recorrida adquiriu o crédito com o fim de tornar mais difícil a posição do Recorrente no processo.
32.ª Essa confissão, enquanto prova legal, prevalece sobre a resposta contida na al. c) dos factos dados como não provados, a qual, de resto, sempre deveria ser eliminada por recair sobre questão de direito.
33.ª Ao uso de presunções judiciais pela Relação não obsta o juízo de direito ou meramente conclusiva de que não foi dado como provado que “a presente habilitação tem como finalidade tornar mais difícil a posição do devedor insolvente no procedimento de exoneração do passivo restante” (cfr., al. c) dos factos não provados).
34.ª Saber se habilitação teve ou não como finalidade tornar mais difícil a posição do devedor insolvente no procedimento de exoneração do passivo restante, consiste numa exclusiva questão de direito, que se reporta, aliás, a um dos fundamentos previstos na lei para a oposição ao pedido de habilitação (cfr., art. 356.º, n.º 1, al. a), parte final, do CPC); só em sede de aplicação do direito aos factos é que se pode concluir sobre a finalidade da habilitação.
35.ª A matéria de facto dada como provada ou não provada só pode integrar factos concretos, materiais; a prova no processo judicial só pode recair sobre factos materiais e concretos, e, por isso, as afirmações formadas por juízos conclusivos, valorativos ou de direito são, por natureza, insusceptíveis de ser provadas.
36.ª Os juízos valorativos ou conclusivos e as questões de direito não podem integrar o acervo factual, devendo ser considerados não escritos e expurgados pelo Tribunal de recurso, por constituírem uma deficiência do julgamento da matéria de facto.
37.ª À luz das considerações antecedentes, é de meridiana evidência que a al. c) dos factos não provados se esgota numa questão de direito, devendo ser desconsiderada, tudo se passando como se não existisse.
38.ª Em face da matéria conclusiva ou de direito, a intervenção do Tribunal de 2.ª instância não se dá no âmbito do disposto nos arts. 640.º (impugnação da decisão relativa à matéria de facto) ou 662.º do CPC (modificabilidade da decisão de facto); a consequência de uma resposta à matéria de facto se esgotar num juízo conclusivo ou de direito é ser eliminada pela Relação.
39.ª A decisão recorrida violou as disposições legais supra enunciadas.

TERMOS EM QUE
se requer que a apelação seja julgada procedente e, em consequência da procedência do recurso, serem revogadas as decisões recorridas e substituídas por outra que declare improcedente o incidente de habilitação.».
6. Não foi apresentada resposta às alegações.
7. Foi admitido o recurso em 1ª instância (a subir nos próprios autos, imediatamente e com efeito devolutivo) e foi o mesmo recebido nesta Relação.
8. Colheram-se os vistos e realizou-se a conferência.

II. Questões a decidir:

As conclusões das alegações do recurso delimitam o seu objeto, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso não decididas por decisão transitada em julgado e da livre qualificação jurídica dos factos pelo Tribunal, conforme decorre das disposições conjugadas dos artigos 608º/ 2, ex vi do art. 663º/2, 635º/4, 639º/1 e 2, 641º/2- b) e 5º/ 3 do C. P. Civil.

Definem-se como questões a decidir:

1) Em relação ao despacho de 26.01.2022:
Se é admissível ou não a habilitação de cessionário: com base na cessão de créditos de 2019, ocorrida após o encerramento do processo de insolvência e a extinção da reclamação de créditos por inutilidade de 2017; em relação a crédito, que o recorrente defende não ser litigioso por ter sido reconhecido pelo administrador da insolvência e ter-se formado caso julgado sobre o mesmo (conclusões 1 a 22).
2) Em relação à sentença recorrida, para além do referido em 1) supra:
2.1) Quanto à matéria de facto:
2.1.1) Se pode ser aditado, e se tem utilidade aditar, o seguinte acervo de factos que a recorrente defende, com remissão para as alegações, que considera estarem provados documentalmente:
«a) O Banco ... declarou ceder à Recorrida o crédito de que é titular sobre o Recorrente (enquanto avalista da devedora, a sociedade Y - Sociedade de Investimentos Imobiliários, S. A. - em liquidação), no montante de € 16.000.181,56, pelo preço de € 75.000,00 – cfr., artigos 1.º e 2.º do requerimento de habilitação e documento número 1 junto com esse articulado (em especial, cláusula 1.1, alíneas b), f), g) e j);
b) No contrato de cessão de créditos sobre a epígrafe “Declarações e garantias”, a Recorrida prestou as seguintes declarações:
- Conhece, sem reservas, a situação financeira, patrimonial, contabilística, operacional e patrimonial da devedora, nomeadamente que a mesma está em liquidação”;
- “Conhece, sem reservas, que no Tribunal da Comarca do Porto - Vila Nova de Gaia, Instância Central - Secção do Comércio - J3 de Vila Nova de Gaia, no âmbito do processo 350/16.4T8VNG no dia 1 de Fevereiro de 2016, foi proferida a sentença de declaração de insolvência da Devedora, bem como os efeitos legais decorrentes da mesma, nomeadamente na devedora e nos créditos”;
- “Conhece, sem reservas, que o processo referido na alínea anterior foi encerrado, tendo a decisão de encerramento do processo sido determinada, por despacho proferido em 19 de Dezembro de 2017 pela insuficiência da massa insolvente da devedora, nos termos do disposto nos artigos 230.º e 232.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, bem como os efeitos legais decorrentes da mesma, nomeadamente na Devedora e nos Créditos”;
- “Conhece, sem reservas, que no Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, no âmbito do processo 115/16.3T8VNC, no dia 17 de Março 2017, foi proferida sentença de declaração de insolvência de F. J., bem como os efeitos legais decorrentes da mesma, nomeadamente no insolvente e nos créditos”. – cfr. doc. n.º 1 do requerimento de habilitação (cláusula 5.2., alíneas b), c), d) e h).
c) Por carta datada de 7.10.2019, a Recorrida, para além de comunicar ao recorrente a aquisição do crédito ao Banco ..., declarou o seguinte:
Neste quadro, nos termos da lei, esta sociedade irá comunicar a referida cessão de créditos ao processo de insolvência de pessoa singular que, sob o n.º 115/116.3T8VNC, corre termos pelo Juízo de Comércio de Viana do Castelo, a fim de neles se habilitar e subsequentemente suscitar o incidente da cessação antecipada da exoneração do passivo restante, ao abrigo do estabelecido pelo artigo 243.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas” – cfr. doc. n.º 3 do requerimento de habilitação;
d) A Recorrida é uma sociedade unipessoal por quotas; tem como único sócio e gerente o Dr. P. B. (que também é o seu mandatário judicial) e o seu capital social é de € 5.000,00 - cfr., doc. n.º 9 da oposição à habilitação; vd., tb., doc. n.º 1 do requerimento de habilitação (em especial, o reconhecimento de assinatura do Dr. P. B., na qualidade de único gerente da habilitanda), bem como a procuração forense anexa aos autos.» (conclusão 28).
2.1.2) Se deve ser eliminado o ponto c) da matéria de facto provado, por se tratar de matéria conclusiva que deve ser apreciada na apreciação de direito (conclusões 35 a 38).
2.2) Se deve ser indeferida a habilitação, por a requerente ter confessado que pretendeu pedir a habilitação para suscitar a cessação antecipada da exoneração do passivo restante do insolvente e as presunções judiciais permitirem concluir que a habilitação foi pedida para tornar mais difícil a posição do insolvente/recorrente no processo (conclusões 35 a 38).

