Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
505/15.9GAPTL.G1
Relator: ARMANDO AZEVEDO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
ELEMENTOS DO CRIME
ABSOLVIÇÃO
CONDENAÇÃO POR INJÚRIA
CUMPRIMENTO DO ARTº 358º Nº 4 DO CPP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/25/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:

I) As condutas previstas e punidas no artº 152º do CP, são de várias espécies: maus tratos físicos, ou seja, ofensas corporais simples, maus tratos psíquicos, isto é, humilhações, provocações, molestações, ameaças mesmo que não configuradas em si crime de ameaça.

II) Atualmente para a verificação do crime de violência doméstica e de maus tratos não se exige a reiteração de condutas, sendo suficiente a ocorrência de um único ato ofensivo de tal intensidade, ao nível do desvalor da ação e do resultado, que seja apto e bastante a lesar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana.

III) No caso dos autos, os factos considerados provados não são suficientemente desvaliosos por forma a fazerem incorrer seu autor na perpetração do tipo legal de crime de violência doméstica, integrando antes a perpetração de um crime de menor densidade axiológica, como é o crime de injúria.

IV) Não tendo resultado provado, em julgamento, factos suscetíveis de integrar a perpetração de um crime de violência doméstica, o certo é que a ofendida, no tempo próprio, apresentou queixa, constituiu-se assistente e o M.P. deduziu acusação pela prática de um crime de violência doméstica, acusação esta que a assistente declarou acompanhar, pelo que a esta nada mais lhe era processualmente exigível.

V) O crime de injúria constituiu um minus relativamente ao imputado crime de violência doméstica cuja factualidade não se demonstrou em julgamento, pelo que não existe nenhum elemento de surpresa que justifique a atribuição ao arguido de uma maior amplitude de defesa caso se provem, como foi o caso, apenas factos já constantes da acusação suscetíveis de integrar um crime de injúria. E, nessa medida, não há lugar ao cumprimento do disposto no artigo 358º, nº 3 do C.P.Penal.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I- Relatório

1. O M.P., em processo comum e parente tribunal singular, deduziu acusação contra o arguido M. C., filho de A. C. e R. A., natural Ponte de Lima, nascido em ../../…, BI …, residente na Rua …, Ponte de Lima, imputando-lhe a perpetração de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, 4 e 5 do CP.

2. A ofendida Maria C. requereu a sua constituição como assistente, o que foi deferido, e declarou aderir integralmente à acusação deduzida pelo M.P..

3. Tendo por base a factualidade descrita na acusação deduzida pelo M.P., a assistente formulou pedido de indemnização civil contra o arguido, pedindo que o mesmo seja condenado a pagar-lhe, a título de danos não patrimoniais sofridos, a quantia de seis mil euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a notificação do pedido e até integral e efetivo pagamento.

4. O arguido M. C., foi submetido a julgamento, em processo comum e perante tribunal singular, tendo a final sido proferida sentença cujo dispositivo tem o seguinte teor [transcrição]:

“Por tudo o exposto, decide-se julgar a acusação do Ministério Público improcedente por não provada e, em consequência, absolve-se o arguido M. C., da prática do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do CP que lhe vinha imputado.

Mais se julga improcedente, por não provado, o pedido de indemnização civil formulado pela demandante Maria C., contra o arguido, nele demandando, absolvendo-se o mesmo do pedido.

Custas criminais a cargo da assistente (cfr. artigo 515.º, n.º 1, alínea a) do CPP), fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs.

Custas civis a cargo da demandante cível (cfr. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC), que na lide saiu vencida.”

5. Não se conformando com tal decisão absolutória, dela interpôs recurso a assistente Maria C., extraindo da respetiva motivação, as seguintes conclusões [transcrição]:

1. Vem o presente recurso interposta da, aliás, douta Sentença proferida em 10 de maio de 2017 nos autos de processo comum com intervenção de tribunal singular acima identificado, que julgou “a acusação do Ministério Público improcedente por não provada e, em consequência, absolve-se o arguido M. C., da prática do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do CP que lhe vinha imputada. Mais se julga improcedente, por não provado, o pedido de indemnização civil formulado pela demandante Maria C., contra o arguido, nele demandando, absolvendo-se o mesmo do pedido.”, e com a qual não pode a recorrente concordar.

2. Salvo o devido respeito, o douto Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento fazendo uma errada apreciação da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, tendo, no nosso entendimento, dado incorretamente como não provados os factos que constam da matéria de facto dada como não provada sob os pontos i) a xx), que deviam ter sido dados como provados os factos pelo Tribunal a quo).

3. Acontece que, não foram devidamente valoradas as declarações da assistente e, bem assim, os depoimentos das restantes testemunhas indicadas pela acusação, impondo, no nosso entendimento, a prova produzida nos presentes autos uma decisão oposta à que resulta da sentença recorrida quantos aos factos constantes dos pontos i) a xx) da matéria de facto dada como não provada, tendo o Tribunal recorrido, salvo o devido respeito, feito uma errada valoração e apreciação da mesma e incorrido em erro de julgamento.

4. Se é certo que nem todos os factos relatados pela ofendida foram corroborados por outros meios de prova diretos, como sejam testemunhas presenciais, não é menos verdade que o depoimento da vítima assume no crime em apreço um relevo acrescido, por se reportar a factos ocorridos no recato do lar, “no recato da impunidade não presenciada, preservado da observação alheia, garantido até pelo generalizado pudor que os mais próximos têm de se imiscuir na vida privada do casal”, sendo os maus tratos geralmente, escondidos, ocorrendo dentro de portas, longe dos olhares de vizinhos e amigos, sendo usual ocultar-se o sucedido.

5. Com o devido respeito, entendemos que a assistente prestou um relato que se afigurou genuíno, sincero, credível e coerente, não se denotando qualquer pretensão vingativa ou de retaliação em relação ao arguido, pelo contrário, a sua postura em julgamento foi de evidente naturalidade e humildade, procurando tão-só esclarecer o tribunal quanto aos aspetos mencionados na acusação, explicando ainda em juízo as circunstâncias da atuação do arguido – mormente do seu estado alcoolizado como potenciador de todas os factos criminosos.

6. Das declarações da assistente, prestadas em audiência de discussão e julgamento, resulta confirmada na íntegra a versão dos factos vertida na acusação e, note-se, factos esses todos ocorridos no interior do domicílio comum.

7. Ademais, contrariamente ao sustentado no corpo motivador da douta sentença recorrida, a assistente logrou justificar a razão de não ligar diretamente para a GNR e sim para G. S., testemunha nos presentes autos, porquanto, como refere, se ligasse para a GNR para pedir auxílio tinha que explicar o que se estava a passar e não o conseguiria fazer sem o arguido se aperceber: “Pois, tinha que dizer que viessem lá, claro que sim, não ia conseguir porque ele não me deixava, porque eu tentei várias vezes fazer isso e ele perseguia-me sempre, uma altura chegou-me a dar conta de um telefone”.

8. É sustentado na douta sentença de que se recorre, que no depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento pela testemunha G. S., que “O único facto de que teve conhecimento direto respeita aos insultos atribuídos ao arguido, na noite de 09/11/2015, que refere ter ouvido pelo telefone, na sequência de chamada recebida da assistente que, nesse momento, lhe pedia ajuda no sentido de chamar a GNR ao local.”, o que não corresponde à verdade!

9. Conforme resulta límpido do depoimento da testemunha G. S., o que a própria ouviu “Foram os insultos” “mais que uma vez”, sendo que “chamava-lhe «puta» com muita frequência, chamava-lhe «porca», chamava-lhe «vaca»”.

10. A primeira vez que a testemunha G. S. ligou para a GNR a pedido da assistente foi uns meses antes de novembro de 2015, e a segunda precisamente em 09 novembro de 2015, em virtude de a assistente estar muito atrapalhada e o arguido exaltado e a maltratá-la, tendo ouvido pelo telefone por várias vezes os insultos “puta, vaca, porca” em diversas ocasiões uma vez que o arguido os proferia em voz alta sendo dessa forma audíveis.

11. Por isso, salvo o devido respeito, mal andou o Tribunal recorrido ao entender que apenas só por uma vez, na noite de 09 de novembro de 2015, a testemunha G. S. ouviu o arguido insultar com impropérios a assistente, desta forma maltratando-a, quando, na realidade, demonstrou conhecimento direto de ter ouvido em outras ocasiões o arguido dirigir insultos – “puta”, “vaca” e “porca” – à assistente e de ter inclusivamente por via disso, alguns meses antes de novembro de 2015, ligado para a GNR.

12. Assim, no nosso entendimento, resulta provado que o arguido vinha dando maus-tratos à assistente desde data anterior a 09 de novembro de 2015, confirmando nesta parte o que consta da acusação.

13. Em relação aos restantes factos vertidos na acusação, a testemunha G. S. demonstrou ter conhecimento deles “pelas confidências da D. Maria C.” conforme resulta do seu depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, muito embora esclareça, ainda, que a “D. Maria C. tinha algum receio, algum... aquele medo de se expor, ela ia falando de alguns apertos, de lhe ter dado uns socos e assim, não assim muito claro”.

14. Esta testemunha confirmou ainda que a assistente, aquando do processo com o n.º 319/05.4GAPTL, desistiu da queixa apresentada por causa do filho em comum do arguido e da assistente, e também por causa da “vergonha”.

15. Do depoimento da testemunha C. G., resulta que é vizinha do arguido e da assistente há cerca de 9, 10 anos, distando a sua casa da deles a “nem sequer 10, 15 metros” e que desde que é vizinha deles que ouve do seu quintal, e inclusive do interior de sua casa, “Discutimentos quase todos os dias” e o arguido a insultar a assistente, chamando-lhe Puta”, “vaca”, “porca” e a dizer-lhe que “ela tinha muitos amantes”, “que um dia que lhe ia fazer como faziam os outros, que a matava.”.

16. A testemunha C. G. referiu em julgamento foi que “Às vezes ouvia a Maria C. mas não ouvia o que ela dizia porque também o que ouvia mais era o senhor M. C. a falar mais alto”, o que é confirmado pelas declarações da assistente e, bem assim, da testemunha G. S., quando referem que o arguido gritava, falava mais alto, ao proferir os insultos e as ameaças de morte, o que, no nosso modesto entendimento, tal resulta claramente plausível e em nada gera dúvida.

17. A testemunha C. G. referiu ainda que o fator motivador de todas estas situações de maus-tratos era o estado alcoolizado em que quase diariamente o arguido se apresentava e que a assistente suportava tal porque lhe tinha medo e estava com esperanças que o arguido mudasse de comportamento, tendo ainda precisado que nunca interveio no sentido de ajudar a assistente porque não se queria meter, muito embora tenha aconselhado a mesma a chamar a GNR.

18. É sustentado também na fundamentação da douta sentença recorrida, que a testemunha C. G. ter “faltou à verdade quando afirmou que ouviu o arguido ameaçar a assistente de morte no dia da discussão, quando a GNR o levou, facto que sequer coincide com as declarações da assistente que, nesse particular, foi perentória em afirmar que na noite de 09/11/2015 a GNR não entrou na sua habitação, por ter encontrado o ambiente pacificado, apenas se tendo deslocado ao local no dia seguinte, quando já nenhuma discussão decorria.”, sendo nesto ponto, com o devido respeito, claríssimo que o Tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento.

19. A testemunha C. G. referiu que o arguido ameaçou de morte a assistente no dia em que a GNR o levou o arguido mas, acontece que, esse dia em que a GNR levou o arguido – e uma vez que segundo o depoimento da mesma ele não voltou mais à residência – corresponde ao dia 26 de novembro de 2015, isto é, à detenção do arguido em cumprimento de mandado de detenção, conforme aliás resulta de fls. 54 e seguintes dos autos, tendo o Tribunal recorrido inferido erradamente do seu depoimento que a mesma se estava a referir ao dia 09 de novembro de 2015. Logo, a versão da testemunha C. G. em nada colide com o da assistente.

20. Nestes termos, resulta assim evidente que a testemunha C. G. não mentiu conforme é sustentado pelo Tribunal a quo, tendo sido o seu depoimento indevidamente desvalorizado e descredibilizado pelo Tribunal recorrido.

21. Em relação ao depoimento desta testemunha e sua valoração pelo Tribunal recorrido, particularmente no que tange à localização da sua habitação – com uma outra casa de permeio – que suscitou dúvidas no tribunal quanto às expressões que ouvir o arguido dirigir à assistente, salvo o respeito devido, distando entre as casas cerca de 10 a 15 metros, eram perfeitamente audíveis os insultos e ameaças proferidos pelo arguido, até porque o fazia em voz alta, inclusive gritando, pelo que, com o devido respeito, mal andou o Tribunal a quo ao considerar existirem “dúvidas sobre a veracidade do depoimento prestado no que tange ao que declarou ter ouvido”, conforme se demonstrou.

22. Na realidade, tal depoimento mostrou-se credível, isento e descomprometido, lógico, coerente, tendo sido prestado de forma natural, demonstrando conhecimento direto – por via de ser vizinha do arguido e da assistente – dos insultos e das ameaças de morte dirigidas à assistente pelo arguido. Isto é, demonstrou conhecimento direto dos maus-tratos, indicando o seu início e término – desde há cerca de 9, 10 anos até a GNR o der detido, altura em que deixou de lá morar – e precisando a regularidade dos mesmos.

23. Quanto ao depoimento da testemunha R. Costa, no nosso modesto entendimento, o facto de a testemunhar não conseguir individualizar as ditas “ocorrências” em nada faz perigar o seu depoimento. Primeiro, porque foi capaz de balizar o seu início e término. E, depois, porque indicou a frequência com que ocorriam – “semanalmente, principalmente à noite”.

24. Deste modo, resulta evidente que o seu depoimento fez claramente prova dos maus-tratos sofridos pela assistente: os insultos - “puta, vaca” – que há largos anos o arguido dirigia à assistente semanalmente, sobretudo à noite.

25. Quanto ao alcoolismo do arguido, o mesmo resultado provado das declarações da assistente, dos depoimentos das testemunhas G. S., C. G. e R. Costa, e da própria agente da GNR, S. B., que procedeu à detenção do arguido no dia 26/11/2015, e, aindas, de prova documental junta aos autos que confirma e credibiliza as declarações da assistente e os depoimentos das referidas testemunhas.

26. Todavia, mesmo face a todos estes depoimentos de conhecimento direto e a toda esta prova documental inquestionável que consta dos autos, temos uma série de testemunhas – todas as indicadas pela defesa (com exceção do Dr. P. A. e de E. F.), que em julgamento disseram que nunca viram o arguido alcoolizado o que suscita dúvidas quanto à credibilidade das mesmas.

27. No crime de violência doméstica o que está normalmente em causa não é a punição autónoma de cada um dos atos que integram o conceito de violência doméstica, mas um comportamento reiterado e, tendo balizado a acusação o período em que tal comportamento persistiu, com indicação do início e do fim do mesmo, mostra-se cumprida a exigência daquela norma quanto à indicação do «tempo».

28. Nestes termos, tendo-se logrado, no nosso modesto entendimento, provar os referidos factos através das declarações da assistente e dos depoimentos das testemunhas G. S., C. G. e R. Costa, os mesmos devem ser dados como provados.

29. As testemunhas indicadas pela defesa que prestaram depoimento em julgamento apenas disseram que conheciam o arguido e que era boa pessoa, mas o ser boa pessoa no relacionamento com elas e em sociedade não quer dizer que, dentro de portas do domicílio do casal e longe dos olhares de vizinhos e amigos, assim acontecesse no seu relacionamento com a assistente.

30. Na verdade, essas pessoas – as referidas testemunhas – não estavam no interior da residência – onde ocorreram os factos –, não viam o que se passava com o casal, muitas delas nunca estiveram sequer na casa do casal, portanto não poderiam ter assistido aos factos, não se podendo olvidar que na generalidade das situações a única testemunha que existe no crime de violência doméstica é precisamente a vítima.

