Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3721/16.2T8GMR.G1
Relator: PEDRO DAMIÃO E CUNHA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CULPA EXCLUSIVA DO LESADO
EXCLUSÃO DA RESPONSABILIDADE PELO RISCO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/15/2018
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Se o acidente de viação for unicamente devido a actuação culposa exclusiva do lesado, a responsabilidade pelo risco deve considerar-se excluída nos termos do artigo 505.º do Código Civil.

II- Assim, quando o acidente de viação se dever a culpa exclusiva do peão, que procedeu à travessia da faixa de rodagem, de uma forma absolutamente imprevisível, impossibilitando que o condutor segurado na Ré- mesmo à velocidade reduzida a que seguia (não superior a 60 km/h, mas desconhecendo-se a concreta velocidade a que seguia (podia ser 40 km/h ou 60 km/h) -, pudesse ter conseguido evitar o embate com o peão, não pode a Seguradora Ré ser responsabilizada pelo Risco (art. 503º do CC) ”.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães.

I. RELATÓRIO.

Sofia intentou a presente acção declarativa de condenação contra “X - Companhia de Seguros, S.A.”, pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de € 120.000,00 a título de danos não patrimoniais.
Para tanto, e em suma, alegou que, no dia 23 de Setembro de 2012, pelas 21.30h, ocorreu um atropelamento na Rua São João Batista, freguesia de Ponte, concelho de Guimarães, em que foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros de matrícula PB, conduzido pelo seu proprietário, Artur, e um peão de nome António, seu pai, que veio a falecer.
O atropelamento deveu-se a culpa exclusiva do condutor do veículo de passageiros, que havia transferido a responsabilidade civil por danos causados a terceiros para a ora Ré.

Desta feita, a Autora reclama danos próprios e ainda uma indemnização pelos danos sofridos pelo seu pai, na qualidade de única herdeira.
A Ré, aceitando embora a ocorrência do atropelamento, impugna a versão dos factos, alegando que a culpa foi exclusivamente do peão, mais sindicando a ressarcibilidade dos danos peticionados e pugnando pela improcedência da acção.
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Proferido o despacho a que alude o art. 596º do CPC, realizou-se o julgamento com observância das formalidades legais.
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Na sequência foi proferida a seguinte sentença:

“Dispositivo:
Pelo exposto, vai a presente acção julgada parcialmente procedente e, em consequência, a ré “X - Companhia de Seguros, S.A.” condenada no pagamento da quantia de € 34.000,00 (trinta e quatro mil euros) à autora Sofia, no mais improcedendo o peticionado.
Custas na proporção do decaimento – art. 527º do CPC.
Notifique e registe.”
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É justamente desta decisão que a Recorrente veio interpor o presente Recurso, concluindo as suas alegações da seguinte forma:

“C O N C L U S Õ E S :