III. Fundamentação:

1. Matéria de facto:
1.1. Matéria de facto processual provada face à força probatória dos atos processuais e considerada oficiosamente por esta Relação (art.663º/2 do C. P. Civil, em referência ao art.607º/4 do C. P. Civil):

1) No processo nº115/16.3T8VNC (iniciado como processo de revitalização em 2016 e transformado em processo de insolvência após parecer de 21.02.2017):
1.1) Após a sentença de insolvência de 07.03.2017, a 18.04.2017 o administrador da insolvência apresentou relatório do art.155º do CIRE, no qual indicou que não havia qualquer bem ou direito integrado na massa insolvente e a inventariar, nos termos do art.153º do CIRE.
1.2) A 26.04.2017 foi proferida a seguinte decisão de encerramento de processo nos termos do art.232º do CIRE e de fixação de honorários, apenas cumprida pela secretaria após 07.03.2019 (mediante reiterada ordem de cumprimento dada por despacho de 06.03.2019):
«Textua o n.º 1, do art.º 232.º do CIRE, que “Verificando que a massa Insolvente é insuficiente para a satisfação das custas do processo e das restantes dívidas da massa insolvente, o administrador da insolvência dá conhecimento do facto ao juiz, podendo este conhecer oficiosamente do mesmo.”
Acrescenta o n.º 2, do referido preceito e diploma, que “Ouvidos o devedor, a assembleia de credores e os credores da massa insolvente, o juiz declara encerrado o processo.”
In casu, atenta a proposta da Sr.ª Administradora da Insolvência declara encerrado o presente processo, nos termos do disposto do art.º 38.º do CIRE – cfr. 230.º, n.º 2 e comunique.
Ao abrigo do disposto no n.º 1, do art.º 188.º do CIRE, na redacção conferida pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, aguardem os autos por 15 dias a junção de eventuais alegações quanto á qualificação da insolvência.».
1.3) A 01.06.2017 foi decidido:
«Consigno a inexistência de quaisquer requerimentos no sentido da qualificação da insolvência como culposa e a inexistência de matéria que o justifique, pelo que decido não abrir incidente de qualificação (cfr. artigo 188º, n.º1 a contrario sensu do CIRE).».
1.4) A 13.03.2018 elaborou-se a conta do processo, em que foram contadas custas com saldo a pagar de € 12 548,00, relativamente às quais o insolvente foi notificado para efetuar o respetivo pagamento por guia enviada a 13.03.2017.
2) No processo de reclamação de créditos nº115/16.3T8VNC-A:
2.1) A 12.05.2017 a administradora da insolvência apresentou a relação de créditos reconhecidos (na qual declarou reconhecer 3 créditos comuns- do BANCO …, S.A., do BANCO ..., S.A e do BANCO ..., S.A, este no valor de capital de € 16 000 006,77 e juros de € 5 883 213,05) e declarou não existir qualquer crédito não reconhecido.
2.2) Após despacho de 01.06.2017 a convidar a administradora da insolvência a informar se está em condições de apreender bens, esta, a 14.06.2017, informou «que não existem bens susceptíveis de apreensão, tendo sido, por esse motivo, encerrado o presente processo.»
2.3) A 19.06.2017 foi proferida a seguinte decisão final, sobre a qual não recaiu recurso:
«Nos autos principais, no âmbito da assembleia de credores de 26/04/2017, foi encerrado o processo por insuficiência da massa insolvente, nos termos do disposto no artigo 232.º do CIRE.
Tal encerramento, nos termos do artigo 233º, n.º 2, alínea b), do CIRE, implica a extinção da instância dos processos de verificação de créditos, quando ainda não tiver sido proferida a sentença de verificação e graduação de créditos, como é o caso dos presentes autos (vide neste sentido e entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22/06/2016, processo 1976/12.0TBFUN—D.L1-2, relatado por Ondina Carmo Alves e integralmente disponível em www.dgsi.pt).
Face ao exposto, considerando que nos presentes autos ainda não foi proferida sentença de verificação e graduação dos créditos reclamados, declaro extinta a presente instância, por inutilidade superveniente da lide [cfr. artigo 277º, al. e) do CPC, aplicável ex vi do artigo 17º do CIRE].»
3) No incidente de exoneração do passivo restante do processo de insolvência nº115/16.3T8VNC:
3.1) A 19.04.2017 o insolvente pediu a exoneração do passivo restante.
3.2) A 26.04.2017 foi deferida a apreciação do pedido de 3.1) supra para depois da junção do documento e prestação de informação:
«Questionado a respeito da maioridade ou menoridade da filha do Insolvente, I. R., pelo ilustre mandatário daquele foi dito que a mesma atingiu a maioridade em Março deste ano, na sequência do que foi notificado para juntar, no prazo de 5 dias, Assento de Nascimento e, bem assim, comprovar, se for caso disso, a manutenção da obrigatoriedade do pagamento de alimentos.
Após a junção de tais elementos, abra conclusão a fim de me pronunciar por escrito quanto ao pedido de exoneração do passivo restante.».
3.3) A 04.05.2017 foi proferido despacho liminar de admissão da exoneração do passivo restante e foi decidido:
«excluir do rendimento disponível que o insolvente terá que entregar ao fiduciário nos termos do disposto no artigo 239º, n.º2 do CIRE, a quantia equivalente a um salário mínimo nacional (de acordo com o valor que esteja em vigor em cada momento), acrescida de € 400,00.».
3.4) A 18.05.2018 foi apresentado relatório com a informação que em 2017 o insolvente deveria ter cedido e cedeu efetivamente o valor de € 8 747,36, valor este que a administradora da insolvência, a 29.03.2019, informou que afetaria da seguinte forma:
«a) Ao pagamento parcial das custas do processo de insolvência, o valor de € 7.671,43.