31. Invoca-se, ainda, o vício de contradição insanável entre a fundamentação da sentença recorrida, nos termos do artigo 410.º, n.º2, alínea b) do Código de Processo Penal, porquanto no ponto 30 da matéria de facto dada como provada é referido que o arguido “Reduziu o consumo de bebidas alcoólicas desde dezembro de 2015” e, depois, é dado como não provado, sob o ponto xii), que “O arguido ingere bebidas alcoólicas em excesso...”.

32. Nestes termos, e face ao supra exposto consideramos, sem olvidar o princípio da livre apreciação da prova e da livre convicção do juiz para julgar e decidir, que os referidos factos – os dos pontos i) a xx) da matéria de facto dada como não provada – foram incorretamente julgados como não provados, para efeitos da alínea a) do n.º 3 do artigo 412.º do Código de Processo Penal.

33. Por outro lado, no nosso modesto entendimento, as declarações da assistente, e dos depoimentos das testemunhas G. S., C. G. e R. Costa, em conjugação com a prova documental junta aos autos, impunham decisão diversa da recorrida, para efeitos da alínea b) do n.º 3 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, mais precisamente a condenação do arguido pela prática do crime que lhe vinha imputado de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º n.º1 a) e n.º2 do Código Penal.

34. De facto, entendemos, salvo o devido respeito, que estas declarações e depoimentos vêm provar que o arguido praticou os factos descritos na acusação, inclusive os factos que o Tribunal recorrido deu como não provados.

35. Assim, e ao atuar do modo descrito, conforme resulta da matéria que se devia ter dado por provada, o arguido previu e quis agir de forma reiterada e prolongada no tempo, com o propósito de molestar fisicamente, atemorizar e ofender a sua mulher na sua honra e consideração, objetivos que logrou alcançar.

36. Verificados se encontram, assim, os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Código Penal, imputado ao arguido, pelo que se impõe a sua condenação.

37. SEM PRESCINDIR, mantendo-se inalterada a matéria de facto dada como provada e não provada e a absolvição do arguido pela prática que lhe vinha imputada do crime de violência doméstica (o que apenas por mera cautela de patrocínio se concebe, mas não concede), a verdade é que o Tribunal recorrido não efetuou uma adequada interpretação e aplicação das normas penais relativas ao referido tipo legal, tendo em conta a factualidade apurada e dada como provada.

38. Efetivamente, salvo o devido respeito, e que é muito, mal andou o Tribunal a quo ao entender que a conduta criminosa do arguido não pode ser qualificada como consubstanciando o crime de violência doméstica, de que vinha acusado, porquanto atualmente, o segmento “de modo reiterado ou não” introduzido no corpo da norma do n.º 1 do artigo 152.º do Código Penal é unívoco no sentido de que pode bastar só um comportamento para a condenação, isto é, a reiteração não é elemento essencial do tipo.

39. Conforme resultou provado pelo Tribunal recorrido, o arguido insultou a assistente chamando-lhe “puta, vaca, porca” enquanto a mesma estava a lavar a louça do jantar, tendo começado por se queixar de que a comida estaria salgada. No domicílio do casal.

40. As expressões concretamente dirigidas à assistente – após a mesma ter preparado o jantar para ambos e o arguido ter insinuado que a comida estaria salgada – visaram rebaixá-la, perturbá-la no seu bem-estar psicológico, na sua tranquilidade, na sua imagem de si própria, enquanto mulher, companheira e mãe e ainda na imagem, que os outros têm de si e no modo como os outros a veem, o que é essencial para o seu amor-próprio e da autoconfiança, fatores que o arguido quis e conseguiu precisamente atingir.

41. Dirigir as ditas as expressões no referido contexto é suficientemente grave para ofender a saúde psíquica e emocional da vítima, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana, assim representando um aviltamento e humilhação da mesma que, claramente, não são suficientemente protegidos pelo tipo de crime de injúria, pelo que integram o conceito de maus tratos psíquicos e, portanto, preenchem os elementos do tipo da violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2 do Código Penal.

42. Assim, salvo o devido respeito, mal andou o Tribunal recorrido ao entender que a dita conduta do arguido não configurou “uma atitude de especial desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma”. Pelo contrário.

43. Nestes termos, o Tribunal a quo, na sentença recorrida, violou o artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2 do Código Penal, aplicável in casu.

44. SEM PRESCINDIR, na eventualidade de assim não se entender (o que apenas por mera cautela de patrocínio se concebe, mas não concede), tendo em conta a factualidade apurada e dada como provada, o Tribunal a quo não efetuou uma adequada interpretação e aplicação das normas penais e processuais penais relativas ao tipo de crime de injúria.

45. O arguido vinha acusado, pelo Ministério Público, da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Código Penal, que sendo um crime de natureza pública, o Ministério Público tem legitimidade para promovê-lo, de acordo com o estatuído no artigo 48.º do Código de Processo Penal.

46. Acontece que, atendendo à complexidade deste tipo de crime, por ser um crime específico e impróprio, de perigo abstrato, na medida em que engloba vários tipos de crimes, podendo criar uma relação de concurso aparente de normas com outros tipos penais (ofensas à integridade física, injúrias, difamação, coação, sequestro simples, devassa da vida privada e gravações e fotografias ilícitas), muitas vezes deparamo-nos com situações de “fronteira”, acabando o julgador por decidir que o tipo penal aplicável não é o da violência doméstica, mas qualquer um dos outros mencionados de per si, como foi o caso em apreço.

47. In casu, a assistente apresentou denúncia contra o arguido, à altura dos factos seu marido, apresentando factos que o Ministério Público, após a realização das necessárias diligências em sede de inquérito, determinou que eram suscetíveis de integrar a prática de um crime de violência doméstica, acusando-o. Ou seja, a acusação foi deduzida por uma série de atos delituosos, subsumíveis ao tipo de violência doméstica.

48. Todavia, apenas se provaram factos que, ainda que parcialmente coincidentes com os acusados, foram entendidos como suscetíveis de integrar, apenas, o crime de injúria.

49. Acontece que, foi dito expressamente pela assistente, ora recorrente, que acompanhava a douta acusação deduzida pelo Ministério Público, para todos os efeitos legais, nos termos do disposto no artigo 284.º n.º 2, alínea a) do Código de Processo Penal, aderindo integralmente à mesma, subscrevendo a prova apresentada e indicando, ainda, sete novas testemunhas.

50. A assistente não formalizou a acusação particular, mas não o fez porque à data aquela não era obrigatória, pois a acusação deduzida pelo Ministério Público referia-se à prática de um crime de natureza pública, que, por si só, dispensa apresentação de queixa e constituição de assistente.

51. Nestes termos, não lhe é imputável o facto de não ter deduzido acusação particular quando é certo que, face ao crime pelo qual o arguido foi acusado não era necessário que o fizesse.

52. Por outro lado, estando, necessariamente, em causa, um menos relativamente ao mais constante da acusação, a situação não se subsume à previsão das normas dos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal, pelo que, mesmo sem observância desses regimes, nada impediria a condenação do arguido pelos factos e qualificação jurídica já contidos, como um “minus” nos factos e qualificação jurídica por que o arguido vinha acusado.

53. Na verdade, “A autonomização dos factos relativamente ao crime maior, no âmbito do qual foram acusados, não tem a virtualidade de desprovir de legitimidade para o exercício da acção penal o Ministério Público, órgão que, quando do exercício dessa mesma acção, a tinha e a usou de acordo com a lei.”

54. Além disso, como resulta de fls. ..., a ofendida apresentou denúncia, veio aos autos requerer a sua constituição como assistente e, notificada que foi da acusação deduzida pelo Ministério Público, declarou expressamente que a acompanhava, aderindo integralmente à mesma (fez sua aquela acusação), nos termos do disposto no artigo 284.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Penal, e apresentou prova, não sendo da sua responsabilidade a falta de formulação de uma acusação particular, já que o crime acusado tem a natureza de público.

55. Depois, não há dúvida em como os factos provados estão contidos naquela acusação, pelo que podemos considerar que o acompanhamento da assistente à acusação do Ministério Público contém implicitamente a acusação pela prática do crime de injúria, pelo que, nestes termos, nada obsta a que se aprecie a responsabilidade penal do arguido pela prática do crime de injúria.

56. A exigência de dedução de queixa-crime, de constituição como assistente e de dedução de acusação particular, nos crimes particulares, reconduz-se à colocação na disponibilidade da vontade do ofendido da efetivação da punição pelos crimes de que foi vítima.

57. Ora, a manifestação da vontade, por parte da ofendida, da vontade de persecução da tutela penal dos direitos violados expressa pela apresentação de denúncia, constituição de assistente, acompanhamento da acusação deduzida pelo Ministério Público, indicação de novas testemunhas, e prestação de declarações em sede de audiência de discussão e julgamento é suficiente e adequada a prover à tutela dos interesses inerentes ao instituto da acusação particular.

58. Além disso, sempre se diga que, por força da acusação deduzida, o arguido sabia que o julgamento haveria de tomar em conta os factos injuriosos e em coisa nenhuma viu beliscado os seus direitos de defesa.

59. Assim, e em suma, ocorrendo a absolvição pelo crime de violência doméstica, mas persistindo provados factos consubstanciadores de um crime de injúria – também constantes da acusação pública acompanhada pelo assistente –, a falta de cumprimento do formalismo da acusação prévia da assistente por este crime particular [acusação particular - art. 285.º, CPP] não obsta ao conhecimento do crime “residual”.

60. Portanto, tendo sido dado como provados, como efetivamente in casu o foram, os factos consubstanciadores da prática pelo arguido do tipo de ilícito de injúria, devia o mesmo ter sido condenado pela prática do referido crime, não obviando à condenação do arguido pela prática do referido crime a circunstância de não ter sido deduzida acusação particular atendendo a que este crime é um minus relativamente ao crime de que o arguido vinha acusado. Além disso, tendo a recorrente acompanhado a acusação do Ministério Público, tal deverá ser entendido como uma acusação implícita do crime de injúria.

61. Nestes termos, e face ao supra expendido, mal andou o Tribunal de que se recorre ao considerar existir a nulidade insanável prevista no artigo 119.º alínea a) do Código de Processo Penal e entender que a partir da alteração da qualificação jurídica o Ministério Público não tem legitimidade para prosseguir a ação penal quanto ao crime de injúria e não tendo condenado o arguido pela prática do crime de injúria quando face aos factos dados como provados deveria.

62. Pelo exposto, ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou o artigo 181.º do Código Penal, efetuou uma incorreta aplicação dos artigos 119.º alínea b) do Código de Processo Penal e interpretou erroneamente os artigos 49.º a 52.º do Código de Processo Penal.

63. SEM PRESCINDIR, caso assim não se entenda (o que apenas por cautela de patrocínio se concebe mas não concede), tendo sido acusado o arguido pela prática de um crime de violência doméstica, se em julgamento o juiz alterar a qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido, concluindo que os factos apurados integram a prática de um crime de injúrias, e não tendo havido acusação particular, deve o julgador proceder à comunicação prevista no artigo 359.º n.º 1 do Código de Processo Penal.

64. Cumprido esse dispositivo, uma de duas: ou o Ministério Público e o arguido estão de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, ou não e, enquanto no primeiro caso tal atitude do arguido legitima o tribunal a conhecer de mérito, no segundo a comunicação da alteração ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos e, na altura própria, dê cumprimento ao estatuído no artigo 285.º, nº 1 do Código de Processo Penal.

65. Nestes termos, salvo o devido respeito, mal andou o Tribunal recorrido ao não ter aplicado o disposto no n.º 1 do artigo 359.º e ter absolvido, sem mais, o arguido pela prática do crime de violência doméstica, muito embora tendo dado como provados factos suscetíveis de integrar os elementos constitutivos do crime de injúria.

66. Pelo exposto, o Tribunal a quo violou o artigo 181.º do Código Penal e o artigo 359.º n.º 1 do Código de Processo Penal. Efetuou, ainda, uma incorreta interpretação e aplicação dos artigos 119.º alínea b) e 49.º a 52.º, todos do Código de Processo Penal.

67. No que respeita ao PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL formulado pela demandante, ora recorrente, o Tribunal a quo, na sentença recorrida julgou o mesmo improcedente por não provado, absolvendo o arguido do pedido.

68. Não prescindindo do supra alegado, para efeitos de condenação e determinação do montante a liquidar em termos de indemnização civil quanto ao invocado erro de julgamento, o Tribunal a quo, com o devido respeito, deu incorretamente como não provados os factos que constam da matéria de facto dada como não provada sob os pontos i) a xx), pelo que procedendo o invocado vício alegado pela recorrente e, em consequência, ser dados como provados os factos que constam da matéria de facto dada como não provada sob os pontos i) a xx), deve ser julgado totalmente procedente, por provado, o pedido de indemnização civil formulado pela demandante, ora recorrente, contra o arguido/demandado, ora recorrido.

69. SEM PRESCINDIR, mantendo-se inalterada a matéria de facto dada como provada e não provada (o que apenas por mera cautela de patrocínio se concebe, mas não concede), se, em consequência do supra alegado, a decisão recorrida vier a ser alterada por outra que, face aos factos dados como provados sob os pontos 6 a 12 supra transcritos, condene o arguido pela prática de um crime de violência doméstica ou mesmo de um crime de injúria e o arguido venha a ser condenado por um ou por outro, deve, em consequência, ser o arguido condenado em indemnização à demandante por força do estatuído no artigo 377.º n.º1 do Código de Processo Penal.

70. SEM PRESCINDIR, na eventualidade do Tribunal ad quem manter a absolvição criminal do arguido (o que apenas por mera cautela de patrocínio se concebe, mas não concede), salvo o devido respeito, resulta da sentença que o Tribunal recorrido incorreu, em contradição insanável entre a fundamentação e entre esta e a decisão – vício previsto no artigo 410.º, n.º2, alínea b) do Código de Processo Penal – e em erro notório na apreciação da prova – vício previsto no artigo 410.º, n.º2, alínea b) do Código de Processo Penal.

71. Por um lado, o Tribunal recorrido dá como provados factos (que constam da “Fundamentação de facto” sob os pontos 6 a 12, supra transcritos) que permitem concluir que o pedido formulado, pelo menos em parte, se revela fundado, mas, depois, na fundamentação da sentença quanto à “IV. Responsabilidade civil” diz precisamente o oposto quando sustenta que “nem tendo resultado provados factos que permitam concluir que o pedido formulado se revela fundado”, proferindo sentença profere decisão de absolvição do pedido indemnizatório.

72. Assim, sendo, tendo por assente a matéria de facto dada como provada supra transcrita sob os pontos 6 a 12 – e não obstante, não ter sido dado como provada toda a restante matéria do pedido de indemnização civil – o Tribunal a quo teria necessariamente que condenar o arguido/demandado em indemnização em relação a esses factos!

73. Face aos factos dados como provados, o arguido/demandado teria necessariamente que ser condenado em indemnização à demandante/ora recorrente quer tal conduta criminosa do mesmo fosse qualificada como crime de violência doméstica ou de crime de injúria e o arguido fosse condenado ou absolvido (como foi) (por questões processuais) porquanto é evidente que a conduta criminosa em si – que é o que releva para a indemnização ser devida – ficou provada e, bem assim, os danos não patrimoniais que a demandante sofreu em virtude da mesma.

74. A responsabilidade civil do arguido, a apreciar em processo penal não implica necessariamente uma condenação daquele, mas tem, isso sim, por suporte a imputação de um crime, com verificação dos seus elementos constitutivos e de uma subsunção à fattispecie legal.

75. No caso em concreto a responsabilidade criminal do arguido foi afastada, mas porque o Tribunal recorrido entendeu existir uma nulidade processual insanável que o impedia conhecer da condenação pelos factos dados como provados como integradores do tipo legal de injúrias – porque já quanto à verificação da prática do crime de injúrias essa foi dada como provada.

76. Ora, nos termos do disposto no artigo 129.º do Código Penal “a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil”.