– A Recorrente, prima facie, impugna o julgamento da matéria de facto dada como não provada, a dos pontos b), d) e e) dos factos dados como não provados na douta sentença, que deverão passar a provados (cfr. artigo 640.º n.º 1 do C.P.C.).
- A resposta à matéria de facto em questão deverá ser modificada com base nos depoimentos produzidos pelas testemunhas Artur, Alfredo e Olinda, cujas passagens foram acima referidas e transcritas.
– Tais depoimentos impõem a modificação da matéria de facto requerida, ou seja, os factos não provados b), d) e e) devem passar a provados.
- As testemunhas foram credíveis e não há outros meios de prova que as desmintam. Por via dessa modificação, deverá também ser eliminado o facto 16 do elenco dos provados na douta sentença recorrida.
- Face a estes factos provados, a culpa na produção do sinistro por parte do peão é irrespondível, e também exclusiva.
- O comportamento do peão foi ilícito, culposo e causal do sinistro pois violou directamente o art.º 3.º n.º 2 do Código da Estrada (C.E.) : “As pessoas devem abster-se de actos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança, a visibilidade ou a comodidade dos utilizadores das vias, tendo em especial atenção os utilizadores vulneráveis”, o art.º 101º, n.º 1 do C.E. : “Os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respectiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente” e o art.º 101º, n.º 3 do C.E. : “Os peões só podem atravessar a faixa de rodagem nas passagens especialmente sinalizadas para esse efeito ou, quando nenhuma exista a uma distância inferior a 50 m, perpendicularmente ao eixo da faixa de rodagem.”
– Por via dessa violação causou o sinistro, pois entendeu, ao invés de cumprir as suas obrigações, atravessar, fora da passadeira, à vista de um veículo a circular normalmente, com as luzes ligadas, de noite, em local mal iluminado, trajando roupas escuras.
- O “PB” levava os faróis ligados, como se provou, mas o peão optou por proceder à travessia da via sem dispositivo luminoso, sem colete reflector, sem qualquer sinalização, de noite e em local mal iluminado.
- A culpa na produção do sinistro pertenceu por inteiro ao infeliz peão. Esta é a única conclusão lógica a extrair dos factos provados, e da sua concatenação com as regras de trânsito e os deveres dos utentes das vias.
10ª – SEM PRESCINDIR, ou seja, mesmo que se mantenha inalterada a matéria de facto, deve ser rejeitado o entendimento da Exmª Senhora Juíza a quo, muito douto, de resolver o presente sinistro com base na doutrina da concorrência entre culpa e risco.
11ª – O condutor do veículo “PB” respeitou as normas de circulação rodoviária, in totum, pois não se provou a violação de qualquer das regras de circulação rodoviária, nem sequer a violação de um dever geral de diligência, como se provou.
12ª – Importa salientar que a responsabilidade objectiva opera se e quando o lesado fizer prova da concreta causa que, atinente ao veículo ou à pessoa do condutor lesante, esteve na origem do acidente.
13ª - Para Antunes Varela, a possibilidade de concurso, em acidente de viação, do perigo especial do veículo com facto da vítima de modo a conduzir a uma repartição da responsabilidade ou a uma atenuação da obrigação de indemnizar pelo risco, é claramente rejeitada, com o argumento de não ser justa nem ter consagração legal.
14ª – Mesmo Brandão Proença conclui que a Lei (art.º 505º e 570º nº 1 do Código Civil) não admite este concurso entre culpa e risco, embora defenda um novo paradigma.
15ª - No Ac. do STJ de 4.10.2007, relatado pelo Conselheiro Santos Bernardino, entendeu-se o seguinte : “É também a esta luz que entendemos, procedendo, dentro do possível, a uma interpretação conforme com o direito comunitário, das regras nacionais sobre a responsabilidade civil objectiva, que essas normas consagram a possibilidade de concurso do risco do condutor do veículo com a conduta culposa do lesado, e que a responsabilidade pelo risco só é excluída, tal como entende Calvão da Silva, quando o acidente for imputável – i.e., unicamente devido, com ou sem culpa – ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte (exclusivamente) de força maior estranha ao funcionamento do veículo (…)”. – o destacado é nosso.
16ª - A jurisprudência subsequente demonstrou relutância em aceitar a solução do aresto, como se pode constatar do que a propósito consta do Ac. da RP de 14.07.2008 (disponível em www.dgsi.pt, processo n.º 0834104) e dos Acs. da RL de 5.05.2009 (processo n.º 5877/2008-7) e 25.06.2009 (processo n.º 675/2001.L1-8), disponíveis em www.dgsi.pt, e outros de data posterior.
17ª - Em bom rigor, a nova interpretação das duas normas não foi acolhida pela Jurisprudência. Vide, nomeadamente, o Acórdão do S.T.J. de 6 de Novembro de 2008 in www.dgsi.pt, que refuta expressamente essa tese ou nova interpretação
18ª - De modo que deve ser rejeitada a interpretação perfilhada nesse douto acórdão, bem como na douta sentença recorrida.
19ª - DE QUALQUER FORMA, os factos provados “sub judice” não permitem ter por caracterizada uma contribuição causal do risco/perigo próprio da circulação do veículo automóvel para a produção do acidente, o que vale, também se atendermos à posição do Acordão do S.T.J. de 4/10/2007.
20ª - O embate verifica-se na fila onde circulava o veículo, sem qualquer obstrução à sua frente, e sem trânsito em sentido contrário (ao contrário dos factos discutidos no Acórdão de 4/10/2007), e mais sucede que o peão efectua um movimento imprevisto, e invade uma via própria para veículos, onde é proibida ou censurável a travessia de peões (por existir passadeira a menos de 50 metros), de noite e em local sem iluminação, não sendo assim previsível para o condutor do veículo atentar no irreflectido comportamento do peão.
21ª - Só o peão pratica um comportamento negligente, ao invadir uma faixa de rodagem, de noite, em local não iluminado, e no qual era proibido ou censurado o trânsito de peões, pois existia passadeira a menos de 50 metros, em estrada onde circulava normalmente um veículo, com dispositivos luminosos ligados.
22ª - Observados os factos MESMO EM TERMOS DE RISCO, torna-se manifesto que estarmos perante uma conduta do lesado que se enquadra no círculo exoneratório do art. 505º do Código Civil, ou seja, o acidente tem de ser imputado exclusivamente ao peão – o comportamento deste tem de haver-se como a causa única do acidente.
23ª - No caso concreto decidido pelo Ac. do STJ de 4/10/2007, a condutora do veículo automóvel tinha pouca experiência (cinco meses) e esse facto foi decisivo para a apreciação da sua conduta, em termos de factor criador de risco, e para a condenação da Ré seguradora : “E, em nosso entender, surpreende-se, no caso concreto – enquanto factores que contribuíram para a verificação do acidente – a conjugação do perigo próprio do veículo com a inexperiência da sua condutora, potenciadora desse perigo” –
24ª - Acresce que nesse caso também se acentuou o facto do embate ter sido frontal, e entre dois veículos, circunstância ligada à maior ou menor habilidade para manobrar o veículo, sendo certo que esta manobra só é possível em casos de previsibilidade normal do comportamento dos outros utentes da via, ou seja, sem os obstáculos à (boa) visibilidade que ficaram provados nos nossos autos.
25ª - Mesmo que a doutrina do Ac. do STJ de 4/10/2007 fosse integralmente aplicada ao sinistro dos nossos autos, sempre a indemnização se deveria ter por excluída, face ao disposto nos arts. 505º e 570º do Código Civil, ou seja, mesmo, com a nova interpretação conjugada dessas normas que esse douto acórdão introduziu.
26ª - É que o sinistro foi devido unicamente ao comportamento culposo do infeliz peão, não tendo o risco próprio da circulação do veículo qualquer intervenção causal no deflagrar do sinistro.
27ª - O sinistro, mesmo em termos de risco, é unicamente imputável ao peão, pois o condutor do veículo automóvel nunca por nunca poderia adivinhar esse insólito e imprevisto movimento do peão, nas circunstâncias de facto provadas.
28ª - Tem de se excluir a responsabilização, por via do risco, do condutor do veículo, assacando-se a causa do sinistro ao movimento irreflectido do infeliz peão, ou seja, o sinistro foi devido unicamente, foi imputável em exclusivo ao comportamento culposo do infeliz peão, não tendo o risco próprio da circulação do veículo qualquer intervenção causal no deflagrar do sinistro.
29ª - A douta decisão recorrida violou, nomeadamente, o disposto nos art.s. 342º nº 1, 388º, 389º, 483º, 487º nº 2, 505º, 506º e 570º do Código Civil, 607º, 615º nº 1, alínea d), 616º, 637º, 640º, 644º, 645º e 647º do Código de Processo Civil, e 3º nº 2 e 101º do Código da Estrada, que deverão ser interpretados de acordo com as presentes conclusões.
Nestes termos, e nos melhores de direito aplicáveis … deve o presente recurso ser julgado procedente, e, em consequência, revogado o douto acórdão recorrido (sentença recorrida), devendo, em sua substituição, ser lavrado douto Acórdão (sentença) que julgue procedentes as conclusões do presente recurso, com as legais consequências…”,
”.
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Foram apresentadas contra-alegações pela Recorrida, onde pugna pela improcedência do Recurso.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
*
No seguimento desta orientação, a(o)(s) Recorrente(s) coloca(m) as seguintes questões que importa apreciar:
*
1. Determinar se o tribunal a quo incorreu num erro de julgamento, e, consequentemente, se, reponderado esse julgamento, devem:

- ser alterados os factos constantes dos pontos b), d) e e) dos factos dados como não provados na douta sentença, devendo tal matéria de facto passar a ser dada como provada;
-ser eliminado, em consequência, o ponto 16 da matéria de facto provada.
*
2.Saber se, sendo modificada a matéria de facto no sentido propugnado pelo(s) Recorrente(s), a acção deve ser julgada improcedente.
3- saber se pode haver concorrência entre responsabilidade pelo risco e culpa do lesado;
4. saber se, mesmo que assim se entenda, sempre a indemnização se deveria ter por excluída, atentas as circunstâncias do caso concreto.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença proferida em 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
Para o efeito, relevam os seguintes factos provados:

1. Cerca das 21.30 h, do dia 23 de Setembro de 2012, na Rua São João Batista, freguesia de Ponte, concelho de Guimarães, ocorreu um atropelamento do peão António pelo veículo ligeiro de passageiros de matrícula PB.
2. O veículo era conduzido por Artur, a quem pertencia.
3. A Rua São João Batista é uma via única com dois sentidos de trânsito, uma via em cada sentido.
4. O pavimento é betuminoso, em estado de normal conservação.
5. Chovia, encontrando-se o piso molhado.
6. O veículo seguia no sentido Braga/Guimarães.
7. Atento o sentido Braga/Guimarães a via configura uma recta com aproximadamente 200 metros, estando ladeada por bermas asfaltadas e em paralelo.
8. A faixa de rodagem tem cerca de 7 metros de largura, sendo que cada berma da estrada tem cerca de 1,8 metros.
9. O veículo levava os dispositivos luminosos ligados.
10. No local da via onde se deu o atropelamento a iluminação pública não confere visibilidade à área.
11. Considerando o sentido de circulação Braga/ Guimarães, o peão pretendia atravessar a rua do lado esquerdo da berma para o lado direito.
12. O peão trajava roupas escuras.
13. Quando o condutor do veículo avistou o peão já o mesmo estava a uma distância não concretamente apurada mas não superior a 15 metros.
14. O condutor do “PB” não chegou a travar antes do atropelamento. 15. Quando já se encontrava próximo da berma do lado direito foi colhido pela parte da frente, lado direito, do veículo PB.
16. O veículo circulava a uma velocidade não concretamente apurada mas não superior a 60km/h.
17. A zona é ladeada por habitações e estabelecimentos comerciais e na recta onde se deu o sinistro existia pelo menos uma passadeira, uns semáforos e uma paragem de autocarro.
18. A travessia do peão efectuou-se a menos de 50 metros da passadeira existente naquela recta.
19. No local onde ocorreu o atropelamento existe sinalização vertical a limitar a velocidade a 50 Km/hora.
20. O veículo imobilizou-se a não menos de 12,80 nem mais de 37 metros após ter colhido a vítima.
21. Com o atropelamento, o peão embateu no capô do veículo PB, que ficou amolgado.
22. Acabando prostrado no asfalto.
23. A autora é filha única do peão António.
24. Nas circunstâncias de tempo referidas em 1) a autora tinha 24 anos de idade.
25. Em consequência do atropelamento, António sofreu dores.
26. Sofreu um traumatismo crânio-encefálico.
27. Foi transportado para o Hospital de Braga, imobilizado em plano duro, com colar cervical, monitorizado.
28. No hospital, o seu estado clínico deteriorou, com queda de Glasgow para 5/15 e com anisocoria 0>E.
29. Foi entubado e ventilado após administração de Medizolan e Fentanil.
30. Foi submetido a uma intervenção cirúrgica ao crânio.
31. Faleceu no dia 24.09.2012 pelas 1:12 horas, em consequência das lesões crânio-encefálicas, após ter sido intervencionado cirurgicamente.
32. Durante um período de tempo não concretamente apurado mas seguramente não superior a três horas sentiu a iminência da morte com enorme agonia, amargura e angústia, sofrendo dores intensas.
33. Na altura do acidente tinha 50 anos de idade.
34. Era normalmente saudável, constituído, e trabalhador.
35. A morte do pai causou uma enorme dor à autora, que se agrava em datas de aniversário, Páscoa, Natal e férias.
36. Por via do contrato de seguro titulado pela apólice nº … a ré declarou assumir a responsabilidade emergente da circulação do veículo PB.
*
Factos não provados:

Com pertinência para o mérito da acção não se provaram os demais factos alegados, designadamente:

a) Que aquando do referido em 11) o peão se tenha certificado de que podia atravessar a estrada sem perigo de acidente, tendo em conta a distância dos veículos e a sua velocidade.
b) Que o veículo atropelante circulasse a uma velocidade de 40 Km/hora.
c) Que o veículo atropelante circulasse a uma velocidade de 80 Km/hora.
d) Que no momento em que o “PB” acedeu ao local, os semáforos existentes na recta apresentassem a cor vermelha para os veículos que circulavam na Rua São João Baptista, no mesmo sentido de marcha que levava.
e) Que por causa do referido em d) o condutor do “PB” haja imobilizado o seu veículo antes dos semáforos.
f) Que com o embate do peão no veículo o pára-brisas tenha ficado partido.
g) Que o falecido pai da autora fosse grande companheiro e amigo desta, estando sempre presente nos bons e nos maus momentos.
h) Que o falecido pai da autora lhe pagasse uma quantia mensal para a alimentação, saúde, estudos e/ou vestuário.
i) Que o António houvesse começado, dias antes do atropelamento, a trabalhar numa padaria denominada “T.”, em …, Guimarães.
j) Que no emprego referido em i) fosse auferir o salário de € 485,00 mensal, 14 vezes por ano.
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B)- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Já se referiram em cima as questões que importa apreciar e decidir.
*
A) Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

Compulsado o Recurso interposto, pode-se concluir que, como resulta do corpo das alegações e das respectivas conclusões, a Ré/ Recorrente impugnou a decisão da matéria de facto, tendo dado cumprimento aos ónus impostos pelo artigo 640.º, nº 1 als. a), b) e c) do CPC, pois que, faz referência aos concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, e a decisão que, no seu entender, deveria sobre eles ter sido proferida.
Cumpridos aqueles ónus e, portanto, nada obstando ao conhecimento do objecto de recurso nesse segmento, importa verificar, pois, se se pode dar razão à Recorrente, quanto aos questionados pontos da matéria de facto.
Importa, antes de entrar directamente na apreciação das discordâncias alegadas, referir qual deve ser o âmbito de apreciação da matéria de facto que incumbe ao Tribunal da Relação em sede de Recurso.
Na verdade, o âmbito dessa apreciação não contende com a ideia de que o Tribunal da Relação deve realizar, em sede de recurso, um novo julgamento na 2ª Instância, prescrevendo-se tão só “ … a reapreciação dos concretos meios probatórios relativamente a determinados pontos de facto impugnados… “ (1).
Assim, o legislador, no art. 662º, nº1 do CPC, “ … ao afirmar que a Relação aprecia as provas, atendendo a quaisquer elementos probatórios… pretende que a Relação faça novo julgamento da matéria de facto impugnada, vá à procura da sua própria convicção, assim se assegurando o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise… “ (2).
Destas considerações, resulta, de uma forma clara, que o âmbito da apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, estabelece-se de acordo com os seguintes parâmetros:

a) o Tribunal da Relação só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo Recorrente;
b) sobre essa matéria de facto impugnada, o Tribunal da Relação tem que realizar um novo julgamento;
c) nesse novo julgamento o Tribunal da Relação forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes) (3).
Dentro destes parâmetros, o Tribunal da Relação, assumindo-se como um verdadeiro Tribunal de Substituição (4), está em posição de proceder à reavaliação da matéria de facto especificamente impugnada pelo Recorrente, pelo que neste âmbito a sua actuação é praticamente idêntica à do Tribunal de primeira Instância, apenas cedendo nos factores da imediação e da oralidade.
Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
“O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado” (5).
De facto, a lei determina expressamente a exigência de objectivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CPC).
Todavia, na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância (6).
Impõe-se-lhe, assim, que “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada” (7).
Importa, porém, não esquecer porque, como atrás se referiu, se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando este Tribunal, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada- quando nessa prova se funde o recurso-, conclua, com a necessária segurança (8), no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitaram uma conclusão diferente daquela que vingou na primeira Instância.
*
Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se assiste razão à Ré apelante, neste segmento do recurso da impugnação da matéria de facto, nos termos por ela pretendidos.
Importa, agora, então que o Tribunal se pronuncie sobre a impugnação da matéria de facto, fundada no alegado erro na apreciação da prova, entendendo a Recorrente/ Ré que, em face da prova produzida:

- devem ser alterados os factos constantes dos pontos b), d) e e) dos factos dados como não provados na douta sentença, devendo tal matéria de facto passar a ser dada como provada;
-deve ser eliminado, em consequência, o ponto 16 da matéria de facto provada.
*
Aí ficaram mencionados como matéria de facto não provada os seguintes factos:

“b) Que o veículo atropelante circulasse a uma velocidade de 40 Km/hora. (…)
d) Que no momento em que o “PB” acedeu ao local, os semáforos existentes na recta apresentassem a cor vermelha para os veículos que circulavam na Rua São João Baptista, no mesmo sentido de marcha que levava.
e) Que por causa do referido em d) o condutor do “PB” haja imobilizado o seu veículo antes dos semáforos.
*
16. O veículo circulava a uma velocidade não concretamente apurada mas não superior a 60km/h.”
*
A Recorrente não concorda com a decisão proferida sobre esses pontos da matéria de facto, alegando que a prova de tal factualidade foi efectuada através dos depoimentos das testemunhas Artur, Alfredo e Olinda (efectuando as respectivas transcrições).
*
Quanto a esta matéria de facto provada, o Tribunal fundamentou a decisão sobre esta matéria de facto da seguinte forma:

“Motivação:
A mais da factualidade aceite pelas partes, o tribunal atendeu desde logo à documentação junta aos autos, que conjugou com a percepção do local após inspecção judicial realizada, tudo considerando à luz das regras da normalidade e experiência comum. (…)
A fls. 32 (verso) a 34 consta o auto de participação de acidente de viação completo, com croquis incluído, dele resultando que o peão não chegou a prestar quaisquer declarações no local por ter sido transportado para o hospital em estado muito grave. Desse auto resultam também as medições efectuadas no local, quer quanto a elementos puramente objectivos, quer quanto a distâncias calculadas por referência às declarações do condutor do veículo, designadamente quanto ao local provável do atropelamento. Daí que tenha sido possível afirmar que o veículo não terá andado seguramente menos do que 12,80 metros depois do atropelamento (de acordo com o que foi indicado pelo condutor ao agente que subscreveu o auto) nem seguramente mais do que 37 metros, já que a passadeira existente no local está a 24,50 metros, pelo que entre a passadeira e o corpo do peão mediaram 37,30 metros, sendo consabido, até porque aceite por ambas as partes, que a travessia não ocorreu na passadeira mas sim depois desta, atento o sentido de marcha do veículo. Ora, considerando que o piso estava molhado, a distância de travagem, ou seja, a distância percorrida pelo veículo desde o instante correspondente à posição em que foi actuado o seu pedal do travão, até ao instante correspondente à posição em que se imobilizou ou que o seu pedal de travão deixou de ser actuado permite concluir, por referência às tabelas existente, que o veículo não seguiria seguramente a mais de 60 km/hora – vd. a título de exemplo, a tabela que consta in: http://www.ansr.pt/SegurancaRodoviaria/ArtigosTecnicos/Documents/Dist_travagem%20(absolute%20M tors)%20r.pdf.
Tais tabelas permitem também concluir que quando o condutor do veículo avistou o peão, e considerando que, por um lado, só nesse momento levou o pé ao travão, por outro, não logrou concretizar a travagem, a distância percorrida há-de corresponder apenas ao habitualmente designado “tempo de reacção”.
Não é contudo possível precisar concretamente a velocidade a que seguiria, já que o local exacto do atropelamento não ficou apurado, sendo que à insuficiência de elementos objectivos acrescem contradições nos vários depoimentos prestados que não permitem apontá-lo com segurança, como melhor se dirá.

O relatório fotográfico de fls. 76 e as imagens de fls. 35 (verso) e 36 permitiram apreender algumas das características do local, percebidas também aquando da inspecção judicial, bem como a amolgadela no veículo que sinaliza qual a parte do mesmo que embateu no peão. Não há qualquer sinal de quebra de pára-brisas ou outros danos, razão pela qual essa factualidade, não demostrada também por qualquer depoimento, veio a ter-se como não provada.
Os depoimentos testemunhais foram igualmente valorados, menos ou mais positivamente, consoante o grau de isenção apresentado.
Assim, de modo absolutamente isento depuseram os bombeiros que acorreram ao local, D. A. e Conceição. Ambos referiram que a vítima estava viva e gemia com dores, sendo que apenas o primeiro se recordava que o local da estrada onde foram prestar socorro não estava iluminado, no que foi corroborado pelo agente que elaborou o auto de participação e que fez constar, precisamente, que não havia luminosidade.
O primeiro dos referidos bombeiros recordou também que o peão trajava roupa escura, tendo referido o tempo chuvoso, no que foi acompanhado por todos os depoentes que se recordaram do estado do tempo à data do sinistro.
Rui, que casualmente estacionara o seu veículo do lado direito da via, considerado o sentido de marcha do veículo, junto do candeeiro de iluminação pública que pode ver-se na imagem de fls. 35, do lado esquerdo, com a parte da frente apontada na direcção de Guimarães (e por isso sem visibilidade obstruída pelo arbusto/fiteira baixa que pode ver-se na mesma imagem), aguardando a vinda de uma amiga que iria conduzi-lo a um restaurante, referiu que o local era bem iluminado, contrariando assim os anteriores depoentes referidos.
Essa percepção, contudo, deverá atribuir-se ao facto de naquele concreto local onde o mesmo estava parado, efectivamente, haver luz, dada a existência do referido candeeiro. Contudo, a travessia do peão fez-se para o lado oposto, não havendo razões para crer, contrariando todos os demais depoimentos, que houvesse visibilidade na faixa de rodagem, mais adiante do local onde o mesmo estacionara.
Este depoente referiu também que os semáforos estavam intermitentes.
Nesta parte contrariou outros depoimentos, designadamente o do condutor do veículo, Artur. Este depoente afirmou estar certo de que os semáforos não estavam intermitentes. Contudo, começou por afirmar que estava luz vermelha e que por isso parou, para em seguida dizer que não tinha a certeza absoluta que tivesse vermelho mas que mesmo que estivesse luz verde seguramente abrandaria, face à existência de passadeira. Ana, cônjuge deste, afirmou que a luz estava vermelha e que por isso pararam, mas afirmou também que havia vários veículos à frente daquele em que seguia (no banco traseiro, lado esquerdo, atrás do condutor, seu marido), no que é contrariada, não apenas por todos os demais depoentes que se pronunciaram quanto ao trânsito (e que referiram que só havia carros atrás), como também pelas regras da lógica, já que a assim ser não se vislumbra como pudesse aquela travessia do peão (e da mulher que o acompanhava, de mão dada, cuja inquirição não foi possível por não se ter logrado fazê-la comparecer, tendo os contactos da autora, prévios ao próprio julgamento, saído sempre infrutíferos, desconhecendo-se sequer se a mesma ainda reside em Portugal) ocorrer no meio de vários veículos em marcha sem que o atropelamento se desse antes daquele se aproximar da berma e sem que também a sua companhia de então fosse colhida também.
No mais que a referida testemunha Ana referiu, considerou-se também estar em causa mais a percepção resultante das conversas entretanto havidas (até porque este mesmo sinistro já foi apreciado duas vezes, uma em processo crime, outra na acção proposta pelo hospital em virtude das despesas suportadas), pelo que o seu depoimento não foi valorado de modo particularmente relevante. O mesmo sucedeu com o depoimento de Olinda, que seguia no lado direito do banco de trás e nada viu, como admitiu.
Esta testemunha é casada com Alfredo, o qual seguia no banco da frente, do lado direito, e falou também da luz vermelha no semáforo. Contudo, revelando estar predisposto a afirmar mais do que aquilo que efectivamente viu, disse também que o peão, com a ajuda dos bombeiros, se levantou e foi para a ambulância, o que é absolutamente inverosímil, já que o mesmo foi imobilizado no local, não havendo nenhuma referência por qualquer outra das pessoas ouvidas de que se tenha erguido.
É certo que, perante a perplexidade causada com aquela declaração, o indicado depoente procurou “emendar a mão”, fazendo-o contudo de modo desajeitado e pouco credível. Nessa medida, o seu depoimento foi valorado com reservas, vindo a ser considerado apenas na parte em que outros o corroboraram, designadamente no que respeita à iluminação do local, à surpresa causada nos ocupantes do veículo aquando da constatação do vulto do peão e da pessoa que o acompanhava e ao facto de estes últimos seguirem em marcha muito rápida.
De resto, a travessia do peão ter-se-á desde logo iniciado em marcha rápida, como afirmou a testemunha Rui, o que indicia que o veículo estaria a circular e não parado nos semáforos. É também possível depreender que o peão sabia que o tempo de que dispunha para a travessia não lhe permitia circular em passo normal.
Quanto aos danos…
Quanto aos demais factos não provados, na parte não referida já, entendeu-se não ter sido produzida prova bastante.”
*
*
Aqui chegados, importa, pois, que o presente Tribunal, tendo em consideração o que já ficou dito em cima, se pronuncie sobre a argumentação da Recorrente no sentido de apurar se, conforme esta defende, os meios de prova produzidos nomeadamente, a prova testemunhal indicada, permitem alterar a decisão no sentido propugnado.
Como se disse, o uso, pelo Tribunal da Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve, no entanto, ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Ora, tendo em consideração a prova testemunhal produzida aos autos e as diligências probatórias realizadas, a conclusão a que se tem chegar é justamente aquela a que chegou o Tribunal de Primeira Instância.
Na verdade, fazendo a análise conjugada dos aludidos elementos probatórios, não pode o presente Tribunal divergir do juízo probatório efectuado pelo Tribunal de Primeira Instância.