b) Ao pagamento da sua remuneração, nos termos do disposto no artigo 28º da Lei n.º22/2013, de 26 de Fevereiro, o valor de € 874,74, acrescido do valor do IVA à taxa normal de 23%, ou seja, o valor global de € 1.075,93.
Vem, ainda, juntar aos autos o comprovativo da informação prestada, por correio electrónico, aos credores reclamantes. (Doc.1)».
3.5) A 04.06.2019 foi apresentado relatório que informou que o insolvente em 2018 deveria ter cedido e cedeu o valor € 5.129,28, valor este que a 27.05.2020 a administradora informou que iria afetar nos seguintes termos:
«a) Ao pagamento parcial das custas do processo de insolvência (€ 12.548,00 - € 7.671,43 = € 4.876,57), o valor de € 4.498,38.
b) Ao pagamento da sua remuneração, nos termos do disposto no artigo 28º da Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro, o valor de € 512,93, acrescido do valor do IVA à taxa normal de 23%, ou seja, o valor global de € 630,90.
Vem, ainda, juntar aos autos o comprovativo da informação prestada, por correio electrónico, aos credores reclamantes. (Doc.1)».
3.6) A 27.05.2020 foi apresentado relatório com informação que em 2019 o insolvente não cedeu qualquer valor e que não se apurou que tivesse um valor a ceder.
3.7) A 14.05.2021 foi apresentado relatório com a informação que em 2020 o insolvente deveria ter cedido e cedeu o valor de € 2.621,04, informando a administradora da insolvência que o iria afetar nos seguintes termos, para o que pediu autorização:
«a) Ao pagamento parcial das custas do processo de insolvência (€ 12.548,00 - € 7.671,43 - € 4.498,38 = € 378,19), o valor de € 378,19.
b) Ao pagamento da sua remuneração, nos termos do disposto no artigo 28º da Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro, o valor de € 262,10, acrescido do valor do IVA à taxa normal de 23%, ou seja, o valor global de € 322,38.
c) À distribuição do valor remanescente de € 1.920,47 pelos credores da insolvência, na devida proporção dos seus créditos:» (indicando, depois, sendo de afetar € 440, 50 ao Banco …, SA, € 0, 45 ao BANCO ..., SA, € 1920, 47 ao Banco ..., SA).
3.8) A 18.06.2021 a administradora da insolvência informou, em relação aos pagamentos dos credores, que:
«2- O credor Banco ..., SA comunicou que o crédito foi cedido e que se deve aguardar o desfecho do apenso de habilitação do cessionário. (Cfr. Doc.4)».
3.9) A 18.06.2020, a 07.06.2021 foi determinado: a fixação, a título de remuneração anual devida ao/à Fiduciário/a, do correspondente a 10% do valor cedido pelo trabalho desenvolvido, o que incluiria já despesas; a realização posterior de rateio, nos termos do disposto no art. 241.º do CIRE, pagas que estivessem as custas e a remuneração da fidúcia.
3.10) Na conta de custas de 21.06.2021 estava indicado o pagamento total das custas.
3.11) A 10.04.2022 o habilitante pediu a cessação antecipada da exoneração do passivo restante.
3.12) A 12.04.2022 foi proferido despacho a julgar que o habilitante de 3.11) supra não tinha ainda legitimidade para apresentar o referido requerimento (despacho em relação ao qual foi interposto recurso nº115/16.3T8VNC-F.G1) e a julgar cessado o período de cessão de rendimentos, face ao novo regime aprovado pela Lei nº9/2022, de 11 de janeiro.
3.13) A 12.05.2022 foi proferida decisão final de exoneração de passivo restante.
1.2. Matéria de facto provada e não provada na decisão recorrida:
«Os factos provados- designadamente para efeitos da previsão dos artºs.542.º e segs. do CPC- com interesse para a decisão em sujeito, são os seguintes:
3.1. Por escrito de 04 de Outubro de 2019, a requerente adquiriu ao Banco ..., S.A., entre o mais, os créditos emergentes, bem como suas garantias e acessórios, dos seguintes contratos:
· Contrato de financiamento número FEC005340/07 [ao qual, subsequentemente, foi atribuída a denominação “Financiamento n.º ROC 2030/12”, com as alterações decorrentes dos “ROC01102/13”, “ROC02032/13”, “ROC 3628/13”, “ROC 5679/13” e “ROC 9776/13”], no montante de €6.000.000,00 (seis milhões de Euros), celebrado por, entre outros, o Banco …, S.A. (cuja posição contratual transitou para o Banco, pela deliberação do Banco de Portugal de 03 de agosto de 2014), a Devedora e os Avalistas em 30 de janeiro de 2008, conforme alterado por diversos aditamentos celebrados entre as partes;
· Contrato de financiamento número FEC 5341/07 [ao qual, subsequentemente, foi atribuída a denominação “Financiamento n.º ROC 2029/12”, com as alterações decorrentes dos “ROC01103/13”, “ROC02033/13”, “ROC 3630/13”, “ROC 5680/13” e “ROC 7765/13”], no montante de €10.000.000,00 (dez milhões de Euros), celebrado por, entre outros, o Banco …, S.A. (cuja posição contratual transitou para o Banco, pela deliberação do Banco de Portugal de 03 de agosto de 2014), a Devedora e os Avalistas em 30 de Janeiro de 2008, conforme alterado por diversos aditamentos celebrados entre as partes (facto numerado em 3.1. na sentença).
3.2. Tais créditos foram reclamados e reconhecidos ao cedente nos presentes autos (facto numerado em 3.2. na sentença).
3.3. Quer a cessionária, quer o cedente, comunicaram aquele contrato de cessão ao insolvente, respetivamente, por cartas registadas de 07.10.2019 e 18.10.2019, que foram por aquele recebidas, não tendo aquele manifestado qualquer oposição (facto numerado em 3.3. na sentença).
3.4. O insolvente, seus pais, F. O. e M. J., e irmão, J. P., são os únicos sócios da W – SGPS, S.A., a qual, por sua vez, detinha uma participação de 20% na X – SGPS, Ld.ª (facto numerado em 3.4. na sentença).
*
Os factos não provados- designadamente para efeitos da previsão dos arts.542.º e segs. do CPC-, com interesse para a decisão em sujeito, são os seguintes:

a) Nem o cedente Banco ..., S.A. quis vender o crédito nem a cessionária habilitanda o quis comprar.
b) Nem a requerente pagou qualquer quantia nem o Banco ..., S.A. a recebeu.
c) A presente habilitação tem como finalidade tornar mais difícil a posição do devedor insolvente no procedimento de exoneração do passivo restante.
d) A sociedade requerente aparece como veículo de uma estratégia urdida entre o seu sócio, gerente e mandatário judicial, o Banco ..., S.A. e J. O., com o propósito de coagir o Requerido e outros familiares a com eles cooperarem e conluiarem para que aquele último venha a deter a titularidade da maioria do capital social da sociedade X – SGPS, Ld.ª, permitindo que, por essa via, o J. O. e o Banco ..., S.A. possam manter as participações sociais que detêm na sociedade K Têxteis, S.A., correspondentes, respectivamente, a 90% e 10% do capital social.
e) A Requerente deduz pretensão cuja falta de fundamento não pode ignorar, bem como altera a verdade dos factos, fazendo do processo um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal.».

2. Apreciação do objeto do recurso:
2.1. Quanto ao pedido de reapreciação do despacho recorrido:

O despacho recorrido julgou admissível a habilitação de cessionário, com base nos seguintes fundamentos, transcritos em I-4-b) supra:
«Por sua vez, o insolvente ora requerido contestou a peticionada habilitação, defendendo-se, desde logo, por excepção.
i. Por um lado, defende o contestante que, em face da natureza própria do processo de insolvência de que os presentes autos constituem instância incidental, se não pode falar da transmissão de uma coisa ou direito em litígio, tanto mais considerando-se o processo de insolvência, na sua configuração essencial, como um processo executivo especial.
Vejamos.
O processo de insolvência é, efectivamente, um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores (art.º 1º, n.º 1 do CIRE).
É um processo universal porque será por ele abrangido praticamente todo o património do devedor. É ainda um processo concursal, uma vez que todos os credores são chamados a intervir no processo, de modo a garantir a igualdade de todos aqueles que se encontrem nas mesmas condições, face às classes de créditos que invoquem, em conformidade com a previsão do art. 47º, n.º 4 do CIRE.
O processo de insolvência rege-se pelo Código de Processo Civil em tudo o que não contrarie as disposições do presente Código (art.º 17º do CIRE).
A reclamação de créditos está sujeita a condições temporais, objetivas, subjetivas e processuais.
A fase de verificação e graduação de créditos tem lugar logo após a declaração de insolvência, a qual determina o vencimento imediato das obrigações do insolvente, impondo a verificação do respetivo passivo. Constituindo um processo declarativo que corre por apenso ao processo de insolvência, a verificação e graduação de créditos compreende a reclamação de créditos (art.ºs 128.º a 135.º), o saneamento (art.º 136.º), a instrução (art.º 137.º) e, por último, a discussão e julgamento da causa (art.ºs 138.º e 139.º), que culmina na sentença (art.º 140.º).
Na sentença que declarar a insolvência, o juiz – se não concluir pela presumível insuficiência da massa insolvente, no condicionalismo a que alude o art. 39.º, n.º 1 do CIRE designará, além do mais, um prazo, «até 30 dias, para a reclamação de créditos», nos termos do art.º 36.º, n.º 1, al. j) do CIRE.
Feita a exposição em causa, e tendo por referência – como acima se expôs – que é litigioso o direito que constitui o objecto processual, ou seja, a partir do momento em que é objecto de um pedido formulado numa acção judicial, temos necessariamente de concluir que no processo de insolvência, declarada esta e aberta a fase de reclamação e, posterior, verificação e graduação de créditos, nos encontramos perante a litigiosidade necessária à admissibilidade do incidente de habilitação de cessionário, como é o caso do presente, instaurado precisamente por quem pretende ocupar a posição processual ocupada entretanto por credor reclamante.
ii. Por outro lado, defendem o contestante que, ante a abertura, com a prolação do respectivo despacho liminar, nos autos de insolvência do incidente de exoneração do passivo restante, não sendo o fim deste a satisfação dos credores, evidente se torna não constituir o mesmo um litígio que oponha o interesse daqueles ao dos devedores.
Vejamos.
O CIRE veio, entretanto, introduzir uma nova medida de protecção do devedor que seja uma pessoa singular, ao permitir que, caso este não satisfaça integralmente os créditos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento, venha a ser exonerado do pagamento desses mesmos créditos, desde que satisfaça as condições fixadas no incidente de exoneração do passivo restante destinadas a assegurar a efectiva obtenção de rendimentos para cessão aos credores.
Este incidente é uma solução que não tem correspondência na legislação falimentar anterior e que se inspirou no chamado modelo de fresh start, nos termos do qual o devedor pessoa singular tem a possibilidade de se libertar do peso do passivo e recomeçar a sua vida económica de novo, não obstante ter sido declarado insolvente [cfr. preâmbulo do DL 53/2004, de 18 de Março].
O procedimento em questão tem dois momentos fundamentais: o despacho inicial e o despacho de exoneração. A libertação definitiva do devedor quanto ao passivo restante não é concedida – nem podia ser – logo no início do procedimento, quando é proferido o despacho inicial a que alude o n.º 1 do art.º 239º do CIRE. Neste contexto, o CIRE veio estabelecer fundamentos que justificam a não concessão liminar da possibilidade de exoneração do passivo restante, os quais se traduzem em comportamentos do devedor relativos à sua situação de insolvência e que para ela contribuíram ou a agravaram [Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, pág. 188-190, da ed. de 2005, da Quid Iuris].
Não havendo razões para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, o juiz proferirá despacho inicial, determinando que durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, o fiduciário, para pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida, reembolso ao Cofre Geral dos Tribunais das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas, ao pagamento da remuneração vencida do fiduciário e despesas efectuadas e, por fim, distribuição do remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência, conforme dispõe o art.º 241º do CIRE.---
No final do período da cessão será proferida decisão sobre a concessão ou não da exoneração e, sendo esta concedida, ocorrerá a extinção de todos os créditos que ainda subsistam à data em que for concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados – art.º 241º, n.º 1 e 245º, ambos do C.I.R.E.
Em consequência do despacho inicial da exoneração o insolvente fica adstrito ao cumprimento das obrigações enumeradas no art.º 239º do CIRE, podendo a violação dolosa das mesmas, entre outras, determinar a cessação antecipada do procedimento de exoneração.
Neste âmbito, estamos indubitavelmente confrontados com dois interesses conflituantes: por um lado, a subsistência dos insolventes e, por outro, a finalidade primária do processo de insolvência que consiste no pagamento dos credores, à custa dos bens e dos rendimentos que deveriam ser canalizados para a massa insolvente.
O rendimento disponível é, assim, integrado por todos os recursos patrimoniais que o devedor aufira, a qualquer título, excepto os créditos previstos que tenham sido cedidos a terceiro, e durante o período de eficácia da cessão, o que seja razoavelmente necessário para o sustento do devedor e do seu agregado familiar (com o limite do triplo do salário mínimo nacional), para o exercício da sua actividade profissional e para outras despesas que, a requerimento do devedor, venham a ser consideradas pelo juiz, no próprio despacho inicial ou mais tarde, conforme resulta da interpretação conjugada do disposto no artigo 239º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Expostos os pressupostos do incidente em causa, concluímos mais uma vez que, considerando que o rendimento disponível do insolvente durante o período de cessão se considerará afecto à satisfação dos credores, nos encontramos perante a litigiosidade necessária à admissibilidade do incidente de habilitação de cessionário, como é o caso do presente, instaurado precisamente por quem pretende ocupar a posição processual ocupada entretanto por credor reclamante.