77. E nos termos do disposto no artigo 71.º do CPP, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, podendo sê-lo em separado nas situações previstas no artigo 72.º do mesmo diploma, permitindo esta indemnização ao lesado ver-se ressarcido dos danos patrimoniais e não patrimoniais a que a infração tenha dado causa.

78. Com base nos factos que consubstanciam o crime de violência doméstica que vem imputado ao arguido, a assistente pediu a sua condenação no pagamento da quantia de € 6.000,00 pelos danos não patrimoniais que sofreu.

79. O princípio geral da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, enunciado no artigo 483.º, n.º1 do Código Civil, estabelece que aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação, sendo elementos constitutivos da responsabilidade civil: o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

80. São, assim, pressupostos da responsabilidade do lesante/arguido a existência de um facto ilícito, voluntário e imputável ao arguido que seja consequência direta e adequada da produção dos danos no lesado.

81. Assim, tendo resultado provados os factos no que concerne às injúrias proferidas e ainda que o arguido não possa ser condenado pela prática dos mesmos por não se poder conhecer deles como alegado na sentença de que se recorre, a verdade é que nos termos do disposto no artigo 377.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a sentença ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respetivo vier a revelar-se fundado.

82. Deste modo, tendo resultado provados os factos no que concerne às injúrias proferidas e ainda que o arguido não possa ser condenado pela prática dos mesmos por não se poder conhecer deles por falta de acusação particular – o que não se concede –, nos termos do disposto no artigo 377.º, nº1, do Código de Processo Penal, a sentença ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respetivo vier a revelar-se fundado.

83. Assim e quanto aos danos não patrimoniais, face à análise dos factos provados concluiu-se que a assistente logrou provar que em consequência das condutas do arguido, foi ofendida nos seus sentimentos de vergonha, dignidade, estima e com nome, sendo atingida na sua honra e consideração, sendo molestada psiquicamente pelo arguido, estabelecendo-se um nexo de causalidade entre esses danos e a conduta do arguido.

84. De facto, não restam hoje dúvidas acerca da ressarcibilidade do dano não patrimonial, como claramente resulta do artigo 496.º do Código Civil, sendo necessário é que, pela sua gravidade, medida por padrões objetivos, tal dano mereça a tutela do direito, deixando-se de fora os simples incómodos ou meras contrariedades.

85. As verificadas ofensas à honra e consideração pelos insultos proferidos, constituem em si mesmo danos indemnizáveis, não se tratando de meros incómodos ou contrariedades, devendo pela sua gravidade ser compensados nos termos do artigo 496.º do Código Civil, cabendo ao Tribunal fixar uma compensação em dinheiro, como postula o n.º3 do artigo 496.º, do Código Civil, por recurso a critérios de equidade, o que implica, e considerando a remissão aí feita para o artigo 494.º, que se haja de entrar em linha de conta com a gravidade do dano, o grau de culpa do agente, a situação económica do lesante e do lesado e outras circunstâncias tidas por convenientes (neste sentido cfr. acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 30-01-2013, processo n.º 1743/11.9TAGDM.P1, acedido em www.dgsi.pt).

86. Nestes termos, deveria ter sido julgado procedente por provado o pedido de indemnização formulado pela demandante contra o arguido/demandado relativamente aos factos dados como provados sob os pontos 6 a 12, e em consequência sido condenado (parcialmente) no pedido formulado.

87. Pelo exposto, o Tribunal recorrido violou, entre outros, o disposto no artigo 129.º do Código Penal, artigo 71.º do Código de Processo Penal e artigos 483.º e 496.º do Código Civil, e fez uma incorreta interpretação do artigo 377.º n.º 1 do Código de Processo Penal.

Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogada a sentença recorrida e, em consequência, ser o arguido M. C.:

– condenado pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º1, alínea a) e n.º 2 do Código Penal, de que vinha acusado e no pedido de indemnização civil;

– ou, caso assim não se entenda, o que apenas por mera hipótese se concebe mas não concede, condenado pelo crime de injúrias, p. e p. pelo artigo 181.º do Código Penal, e (parcialmente) no pedido de indemnização civil;

– ou, caso ainda assim não se entenda, o que apenas por mera hipótese se concebe mas não concede, condenado (parcialmente) no pedido de indemnização civil.

6. A Exma Magistrada do Ministério Público na primeira instância respondeu ao recurso interposto pela assistente, tendo concluído no sentido de que [transcrição]:

1. “O erro notório na apreciação da prova, vício da decisão previsto no au. 410º n.° 2, al c), do CPP, verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem deformação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Porém, o vício, terá de constar do teor da própria decisão de facto, não da motivação dessa decisão, ou da fundamentação de direito. “Cf. Ac STJ-02-02-201 1, Rel. Maia Costa, in www. dgsi.pt.

2. O erro na apreciação da prova consiste em o tribunal ter dado como provado ou não provado determinado facto quando a conclusão deveria ter sido manifestamente contrária, seja por força de uma incongruência lógica, seja por ofender princípios e leis científicas, nomeadamente, das ciências da natureza e das ciências físicas ou contrariar princípios gerais da experiência comum (sendo em todos os casos o erro mesmo notório e evidente), seja também quando a valoração das provas produzidas apontarem num sentido diverso do acolhido pela decisão judicial mas note-se, excluindo este. Não basta, pois, que as provas permitam dentro da liberdade de apreciação das mesmas, uma conclusão diferente, a decisão diversa a que alude o artigo 412º, nº 3 alínea b) do Código de Processo Penal terá que ser a única ou, no mínimo, com elevada probabilidade e não apenas uma das possíveis dentro da liberdade de julgamento” Vide Ac. TRG, de 09-03-2015, Rel. Ana Teixeira e Silva, P515/12.8TAPTL.G1

3. Julgamos, porém, não assistir qualquer razão à recorrente já que o que aquela põe em crise é, no fundo e essencialmente, a forma como o Tribunal apreciou a prova produzida em audiência, impugnando dessa forma a convicção assim adquirida e pondo em causa a regra da livre apreciação da prova inserta no artigo 127° do Código de Processo Penal (CPP), no qual se diz que “.. aprova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.

4. Ora, conforme é sabido, vigora no nosso regime jurídico o princípio da livre apreciação da prova, expressamente consignado no artigo 127° do CPP, que só conhece as exceções que se integram no princípio da prova legal ou tarifada (cfr. artigos 169°, 84°, 344° e 163 do CPP).

Sufraga a recorrente o entendimento de que, ainda assim, a matéria de facto dada como provada integra a prática de um crime de violência doméstica prevista no artigo 152°, n°1 e n°2 do Código Penal, uma vez que o corpo da referida norma se basta com um só comportamento para a condenação, sem exigência de um comportamento reiterado.

5. O art. 152.°, n.°s 1 e 2, do CP —, integra-se no âmbito da legislação que tem em vista prevenir o fenómeno da violência doméstica (conjugal), da violência familiar e dos maus-tratos familiares.

6. «O bem jurídico protegido pela incriminação é, em geral, o da dignidade humana, e, em particular, o da saúde, que abrange o bem-estar físico, psíquico e mental, podendo este bem jurídico ser lesado, no âmbito que agora importa considerar, por qualquer espécie de comportamento que afete a dignidade pessoal do cônjuge e, nessa medida, seja suscetível de pôr em causa o supra referido bem-estar».

7. O bem jurídico, enquanto materialização direta da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efetivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus-tratos».

8. Temos para nós que a agressão física ou psicológica prevista no artigo 152°, n°1 do CP, há-de ter sempre o propósito de permitir ao agressor, por meio dela, ascender nessa relação e ocupar na mesma um lugar superior ao da vítima, assim quebrando a paridade, o que, não foi possível apurar que tenha ocorrido no caso dos autos.

9. Isto posto, e considerando a matéria de facto provada, bem andou o Tribunal ao absolver o arguido do crime de violência doméstica pelo qual vinha acusado.

10. No que tange às consequências processuais advenientes da situação em que o Tribunal considera que a matéria de facto não integra a prática de crime de violência doméstica, mas de um crime de injúria, existem três posições jurisprudenciais.

11. Quanto a nós, cumpre-nos referir que sufragámos uma posição próxima da última posição jurisprudencial, embora com uma nuance. Ou seja, dando-se como provados factos já constantes da acusação pública, que pese embora se revelem insuficientes para integrar a prática de um crime de violência doméstica, sejam suscetíveis de consubstanciar um crime de injúria (um minus face ao primeiro); tendo a ofendida manifestado, em momento anterior à alteração da qualificação jurídica, através do acompanhamento da acusação pública, o seu desejo de que o arguido seja submetido a julgamento pela prática dos factos vindos de provar, deve o Tribunal A Quo condenar o arguido pelo crime de injúria, após o cumprimento do preceituado no artigo 358°, n°3 do CPP.

12. Com efeito, e uma vez que na fase de inquérito o Ministério Público qualificou o crime como violência doméstica - crime público-, estava vedado à assistente o direito de deduzir acusação particular, nos termos do disposto no artigo 285° do Código de Processo Penal, desde logo porque nunca para tal foi notificada.

13. Nestes casos, consideramos que tendo a assistente acompanhado a acusação pública, nos termos do disposto no artigo 284° do Código de Processo Penal, única para a qual foi notificada, é o bastante para que o Tribunal A Quo tivesse condenado o arguido pela prática de um crime de violência doméstica, inexistindo, assim, qualquer nulidade por falta de legitimidade do Ministério Público para a prossecução da acção penal.

14. Isto posto, assiste razão à recorrente, pelo que deve a douta sentença ser revogada por outra que após o cumprimento do preceituado no artigo 358°, n°3 do Código de Processo Penal, considere que se encontram preenchidos todos os pressupostos formais, e, consequentemente, condene o arguido pela prática de um crime de injúria.”

7. Nesta instância, o Exmo Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, tendo concluído no sentido de “...inexistindo, em nosso entendimento, no caso em apreço, obstáculo legal /processual atendível e mostrando-se in casu provados os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal do crime de injúria – cfr. artigo 181 do C. Penal – deve, a nosso ver, ressalvado o devido respeito e contrariamente ao decidido na sentença recorrida, o arguido ser condenado pela prática de tal ilícito criminal”.

8. Cumprido que foi o disposto no artigo 417º nº2 do CPP não foi apresentada resposta.

9. Após ter sido efetuado exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência

II - FUNDAMENTAÇÃO

- Decisão recorrida

1. A sentença recorrida deu como provados e não provados os seguintes factos, seguidos da respetiva motivação [transcrição]:

a) Factos provados

Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:

Da acusação pública e pedido de indemnização civil

1. O arguido e Maria C. casaram entre si em 27 de agosto de 1983.

2. Até 27 de novembro de 2015 residiram na Rua …, Ponte de Lima, data em que, por ordem judicial, o arguido foi obrigado a afastar-se da habitação.

3. Correu termos o processo de inquérito n.º 319/05.4GAPTL no qual foi proferida acusação contra o arguido pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física simples e de um crime de ameaça, por se encontrar indiciado que nos dias 13 de julho de 2005 e 10 de setembro de 2005 o arguido desferiu um soco no rosto e brandiu um varão em ferro contra Maria C., dizendo-lhe que um dia a mataria com esse objeto e, posteriormente, agarrou-a e apertou-lhe o corpo, nomeadamente o peito, causando-lhe dores e sofrimento físico.

4. Aquele processo findou por desistência apresentada por Maria C., a única ofendida nesses autos, que decidiu pôr-lhe fim.

5. Pelo menos desde o ano de 2007 que Maria C. dorme num quarto separada do arguido.

6. No dia 9.11.2015, pelas 20h00, Maria C. estava na cozinha, sita na residência do casal, pois tinham acabado de jantar e estava a cuidar da louça.

7. A determinado momento o arguido começou a dizer que a comida estava salgada e depois começou a insultar Maria C. chamando-lhe “puta, vaca, porca”.

8. A ofendida telefonou para a sua amiga G. S. a quem pediu ajuda.

9. Após, saiu da cozinha e foi para o quarto onde se recolheu e pernoitou.

10. Com a referida conduta o arguido sabe que ofende os sentimentos de vergonha, dignidade, estima e bom nome de Maria C., sua esposa, pois sempre quis atingi-la na sua honra e consideração o que conseguiu.

11. Agiu com o propósito de molestar psiquicamente Maria C., com quem era casado, o que não ignorou e conseguiu.

12. Agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Da contestação

13. O arguido começou a apresentar nos últimos anos um comportamento desorientado, com discurso incoerente, hesitante, apresentando desordem mental.

14. O arguido demonstra frequentemente desorientação, desalento e baralha regularmente informações.

15. O seu discurso é frequentemente repetitivo, várias vezes incoerente e delirante, estando a ser seguido em consulta de psiquiatria.

16. Encontra-se medicado desde março de 2016.

17. Devido a ideias de referência (acredita que alguma medicação lhe faz mal) o arguido com frequência recusa-se a tomar medicação e na que toma com frequência baralha a posologia.

18. Com o tratamento o arguido tem revelado um comportamento mais calmo mas sem serem observadas quaisquer alterações ao nível do discurso e da desorientação.

19. Tem dificuldade em, autonomamente, gerir assuntos do quotidiano.

20. Se o arguido tivesse começado os tratamentos mais cedo, mais cedo teria sido diagnosticado e tratado.

21. O que poderia ter sido observado e ajudado pelos familiares mais próximos, nomeadamente pela assistente, sua esposa.

Dos autos

22. O arguido sofreu traumatismo cranioencefálico em 1995, após acidente de viação.

23. Foi internado em 2003 por abusos etílicos.

24. Sofre de debilidade mental ligeira.

25. À data dos factos era capaz da avaliar a ilicitude dos atos por si praticados e de se determinar de acordo com essa avaliação.

26. O arguido não tem antecedentes criminais registados.

Da audiência de discussão e julgamento

27. O arguido aufere 180,99 € de RSI.

28. Desde que lhe foi aplicada medida de afastamento que vive numa pensão, pagando, para o efeito, a quantia mensal de 135 €.

29. Toma as suas refeições na cantina social da Santa Casa da Misericórdia de Ponte de Lima.

30. Reduziu o consumo de bebidas alcoólicas desde dezembro de 2015.

b) Factos não provados

Da acusação pública e pedido de indemnização civil

i) Desde há cerca de 10 anos, a partir de data concretamente não apurada, que M. C. Carneiro tem vindo a dar mau viver a Maria C., designadamente, agredindo-a com murros, dirigindo-lhe impropérios, tais como puta e vaca, e amedronta-a com ameaças de morte.

ii) A intenção subjacente à desistência de queixa foi a de salvaguarda do casamento e da vida em comum.

iii) Após as agressões indicadas o arguido deixou de bater em Maria C., no entanto, em datas concretamente não apuradas mas situadas entre o ano de 2006 e 9.11.2015 continuou a apodá-la, designadamente, como sendo “puta, vaca e porca”, bem como, com mais frequência intimidava-a dando-lhe a entender que estava disposto a matá-la.

iv) O facto referido em 5 ocorreu desde que as ameaças de morte se iniciaram e obrigaram a assistente a assim proceder, trancando a porta com receio do arguido.

v) O arguido demonstrava uns ciúmes doentios, em relação a Maria C., questionando-a por onde tinha andado e com quem esteve perguntando-lhe “se foi para a vila ter com amigos”.

vi) Aquando do facto referido em 7 o arguido encontrava-se alcoolizado.

viii) Aquando do facto referido em 7 o arguido exprimiu à assistente que ela era de “família ruim”.

ix) A ofendida respondeu-lhe que a família dele não era melhor do que a sua ao que o arguido respondeu que lhe fazia como os outros homens fazem às mulheres “punha-a debaixo dos terrões” (querendo com isso dizer que a punha debaixo da terra, que estava disposto a matá-la).

x) A ofendida continuou a lavar a louça e o denunciado continuou exaltado, nomeadamente dando murros na mesa, até que lhe disse “põem-te daqui para fora que aqui não tens nada que a casa é minha”.

xi) O facto referido em 8 ocorreu porque o arguido continuava exaltado e a ofendida ficou mais aflita e amedrontada.

xii) O facto descrito em 9 ocorreu porque a ofendida não quis estar na proximidade do arguido, que a estava a fazer temer pela sua vida ou integridade física.

xiii) O arguido ingere bebidas alcoólicas em excesso, não trabalha, passa muito tempo nos cafés ou em casa, onde se embebeda, sendo esse fator um aspeto determinante da sua agressividade física e verbal para com Maria C., tal como acima descrito, fazendo que esta viva num clima de constante medo e ansiedade.

xiv) Com as descritas expressões e atitudes intimidadoras o arguido provocou o receio que poderia concretizar o propósito anunciado, pois fez crer que poderia atentar contra o corpo ou a vida da ofendida.