Senão vejamos.
A questão fáctica colocada pela Recorrente diz respeito ao apuramento da velocidade a que circulava o veículo conduzido pelo seu segurado.
Na verdade, é essa a relevância da factualidade plasmada nas als. d) e e), pois, na perspectiva da Recorrente, o facto de se provar que o condutor do veiculo segurador teve que parar na sinalização semafórica, porque esta estava no sinal vermelho, demonstraria que, no momento do embate com o peão, o aludido veículo circularia a 40 km/h (al. b)).
Ora, quanto a esta matéria de facto não provada (e quanto ao ponto 16 da matéria de facto provada), o Tribunal Recorrido, como lhe competia, efectuou a análise crítica e conjugada de toda a prova produzida, e não só dos depoimentos testemunhais que a aqui Recorrente pretende valorar.
Nesse sentido, assinalou- e bem- as contradições existentes nos depoimentos prestados pelas testemunhas Artur, Alfredo e Olinda (indicados como fundamento do Recurso por parte da Recorrente) e, além destes, ponderou os depoimentos das testemunhas Ana (que também seguia dentro do veículo automóvel no lugar traseiro atrás do condutor) e Rui (que se encontrava fora do veículo, junto ao seu próprio que se encontrava estacionado no lado direito da via- sentido de marcha do veículo atropelante).
Ora, julga-se que, ponderados todos os elementos probatórios produzidos, a análise crítica realizada pelo Tribunal Recorrido merece aqui pleno acolhimento.
Na verdade, tendo em conta as contradições assinaladas pelo Tribunal Recorrido (nomeadamente, a hesitação do condutor do veículo – Artur- quanto à cor da sinalização semafórica em pontos distintos do seu depoimento), a forma pouco credível com que as testemunhas Alfredo (passageiro no banco da frente do veículo) e Olinda (que seguia no banco traseiro no lugar atrás daquele) se pronunciaram sobre a questão, e a afirmação, sem hesitações, da testemunha Rui (que nenhum interesse tem na presente acção e por isso prestou um depoimento isento) de que a sinalização semafórica se encontrava em modo intermitente, tudo aponta no sentido de que o Tribunal Recorrido ponderou devidamente esta factualidade.
Acresce que, como bem nota o Tribunal de Primeira Instância, a forma como o peão realizou a travessia da faixa de rodagem (em marcha rápida) - como refere a testemunha Rui - também aponta no sentido de que falecido peão se teria apercebido que o veículo estaria a circular (e não parado nos semáforos).
Assim, tendo em conta tudo o que se acaba de dizer, bem andou o Tribunal Recorrido em considerar que nenhuma das partes logrou efectuar a prova da velocidade concreta a que circularia o veículo automóvel no momento do embate com o peão (nem velocidade superior a 80 km/h – alegação da Autora; nem “na ordem dos 40 km /h” – alegação da Ré), e, nessa medida, em responder que tal velocidade, podendo-se dizer que era inferior a 60 km/h, não foi possível ser concretizada em termos quantitativos, “por insuficiência de elementos objectivos” (desde logo, porque o local do embate não ficou apurado).
Conclui-se, pois, que a decisão sobre a matéria de facto proferida merece integral confirmação, devendo o ponto 16 permanecer na factualidade provada por corresponder ao exacto sentido do resultado (insuficiente) da prova produzida e aqui novamente reanalisada.
É que, conforme decorre da prova produzida, no caso concreto, não é possível apurar, com a segurança probatória exigida, quer que o condutor do veículo segurado circulava a velocidade superior à legal permitida (50 km/h), quer a velocidade inferior, desconhecendo-se, em concreto, e com precisão, esse valor.
Nesta conformidade, tendo em conta o exposto, é nosso entendimento que o Tribunal Recorrido não incorreu em qualquer erro de julgamento ao considerar como não provados, os factos constantes das alíneas b) e d) e e) da matéria de facto não provada.
De resto, conforme já se referiu, sempre tal decisão se imporia, pois que “… em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte…” (9) - não sendo despiciendo referir aqui que a Sra. Juíza de Direito que presidiu ao Julgamento realizou, de uma forma avisada, Inspecção ao local, certamente para melhor compreender a dinâmica do acidente de viação (e a credibilidade da prova produzida, nomeadamente, da prova testemunhal), diligência que o presente Tribunal não realizou (apenas podendo ponderar o que ficou plasmado no respectivo Auto).
Na verdade, dentro deste contexto, o presente Tribunal deve utilizar um critério de razoabilidade ou de aceitabilidade da decisão proferida pelo Tribunal Recorrido, quanto à matéria de facto. Ora, no caso concreto, é indiscutível que este critério conduz a confirmar a decisão recorrida, porque a mesma se situa numa margem de razoabilidade ou de aceitabilidade que deve aqui ser reconhecida.
Aqui chegados, pode-se, assim, concluir quanto à presente Impugnação da matéria de facto que, à luz do antes exposto, e com base nos meios de prova antes citados, a convicção (autónoma) deste tribunal, em sede de reapreciação da matéria de facto, é, em absoluto, coincidente com a que formou o Tribunal Recorrido, não se vislumbrando qualquer razão para proceder à alteração do ali decidido, que se mantém na íntegra, seja quanto à factualidade provada, seja quanto à factualidade não provada.
Na verdade, e não obstante as críticas que lhe são dirigidas pela ora Recorrente, não se vislumbra, à luz dos meios de prova invocados, um qualquer erro ao nível da apreciação ou valoração da prova produzida – sujeita à livre convicção do julgador –, à luz das regras da experiência, da lógica ou da ciência.
Ao invés, a convicção do julgador colhe, a nosso ver, completo apoio nos ditos meios de prova produzidos, sendo, portanto, de manter a factualidade provada e não provada, tal como decidido pelo Tribunal Recorrido.
Conclui-se, pois, que compulsada a prova produzida, não podem restar dúvidas que os factos constantes dos pontos aqui questionados devem manter-se inalterados, confirmando-se a análise crítica efectuada pelo Tribunal de Primeira Instância quanto a essa factualidade.
Em consequência, improcede a apelação nesta parte.
*
Aqui chegados, importa verificar se, independentemente de não se ter procedido à alteração da matéria de facto no sentido propugnado pela Recorrente deve manter-se a apreciação de mérito efectuada pela Decisão Recorrida, em face da matéria de facto dada como provada.
Ora, no caso concreto, justifica-se que, apesar não ter existido qualquer modificação na factualidade, a decisão de mérito seja revogada.
Com efeito, se bem que se possa concordar com a análise da dinâmica do acidente de viação realizada pelo Tribunal Recorrido (que imputa o acidente de viação ao peão, atribuindo-lhe culpa exclusiva na sua ocorrência), a verdade é que não se pode aqui aderir à tese defendida pelo Tribunal Recorrido que, na sequência de alguma Jurisprudência, admite a possibilidade de a culpa poder concorrer com a responsabilidade do risco.
Assim, quanto à análise da dinâmica do acidente de viação ocorrido, em face da matéria de facto provada, não se pode deixar de subscrever o que na sentença recorrida ficou referido e que aqui se transcreve integralmente:

“Analisando a matéria atinente à dinâmica do acidente, daí resulta inequivocamente a existência de um facto voluntário do agente (uma vez que o acto de condução de um veículo é dominável ou controlável pela vontade), de ilicitude, na medida em que houve violação do direito à vida, que é um direito absoluto, dano (prejuízos causados à autora) e, por fim, nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Não pode contudo afirmar-se que o condutor do veículo atropelante, nas circunstâncias de tempo, modo e lugar em que o mesmo ocorreu, em abstracto, pela diligência do homem médio (entendendo-se este como o bom cidadão, o bom pai de família, e não como o cidadão médio ou comum, pois que as práticas de desleixo, desmazelo ou incúria que eventualmente se tenham generalizado não constituem parâmetro pelo qual se deva medir o julgador) não actuou como se lhe impunha e omitiu deveres de cuidado impostos no caso concreto pelas regras da circulação rodoviária. Ou seja, não se apurou que tenha actuado com culpa.
De facto, além do dever geral de geral de cuidado imposto a todos os utentes das vias públicas, segundo o qual todas as pessoas devem abster-se de actos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança ou a comodidade dos utentes das vias (art. 3.º, n.º 2, do Código da Estrada), estatui o art. 24.º do Código da Estrada, na redacção aplicável, que «o condutor deve regular a velocidade de modo que, atendendo às características do estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente».
A regra de que o condutor deve especialmente fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente significa dever assegurar-se, no exercício da condução automóvel, de que a distância entre ele e qualquer obstáculo visível é suficiente para, em caso de necessidade, o fazer parar. Ela rege especialmente para o caso de os condutores circularem com veículos automóveis à sua vanguarda e pressupõe a não verificação de condições anormais ou obstáculos inesperados, não lhe sendo exigível que contem com eles, sobretudo os derivados da imprevidência alheia.
No caso, como resulta da factualidade assente, o surgimento do pai da ora autora na hemi-faixa de rodagem foi inesperado.
É certo que nos termos do preceituando o art. 103º, do Código da Estrada, «[a]o aproximar-se de uma passagem de peões, junto da qual a circulação de veículos não está regulada nem por sinalização luminosa nem por agente, o condutor deve reduzir a velocidade e, se necessário, parar para deixar passar os peões que já tenham iniciado a travessia da faixa de rodagem». E que esta ideia está reforçada na alínea a) do nº 1 do art. 25º do CE, onde se afirma que a velocidade deve ser especialmente moderada à aproximação de passagens assinaladas na faixa de rodagem para a travessia de peões.
No entanto, no caso em apreço, nem o peão estava na passadeira, nem a velocidade do veículo ficou apurada, não sendo possível afirmar, quer o seu excesso (já que não se provou ser superior a 50 Km/hora), quer o seu carácter excessivo, já que nada nos factos permite supor que a mesma não se ajustasse às características do local.

Dispõe o art. 101º, do Código da Estrada que «1 – Os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respectiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente. 2 - O atravessamento da faixa de rodagem deve fazer-se o mais rapidamente possível. 3 - Os peões só podem atravessar a faixa de rodagem nas passagens especialmente sinalizadas para esse efeito ou, quando nenhuma exista a uma distância inferior a 50 m, perpendicularmente ao eixo da faixa de rodagem. 4 - Os peões não devem parar na faixa de rodagem ou utilizar os passeios e as bermas de modo a prejudicar ou perturbar o trânsito. 5 - Quem infringir o disposto nos números anteriores é sancionado com coima de (euro) 10 a (euro) 50» - sublinhado acrescentado.
Ora, esta norma terá sido infringida pelo próprio peão que, desde logo, dispondo de uma passadeira a menos de 50 metros, optou por atravessar a estrada noutro local.
Inobservando esta regra rodoviária primária, omitiu um dever objectivo de cuidado, actuando com leviandade e incúria, não tomando providências necessárias que lhe permitiriam evitar o atropelamento(…)”

No entanto, já não se pode subscrever a parte em que aí se defende a possibilidade de responsabilização da aqui Ré (e do condutor segurado) por Responsabilidade pelo Risco (art. 503º do CC), apesar de existir culpa do lesado.
É que a resposta à questão colocada pelo Tribunal Recorrido de “… saber se, estando provada a culpa do peão e, em contrapartida, não provada a culpa do condutor do veículo, deverá a acção improceder ou proceder parcialmente, por concurso do risco do veículo com a culpa do lesado”, deve ser negativa (e não positiva, como defendeu o Tribunal Recorrido, estribando-se, entre outros, no Ac. do STJ de 01.06.2017 (Rel. Lopes do Rego).
Na verdade, tal resposta negativa resulta, desde logo, do facto de o legislador ter expressamente consagrado no art. 505º do CC que a responsabilidade pelo risco é excluída sempre que o acidente de viação seja “imputável ao próprio lesado …” (cfr. também o art. 570º do CC).
Além disso, “… também porque, em face do art. 570º, nº 2 do CC, a culpa do lesado exclui o dever de indemnizar em caso de culpa presumida, pelo que não faria sentido que tal não sucedesse perante a responsabilidade pelo risco…” (10).
Continua a ser esse o entendimento maioritário do Supremo Tribunal de Justiça (11).

Assim, defendeu-se no Ac. do Stj de 11.7.2013 (relator: Fonseca Ramos), o seguinte:

“… é consabido (que), algumas decisões, sobretudo deste Supremo Tribunal, têm vindo a afastar-se do entendimento tradicional e largamente maioritário de que havendo culpa do lesado, o risco próprio do veículo interveniente previsto no art. 503º, nº1, do Código Civil no acidente fica excluído, nos termos do art. 505º do Código Civil, ou seja, não há lugar a concorrência de culpa e responsabilidade objectiva pelo risco.
Dispõe aquele normativo – “Sem prejuízo do disposto no artigo 570.°, a responsabilidade fixada pelo n.°1 do artigo 503.° só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.”
O art. 503º, nº1, estatui: “1. Aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não esteja em circulação”.
Nos termos deste normativo, a responsabilidade pelo risco depende da direcção efectiva do veículo por uma pessoa que não tem que ser necessariamente o seu proprietário, e de estar o veículo a ser utilizado no próprio interesse de quem tem sua direcção efectiva.
Em anotação ao art. 505º do Código Civil, Pires de Lima e Antunes (Varela), in “Código Civil Anotado”, afirmam – “No artigo 570º prevê-se a concorrência de culpas, para atribuir ao tribunal, nesse caso, a faculdade de conceder totalmente a indemnização, reduzi-la ou mesmo excluí-la. Neste artigo 505.° supõe-se, por exclusão, ter sido o acidente apenas imputável ao lesado ou a terceiro ou resultante de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo, para excluir a responsabilidade fixada no nº1 do art. 503º”.
Aí se dá conta que Vaz Serra era de opinião contrária, segundo estudo publicado na RLJ, Ano 99, págs. 364, nota 1, e 373, nota 2 e Revista dos Tribunais, Ano 85º, págs. 439-441.
Depois de afirmarem que a posição de Vaz Serra não encontra amparo na aplicação analógica do art. 570º do Código Civil, porque a hipótese está prevista no art. 505º, não havendo lacuna, nem caso omisso, afirmam:
“Contra a doutrina de Vaz Serra pode extrair-se um argumento do próprio artigo 570º; se a culpa do lesado, nos termos do nº 2 deste preceito, exclui o dever de indemnizar quando a responsabilidade se funda na presunção de culpa (e não na culpa realmente provada), por maioria de razão a deverá excluir quando ela assentar na simples ideia do risco.
O espírito do novo Código resulta também das disposições seguintes. No caso de colisão entre dois veículos, diz o artigo 506º, a responsabilidade só é repartida pelos dois, se nenhum dos condutores tiver culpa no acidente. Isto quer dizer que, se houver culpa de um deles, sobre ele recai toda a responsabilidade. O mesmo resulta do artigo 507.°, nº 2.
Nas relações entre os diferentes responsáveis, diz esse número, a obrigação de indemnizar reparte-se de harmonia com o interesse de cada um na utilização do veículo; mas, se houver culpa de algum ou de alguns, apenas os culpados respondem. Elimina-se, mais uma vez, a responsabilidade pelo risco, havendo culpado aquém responsabilizar.”
Este entendimento perdurou largos anos, como doutrina dominante, como tese clássica, sendo quase constante essa a perspectiva jurisprudencial, no sentido da impossibilidade da concorrência das duas responsabilidades, subjectiva do lesado e objectiva do condutor do veículo.
No entanto, a partir do Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 4.10.2007 – Proc. 100/10.9YFLSB, – Relator Santos Bernardino – acessível in www.dgsi.pt, a doutrina tradicional foi posta em crise, já que se entendeu aí que as duas responsabilidades podiam concorrer, o que mereceu o aplauso de Calvão da Silva em douto estudo publicado na RLJ, Ano 137º, nº3496.
Para lá de argumentos que postulam a interpretação actualista do art. 505º do Código Civil, já que o tempo histórico do Código Civil de 1996 não é o hodierno, em que a intensidade do tráfego automóvel (muitíssimo maior), a modernização da vias estradais, a sofisticação dos veículos, e a socialização do risco com a inerente protecção, no domínio estradal, dos utentes que carecem de maior protecção, como sejam os idosos, as crianças, e a necessidade de contemplar muitos casos que ficariam sem adequado resguardo, a não se admitir a questionada concorrência de responsabilidade, os defensores de tal aggiornamento, aduzem em seu favor as Directivas comunitárias que vão no sentido de tutelar ocorrências em que a par da culpa do lesado não deve ser excluída a concorrência do risco inerente à circulação rodoviária.
Mas, mesmo depois daquele Acórdão, outros deste Supremo Tribunal de Justiça não secundaram aquele entendimento, tendo, se assim nos podemos expressar, rompido com a perspectiva que se antevia inovadora.
Porque também entendemos que, em tese, as duas culpas não podem concorrer, a menos que se tratasse de culpa leve ou levíssima da vítima, seguiremos de perto a doutrina dos Acórdãos de 20.1.2009 – Salazar Casanova – e de 17.5.2012 – Abrantes Geraldes – de 17.5.2012, ambos acessíveis em www.dgsi.pt....”.
Segundo este último Acórdão, a tese clássica, assumida pela doutrina e jurisprudência maioritárias, considerava que “… tendo como pano de fundo situações de responsabilidade objectiva inerente à direcção efectiva de veículos automóveis, nos termos do nº 1 do art. 503º do CC, resulta da letra daquele normativo que essa responsabilidade é afastada sempre que o acidente seja “imputável” (no sentido de “devido”) ao próprio lesado ou a terceiro ou a caso de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
Conforme aquela tese, basta que seja quebrado o nexo de causalidade entre o sinistro e os riscos próprios do veículo por qualquer comportamento (ainda que não culposo) do lesado ou de terceiro, ou devido a caso de força maior, para que fique liminarmente afastada a responsabilidade objectiva do proprietário do veículo eventualmente transferida para a Seguradora.
Trata-se da solução que obtém uma impressiva adesão na jurisprudência deste Supremo, bastando referir, a título meramente exemplificativo e com prevalência de arestos mais recentes, os Acs. do STJ, de 21-1-06 (Revista nº 3941/05 - AFONSO CORREIA), de 31-1-06 (www.dgsi.pt - AZEVEDO RAMOS), de 18-4-06 (www.dgsi.pt - SEBASTIÃO PÓVOAS), de 6-11-08 (www.dgsi.pt - SALVADOR da COSTA) ou de 25-11-10 (Revista nº 12175/09 - GONÇALO SILVANO).
A leitura destes e de outros arestos, assim como a análise da doutrina maioritária, revela a multiplicidade de argumentos que têm sido empregues na defesa desta solução.
Para além do relevo atribuído ao elemento literal, assume particular significado a ponderação da necessidade de não agravar excessivamente a posição do proprietário ou do detentor do veículo em situações em que este não foi mais do que um elemento acidental, mas sem efectiva contribuição para a ocorrência do sinistro causado por factores estranhos ao seu funcionamento….”.
Daí que “…uma interpretação do art. 505º do Código Civil que admita a concorrência entre a responsabilidade pelo risco inerente ao veículo automóvel e a imputação do acidente ao lesado, sujeitando a quantificação da indemnização à ponderação prevista no art. 570º do Código Civil, fica necessariamente afastada quando o acidente seja exclusivamente devido ao sinistrado, sem qualquer contribuição causalmente adequada dos riscos próprios do veículo.”
É esta a conclusão a que aqui também chegados, já que continuamos, pelos argumentos explanados (e os constantes nos citados Acórdãos), a manter-nos no âmbito da chamada tese clássica.
Por assim ser, fica evidente que a decisão recorrida não pode ser acolhida, devendo a Ré ser, como é, absolvida dos pedidos.
Na verdade, revertendo para o caso concreto, tem que se concluir que, em face da matéria de facto dada como provada, não se pode imputar, a título de culpa, a ocorrência do acidente de viação ao condutor do veículo segurado na Ré.
Na verdade, tal como o próprio Tribunal Recorrido defendeu, temos que concordar que a culpa exclusiva da ocorrência do atropelamento foi do falecido peão.
Com efeito, dos factos provados resulta, de uma forma clara, que o acidente de viação se deveu a culpa exclusiva daquele peão.