Assim, julgando-se admissível o presente incidente de habilitação de cessionário, o mesmo prosseguirá os seus termos, designadamente com vista à apreciação das demais questões suscitadas em sede de oposição (matéria de impugnação), relativamente às quais se mostra necessária a produção de prova.».
O insolvente recorrente defendeu o erro de direito deste despacho e a não admissão do incidente de habilitação de cessionário, face aos requisitos do art.356º do C. P. Civil, por considerar: que não existe processo pendente, por a cessão de créditos ter ocorrido em 2019, após o encerramento do processo de insolvência e a extinção da reclamação de créditos por inutilidade de 2017; que o crédito não é litigioso, uma vez que foi reconhecido pelo administrador da insolvência e que se formou caso julgado sobre o mesmo (conclusões 1 a 22).
Importa apreciar se estes fundamentos, confrontados com o regime legal aplicável.
Numa primeira abordagem, verifica-se que o recorrente não analisou e contestou os argumentos concretos defendidos na decisão recorrida face ao regime legal do processo de insolvência e às normas aplicadas, como lhe cabia, nos termos do nº2 do art.639º do C. P. Civil. De facto, invocando o recorrente um erro de direito da decisão, cabia-lhe, nos termos do nº2 do art.639º do C. P. Civil, indicar: «a) As normas jurídicas violadas; b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deveriam ter sido aplicadas; c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada.».
Numa segunda abordagem, verifica-se que, ainda que assim não fosse, os argumentos do recorrente não permitem sustentar a inadmissibilidade dos requisitos para a admissão do incidente e o julgamento dos pressupostos da cessão referidos nos arts.263º e 356º do C. P. Civil (por falta de pendência do processo e por falta de existência de direito litigioso), face ao regime legal do CIRE.
De facto, a habilitação de um cessionário exige que a causa esteja pendente e deva prosseguir e que na pendência da mesma tinha ocorrido uma cessão de uma coisa ou direito em litígio (art.356º do C. P. Civil, em referência, nomeadamente, à cessão de créditos prevista nos arts.577º ss do C. Civil).
Ora, por um lado, a pendência de um procedimento de exoneração de passivo restante, que corre no próprio processo de insolvência, corresponde a uma pendência de processo, ainda que o processo de insolvência esteja encerrado para efeitos de realização da liquidação e pagamentos pelo seu produto e o processo de reclamação de créditos esteja extinto por força do referido encerramento do processo de insolvência.

Na realidade, a exoneração do passivo restante é pedida, contraditada, apreciada e decidida num verdadeiro procedimento que corre no processo de insolvência, integrado:
a) Por uma fase liminar, na qual: deve ser apresentado pedido pelo devedor e deve ser assegurado o contraditório dos credores e do administrador da insolvência (art.236º do CIRE); deve ser proferido despacho liminar (arts.237º e 238º do CIRE).
b) Por um período de cessão de rendimentos (em que vigora o dever do devedor/insolvente ceder rendimentos fixados e cumprir as obrigações dos arts.239º a 241º do CIRE e em que vigoram impedimentos e obrigações que asseguram a igualdade entre credores- art. 242º do CIRE), no qual: o credor pode pedir a cessação antecipada do procedimento de acordo com a verificação de alguma das circunstâncias previstas na lei (art.243º/1 e 2 do CIRE); o devedor, o fiduciário e os demais credores podem exercer o contraditório quando os fundamentos se referirem à inobservância das obrigações do período de cessão ou à verificação de situações que poderiam ter obstado à sua admissão liminar (art.243º/3 do CIRE); o Tribunal deve decidir se o procedimento cessa antecipadamente e se a exoneração é recusada (art.243º/3 do CIRE).
c) Pela decisão final após o termo do período de cessão, caso não tenha havido cessação antecipada do procedimento, na qual o Tribunal deve decidir se concede ou não concede a exoneração do passivo restante (art.244º e 245º do CIRE).