Do pedido de indemnização civil

xv) Por via de todos os factos praticados pelo demandado, pela sua reiteração ao longo de mais de 10 anos, a demandante, pessoa bem conceituada no meio familiar onde se insere, além das dores e elevados padecimentos sofridos, sentiu-se profundamente humilhada, envergonhada, desgostosa e psicologicamente abatida, angustiada e desiludida, chegando a temer pela própria vida.

xvi) Vivendo até à atualidade com as “sequelas” de ter sido violentada tão gratuitamente pelo marido, marcas que não mais se apagarão da sua memória.

xvii) Em consequência direta e necessária da conduta do demandado, a demandante sentiu ansiedade, medo e intranquilidade e baixa autoestima.

xviii) A convivência diária em que viveu com o demandado, seu marido, até 9 de novembro de 2015, alarmava-a, tendo vivido em estado de permanente angústia, temor e sobressalto.

xix) Em virtude da atuação do demandado supra descrita, a demandante, ainda hoje, dorme mal, acorda muitas vezes durante a noite em sobressalto, porque tem pesadelos com as situações que vivenciou.

xx) A realidade supra descrita produziu uma forte e estigmatizante perturbação do equilíbrio social, psíquico e emocional da demandante, constituindo um grave atentado à sua personalidade moral, acarretando todas estas circunstâncias à demandante inúmeros incómodos e embaraços, transformando a sua vida num penoso purgatório cujo fim desconhece.

Da contestação

xxi) O arguido foi muitas vezes, ao longo do casamento, vítima de maus tratos e agressões psicológicas por parte da sua mulher.

xxii) Foi a mesma que espoletou muitas das discussões do casal, que o mal tratava e insultava frequentemente.

xxiii) A ofendida percebeu a debilidade do arguido e, em vez de procurar ajudar, desinteressou-se do arguido e passou a maltratá-lo.

xxiv) O arguido demonstra incapacidade de avaliar as consequências dos seus comportamentos, fruto de anomalia psíquica.

c) Motivação da decisão da matéria de facto

A convicção do Tribunal relativamente à matéria de facto resultou da avaliação englobante do contexto probatório dos autos, designadamente, os documentos que deles constam, a prova pericial, por declarações e testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, enriquecida pelo que foi dado ao Tribunal ouvir e ver, resultado da oralidade e imediação de que beneficiou.

Deparou-se o Tribunal com duas versões antagónicas: a da acusação, sustentada pelas declarações da assistente e pelas testemunhas indicadas pelo Ministério Público e pela assistente; e a do arguido, sustentada pelas declarações negatórias do arguido e pelas testemunhas indicadas pela sua defesa.

O arguido negou a prática dos factos, depondo apenas quanto às condições pessoais que se deram por provadas.

A assistente confirmou a versão dos factos vertida na acusação, embora com algumas discrepâncias no que tange às imputações que nela visam contextualizar a atuação do arguido.

A versão da assistente foi a de que é maltratada pelo arguido, com agressões físicas, verbais e psicológicas, desde há mais de 10 anos, maus tratos esses circunscritos aos períodos em que o arguido consumia bebidas alcoólicas em excesso e concretizados na casa que era a de morada de família do casal.

A sua tese foi confirmada pelas testemunhas G. S., que nunca tendo assistido a nenhuma agressão, de qualquer tipo, entre o arguido e a assistente, narrou os desabafos que esta – com quem estreitou a amizade desde há cerca de 10 anos (altura em que a assistente passou a trabalhar para a testemunha) - lhe foi confidenciando, pese embora sempre de forma vaga e pouco descritiva. O único facto de que teve conhecimento direto respeita aos insultos atribuídos ao arguido, na noite de 09/11/2015, que refere ter ouvido pelo telefone, na sequência de chamada recebida da assistente que, nesse momento, lhe pedia ajuda no sentido de chamar a GNR ao local. No mais, caracterizou a assistente como uma mulher extremamente forte, que ocultava as suas vivências, que no dia a dia aparentava ser feliz, apenas manifestando tristeza e desconforto quando abordava com ela a temática da vivência conjugal, o que não sucedia com um padrão de frequência.

Considera-a uma pessoa trabalhadora, de resposta fácil, que não se comporta de forma acanhada, pelo que, nesse particular, não a tem como pessoa frágil. Quanto ao arguido, pelos parcos contactos que com ele manteve (circunscritos a ocasiões em que o mesmo realizou tarefas a seu pedido), tem-no como pessoa simpática, sem quaisquer queixas pessoais, apenas o tendo visto alcoolizado em épocas festivas de sarrabulho e Páscoa.

Por seu turno, a testemunha C. C., vizinha do assistente e do arguido desde há cerca de 9/10 anos, referiu que, quase diariamente, ouvia discussões que o casal mantinha na sua habitação, nas quais o arguido insultava e ameaçava a assistente, sendo que também quase diariamente o arguido bebia álcool em excesso, o que determinava aqueloutro comportamento. Apesar da aparente proximidade que se retira das confidências que referiu ter ouvido da assistente, o certo é que da vivência íntima do casal demonstrou um frágil conhecimento, sendo certo que a assistente nunca lhe pediu ajuda, o que mal se compreende posto que se tão íntimas fossem, a viver a cerca de 10,15 metros entre si, em situações aflitivas, de acordo com as regras da experiência comum, seria um recurso útil a que, ao que parece, a assistente nunca deitou mão. No demais, e na conjugação com a restante prova produzida, suscitam-se ao Tribunal dúvidas sobre a veracidade do depoimento prestado no que tange ao que declarou ter ouvido. Se, por um lado, referiu que apenas as palavras proferidas pelo arguido eram audíveis (excluindo assim qualquer intervenção da assistente que pudesse contrariar a imagem de esposa bem tratante), por outro claramente faltou à verdade quando afirmou que ouviu o arguido ameaçar a assistente de morte no dia da discussão, quando a GNR o levou, facto que sequer coincide com as declarações da assistente que, nesse particular, foi perentoria em afirmar que na noite de 09/11/2015 a GNR não entrou na sua habitação, por ter encontrado o ambiente pacificado, apenas se tendo deslocado ao local no dia seguinte, quando já nenhuma discussão decorria. Por fim, a localização da sua habitação (com uma uma outra casa de permeio), suscita dúvidas quanto à invocada audição das concretas expressões que atribuiu ao arguido.

M. S., declarou que passava frequentemente à porta da habitação do casal e ouvia discussões, à hora do almoço e ao final da tarde, nas quais o arguido apelidava a assistente de “bagaceira, má mulher e estrume” (em nada coincidentes com as expressões constantes da acusação pública, essas de utilização mais corrente e com maior potencialidade ofensiva). Incapaz de individualizar tais acontecimentos, referiu que a fase pior ocorreu há cerca de 9 anos, altura em que tais desacatos ocorriam semanalmente.

R. Costa, vizinha, declarou que ouvia o arguido “ralhar” com a assistente, apelidando-a de “puta, vaca” e dizendo que andava amigada, que a mantinha e que a queria da casa para fora, o que sucedia desde há 15 ou mais anos e até que a GNR foi buscar o arguido. Igualmente incapaz de individualizar tais ocorrências, referiu que aconteciam semanalmente, principalmente à noite, e que por vezes ouvia a assistente retorquir chamando-lhe nomes como calaceiro, dizendo-lhe que fosse trabalhar.

M.., irmã da assistente, declarou que o arguido dava mau viver à assistente, e que lhe chamava “puta”, o que ouviu a partir de 2005, quando passava em frente à casa do casal. Esclareceu que a irmã ora calava, ora respondia (apelidando-o de “filho da puta”) e que as discussões eram mútuas e frequentes. Confirmou que o casal vivia com um filho, atualmente com cerca de 30/31 anos, e que a assistente não queria deixar a casa, que também era sua. Caracterizou-a como uma mulher forte, que aguentou aquela vivência e ainda sustentava o arguido.

D. A., sobrinha da assistente, referiu que quando vinha da escola, a partir de 2005, ouvia discussões frequentes, nas quais o arguido maltratava a assistente, apelidando-a de “porca” e “puta”. Após insistência, reconheceu que a tia também respondia mas que o arguido era mais desrespeitoso.

S. B., militar da GNR, apenas conheceu o arguido aquando da sua detenção nos autos para aplicação de medida de coacção. Referiu que o mesmo não foi agressivo e o seu discurso não era coerente, apresentando um comportamento alterado, compatível com a ingestão de bebidas alcoólicas, estado que não foi confirmado.

Da prova testemunhal, vinda de aludir, retira-se que, excecionando a testemunha G. S. – a única que ouviu os insultos proferidos pelo arguido em 09/11/2015 – as demais testemunhas limitaram-se a referir a ocorrência de discussões que sopuseram envolver o casal e que, mercê do período temporal alargado em que as situam, não lograram individualizar. Todas caracterizaram o arguido como alcoólico, desrespeitoso, sem hábitos de trabalho. Com alguma perplexidade denotamos que nenhuma delas referenciou qualquer das características que clinicamente se vieram a comprovar, designadamente a debilidade intelectual de que o mesmo padece, ou os seus hábitos de trabalho agrícola, afigurando-se-nos que a imagem que construíram do arguido – porque nenhuma deles com ele privou de perto e com caráter de frequência – foi influenciada pelas conversas que mantiveram com a assistente, aderindo acriticamente ao por ela narrado.

Em contraponto, a versão sustentada pela defesa procurou explorar a ideia de que a assistente, desiludida com a sua relação conjugal – processo que se arrastava há largos anos – encontrou nos presentes autos a solução para pôr termo à convivência com o arguido, sem ter que lidar com a reação familiar e social ao seu propósito de dele se desvincular para prosseguir a sua vida, designadamente amorosa.

A testemunha E. F., ajudante de ação direta, conhece o arguido apenas do acompanhamento efetuado ao mesmo no âmbito do rendimento social de inserção.

Participou na elaboração da informação psicossocial de fls. 360-361, que confirmou.

Contacta com o arguido semanalmente. Acompanhou-o nas consultas no CRI, dando conta que depois de ter sido submetido a análises clínicas, foi-lhe dada alta porquanto o arguido não apresenta um quadro de alcoolismo crónico. Refere que nunca o encontrou alcoolizado, nem vislumbrou indícios de dissimulação do consumo de bebidas alcoólicas. Nunca foi violento e nunca tratou mal os técnicos, apesar de nervoso e revoltado com a situação em que se encontra. Caracteriza-o como pessoa lentificada, de bom trato, colaborante, sem retaguarda familiar e numa situação económica muito precária.

José P. A., psicólogo, acompanha o arguido desde dezembro de 2015.

Elaborou a informação psicossocial de fls. 360-361, que confirmou. Declarou que o arguido encontra-se desorientado e não tem estrutura mental para trabalhar, pelo que considera desencadear o pedido de reforma por invalidez. Apresenta um discurso delirante, no qual são percetíveis várias limitações mentais. Mesmo nos períodos de maior revolta com a situação que vivencia, não se exaltava, nem usava calão, sendo certo que os demais utentes da pensão onde pernoita não apresentam queixas do seu comportamento. Nunca o viu alcoolizado, nem com sinais evidentes de consumo de bebidas alcoólicas ou alterações de comportamentos a ele associadas, sendo certo que, em sua opinião, um alcoólico crónico, sem tratamento, não altera o seu comportamento de modo repentino. Menciona que o padrão comportamental do arguido - a verificar-se no passado recente - carecia de uma intervenção mais precoce, posto que o mesmo necessitava de ajuda.

J. A., cunhado do arguido (irmão da assistente), conviveu com o arguido quando o mesmo se encontrava emigrado na Venezuela. Descreveu a relação docasal como boa, sendo que a harmonia conjugal cessou quando o dinheiro começou a escassear. Descreveu o arguido como trabalhador, dedicado às lides agrícolas e que, sempre que solicitado, prestava trabalhos agrícolas e de construção civil para terceiros.

Nunca assistiu a nenhuma situação de maus tratos do arguido à assistente, pese embora a caracterizasse como uma pessoa sempre agressiva, conflituosa, que gostava de mandar.

Descreveu o arguido como um “mosca morta”, referindo que da personalidade que conhecia de ambos, entendia mais credível ser ele vítima do que agressor.

J. Amaral, amigo do casal, explicou que o arguido e a assistente ambos trabalhavam, contribuindo para a economia doméstica, ele por conta de uma empresa de construção civil e ela a dias e a na agricultura. Conviviam enquanto casal e não se metiam na vida uns dos outros, havendo respeito mútuo. A certa altura o arguido sofreu um acidente de viação, teve um traumatismo grave e nunca mais foi o mesmo. Ficou mais lento, devido à sua incapacidade física, e como não dava tanto rendimento, deixou de passar a ser contratado para os trabalhos que habitualmente fazia, passando a dedicar-se aos biscates que lhe adjudicavam. No entanto, o arguido era muito dedicado no cultivo dos seus terrenos, era vaidoso nesse serviço e tinha sempre tudo muito bem cuidado. Diariamente deslocava-se na sua bicicleta, cerca de 12 a 13 kms, para cuidar de um terreno dos sogros.

Caracteriza-o como uma pessoa calma, pacífica, a quem nunca ouviu usar palavrões. Nunca presenciou nenhuma discussão entre o casal.

M. Sousa, taxista, residente em Labruja, conhece o arguido desde criança e confirmou que o viu a trabalhar, várias vezes, no terreno na localidade onde reside, e a deslocar-se de bicicleta de e para lá. Referiu que o arguido tinha o terreno muito zelado e que era habilidoso. Confirmou que desde que teve o acidente, o seu comportamento alterou-se, tendo ficado mais parado. É uma pessoa calma e pacata, que não usa com frequência o calão.

M. A., contratou o arguido e a assistente para serviços agrícolas. Confirmou que o arguido, desde que teve o acidente, ficou mais parado.

Caracterizou a assistente como pessoa trabalhadora mas explosiva, ao contrário do arguido que não é agressivo e é boa pessoa. Relatou um episódio em que a assistente deu duas bofetadas a um filho seu, diante dos pais, facto que a desagradou, pelo que não a contratou mais. No mais, referiu que nunca ouviu queixas da assistente quanto ao marido e que no meio onde vive nunca se ouviu comentar a ocorrência de agressões. Considera o arguido uma pessoa pacata e educada, ao contrário da assistente que tem como malcriada, contando um episódio em que a mesma teria usado linguagem inapropriada.

M. F., sobrinha do arguido, referiu que trabalhou com a assistente durante 12 anos, até 2005. Frequentava a casa do casal e nesse período o relacionamento deles era calmo, nunca tendo presenciado qualquer discussão. Nunca viu o arguido a ser agressivo, ao contrário da assistente que se dirigia a ele como “filho da puta”.

Descreveu o arguido como pessoa calma e pacata, ao contrário da assistente que é mais nervosa e reativa.

A. B., conhece a assistente desde criança e o arguido desde o casamento deste. Esteve emigrado até há um ano, convivendo com o casal nos períodos de férias e festivos. Nessas ocasiões o casal dava-se bem. Referiu que a localidade onde moram é pequena e nunca ouviu comentar qualquer evento de maus tratos entre o casal. Descreveu o arguido como uma pessoa pacata, que “não faz mal a uma mosca”, pelo que não acredita nas acusações que lhe são imputadas, estando convicto tratar-se de uma estratégia da assistente, com a ajuda das testemunhas por ela indicadas, para se libertar do arguido.