Este procedimento ainda pode ser seguido de um procedimento subsequente de revogação da exoneração do passivo restante no período de um ano após o trânsito em julgado da decisão que tenha concedido a exoneração, procedimento integrado pelo pedido, pelo contraditório e pela decisão (art.246º do CIRE).
Neste contexto, o encerramento do processo de insolvência (art.230º do CIRE), nomeadamente por falta de apreensão de bens que possam ser liquidados para pagar as custas e as dívidas da massa insolvente ou pelo facto de os bens apreendidos não serem suficientes para realizar estes pagamentos (arts.230º/1-d) e 232º do CIRE), não impede a admissão do procedimento de exoneração do passivo restante e o seu conhecimento, mesmo no caso de existência de bens e de ativo ainda a liquidar, caso este em que o despacho de encerramento do processo de insolvência determina unicamente o início do período de cessão do rendimento disponível (arts.230º/1-e), 233º/7 e 237º/b) do CIRE).
A extinção do processo de verificação e graduação de créditos que se encontre pendente, como efeito do encerramento do processo de insolvência (art.233º/2-b) do CIRE), não impede que os credores reclamantes daquele processo extinto venham a exercer os seus direitos- de contraditório inicial em relação ao pedido de exoneração (arts.236º/4 e 238º/2 do CIRE), de apresentação de pedido de cessação antecipada do procedimento de exoneração (art.243º do CIRE), de revogação da exoneração (art.246º do CIRE), nomeadamente tendo em conta que os efeitos de exoneração final do passivo restante impõem-se a todos os créditos, mesmo os não reclamados e verificados, que não estejam excetuados no nº2 do art.245º do CIRE (art.245º/1 do CIRE).
Por outro lado, tendo havido a cedência em 2019 de um dos créditos reclamados no processo de verificação de créditos declarado extinto, na pendência do procedimento da exoneração do passivo restante aberto em 2017, não pode deixar de se considerar que ocorreu a cedência de um crédito em litígio na pendência de processo de insolvência a correr quanto à exoneração do passivo restante.
De facto, a concessão final da exoneração do passivo restante, regulada nos arts.235º a 248º do CIRE, «importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem exceção dos que não tenham sido reclamados e verificados, sendo aplicável o disposto no nº4 do artigo 217º» (art.245º/1 do CIRE), extinção esta que obsta a que o credor, encerrado o processo de insolvência, possa exercer com proveito os seus direitos contra o devedor (art.233º/1-c) do CIRE).
Assim, como refere Catarina Serra, «Rigorosamente, a exoneração qualifica-se como uma (nova) causa de extinção das obrigações- extraordinária ou avulsa relativamente ao catálogo de causas tipificado no Código Civil (cfr. arts.837.º a 874.º).» (1).
Então, no procedimento de exoneração encontra-se em litígio a pretensão do devedor de extinção das suas dívidas, depois do período de cessão de rendimentos e de cumprimento das obrigações legais (art.245º/1 do CIRE), passível de ser contraditada pelos credores (com interesse em não verem extintos os seus créditos e de os poderem cobrar pelas vias comuns- art.233º/1-c) do CIRE), através: de pedido de recusa de concessão da exoneração (por via antecipada ou final), fundada em violação pelo devedor das obrigações a que estava adstrito no período de cessão, ou na verificação de circunstâncias, conhecidas após o despacho liminar, que deveriam ter determinado o indeferimento liminar (art.243º do CIRE); ou de pedido de revogação da exoneração concedida, com fundamento nas causas previstas por lei, de conhecimento superveniente (art.246º do CIRE).
Assim, o reconhecimento do crédito pelo administrador da insolvência, e sem que tenha sido proferida qualquer sentença de verificação de créditos sobre a qual pudesse recair a força de caso julgado material, não afasta o litígio pendente no procedimento de exoneração do passivo restante.
Desta forma, não se reconhecendo os argumentos invocados pelo recorrente neste recurso de apelação para defender que não é admissível a habilitação de cessionário por não existir processo pendente e não existir cessão de direito em litígio, improcede a pretensão de revogação do despacho recorrido que admitiu o incidente com base nos referidos argumentos.

2.2. Quanto ao pedido de reapreciação da sentença recorrida:

A sentença recorrida julgou habilitado o cessionário, para prosseguir a causa em substituição do credor cedente Banco ..., com base no contrato de cessão de 2019 julgado provado.

O recorrente pretende a revogação desta decisão, defendendo:

a) O aditamento da seguinte factualidade ao elenco de matéria de facto, sem indicar a que factos alegados na contestação a mesma se refere:
«a) O Banco ... declarou ceder à Recorrida o crédito de que é titular sobre o Recorrente (enquanto avalista da devedora, a sociedade Y - Sociedade de Investimentos Imobiliários, S. A. - em liquidação), no montante de € 16.000.181,56, pelo preço de € 75.000,00 – cfr., artigos 1.º e 2.º do requerimento de habilitação e documento número 1 junto com esse articulado (em especial, cláusula 1.1, alíneas b), f), g) e j);
b) No contrato de cessão de créditos sobre a epígrafe “Declarações e garantias”, a Recorrida prestou as seguintes declarações:
- Conhece, sem reservas, a situação financeira, patrimonial, contabilística, operacional e patrimonial da devedora, nomeadamente que a mesma está em liquidação”;
- “Conhece, sem reservas, que no Tribunal da Comarca do Porto - Vila Nova de Gaia, Instância Central - Secção do Comércio - J3 de Vila Nova de Gaia, no âmbito do processo 350/16.4T8VNG no dia 1 de Fevereiro de 2016, foi proferida a sentença de declaração de insolvência da Devedora, bem como os efeitos legais decorrentes da mesma, nomeadamente na devedora e nos créditos”;
- “Conhece, sem reservas, que o processo referido na alínea anterior foi encerrado, tendo a decisão de encerramento do processo sido determinada, por despacho proferido em 19 de Dezembro de 2017 pela insuficiência da massa insolvente da devedora, nos termos do disposto nos artigos 230.º e 232.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, bem como os efeitos legais decorrentes da mesma, nomeadamente na Devedora e nos Créditos”;
- “Conhece, sem reservas, que no Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, no âmbito do processo 115/16.3T8VNC, no dia 17 de Março 2017, foi proferida sentença de declaração de insolvência de F. J., bem como os efeitos legais decorrentes da mesma, nomeadamente no insolvente e nos créditos”. – cfr. doc. n.º 1 do requerimento de habilitação (cláusula 5.2., alíneas b), c), d) e h).
c) Por carta datada de 7.10.2019, a Recorrida, para além de comunicar ao recorrente a aquisição do crédito ao Banco ..., declarou o seguinte:
Neste quadro, nos termos da lei, esta sociedade irá comunicar a referida cessão de créditos ao processo de insolvência de pessoa singular que, sob o n.º 115/116.3T8VNC, corre termos pelo Juízo de Comércio de Viana do Castelo, a fim de neles se habilitar e subsequentemente suscitar o incidente da cessação antecipada da exoneração do passivo restante, ao abrigo do estabelecido pelo artigo 243.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas” – cfr. doc. n.º 3 do requerimento de habilitação;
d) A Recorrida é uma sociedade unipessoal por quotas; tem como único sócio e gerente o Dr. P. B. (que também é o seu mandatário judicial) e o seu capital social é de € 5.000,00 - cfr., doc. n.º 9 da oposição à habilitação; vd., tb., doc. n.º 1 do requerimento de habilitação (em especial, o reconhecimento de assinatura do Dr. P. B., na qualidade de único gerente da habilitanda), bem como a procuração forense anexa aos autos.» (alegações, remetidas pela conclusão 28).
b) A eliminação do ponto c) da matéria de facto provado, por se tratar de matéria conclusiva que deve ser apreciada na apreciação de direito (conclusões 35 a 38).
c) A extração da conclusão de que a habilitação foi pedida para tornar mais difícil a sua situação no processo face à confissão da requerente (de pedir a habilitação para suscitar a cessação antecipada da exoneração do passivo restante do insolvente) e às presunções judiciais passíveis de retirar dos factos que pretende aditar (conclusões 35 a 38).
Importa apreciar neste recurso: se pode ser aditado ou se tem utilidade aditar ao acervo de factos provados aqueles que a recorrente defende estarem provados documentalmente; se deve ser eliminado o ponto c) da matéria de facto não provada; se os factos confessados e os presumidos judicialmente permitiriam provar a exceção da 2ª parte da al. a) do nº1 do art.356º do C. P. Civil.
Para este efeito, importa, numa primeira abordagem, compreender quais os factos que podem ser considerados e que são relevantes para considerar na decisão.