Referiu que há cerca de 8 anos, quando a assistente lhe mostrou a casa, referiu-se ao quarto do arguido como “o quarto do cão”, facto que o desagradou. Referiu que o arguido sempre foi trabalhador mas que depois do acidente ficou 2 ou 3 anos em recuperação e após, sem condições físicas, mas ainda assim trabalhou como jornaleiro e cuidava dos terrenos agrícolas próprios.

R. S., vizinha do casal, referiu que passa muitas vezes à casa destes, e da sua casa avista-se a habitação do arguido, e nunca ouviu quaisquer discussões ou barulhos. Referiu que a assistente era boa pessoa, assim como o arguido, e que ambos trabalharam para si. Confirmou que o arguido era dedicado à agricultura e era quem cuidava dos cultivos e tratava dos animais e que tinha o seu terreno trabalhado com primor.

Confirmou ainda que desde que sofreu o acidente que as limitações físicas do arguido o impediram de trabalhar com a mesma destreza, pelo que é menos solicitado para fazer trabalhos agrícolas e outros. Referiu que há 3, 4 anos, em conversa com a assistente esta se dirigiu ao marido como “filho da puta” e que era notório que não nutria por ele qualquer sentimento amoroso, tanto que lhe confidenciou que começara a trabalhar em casa de um senhor, que lhe prestava atenção e lhe dirigia palavras de apreço (dizia que ela era bonita, jeitosa, uma flor). Mais lhe relatou que esse outro homem queria que ela fosse para a Areosa, para um apartamento que ele tinha, sendo que foi para Espanha com ele, para a praia. Relatou que a assistente recebia telefonemas durante o trabalho e que depois de desligar lhe contava as conversas, referindo inclusivamente o nome desse outro homem, por quem nutria interesse. Caracterizou o arguido como pessoa prestável, a quem nunca ouviu usar de calão, concluindo que as pessoas do meio sentem-se chocadas com a situação em que o mesmo se encontra, por entenderem que se trata de uma mentira orquestrada pela assistente para se libertar do marido.

Os depoimentos vindos de aludir colocam o arguido numa perspetiva completamente distinta daqueloutra que a versão da assistente trouxe aos autos. No que toca à integração comunitária do arguido, a informação psicossocial de fls. 360-361 confirma que o mesmo está bem integrado e apresenta boas relações com a vizinhança. A sua calma aparente foi notória durante todas as sessões de julgamento, denotando-se a ausência de reacções mesmo durante os depoimentos que menos beneficiaram a sua imagem. O depoimento da última das testemunhas vindas de referir impressionou pela quantidade de detalhes relativos às conversas mantidas com a assistente, não denotando o Tribunal na referida testemunha qualquer vislumbre de dissimulação.

Aqui chegados, o perfil da assistente - mulher trabalhadora, economicamente autónoma, pessoa tida como forte e de resposta fácil – não se coaduna com o padrão habitual da vítima de violência doméstica. Por outro lado, o longo período de afastamento do casal – repare-se que a própria assistente confirma que o casal não partilha o leito há cerca de 10 anos- não permite fundar a convicção de que a assistente se submeteu a uma relação maltratante na perspetiva de uma mudança que permitisse preservar o vínculo conjugal. A presença de um filho – já maior - que habitava até há cerca de 4/5 anos com o casal, constitui, em termos de experiência comum, um fator de proteção, posto que, em termos de normalidade, não só representa um recurso de ajuda imediata, como implica uma maior exposição do comportamento abusivo.

Tais considerações, aliadas à vacuidade da prova testemunhal indicada pela acusação, à versão completamente díspar que as testemunhas da defesa deram da personalidade do arguido, suscitam dúvidas ao Tribunal, dúvidas essas inultrapassáveis, de que os factos narrados pela assistente e vertidos na acusação ocorreram nos termos nela retratados, exceção feita quanto aos insultos que o arguido dirigiu à assistente, ouvidos pela testemunha G. S., a única com conhecimento direto desse facto vertido na acusação. Refira-se que esta testemunha foi perentória em afirmar que não ouviu ameaças, o que faz perigar as declarações da própria assistente a propósito do que realmente sucedeu na noite de 09/11/2015 e do contexto atuante do arguido. Que a testemunha G. S. está convicta de que a assistente lhe telefonou para pedir ajuda, não temos dúvida, mas que essa tenha sido a real intenção da assistente, já assim não é. Com efeito, desde logo, mal se compreende porque razão a assistente não ligou diretamente para a GNR. Nenhuma razão se perfilou para entender essa sua limitação. Declarou a assistente a propósito que não podia ligar para a GNR, retirando-se do conjunto das suas declarações que a mesma receava que a GNR não atuasse se fosse ela a estabelecer o contacto. Não ficou esclarecido porque razão a assistente tinha essa perceção. O certo é que a mesma admitiu que ligou para que a amiga pudesse ouvir a discussão e que não se ausentou de imediato para o quarto exatamente para garantir essa audição. Nesse pressuposto, mal se entende que a testemunha apenas tenha ouvido os insultos e já não as veiculadas ameaças, posto que a assistente manteve o telemóvel ligado para esse efeito. Face ao exposto, entende o Tribunal que apenas pode ter como certo que o arguido proferiu as expressões injuriosas que se deram por provadas e não outras.

Em suma, a prova do facto vertido em 1 emana do assento de casamento de fls. 42.

O facto vertido em 2 não se mostrou controverso e resulta da análise dos autos, designadamente do auto de interrogatório de arguido de fls. 75-79.

Os factos mencionados em 3 e 4 resulta da consulta do apenso A, a fls. 75-115.

O facto mencionado em 5 emana da valoração das declarações a propósito prestadas pela assistente, que, nesse particular, se nos afiguraram verídicas.

Os factos vertidos em 6 a 12 resultaram da conjugação das declarações da assistente, circunscritas à parte em que foram confirmadas pelo depoimento da testemunha G. S..

Os factos mencionados em 13 a 19 resulta da valoração da informação psicossocial de fls. 360-361, corroborada pelo depoimento das testemunhas que a ela procederam E. F. e P. A., completamente descomprometidas quanto ao destino dos autos.

Os factos mencionados em 20 e 21 resultam evidentes, em termos lógicos, face à patologia apresentada pelo arguido e documentada na perícia e informações médicas de fls. 559-561, 601-604, 626 e 639.

Os factos vertidos em 22 a 25 emanam da valoração do relatório pericial de fls. 559-561, e das informações de fls. 601-604, 626, 628 e 639.

A ausência de antecedentes criminais registados em nome o arguido resulta da análise do CRC de fls. 335.

A informação policial de fls. 324, corroborada pelo depoimento das testemunhas E. F. e P. A. serviu à prova dos factos mencionados em 26 a 28.

O facto vertido em 29, emana da valoração das informações prestadas a fls. 660, conjugadamente com os depoimentos das testemunhas E. F. e P. A..

A consideração como não provados dos factos que nessa qualidade se elencaram resultou quer da inexistência ou insuficiência de prova produzida, quer sobretudo do non liquet a que se chegou, mercê da dúvida instalada e não superada na valoração da prova por declarações e testemunhal nos termos que supra se expôs. Com efeito, tendo em conta o antagonismo das versões em confronto, e a idêntica determinação com que foram defendidas por umas e outras testemunhas, o Tribunal não logrou convencer-se, sem margem para dúvidas, que os factos tenham ocorrido tal como foram trazidas aos autos pela acusação. Dificilmente o julgador poderá ter a certeza absoluta de que os factos aconteceram ou não. Mas isto não obsta a que o tribunal se convença da realidade dos mesmos, posto que consiga atingir o umbral da certeza relativa. A certeza relativa é afinal um estado psicológico (a tal convicção de que se fala) que, conquanto necessariamente se tenha de basear em razões objetivas e possa ser fundamentável, não demanda que estas sejam inequivocamente conclusivas. No caso, o Tribunal não logrou alcançar esse patamar de certeza relativa, pois que no confronto das teses sustentadas pela assistente e pela defesa, defendidas com idêntico convencimento, não logrou o Tribunal encontrar fundamentos para valorar uma em detrimento da outra e, por fim, descortinar quem fala toda a verdade. Não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, impõe-se que não desfavoreça o arguido sempre que não logre a prova do factos; isto porque o princípio in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo. Foi esse o procedimento que culminou na consideração como não provados dos factos assim elencados.

Uma última consideração para se deixar expresso que, em nosso entender, os elementos vertidos em 2, 6 e 7 descritos na acusação, apenas poderiam ser tomados como contextualizadores da atuação do arguido descrita em 9 e seguintes da acusação. Com efeito, a falta de concretização temporal que o rigor do processo criminal demanda belisca,em nosso entender, o direito ao contraditório pleno de que o arguido beneficia. Senão vejamos, tratam-se de factos indiciariamente ocorridos desde há 10 anos (2) e no período temporal entre 2006 e 2015 (6 a 8). A sua alegação genérica, sem qualquer marco no longo período temporal alegado, não permite defesa alguma. As dificuldades de investigação, instrução e prova podem ser relevantes no tipo de crime ocorrido entre paredes. Para isso deve haver compreensão, todavia, não pode permitir-se que a generalização perverta os princípios penais e processuais penais. Nesta medida, sempre tal matéria estaria votada à prova diabólica e, mais do que isso, à defesa improvável.

2. O âmbito do recurso, conforme jurisprudência corrente, é delimitado pelas suas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo naturalmente das questões de conhecimento oficioso do tribunal, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº 2 do C. P. Penal.

No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, há que decidir as seguintes questões:

A- Erro de julgamento – artigo 412º, nº 3 do C.P.Penal;

B- Contradição insanável da fundamentação da sentença – artigo 410º, nº 2 al. b) do C. P. Penal;

C- Subsunção dos factos considerados provados na previsão do tipo legal de crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, nº 1 al. b) e nº 2 do C. Penal;

D- A possibilidade de prosseguimento dos autos, em lugar do imputado crime de violência doméstica, quanto a um crime de injúria p. e p. pelo artigo 181º do C. Penal;

E- Apreciação do pedido de indemnização civil em função da posição que vier a ser tomada sobre a matéria de facto e da integração da conduta do arguido na previsão do tipo legal de crime de violência doméstica ou do tipo legal de crime de injúria. E, na hipótese de ser mantida a absolvição total na parte criminal, o conhecimento, quanto ao pedido de indemnização civil, dos vícios de contradição insanável entre a fundamentação e entre esta e a decisão e erro notório da apreciação da prova do artigo 410º, nº 2 als. b) e c) do C.P.Penal.

A- Erro de julgamento – artigo 412º, nº 3 do C.P.Penal.

A matéria de facto pode ser impugnada por duas formas: através da invocação dos vícios do artigo 410.º n.º2 do C.P.Penal, ou seja, pela designada “revista alargada”, ou através da impugnação ampla da matéria de facto, nos termos do artigo 412.º n.º3 e 4 do mesmo diploma.

No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido art. 410.º, os quais têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos estranhos àquela, para a fundamentar.

No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise da prova produzida em audiência, mas dentro dos limites do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art.412.º do C.P.Penal.

Assim, o recurso que impugne amplamente a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe a reapreciação total dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida.

Na verdade, como se refere no Ac. STJ de 12.06.2008, de que foi relator relator Raúl Borges, disponível em www.dgsi.pt, processo 07P4375, tal impugnação tem quatro tipos de limitações:

- A que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;

Relativamente a este ponto importa ter presente o entendimento da jurisprudência segundo o qual esta indicação, ainda que efetuada por remissão ao consignado na ata da audiência, não se satisfaz com a referência a toda extensão dos depoimentos, antes devendo o recorrente identificar as passagens concretas desses depoimentos que impõem decisão diversa da tomada pelo tribunal.(1)

Acresce que segundo o disposto no Acórdão de Fixação de jurisprudência nº 3/2012, 8 de Março de 2012, publicado no DR 1º série de 18 de Abril de 2012, o qual fixou jurisprudência no sentido de que “Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta para efeitos do disposto no artº 412º nº3 alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na ata do início e termo das declarações.”.

- A que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o «contacto» com as provas ao que consta das gravações;

- A que resulta da circunstância de a reponderação de facto pelo tribunal da relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correção se for caso disso;

Assim, pese embora os tribunais da relação conhecerem de facto e de direito nos termos do disposto no artº 428º do CPP, como escreveu o Prof. Germano Marques da Silva “o recurso sobre a matéria de facto não significa um novo julgamento, mas antes um remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância” Forum Justitiae, Maio 99.

Em sentido idêntico sustenta Damião Cunha (2), ao afirmar que os recursos “…são entendidos como juízos de censura crítica « e não como «novos julgamentos».

De igual modo é jurisprudência corrente que «o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros» Cfr Ac. do STJ de 15-12-2005, Proc. nº 05P2951 e Ac. do STJ de 9-03-2006, Proc. nº 06P461, disponíveis em www.dgsi.pt].

- A que tem a ver com o facto de ao tribunal da relação, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida, Cfr. neste sentido o Acórdão STJ de 12-06-2008, Proc. nº 07P4375, disponível em www.dgsi.pt,

O Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto pela seguinte ordem: primeiro, da impugnação alargada, e depois e se for o caso, dos vícios a que alude o artigo 410 nº2 do aludido Código.

No caso ora em apreciação a recorrente, quanto à matéria de facto, invoca como tendo sido erradamente valorada a prova produzida, considerando incorretamente julgada a matéria vertida nos pontos i a xx do elenco dos factos considerados como não provados da sentença recorrida, os quais no seu entender deveriam ter sido dados como provados.

No sentido de fundamentar a sua posição, a recorrente sustenta que as declarações prestadas pela assistente, e os depoimentos prestados pelas testemunhas G. S., C. G. e R. Costa, conjugadas com a prova documental junta impunham decisão diversa da recorrida, indicando as passagens das declarações da assistente e dos depoimentos das testemunhas visadas.

Todavia, importa notar que a avaliação da prova produzida em audiência não se resume ao conteúdo literal de algumas passagens das declarações prestadas pelos participantes na audiência. Pelo contrário, cada depoimento deverá inicialmente ser analisado na sua globalidade, interligando-o depois, de forma abrangente, com a demais prova, tudo apreciado, numa perspetiva crítica, segundo as regras da experiência comum e da realidade da vida. Somente esta avaliação global permite a formação de um juízo sobre a credibilidade e a consistência de um depoimento.

Isto serve para dizer - adianta-se desde já – que, após leitura atenta das transcrições efetuadas, e ouvida integralmente a gravação da prova, artigo 412º nº6 do CPP, a recorrente insurge-se contra a convicção que o tribunal a quo formou sobre a prova produzida, pretendendo substitui-la pela sua própria convicção pessoal.

Acresce que os aspetos evidenciados pela recorrente relativamente às declarações por ela prestadas e a cada um dos depoimentos efetuados pelas testemunhas acima mencionadas, salvo o devido respeito por diferente opinião, não têm a virtualidade de impor uma decisão diversa da decisão recorrida.

Assim, relativamente às declarações prestadas pela assistente, alega a recorrente que “…a assistente prestou um relato que se afigurou genuíno, sincero, credível e coerente, não se denotando qualquer pretensão vingativa ou de retaliação em relação ao arguido, pelo contrário, a sua postura em julgamento foi de evidente naturalidade e humildade, procurando tão-só esclarecer o tribunal quanto aos aspetos mencionados na acusação, explicando ainda em juízo as circunstâncias da atuação do arguido…”

E, quanto aos factos do dia 09.11.2015, mais aduz a recorrente “…contrariamente ao sustentado no corpo motivador da douta sentença recorrida, a assistente logrou justificar a razão de não ligar diretamente para a GNR e sim para G. S., testemunha nos presentes autos, porquanto, como refere, se ligasse para a GNR para pedir auxílio tinha que explicar o que se estava a passar e não o conseguiria fazer sem o arguido se aperceber: “Pois, tinha que dizer que viessem lá, claro que sim, não ia conseguir porque ele não me deixava, porque eu tentei várias vezes fazer isso e ele perseguia-me sempre, uma altura chegou-me a dar conta de um telefone”.