Por um lado, a lei processual civil define que o Tribunal apenas pode considerar na decisão:
a) Os factos que tenham sido previamente alegados pelas partes (art.5º/2 em referência ao 5º/1 precedente do C.P. Civil), uma vez que cabe às partes, nos articulados respetivos, o ónus de alegar os factos essenciais e instrumentais em que baseiam as suas pretensões e a sua defesa (art.5º/1 do C. P. Civil e art.342º/1 e 2 do C. Civil; arts. 552º/1-d) e 572º/b) e c) do C. P. Civil), factos esses que sejam aptos a preencher facti species da norma, de acordo com as soluções plausíveis das questões de direito.
b) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa, os factos complementares ou concretizadores de factos alegados pelas partes e desde que as partes sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar, e os factos notórios de que venha a ter conhecimento pelo exercício das suas funções (art.5º/ 2-a), b) e c) do C. P. Civil).
Por outro lado, a seleção de factos sujeitos a prova está limitada ao critério da relevância dos mesmos para apreciar a questão a decidir, de acordo com as soluções plausíveis das questões de direito.
A conexão entre os factos a considerar e a decisão a proferir (sendo a impugnação dos mesmos instrumental a esta decisão a proferir) e o princípio da utilidade dos atos processuais (art.130º do C.P. Civil) têm levado a jurisprudência a entender que não se deve apreciar a matéria impugnada ou não se deve aceitar a ampliação da matéria de facto quando a mesma seja irrelevante para a decisão do recurso, em qualquer uma das soluções plausíveis das questões de direito a decidir.
A este propósito, Tomé Soares Gomes refere: «Mas o tribunal só deve atender aos factos que, tendo sido oportunamente alegados ou licitamente introduzidos durante a instrução, forem relevantes para a resolução do pleito, não cabendo pronunciar-se sobre factos que se mostrem inequivocamente desnecessários para tal efeito.» (2)
E, no sentido que a jurisprudência tem vindo a adotar nesta matéria, o acórdão da Relação de Guimarães de 22.10.2020, proferido no processo nº5397/18.3T8BRG.G1, relatado por Maria João Matos, defendeu também e sumariou que «V. Por força dos princípios da utilidade, da economia e da celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for(em) insusceptível(eis) de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter(em) relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil» (3).
Por sua vez, numa segunda abordagem, deve interpretar-se a previsão de exceção que pode ser invocada para impedir a substituição processual por habilitação de cessionário, nos termos previstos no nº2 do art.263º do C. P. Civil e na 2ª parte da al. a) do nº1 do art.356º do CP. Civil.
De facto, em caso de transmissão de coisa ou de direito litigioso, a substituição processual de parte em processo pendente só pode recusar-se «quando se entenda que a transmissão foi efetuada para tornar mais difícil, no processo, a posição da parte contrária» (art.263º/2 do C. P. Civil), exceção esta que pode ser invocada pela contraparte na contestação do incidente de habilitação, mediante a alegação dos factos que a possam expressar (art.356º/1-a)- 2ª parte e arts.5º/1 e 572º/b) e c) do C. P. Civil).
A que se refere esta invocação que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a posição da parte no processo?

Este fundamento de exceção, introduzido no art.381º do C. P. Civil de 1939 (4), é explicado por Alberto dos Reis (que considera que o mesmo tem como subjacente o interesse em evitar a quebra do equilíbrio de forças inicial entre as partes, embora este perda acuidade perante as garantias atuais do processo civil), da seguinte forma:
«Para evitar que a transmissão viesse a romper o equilíbrio de forças entre os litigantes é que o direito romano e o direito medieval se mostraram hostis à alienação de coisas litigiosas e mais tarde puseram entraves à substituição do transmitente pelo adquirente. A ordem jurídica queria, a todo o transe, obstar a que a parte contrária ao transmitente fosse vítima da transmissão. Ao envolver-se no pleito, esse litigante medira as forças do adversário inicial com o qual ia terçar armas; e porque se julgara em condições de sair triunfante da luta, propusera a acção ou oferecera contestação. Mas, de repente, em consequência da transmissão, saía-lhe ao caminho um inimigo novo, com que não contava, e cujas forças ultrapassavam consideravelmente as suas; tinha de render-se para não ser esmagado. (…)
As condições em que actualmente se faz a administração da justiça permitem afirmar que, em princípio, não há perigo para a parte contrária em que o adquirente tome no processo o lugar do transmitente. Mas concebe-se que, num ou noutro caso particular, a substituição redunde em prejuízo do adversário do transmitente, isto é, que a posição desse adversário se torne mais difícil e embaraçosa por ter de litigar com o adquirente em vez de litigar com o transmitente. (…)
Note-se: não basta demonstrar-se que, em consequência da substituição, se agravará a posição da parte contrária, por ter de defrontar um adversário mais forte do que o adquirente; é indispensável que se apure ter a transmissão sido feita para se obter esse resultado. Quer dizer, é necessário que o juiz adquira a convicção de que a transmissão obedeceu a um propósito malicioso: o de criar embaraços ao adversário e fazê-lo sucumbir.
Imagine-se que realmente o adquirente é mais rico do que o transmitente e está mais bem apetrechado do que ele para levar a demanda a bom termo, mas ao mesmo tempo verifica-se que a transmissão foi feita, não para colocar a outra parte em inferioridade de condições, mas para satisfazer interesses legítimos dos contratantes. É claro que nesta hipótese o juiz não deve recusar a substituição ou a habilitação.» (5).
Ora, a invocação de transmissão de um direito por ato entre vivos, com vista à dificultação da posição do devedor no processo, exige a alegação e a prova de factos que a ilustrem, sobretudo tendo em conta: que as partes dispõem, em geral, de regras que lhes asseguram um processo equitativo na defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos (art.20º/4 da CRP; art.1º ss do C. P. Civil, ex vi do art.17º do CIRE), pelas quais os cidadãos têm direito à observância no processo do princípio da igualdade entre as partes (quer na exposição de facto e de direito das suas razões de petição e de defesa; quer na produção de prova e contraprova; quer no exercício do direito ao contraditório e à participação no desenvolvimento do processo, quer no direito ao recurso, sem prejuízo das limitações e restrições sujeitas ao princípio da proporcionalidade) (6); o procedimento de exoneração de passivo assegura não apenas os pedidos do insolvente mas também os seus direitos de contradição relativamente aos requerimentos dos credores de recusa antecipada da exoneração e de revogação da exoneração (art.243º/3 e art.246º/3 do C. P. Civil), defesa na qual podem requerer a produção de prova (art.293º/1 do C. P. Civil, ex vi do art.17º do CIRE).
Por sua vez, não corresponde a facto que permita ilustrar que a transmissão por ato entre vivos foi celebrada com vista à dificultação da posição do devedor no processo, quando o cessionário assume pretender exercer um direito que o procedimento lhe confere, nomeadamente, quando o credor cessionário pretende pedir que seja recusada a exoneração do passivo restante ao devedor/insolvente (art.243º do CIRE), recusa que evita a extinção do seu crédito (art.245º do CIRE) e o habilita a poder vir a cobrá-lo junto do devedor nos meios comuns (art.233º/1-c) do CIRE).
Perante este quadro de direito, importa apreciar os fundamentos do recurso da sentença.
Por um lado, no que se refere à matéria de facto que o recorrente pretende aditar, verifica-se que, para além do recorrente não ter indicado quais os artigos da contestação nos quais alegou a matéria de facto que pretende aditar (contestação na qual, por sua vez, esta matéria de facto não está toda alegada), a matéria em causa, ainda que tivesse sido alegada, não seria relevante para a decisão do incidente, tendo em conta: que a recorrente não impugnou a matéria de facto julgada não provada em a), b) e d) da decisão da matéria de facto («a) Nem o cedente Banco ..., S.A. quis vender o crédito nem a cessionária habilitanda o quis comprar. b) Nem a requerente pagou qualquer quantia nem o Banco ..., S.A. a recebeu. (…) d) A sociedade requerente aparece como veículo de uma estratégia urdida entre o seu sócio, gerente e mandatário judicial, o Banco ..., S.A. e J. O., com o propósito de coagir o Requerido e outros familiares a com eles cooperarem e conluiarem para que aquele último venha a deter a titularidade da maioria do capital social da sociedade X – SGPS, Ld.ª, permitindo que, por essa via, o J. O. e o Banco ..., S.A. possam manter as participações sociais que detêm na sociedade K Têxteis, S.A., correspondentes, respectivamente, a 90% e 10% do capital social.»), que poderia ser relevante para aferir da simulação do negócio de cessão de créditos, não sendo admissível pretender que o tribunal extraia presunções judiciais de factos, do teor do contrato de cessão, quando os factos principais julgados não provados não foram impugnados; que os factos de que o recorrente pretende o aditamento não são relevantes para integrar ou para presumir qualquer dificultação concreta da posição do recorrente/insolvente, em particular, no seu direito de defesa face a um pedido de recusa da exoneração do passivo restante.
Desta forma, indefere-se o aditamento dos factos objeto do pedido.
Por outro lado, no que se refere à al. c) da matéria de facto não provada («c) A presente habilitação tem como finalidade tornar mais difícil a posição do devedor insolvente no procedimento de exoneração do passivo restante.») verifica-se, efetivamente, que esta corresponde à factispecie das normas do arts.263º/2 e 356º/1-a)- 2ª parte do C. P. Civil e não corresponde a qualquer facto concreto.
Desta forma, determina-se a eliminação dos factos não provados da al.c).
Por fim, verifica-se que não foram alegados e provados quaisquer factos que permitam concluir que a habilitação do cessionário e a substituição do credor cedente Banco ..., SA pelo credor cessionário P. B. Unipessoal, Lda. dificultem a defesa do insolvente perante qualquer pedido de recusa de concessão da exoneração de passivo restante e cessação antecipada do procedimento ou perante qualquer pedido posterior de revogação da exoneração do passivo restante (arts.243º e 246º do CIRE), que pudesse preencher matéria de exceção impeditiva da habilitação e substituição (arts.263º/2 e 356º/1-a)- 2ª parte do C. P. Civil).
Assim, improcede o recurso de apelação.

IV. Decisão:

Pelo exposto, as Juízes Desembargadoras da 1ª Secção Cível da Relação de Guimarães acordam em julgar improcedente o recurso de apelação do despacho e da sentença recorridos.

Custas pelo recorrente (art. 527º/1 e 2 do C. P. Civil).
*
Guimarães, 3 de novembro de 2022
Assinado eletronicamente pelas Juízes Desembargadoras Relatora, 1ª Adjunta e 2ª Adjunta
Alexandra Viana Lopes
Rosália Cunha
Lígia Venade



1. Catarina Serra, in Lições de Direito da Insolvência, Almedina, Almedina, Setembro de 2019, pág.561.
2. Tomé Soares Gomes, inDa Sentença Civil”, págs.14 a 16, a 24 de Janeiro de 2014 nas Jornadas de Processo Civil, disponível in file:///C:/Users/MJ01758/Downloads/texto_intervencao_Manuel_Tome.pdf
3. Acórdão da Relação de Guimarães de 22.10.2020, proferido no processo nº5397/18.3T8BRG.G1, relatado por Maria João Matos http://www.gde.mj.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/25d5f7fa39d9bef08025861000504aa3?OpenDocument
4. Código de Processo Civil aprovado pelo DL 29637 de 28 de maio; Eurico Lopes Cardoso, atualizado por Álvaro Lopes Cardoso, in Manual dos Incidentes da Instância em Processo Civil, Livraria Petrony, Lda., 1996, nota 1, pág.360.
5. José Alberto dos Reis, in Comentários ao Código de Processo Civil, 3º volume, Coimbra Editora, 1946, págs.78 a 80.
6. Vide amplamente sobre estas matérias, Rui Medeiros, in Constituição Portuguesa Anotada por Jorge Miranda e Rui Medeiros, Universidade Católica Editora, Vol. I, fevereiro de 2017, 2ª edição revista, anotações XVI ss ao art.20º da CRP, págs.321 ss.