Ora, quanto à razão pela qual a assistente, no dia 09.11.2015, não ligou para a GNR, mas antes para a testemunha G. S., por forma linear se conclui, que o tribunal a quo não acreditou na justificação dada pela assistente ( e não que a assistente não tenha procurado justificar esse seu comportamento). É o que se pode concluir da seguinte passagem da decisão recorrida: “…mal se compreende porque razão a assistente não ligou diretamente para a GNR. Nenhuma razão se perfilou para entender essa sua limitação. Declarou a assistente a propósito que não podia ligar para a GNR, retirando-se do conjunto das suas declarações que a mesma receava que a GNR não atuasse se fosse ela a estabelecer o contacto. Não ficou esclarecido porque razão a assistente tinha essa perceção. O certo é que a mesma admitiu que ligou para que a amiga pudesse ouvir a discussão e que não se ausentou de imediato para o quarto exatamente para garantir essa audição.”

Quanto ao depoimento efetuado pela testemunha C. G., no que tange à questão suscitada pela recorrente importa salientar que independentemente da data da ocorrência dos factos a que a testemunha se referiu no seu depoimento (dia 09 ou dia 26 de novembro de 2015), uma vez que a testemunha não indicou qualquer data precisa, e com isso poder ter induzido em erro o tribunal a quo, a verdade é que isso não invalida tudo o mais que foi dito por este no sentido de fundamentar a sua convicção.

Relativamente aos factos evidenciados pela recorrente na decisão recorrida quanto aos depoimentos prestados pelas testemunhas G. S. e R. Costa, independentemente de a testemunha G. S. ter afirmado que ouviu o arguido a dirigir à assistente palavras ofensivas da honra em momento anterior a 09.11.2015 (factos não concretizados, nem contextualizados na acusação), o tribunal a quo fundamentou a sua convicção por forma coerente e lógica, segundo as regras da experiência comum. E o mesmo se diga quanto ao suposto alcoolismo do arguido, bem assim a factos insuficientemente concretizados e contextualizados.

Na verdade, é isso que, por forma linear, se pode concluir da fundamentação da sentença recorrida, nomeadamente, na parte em que se refere o seguinte:

“A convicção do Tribunal relativamente à matéria de facto resultou da avaliação englobante do contexto probatório dos autos, designadamente, os documentos que deles constam, a prova pericial, por declarações e testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, enriquecida pelo que foi dado ao Tribunal ouvir e ver, resultado da oralidade e imediação de que beneficiou.

Deparou-se o Tribunal com duas versões antagónicas: a da acusação, sustentada pelas declarações da assistente e pelas testemunhas indicadas pelo Ministério Público e pela assistente; e a do arguido, sustentada pelas declarações negatórias do arguido e pelas testemunhas indicadas pela sua defesa.

Da prova testemunhal, vinda de aludir, retira-se que, excecionando a testemunha G. S. – a única que ouviu os insultos proferidos pelo arguido em 09/11/2015 – as demais testemunhas limitaram-se a referir a ocorrência de discussões que sopuseram envolver o casal e que, mercê do período temporal alargado em que as situam, não lograram individualizar (sublinhado nosso). Todas caracterizaram o arguido como alcoólico, desrespeitoso, sem hábitos de trabalho. Com alguma perplexidade denotamos que nenhuma delas referenciou qualquer das características que clinicamente se vieram a comprovar, designadamente a debilidade intelectual de que o mesmo padece, ou os seus hábitos de trabalho agrícola, afigurando-se-nos que a imagem que construíram do arguido – porque nenhuma deles com ele privou de perto e com caráter de frequência – foi influenciada pelas conversas que mantiveram com a assistente, aderindo acriticamente ao por ela narrado.

Em contraponto, a versão sustentada pela defesa procurou explorar a ideia de que a assistente, desiludida com a sua relação conjugal – processo que se arrastava há largos anos – encontrou nos presentes autos a solução para pôr termo à convivência com o arguido, sem ter que lidar com a reação familiar e social ao seu propósito de dele se desvincular para prosseguir a sua vida, designadamente amorosa.

Os depoimentos vindos de aludir (testemunhas indicadas pela defesa) colocam o arguido numa perspetiva completamente distinta daqueloutra que a versão da assistente trouxe aos autos. No que toca à integração comunitária do arguido, a informação psicossocial de fls. 360-361 confirma que o mesmo está bem integrado e apresenta boas relações com a vizinhança. A sua calma aparente foi notória durante todas as sessões de julgamento, denotando-se a ausência de reacções mesmo durante os depoimentos que menos beneficiaram a sua imagem. O depoimento da última das testemunhas vindas de referir impressionou pela quantidade de detalhes relativos às conversas mantidas com a assistente, não denotando o Tribunal na referida testemunha qualquer vislumbre de dissimulação.

Aqui chegados, o perfil da assistente - mulher trabalhadora, economicamente autónoma, pessoa tida como forte e de resposta fácil – não se coaduna com o padrão habitual da vítima de violência doméstica. Por outro lado, o longo período de afastamento do casal – repare-se que a própria assistente confirma que o casal não partilha o leito há cerca de 10 anos- não permite fundar a convicção de que a assistente se submeteu a uma relação maltratante na perspetiva de uma mudança que permitisse preservar o vínculo conjugal. A presença de um filho – já maior - que habitava até há cerca de 4/5 anos com o casal, constitui, em termos de experiência comum, um fator de proteção, posto que, em termos de normalidade, não só representa um recurso de ajuda imediata, como implica uma maior exposição do comportamento abusivo.

Tais considerações, aliadas à vacuidade da prova testemunhal indicada pela acusação, à versão completamente díspar que as testemunhas da defesa deram da personalidade do arguido, suscitam dúvidas ao Tribunal, dúvidas essas inultrapassáveis, de que os factos narrados pela assistente e vertidos na acusação ocorreram nos termos nela retratados, exceção feita quanto aos insultos que o arguido dirigiu à assistente, ouvidos pela testemunha G. S., a única com conhecimento direto desse facto vertido na acusação. Refira-se que esta testemunha foi perentória em afirmar que não ouviu ameaças, o que faz perigar as declarações da própria assistente a propósito do que realmente sucedeu na noite de 09/11/2015 e do contexto atuante do arguido.”

E mais adiante, além do mais acrescentou:

A consideração como não provados dos factos que nessa qualidade se elencaram resultou quer da inexistência ou insuficiência de prova produzida, quer sobretudo do non liquet a que se chegou, mercê da dúvida instalada e não superada na valoração da prova por declarações e testemunhal nos termos que supra se expôs. Com efeito, tendo em conta o antagonismo das versões em confronto, e a idêntica determinação com que foram defendidas por umas e outras testemunhas, o Tribunal não logrou convencer-se, sem margem para dúvidas, que os factos tenham ocorrido tal como foram trazidas aos autos pela acusação.”

Assim, o que a recorrente impugna, é a valoração que o tribunal fez da prova produzida segundo o princípio da livre apreciação pretendendo, ao invés, que vingue a opinião que ela formulou sobre a prova produzida em audiência.

Nos termos do disposto no artigo art.127.º do C.P.Penal – livre apreciação da prova – “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”
Este princípio assume particular relevo na fase de julgamento. Se é certo que a convicção do juiz não pode ser puramente subjetiva, imotivável e por isso, o art.374.º n.º2 do C.P.Penal exige que a sentença contenha “uma exposição tanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentaram a decisão, com a indicação do exame crítico das provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal” também não se pode esquecer que a decisão do juiz é sempre uma convicção pessoal, «até porque nela desempenham um papel de relevo não só a atividade cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais» in Jorge de Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, Coimbra Editora, edição 1974, pág.204.

Ao princípio da livre apreciação da prova, estão intimamente associados os princípios da imediação e da oralidade. Na verdade, o juiz, mercê do contacto direto com a testemunha, ao valorar o seu depoimento tem de atender a vários aspetos que têm a ver, designadamente, com a razão de ciência, a imparcialidade, a espontaneidade do depoimento, as hesitações, as contradições, os gestos, etc.

Na situação em apreço, decorre da fundamentação constante da sentença que o tribunal não considerou como provados os factos indicados pela recorrente em obediência ao princípio in dubio pro reo (3), sendo que a fundamentação explana um raciocínio lógico, coerente, que se adequa às regras da experiência comum.

Nesta conformidade, não se vislumbra que se verifique qualquer erro de julgamento.

B- Contradição insanável da fundamentação da sentença – artigo 410º, nº 2 al. b) do C. P. Penal.

No que concerne à chamada “revista alargada” dispõe o art.410.º nº2 do C.P.Penal: «Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.»

O vício da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão verifica-se quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação (e da medida desta) ou de absolvição.

O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ocorre quando há uma incompatibilidade, insuscetível de ser ultrapassada através do texto da decisão recorrida, entre os factos provados, entre factos provados e não provados ou entre a fundamentação e a decisão.

Existe erro notório na apreciação da prova quando, analisada a decisão recorrida na sua globalidade e sem recurso a elementos extrínsecos, resulta de forma inequívoca que o tribunal fez uma apreciação ilógica da prova, em patente oposição às regras básicas da experiência comum, ou seja, sempre que para a generalidade das pessoas seja evidente uma conclusão contrária à exposta pelo tribunal. Trata-se de um erro ostensivo, que é detetado pelo homem médio. Através da indicação das provas que serviram para formar a convicção do julgador e do seu exame crítico, o tribunal ad quem verifica se o tribunal a quo seguiu ou não um processo lógico e racional na apreciação da prova.

No caso sub judice a recorrente invoca o vício de contradição insanável entre a fundamentação da sentença recorrida, nos termos do artigo 410.º, n.º2, alínea b) do Código de Processo Penal, porquanto no ponto 30 da matéria de facto dada como provada é referido que o arguido “Reduziu o consumo de bebidas alcoólicas desde dezembro de 2015” e, depois, é dado como não provado, sob o ponto xii), que “O arguido ingere bebidas alcoólicas em excesso...”.

Não se nos afigura haver qualquer dúvida de que a afirmação pura e simples “O arguido ingere bebidas alcoólicas em excesso...” encerra um facto conclusivo.

Ora, desde há muito tempo constitui jurisprudência pacífica de que “As afirmações de natureza conclusiva devem ser excluídas do acervo factual a considerar, se integrarem o thema decidendum, e, quando isso não suceda e o tribunal se pronuncie sobre as mesmas, deve tal pronúncia ter-se por não escrita.”, cfr., entre outros, AC. STJ de 15.12.2011, Proc. 342/09.0TTMTS.P1.S1, disponível em ww.dgsi.

Todavia, a recorrente descontextualizou a afirmação “O arguido ingere bebidas alcoólicas em excesso...”, retirando-lhe a sua concretização factual.

Na verdade, o teor integral do ponto xiii que o tribunal a quo considerou não provado tem a seguinte redação:

“xiii) O arguido ingere bebidas alcoólicas em excesso, não trabalha, passa muito tempo nos cafés ou em casa, onde se embebeda, sendo esse fator um aspeto determinante da sua agressividade física e verbal para com Maria C., tal como acima descrito, fazendo que esta viva num clima de constante medo e ansiedade.”

Assim, através deste facto – que, repete-se, o tribunal considerou não provado e não é conclusivo - ficamos a saber que o arguido alegadamente embriaga-se em casa e em cafés, pelo que ingeria bebidas alcoólicas em excesso.

Tendo o tribunal considerado não provado tal facto e dado como provado que o arguido “Reduziu o consumo de bebidas alcoólicas desde dezembro de 2015” não se descortina qualquer contradição na medida em que ficamos sem saber (facto não provado) qual era o consumo de bebidas alcoólicas do arguido antes de dezembro de 2015, altura em que reduziu o consumo de tais bebidas. E é evidente que o facto de alguém ter reduzido o consumo de bebidas alcoólicas não significa que antes disso ingerisse tal tipo de bebidas por forma excessiva.

Nestes termos, o fundamento do recurso em análise não procede.

Aqui chegados, temos por definitivamente assente a matéria de facto, pelo importa agora passar ao respetivo enquadramento jurídico, o que quer dizer que iremos de seguida analisar a seguinte questão suscitada pela recorrente no presente recurso.

C- Subsunção dos factos considerados provados na previsão do tipo legal de crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, nº 1 al. b) e nº 2 do C. Penal;

A recorrente alega que, mesmo a manter-se inalterada a matéria de facto dada como provada, o tribunal recorrido não efetuou uma adequada interpretação e aplicação das normas penais relativas ao referido tipo legal de crime.

Nesse sentido, a recorrente concluiu, dizendo que “mal andou o Tribunal a quo ao entender que a conduta criminosa do arguido não pode ser qualificada como consubstanciando o crime de violência doméstica, de que vinha acusado, porquanto atualmente, o segmento “de modo reiterado ou não” introduzido no corpo da norma do n.º 1 do artigo 152.º do Código Penal é unívoco no sentido de que pode bastar só um comportamento para a condenação, isto é, a reiteração não é elemento essencial do tipo.

Conforme resultou provado pelo Tribunal recorrido, o arguido insultou a assistente chamando-lhe “puta, vaca, porca” enquanto a mesma estava a lavar a louça do jantar, tendo começado por se queixar de que a comida estaria salgada. No domicílio do casal.

As expressões concretamente dirigidas à assistente – após a mesma ter preparado o jantar para ambos e o arguido ter insinuado que a comida estaria salgada – visaram rebaixá-la, perturbá-la no seu bem-estar psicológico, na sua tranquilidade, na sua imagem de si própria, enquanto mulher, companheira e mãe e ainda na imagem, que os outros têm de si e no modo como os outros a veem, o que é essencial para o seu amor-próprio e da autoconfiança, fatores que o arguido quis e conseguiu precisamente atingir.

Dirigir as ditas as expressões no referido contexto é suficientemente grave para ofender a saúde psíquica e emocional da vítima, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana, assim representando um aviltamento e humilhação da mesma que, claramente, não são suficientemente protegidos pelo tipo de crime de injúria, pelo que integram o conceito de maus tratos psíquicos e, portanto, preenchem os elementos do tipo da violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2 do Código Penal.”

A verdade é que, tal como foi defendido na decisão recorrida, bem assim pelo M.P. na primeira instância (posição reiterada neste Tribunal da Relação pelo Exm Sr. Procurador Geral Adjunto), não podemos concordar com esta alegação.

Efetivamente, comete o crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, nº 1 do C. Penal “Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:

a) Ao cônjuge ou ex cônjuge;

b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;”

O crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º do C. Penal foi introduzido no C. Penal pela Lei nº 59/2007, de 04.09, agora a par do crime de maus tratos (artigo 152º - A do C. Penal).

No crime de violência doméstica, tal como acontecida no tipo legal que o antecedeu, ou seja, o crime de maus tratos, o bem jurídico protegido é a saúde, bem jurídico complexo que abrange a saúde física psíquica e mental, bem jurídico este que pode ser afetado por toda a multiplicidade de comportamentos que (…) afectem a dignidade pessoal do cônjuge”, cfr. a propósito do crime de maus tratos na redação do C. Penal anterior à atualmente em vigor, vide Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, 1999, Vol I, pág. 332.

A ratio do tipo não está, pois, na proteção da comunidade (…) conjugal, (…), mas sim na proteção da pessoa individual e da sua dignidade humana”, cfr. Taipa de Carvalho, ob. e loc. cit..

Na mesma linha vide Ac. STJ de 05.11.2008, in www.dgsi.pt, processo 08P2504 “o bem jurídico protegido nesta incriminação, tendo em conta até a sua inserção sistemática no Título I do CP (“Crimes contra as pessoas”), é a pessoa do cônjuge (ou equiparado), a sua integridade física, a sua saúde e a sua dignidade, enquanto pessoa humana, e não a instituição familiar. Na verdade, da descrição típica não consta qualquer referência que possa induzir a preocupação do legislador com a família, ou o ambiente familiar. É certo que a punição do cônjuge infractor poderá contribuir para a pacificação familiar, mas também poderá suceder o oposto. Em qualquer caso, serão efeitos reflexos ou laterais da tutela penal, pois é óbvio que a preocupação do legislador, neste preceito, é o cônjuge-vítima, a sua saúde física ou psíquica, a sua dignidade como pessoa.(3) É um crime contra as pessoas, não um crime contra a família”.

Acresce que, tal como se refere no Ac. RP de 28.09.2011, in www.dgsi.pt, processo 170/10.0GAVLC.P1No ilícito de violência doméstica é objectivo da lei assegurar uma ‘tutela especial e reforçada’ da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima”.

As condutas previstas e punidas neste preceito são de várias espécies: maus tratos físicos, ou seja, ofensas corporais simples, maus tratos psíquicos, isto é, humilhações, provocações, molestações, ameaças mesmo que não configuradas em si crime de ameaça.

Antes da alteração empreendida pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, além da específica relação que intercedesse entre o agente e o sujeito passivo, nos casos em que as condutas daquele configurassem a prática de ilícitos como os de ofensa à integridade física, ameaças e injúrias, o que determinava a verificação do tipo legal de crime de maus tratos era a reiteração de tais condutas, sendo que, em tais circunstâncias, entre aqueles ilícitos e o tipo legal de crime de maus-tratos (inexistia então previsão legal de crime de violência doméstica) intercedia uma relação de especialidade, aplicando-se apenas a punição própria deste último.

Porém, discutia-se a questão de saber se uma conduta isolada mas grave poderia ou não integrar o tipo legal de crime de maus tratos.

Atualmente mantém-se a referida relação de especialidade entre os crimes de violência doméstica e de maus tratos, de um lado, e crimes como os de ofensa à integridade física, ameaças e injúrias, de outro.

Todavia, a reforma penal veio consagrar a orientação segundo a qual a verificação dos crimes de violência doméstica e de maus tratos não exige a reiteração de condutas, sendo suficiente a ocorrência de “um único ato ofensivo de tal intensidade, ao nível do desvalor da ação e do resultado, que seja apto e bastante a lesar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana”, cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28/04/2010, em www.dgsi.pt, processo nº 13/07.1GACTB.C1.

No caso em apreço apenas estão em causa os factos de 09.11.2015.

Ora, no que tange à qualificação jurídica desses factos considerados provados, a decisão recorrida considerou, nomeadamente, que:

“No caso concreto, não obstante as expressões que o arguido dirigiu à assistente terem caráter ofensivo e constituírem uma manifestação evidente de violação do dever de respeito que deve existir entre os cônjuges e que legalmente está consagrada (art.º 1672.º do Cód. Civil), a verdade é que as expressões referidas não consubstanciam, isolada ou conjuntamente analisadas, condutas especialmente violentas ou que globalmente configurem uma atitude de especial desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, ou seja, não revestem a gravidade ou a intensidade do desvalor da ação e do resultado típicas do crime de violência doméstica. A conduta do arguido, embora penalmente relevante, surge num contexto de degradação do casamento já instalada, posto que o arguido e a assistente sequer partilhavam já o mesmo leito desde 2007. Tal conduta não representa um potencial de agressão que, em abstrato, supere ou transcenda a proteção oferecida pelo crime de injúria, na medida em que não espelham uma situação de maus tratos da qual resulte ou seja suscetível de resultar sérios riscos para a integridade psíquica da vítima.

Arredada está, assim, a punição da conduta do arguido como integrante de um crime de violência doméstica, impondo-se a sua absolvição quanto a tal.

No mais, de acordo com o disposto no artigo 181.º do Cód. Penal, quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe facto, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras ofensivos da sua honra e consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.”

Por seu lado, o M.P. na primeira instância, concordando com a decisão recorrida, referiu:

“Temos para nós que a agressão física ou psicológica prevista no artigo 152º, nº 1 do CP, há-de ter sempre o propósito de permitir ao agressor, por meio dela, ascender nessa relação e ocupar na mesma um lugar superior ao da vítima, assim quebrando a paridade, o que não foi possível apurar que tenha ocorrido no caso dos autos.

Isto posto, e considerando a matéria de facto provada, bem andou o Tribunal ao absolver o arguido do crime de violência doméstica pelo qual vinha acusado”.

Em jeito de síntese, por concordamos integralmente com o vertido nesta parte na decisão recorrida, bem assim com a posição que sobre ela tomou o M.P., diremos que os factos considerados provados não são suficientemente desvaliosos por forma a fazerem incorrer seu autor na perpetração do tipo legal de crime de violência doméstica, podendo antes integrarem a perpetração de um crime de menor densidade axiológica, como é o crime de injúria.

De forma que, importa passar à seguinte questão a analisar no presente recurso.

D- A possibilidade de prosseguimento dos autos, em lugar do imputado crime de violência doméstica, quanto a um crime de injúria p. e p. pelo artigo 181º do C. Penal.

Defende a recorrente, a título subsidiário, que, em face da alteração da qualificação jurídica dos factos dados como assentes, deveria o tribunal a quo ter condenado o arguido pela prática de um crime de injúria, porquanto, tratando-se de um minus face ao crime de violência doméstica, não se subsume à previsão das normas dos artigos 358° e 359 do Código de Processo Penal e, porquanto, a assistente apresentou queixa e acompanhou a acusação pública.

Na sentença recorrida, depois de se ter concluído pela absolvição do arguido da prática do crime de violência doméstica que lhe havia sido imputado, fundamentou-se a não condenação pela prática de um crime de injúria, aduzindo o seguinte:

“No mais, de acordo com o disposto no artigo 181.º do Cód. Penal, quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe facto, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras ofensivas da sua honra e consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.

Acontece, porém, que o crime de injúria reveste natureza particular, pelo que exige não só que o titular do direito se queixe e se constitua assistente, como também deduza acusação particular (art.ºs 113.º, n.º 1, e 188.º do C.P. e art.ºs 48.º a 52.º do CPP).

Ora, no caso dos autos, a denúncia apresentada pela assistente não individualizou os concretos factos apurados, a assistente não deduziu acusação particular, pelo que o Ministério Público não tem legitimidade para exercer a acção penal quanto ao indicado crime.

Poderia argumentar-se que a assistente acompanhou a acusação do Ministério Público, sanado assim o obstáculo processual invocado. Porém, a falta de acusação do assistente, num crime particular, anteriormente à acusação do Ministério Público, integra a nulidade insanável prevista no artigo 119º, al. b) do CPP.

Com efeito, este artigo comina com nulidade insanável a falta de promoção do Ministério Público, nos termos do artigo 48º do CPP. O artigo 48º, por seu turno, refere que o Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos artigos 49º a 52º do CPP. Ou seja, o Ministério Público deve promover o processo penal de acordo com o regime previsto nos artigos 49º a 52º, sob pena de nulidade insanável.

Nos termos do artigo 50.º, 1 do CPP, quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular.

Nestes casos (procedimento dependente de acusação particular), a acusação particular é a dominante, isto é, o Ministério Público - mesmo que pretenda também acusar - não o pode fazer por factos que importem uma alteração substancial daqueles – artigo 285.º, n.º 4 do CPP.

Assim, cabe ao assistente, nos crimes particulares, delimitar o tema do processo, definir os factos e proceder ao enquadramento jurídico dos mesmos, no crime que imputa ao arguido.

A adesão a uma acusação do Ministério Público não pode, portanto, equiparar-se a uma acusação principal. Isto é assim porque, como se referiu no Acórdão da Relação de Lisboa, de 07-04-2010, proferido no processo 547/08.0PAMTJ.L1 3ª Secção, “a ordem da sucessão das acusações do MP e do assistente é imperativa, surgindo no tocante aos crimes públicos e semi-públicos, a deste necessariamente na sequência da acusação proferida por aquele e condicionada a esta (art. 284º, 1 e 2).

Ora, a ordem da sucessão das acusações tanto é imperativa quando a acusação dominante seja a do Ministério Público, como na situação inversa.

Por outro lado, a consequência de uma adesão do Ministério Público a uma acusação particular, num crime público ou semi-público, é a nulidade insanável prevista no art. 119º, b) do CPP, como se decidiu no Assento nº 1/2000 do Supremo Tribunal de Justiça (DR I Série - A, de 6 de Janeiro de 2000 (citado por GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal II, Verbo, 2002, pág. 81), numa situação inversa: “integra a nulidade insanável da alínea b) do artigo 119º do Código de Processo Penal a adesão posterior do MP à acusação deduzida pelo assistente relativamente a crimes de natureza pública ou semi-pública e fora do caso previsto no art. 284º, 1 do mesmo diploma legal”.

É certo que o Supremo Tribunal de Justiça estava perante um caso em que a acusação dominante era a do Ministério Público, mas a questão não muda de natureza se, na ordem da sucessão das acusações, a do assistente devesse surgir em primeiro lugar. Ou seja, a adesão posterior do assistente à acusação do Ministério Público, num crime particular, também integra a nulidade prevista no art. 119º, b) do CPP.

Resulta do exposto que, no presente caso, a partir da alteração da qualificação jurídica, o Ministério Público não tem legitimidade para prosseguir a acção penal pelo crime de injúria (previsto no art. 181º do CP) já que o mesmo, nos termos do artigo 188.º, 1 do C. Penal, “depende de acusação particular”.

Deste modo, como vimos o arguido não pode ser condenado pela prática dos factos que integram o crime de injúria, posto que o procedimento criminal quanto a tal crime, não é legalmente admissível e, por isso, o tribunal não pode dele conhecer.”

Vejamos se será de atender aos argumentos da decisão recorrida.

Tal como vem referido pela Exma Magistrada do M.P. no tribunal a quo, quanto à consequência processual no caso de o tribunal concluir que os factos apurados não permitem a condenação pela prática do crime de violência doméstica, mas antes pela prática de um crime de injúria, na jurisprudência, tendo presente também a conduta processual tida pelo ofendido, é possível descortinar três posições.

“A primeira vem entendendo que, encontrando-se o arguido acusado ou pronunciado como autor de um crime de violência doméstica e não se apurando, em julgamento, factos bastantes para o preenchimento dos requisitos típicos de tal crime, mas apenas suficientes para lhe atribuir a autoria de um crime particular contra a honra e não se tendo o queixoso constituído assistente e não tendo deduzido acusação particular (nos termos do artigo 285° do Código de Processo Penal), o Ministério Público carece de legitimidade para fazer prosseguir a ação penal, devendo o arguido ser absolvido definitivamente de tal crime particular. Neste sentido, AC TRP, de 25/11/2015, in www.dgsi.pt

Uma outra corrente jurisprudencial, embora reconhecendo legitimidade do ofendido para exercer a ação penal pelo crime particular, apenas permite que a mesma se exerça após o cumprimento do artigo 359° do C.P.P., no atual (não havendo oposição) ou num novo processo (em caso de oposição ao prosseguimento, vale como notícia do crime), em que se dê cumprimento ao disposto no artigo 285° do C.P.P. Neste sentido, Ac TRC de 28/1/2010, in www.dgsí.pt

A terceira posição que reconhece o cumprimento dos requisitos de legitimidade do ofendido no caso de aquele se ter previamente constituído como assistente e aderido à acusação pública pelo crime de violência doméstica — em que se continham também os factos que se vieram a provar, consubstanciadores do crime particular— também entende como desnecessário o cumprimento do preceituado nos artigos 358° ou 359° do C.P.P. Neste sentido: AC TRP, 30-01-2013, relator: Pedro Vaz Pato, AC TRP, 27-04-2016, relator: Vítor Morgado e AC. TRL, 17-06-2015, Relator Graça Santos Almeida (todos in www.dgsi.pt.)”.

Tal como se referiu supra, quanto a esta questão a Exma Magistrada do M.P. no tribunal a quo, defendeu a procedência do recurso, aderindo à ultima solução jurisprudencial mencionada, com a nuance de dever ser cumprido o disposto no artigo 358º, nº 3 do C.P.Penal.

O Exmo Sr. Procurador Geral Adjunto nesta Relação, no seu parecer defendeu a procedência do recurso nesta parte, aderindo àquela última solução jurisprudencial, pelo que estando provados os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime de injúria do artigo 181º do C. Penal, o arguido deverá ser condenado pela prática de tal ilícito criminal.

Quanto a nós, diga-se desde já, que não podemos concordar com a posição sustentada na sentença recorrida, uma vez que, sem sombra de dúvidas, a solução jurisprudencial referida supra em último lugar, é aquela que melhor se adequa ao espirito da lei, aos princípios em que a mesma se baseia e tem um mínimo de correspondência na sua letra, cfr. artigo 9º do C.Civil.

Na verdade, não tendo resultado provados, em julgamento, factos suscetíveis de integrar a perpetração de um crime de violência doméstica, o certo é que a ofendida, no tempo próprio, apresentou queixa, constituiu-se assistente e o M.P. deduziu acusação pela prática de um crime de violência doméstica, acusação esta que a assistente declarou acompanhar.

E, sendo assim, a situação é em tudo idêntica à que foi objeto do atrás citado Ac. RL de 17.06.2015, de que foi relatora Graça Santos Silva, e com a qual concordamos e que aqui se reafirma. No suM. C. deste aresto pode ler-se:

1- O âmbito punitivo do tipo de violência doméstica, p. e p. pelo artº 152º/CP, abarca todos os comportamentos que, de forma reiterada ou não, lesam a dignidade humana, quer no âmbito dos maus-tratos físicos, quer no dos maus-tratos psíquicos, abrangendo comportamentos tipificados como crimes, se individualmente considerados, que se encontram numa relação de consumpção aparente com o referido crime de violência doméstica.

2- No caso, a acusação foi deduzida por uma série de atos delituosos, subsumíveis ao tipo de violência doméstica, mas apenas se provam factos que, ainda que parcialmente coincidentes com os acusados, foram entendidos como suscetíveis de integrar, apenas, o tipo de crime de injúrias.

3- Estando, necessariamente, em causa, um menos relativamente ao mais constante da acusação, entendemos que a situação não se subsume à previsão das normas dos artºs 358º ou 359º, do CPP.

4- A autonomização dos factos relativamente ao crime maior, no âmbito do qual foram acusados, não tem a virtualidade de desprovir de legitimidade para o exercício da acção penal o Ministério Público, órgão que, quando do exercício dessa mesma acção, a tinha e a usou de acordo com a lei.

5- A exigência de dedução de queixa-crime e de constituição de assistente, nos crimes particulares, reconduz-se à colocação na disponibilidade da vontade do ofendido da efectivação da punição pelos crimes de que foi vitima.

6- Ora, a manifestação da vontade, por parte da ofendida, da vontade de persecução da tutela penal dos direitos violados expressa pela dedução de queixa, constituição de assistente, acompanhamento da acusação e prestação de declarações em sede de audiência é suficiente e adequada a prover à tutela dos interesses inerentes ao instituto da acusação particular.

7- Exigir que, a par de todas essas inequívocas manifestações de vontade de ver condenado o autor dos factos delituosos, a vítima tivesse praticado um acto puramente formal de acusação, que depende de notificação para o efeito, quando tal notificação não foi feita nem tinha campo de aplicação, seria impor uma perversidade ao sistema, sem vantagem para qualquer dos direitos ou interesses em colisão.

8- Manifestando-se a vontade de persecução penal, inequivocamente, por outra via - a única compatível com a indiciação processual à data da acusação - não há fundamento que permita ignorá-la, em benefício de uma pura formalidade – processualmente descabida, em face dessa indiciação processual e das normas processuais vigentes à referida data, que excluíam a possibilidade de dedução de uma acusação particular.”

Ainda relativamente à questão de saber se no caso vertente deverá ou não ser dado cumprimento ao disposto no artigo 358º, nº 3 do C. P. Penal - trata-se de uma simples alteração da qualificação jurídica, uma vez que os factos considerados provados já constavam integralmente da acusação deduzida pelo M.P., sendo um minus relativamente a esta – julgamos que a resposta deverá ser negativa.

A este propósito é extremamente elucidativo o vertido no Ac. de Fixação de Jurisprudência nº 7/2008, in DR, 1ª Série, de 30.07.2008, quando refere:

“Ao alargar o âmbito de aplicação do instituto à alteração da qualificação jurídica dos factos o legislador visou, também, assegurar as garantias de defesa do arguido, de acordo, aliás, com a Constituição da República, que impõe sejam asseguradas todas as garantias de defesa ao arguido - n.º 1 do artigo 32.º (24) - , consabido que a defesa do arguido não se basta com o conhecimento dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, sendo necessário àquela o conhecimento das disposições legais com base nas quais o arguido irá ser julgado (25).

Assim e atenta a ratio do instituto, vem-se entendendo que só nos casos e situações em que as garantias de defesa do arguido - artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República - o exijam (possam estar em causa), está o tribunal obrigado a comunicar ao arguido a alteração da qualificação jurídica e a conceder-lhe prazo para preparação da defesa. Por isso, se considera que a alteração resultante da imputação de um crime simples ou «menos agravado», quando da acusação ou da pronúncia resultava a atribuição do mesmo crime, mas em forma qualificada ou mais grave, por afastamento do elemento qualificador ou agravador inicialmente imputado, não deve ser comunicada, visto que o arguido ao defender-se do crime qualificado ou mais grave se defendeu, necessariamente, do crime simples ou «menos agravado», ou seja, defendeu-se em relação a todos os elementos de facto e normativos pelos quais vai ser julgado (26).

O mesmo sucede quando a alteração resulta na imputação de um crime menos grave que o da acusação ou da pronúncia em consequência de redução da matéria de facto na sentença, quando esta redução não constituir, obviamente, uma alteração essencial do sentido da ilicitude típica do comportamento do arguido, ou seja, quando não consubstanciar uma alteração substancial dos factos da acusação (27).

Tal acontece, ainda, face a alteração decorrente da requalificação da participação do agente de co-autoria para autoria (28), bem como perante alteração resultante da requalificação da culpa do agente de dolo directo para dolo eventual (29).”

No caso em apreço, considerando a acima mencionada relação que existe entre o imputado crime de violência doméstica e o crime de injúria, julgamos não se verificar nenhum elemento de surpresa que determine que seja atribuída ao arguido uma maior amplitude de defesa. E, nessa medida, julgamos não haver lugar ao cumprimento do disposto no artigo 358º, nº 3 do C.P.Penal, pelo que se concorda na integra com a aquela última solução jurisprudencial. No mesmo sentido do aqui defendido, em que estava em causa o crime de violência doméstica, mas em que os crimes sobrantes ou residuais eram os crimes de ameaça e de ofensa à integridade física simples, vide Ac. RG, de 02.11.2015, proc. 77/14.1TAAVV.G1, relatora Manuela Paupério; Ac. RG de 21.10.2013, proc. 353/11.5GDGMR.G1, relator Filipe Melo; e Ac. RP de 28.03.2007, proc. 0710448, relatora Élia São Pedro, todos acessíveis em www.dgsi.pt..

Nesta conformidade, também nós concluímos no sentido de que não se verifica qualquer obstáculo legal /processual impeditivo da apreciação da responsabilidade criminal do arguido quanto ao crime de injúria p. e p. pelo arguido 181º do C. Penal.

Assim sendo, em face do que acima foi dito, os factos provados fazem incorrer o arguido na perpetração somente de um crime de injúria a p. e p. pelo arguido 181º, nº 1 do C. Penal.

Este crime é punível com pena de um mês a três meses de prisão ou multa de 10 a 120 dias – artigos 181º, 41º, nº 1 e 47º, nº 1, todos do C. Penal

Tendo presente o comando do artigo 70º do C. Penal “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa ou pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidade da punição".

Aplicação da pena de prisão deverá ser uma última ratio, apenas sendo de aplicar quando efetivamente seja necessária. Sobre esta matéria vide F. Di­as, A pena de multa de substituição, R.L.J., ano 125º, pág. 202).

Às finalidades da punição refere-se o artigo 40º, n.º 1 do C. Penal, que estatui "A aplicação das penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade".

A propósito desta norma a Prof. Fernanda Palma, in Jornadas Sobre a Revisão do Código Penal, AAFDL, ed. 1998, pág. 26, escreveu:

“O artigo 40°, norma sem paralelo no Código de 1982, traça as finalidades da punição: a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

A proteção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos outros cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva).

A proteção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial.

Por outro lado, a reintegração do agente significa a prevenção especial na escolha da pena ou na execução da pena.

E, finalmente, a retribuição não é exigida necessariamente pela proteção de bens jurídicos”.

No caso em apreço, pondera-se que o arguido é priM. C. e os factos foram por ele praticados no domicílio comum, no contexto de uma degradação da relação conjugal com a sua esposa, aqui ofendida (viviam na mesma casa mas dormiam em quartos separados).

Em consequência disso, julgamos que a pena de multa satisfaz as finalidades da punição supra enunciadas, razão pela qual se opta por esta em detrimento da pena de prisão.

Feita a opção pela pena de multa, há que determinar agora a sua medida.

A determinação concreta da pena faz-se de acordo com os critérios fixados no artigo 71º, n.º 1 e n.º 2 do C. Penal, pelo que, numa primeira aproximação, a pena deve ser concretizada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo ainda, numa segunda fase, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, rodearam o mesmo, antes ou depois do seu cometimento.

A medida concreta da pena há-de encontrar-se no espaço de liberdade fornecido por uma moldura que tem como limite máximo a culpa do agente e como limite mínimo as exigências de prevenção geral positiva (4).

Na verdade, importa precisar que:

- A culpa do agente assinala o limite máximo da moldura penal, dado que não pode haver pena sem culpa, nem a pena pode ser superior à culpa, de acordo com princípios fundamentais da Constituição da República Portuguesa (5), do Código Penal e no respeito pela dignidade inalienável do agente (6);

- As exigências de prevenção geral (traduzidas na necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto, no respeito pelas legitimas expectativas da comunidade) têm uma medida ótima de proteção, que não pode ser excedida, e um limite mínimo, abaixo do qual não se pode descer, sob pena de se pôr em causa a crença da comunidade na validade da norma violada e os sentimentos de confiança e segurança dos cidadãos nos institutos jurídico-penais; trata-se, aqui, de determinar qual a pena necessária para assegurar o respeito pelos valores violados, pelo que, a pena a aplicar não pode ultrapassar os limites de prevenção geral, uma vez que, como dispõe o artigo 18º, nº2 da C.R.P., só razões de prevenção geral podem justificar a aplicação de reações criminais; e

- Dentro desses dois limites atuam, na graduação da pena concreta, os critérios de prevenção especial de ressocialização, pois só se protege eficazmente os bens jurídico – penais se a pena concreta servir a reintegração do agente ou não evitar a quebra da sua inserção social.

Em suma, a realização da finalidade de prevenção geral que deve orientar a determinação da medida concreta da pena abaixo do limite máximo fornecido pelo grau de culpa, relaciona-se com a prevenção especial de socialização por forma que seja esta finalidade a fixar, em último termo, a medida final da pena (7).

Para graduar concretamente a pena há que respeitar ainda, como supra fico dito, o critério fornecido pelo n.º 2 do artigo 71º do C. P., ou seja, atender a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele. Este critério é fornecido, exemplificativamente, nas suas alíneas e podem e devem ajudar o tribunal a concretizar, no sentido de vir a quantificar, quer a censurabilidade ao facto a título de culpa, quer as exigências de prevenção geral e de prevenção especial.

A exigência de as referidas circunstâncias, favoráveis ou desfavoráveis ao agente (atenuantes ou agravantes), não integrarem o tipo legal de crime, ressalta de já terem sido levadas em conta pelo legislador na determinação da moldura legal, o que, no caso contrário, violaria o princípio ne bis in idem. (8)

Descendo ao caso concreto destes autos, há a considerar o grau ilicitude dos factos que é elevado atenta a gravidade objetiva das ofensas provocadas e a relação conjugal existente entre o arguido e a assistente, sendo por isso fortemente lesivas da honra e da dignidade da assistente enquanto pessoa.

A culpa do arguido é intensa, uma vez que agiu com dolo direto: o arguido representou os factos e atuou com intenção de os realizar – artigo 14º, nº 1 do C. Penal.

As exigências de prevenção geral, não apenas negativa, de intimidação, mas sobretudo positiva ou de integração, isto é de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação das normas ocorrida, não se fazem sentir com particular relevância.

No que diz respeito à prevenção especial (negativa e positiva ou de socialização) há a considerar:

- A idade do arguido ( o arguido tem 56 anos de idade), enquanto reveladora da maturidade da sua personalidade;

- O facto de o arguido não ter antecedentes criminais;

- As habilitações literárias, as condições sociais, familiares e económicas, etc, designadamente as existentes na data da prática dos factos, bem assim as suas condições de vida atuais. Assim, quanto a este aspeto, importa especialmente considerar os factos apurados em 13 a 25 da decisão recorrida de natureza francamente atenuativa (o arguido sofreu traumatismo cranioencefálico em 1995, após acidente de viação; sofre de debilidade mental ligeira; começou a apresentar nos últimos anos um comportamento desorientado, com discurso incoerente, hesitante, apresentando desordem mental; demonstra frequentemente desorientação, desalento e baralha regularmente informações; o seu discurso é frequentemente repetitivo, várias vezes incoerente e delirante, estando a ser seguido em consulta de psiquiatria).

Por tudo isto, julga-se adequado e justo cominar a pena de sessenta dias de multa, à taxa diária de seis euros, atenta a situação pessoal e económica do arguido (cfr. factos provados sob o nºs 27, 28 e 29, ou seja, é beneficiário de RSI, vive numa pensão e faz as suas refeições numa cantina social), cfr. nº 2 do artigo 47º do C. Penal.

Aqui chegados, resta-nos apreciar a última questão suscitada pela recorrente.

E- Apreciação do pedido de indemnização civil

Vejamos agora o pedido de indemnização civil deduzido pela assistente relativamente à factualidade subjacente ao crime de injúria, uma vez que apenas esta resultou provada (como não emergiram provados os factos imputados ao arguido suscetíveis de integrar a perpetração de um crime de violência doméstica, nesta parte o pedido de indemnização civil obviamente não poderá proceder).

Efetivamente, o pedido de indemnização civil apenas pode ser deduzido em processo penal se fundado na prática de um crime, nos termos do disposto no artigo 71º do C. P. Penal e no Ac de Uniformização de Jurisprudência de 17.06.1999, DR, I Série de 3.08.1999.

Nos termos do disposto no artigo 129º do C. Penal "a indemnização de perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil".

Esta norma deve ser interpretada no sentido de que a indemnização de perdas e danos emergente da prática de um crime é regulada, quantitativamente e nos seus pressupostos, pela lei civil. Tais pressupostos são os dos artigos 483º e 562º e ss do Código Civil.

Estipula o artº 483º, nº 1 do C.C. que " aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação ".

Da análise deste preceito, conclui-se que os pressupostos da obrigação de indemnização por factos ilícitos são os seguintes: o facto; a ilicitude; a imputação do facto ao lesante; o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano ( cfr., neste sentido, A. Varela, in Das Obrigações em Geral, 7ª ed., 1991, vol. I, págs. 515 e segs. ).

Em face do que ficou dito na parte criminal, é por demais evidente que os pressupostos da responsabilidade civil encontram-se verificados, por foram lesados direitos fundamentais da assistente (cfr. 70º do C. Civil e artigo 25º da CRP), pelo que existe obrigação de indemnizar a cargo do arguido.

Os danos alegados pelo assistente revestem a natureza de danos não patrimoniais e consistem, como supra se referiu, na ofensa da honra e da dignidade do assistente.

No que se refere a este tipo de danos, inexiste quanto a eles uma verdadeira indemnização. Há antes a atribuição de certa soma pe­cuniária julgada adequada a compensar as dores e os sofrimentos atra­vés do proporcionar de um dado número de alegrias ou satisfações que as minorem ou façam esquecer, cfr. A. Varela, Das Obrigações em Ge­ral, Vol. 1, pág. 481 e segs.

Nem todos os danos não patrimoniais são indemnizáveis, mas apenas aqueles que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito. Assim, conforme tem sido defendido uniformemente pela jurisprudência, os simples incómodos não são indemnizáveis.

No entanto, no caso vertente dignidade e a honra são, como supra ficou explicado, direitos fundamentais que, por terem sido atingidos, deve o seu titular ser compensado.

O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494”..., cfr. artigo 496º, nº 3 do C. Civil.

O montante da indemnização deve ser proporcionado à gravidade do dano, devendo ter-se em conta na sua fixação todas as regras da boa prudência e criteriosa ponderação das realidades da vida, cfr. Antunes Varela, ob. cit. pág. 427.

Assim, tudo ponderado, designadamente a gravidade das ofensas e da culpa, bem assim os elementos disponíveis sobre as condições pessoais do arguido, julga-se adequado para compensar os danos causados a quantia de mil euros ( artigo 496º, nº3 do C. Civil).

A tal quantia acrescem juros, à taxa legal de 4%, desde a presente data e até integral e efetivo pagamento (artigos 559º, 804º e 805º, nº 3 do C. Civil, Ac. Fixação Jurisprudência nº 4/2002, DR I Séria A, de 27.06.2002 e Portaria nº 291/2003, de 8.04).

III- Dispositivo

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela assistente e, consequentemente, deliberam:

1) Manter a absolvição do arguido quanto ao imputado crime de violência doméstica;

2) Condenar o arguido pela prática de um crime de injúria p. e p. pelo artigo 181º, nº 1 do C. Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de seis euros;

3) Julgar parcialmente provado e parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pela assistente e, consequentemente, condenar o arguido a pagar à assistente / demandante a título de danos não patrimoniais, a quantia de mil euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a presente data, até integral e efetivo pagamento.

4) Condenar o arguido e a assistente nas custas do pedido de indemnização civil na proporção do vencido – artigo 527º do C.P.C, ex vi do artigo 523º do C.P.Penal.

5) Condenar a assistente em 3 Ucs em taxa de justiça – artigo 515º, nº 1 al. b) do C.P.Penal e artigo 8º, nº 9 do RCP.

Notifique.


Guimarães, 25.09.2017


1. Neste sentido ver Ac. da Relação de Coimbra de 23/3/2011, proferido no processo 122/08.0GAMIR.C1, (relator Luís Ramos) no qual se considerou que “As concretas provas terão de corresponder a segmentos das declarações ou do depoimento e não a toda a extensão dos mesmos
2. In O Caso Julgado Parcial, Publicações Universidade Católica, 2002, pág. 37,
3. Tal como refere o Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, I, Verbo, 5ª edição, 2008, págs. 83 e 84 “A presunção de inocência é identificada por muitos autores como princípio in dubio pro reo, no sentido de que um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido. A dúvida sobre a responsabilidade é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim. Dados, porém, os limites do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece dúvida a final, malgrado todo o esforço para a superar. Em tal situação, o princípio político-jurídico da presunção de inocência imporá a absolvição do acusado já que a condenação significaria a consagração de um ónus de prova a seu cargo, baseado na prévia admissão da sua responsabilidade, ou seja, o princípio contrário ao da presunção de inocência.”
4. Vide F. Dias, Direito Penal Português, As Consequências do Crime, Editorial Notícias, p. 227 e ss.
5. Cfr. artigos 1º, 13º, n.º 1 e 25º, n.º 1.
6. Cfr. n.º 2 do artigo 40º do C. Penal.
7. Vide Anabela Rodrigues, "A determinação da medida concreta da pena..., R.P.C.C., nº2 (1991); "Sistema Punitivo Português, Sub Judice, 1996, nº11; da mesma autora vide também “O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, Ano 12,n.º 2 Abril – Junho de 2002, 147/182 e F. Dias, Direito Penal Português, ob. cit., pág. 243.
8. Vide A. Robalo Cordeiro, "Escolha e medida da pena", in Jornadas de Direito Criminal, CEJ, pág. 272.