Assim, daquela factualidade pode-se retirar que foi o peão que efectuou a travessia da faixa de rodagem de uma forma com que o condutor segurado na Ré não poderia contar (nem qualquer outro condutor colocado naquelas mesmas circunstâncias), ou seja, de uma forma absolutamente imprevisível, o que impossibilitou que o condutor segurado na Ré, mesmo à velocidade reduzida a que seguia (não superior a 60 km/h, mas desconhecendo-se a concreta velocidade a que seguia (podia ser 40 km/h ou 60 km/h), pudesse ter conseguido evitar o embate com o peão.
Nesta medida, ao actuar desta forma o falecido peão violou o disposto no art. 101º do CE, artigo que lhe impunha a regra de, antes de proceder à travessia da faixa de rodagem, se dever certificar previamente de que o podia fazer sem perigo de acidente (nº 1), tanto mais que na estrada em causa existia uma passadeira a menos de 50 metros do local em que a travessia da faixa de rodagem foi efectuada (nº 3 do citado dispositivo legal).
Aliás, e na apreciação da conduta do segurado na Ré, não se pode deixar de considerar que não se pode fazer qualquer censura à sua condução, já que conforme se vem referindo na Jurisprudência “... não é previsível para um condutor , cumprindo as regras de trânsito, que um peão lhe surja de repente pela via onde transite ... “ (ac. do RE de 25.7.85 , in Bmj 351, pág. 473 ), sendo certo que “... a lei não exige que o condutor conte, em regra, com a conduta negligente de outrem ... “ (ac. do Stj de 4.4.78 , In Bmj 276 , pág. 193), ou, como aquele outro Acordão refere, “... não se pode exigir de um condutor uma previsibilidade para além do que é normal ... “.
Isto é, não era exigível ao condutor segurado na Ré que, nas circunstâncias apuradas, previsse que um peão iria proceder à travessia da faixa de rodagem, da forma imprevidente como aquele a efectuou.
Assim, não podem haver dúvidas que o acidente se deveu a culpa exclusiva do peão atropelado, e que, assim, não pode por ele ser responsabilizada a Ré, já que esta responde na exacta medida em que o seu segurado responde.
E, tal como decorre do exposto, nem mesmo se pode afirmar a sua responsabilização, a titulo de responsabilidade pelo Risco (art. 503º, e o já referido art. 505º do CC), pois, tendo-se provado a culpa exclusiva do peão, esta exclui a possibilidade de ocorrer aquela responsabilização pelo risco (apesar da recente evolução na Jurisprudência a que, como se referiu, não se adere aqui).
Nesta conformidade, e sem necessidade de mais alongadas considerações, porque se concorda com esta Jurisprudência, que se julga, aliás, continuar a merecer acolhimento maioritário, decide-se revogar a decisão proferida, uma vez que o acidente de viação aqui em discussão teve como causa exclusiva a culpa do peão.
Procede, pois, totalmente o Recurso.
*
Sumário (elaborado pelo Relator- art. 663º, nº 7 do CPC):

“I- Se o acidente de viação for unicamente devido a actuação culposa exclusiva do lesado, a responsabilidade pelo risco deve considerar-se excluída nos termos do artigo 505.º do Código Civil.
II- Assim, quando o acidente de viação se dever a culpa exclusiva do peão, que procedeu à travessia da faixa de rodagem, de uma forma absolutamente imprevisível, impossibilitando que o condutor segurado na Ré- mesmo à velocidade reduzida a que seguia (não superior a 60 km/h, mas desconhecendo-se a concreta velocidade a que seguia (podia ser 40 km/h ou 60 km/h) -, pudesse ter conseguido evitar o embate com o peão, não pode a Seguradora Ré ser responsabilizada pelo Risco (art. 503º do CC) ”.
*
III- DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar:
-o Recurso interposto pela Ré/Recorrente totalmente procedente e, em consequência, revogar a sentença recorrida.
*
Custas pela Recorrida (artigo 527º, nº 1 do CPC);
*
Guimarães, 15 de Março de 2018

Dr. Pedro Alexandre Damião e Cunha
Dra. Maria João Marques Pinto de Matos - Segue declaração de voto)
Dr. José Alberto Moreira Dias


( Declaração de Voto da Dra. Maria João Marques Pinto de Matos) :

Votei favoravelmente o acórdão por, não obstante defender a possibilidade de concorrência de culpa leve do lesão com o risco próprio da circulação de veículo automóvel, a matéria de facto apurada nos autos não a permitir considerar aqui verificada (devendo-se exclusivamente à culpa - não leve - do Lesado o acidente de viação que o vitimou).
Com efeito, reitero aqui o já antes defendido no Recurso de Apelação nº 371/14.1TJVNF.G2 (da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, onde em 19 de Outubro de 2017 foi proferido acórdão, por mim relatado e inédito), nomeadamente que:
«(…)
Ora, vinha a jurisprudência e a doutrina civilística entendendo pacificamente, face ao disposto no art. 505º do C.C., que não podia haver concurso de responsabilidade do lesado, a título de culpa, e do titular da direcção efectiva do veículo assente no risco.
Com efeito, e nos termos do art. 505º do C.C., para afastar a responsabilidade pelo risco prevista no art. 503º, nº 1 do C.C., bastaria que o acidente fosse devido, em termos de culpa ou de mera causalidade, ao próprio lesado, a terceiro, ou a causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo (já que desse modo estaria quebrado o nexo de causalidade entre o risco próprio do veículo e o dano verificado).
Entendia-se que a responsabilidade objectiva imposta ao detentor do veículo já era de tal modo severa, que não seria justo nem razoável sobrecarregá-lo ainda com os casos em que, não havendo culpa dele, o acidente seria imputável a quem não adoptou as medidas de prudência exigidas pelo risco da circulação (v.g. Antunes Varela).
Contudo, pouco a pouco foram-se afirmando vozes acusando aquela jurisprudência de praticar «uma mera compreensão lógico-formal dos textos legais, de saber cristalizado, com rejeição de um pensamento jurídico moderno, actualizado, e que faz da tutela dos lesados no tráfego rodoviário o seu leitmotiv» (J. C. Brandão, «Responsabilidade pelo risco do detentor do veículo e conduta do lesado: a lógica do “tudo ou nada”», Cadernos de Direito Privado, nº 7, Julho/Setembro de 2004, p. 25).
Apontaram-lhe as seguintes críticas (seguindo e citando, sem outra menção, o Acórdão do STJ, de 04.10.2007, superiormente relatado por Santos Bernardino):
- a cláusula de exclusão do art. 505º do C.C., entendida desta forma, trataria da mesma forma situações absolutamente díspares, «como sejam os comportamentos mecânicos dos lesados, ditados por um medo invencível ou por uma reacção instintiva, os eventos pessoais fortuitos (desmaios e quedas), os factos das crianças e dos (demais) inimputáveis, os comportamentos de precipitação ou distracção momentânea, o descuido provocado pela más condições do passeio, uniformizando, assim, “as ausências de conduta, as condutas não culposas, as pouco culposas e as muito culposas dos lesados por acidente de viação”, “desvalorizando a inerência de pequenos descuidos à circulação rodoviária”, e conduzindo, muitas vezes, a resultados chocantes.
- o entendimento tradicional ignoraria (na sua inflexibilidade e cristalização) a evolução legislativa nacional, já que a partir dos anos 80 do século XX teria passado a existir uma série de subsistemas, imbuídos de um escopo protector direccionado para os lesados, admitindo a concorrência do risco da actividade com a culpa do lesado, nomeadamente ao nível: da responsabilidade civil do produtor ou do fabricante de produtos defeituosos, consagrada no Dec-Lei nº 383/89, de 06 de Novembro (admitindo a concorrência entre o risco da actividade do agente e «um facto culposo do lesado» - art. 7º); do dever de indemnização do empregador, em caso de acidente de trabalho, que só é excluído se o acidente «provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado»; ou da eliminação do texto do art. 504º do C.C. dos limites para a responsabilidade do transportador a título gratuito, ou da alteração dos limites máximos indemnizatórios previstos no art. 508º do C.C.
-.o entendimento tradicional mostrar-se-ia ainda insensível à legislação comunitária, nomeadamente às soluções que resultam das cinco directivas comunitárias existentes em matéria de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel (cuja obrigatoriedade de contratação como pressuposto da circulação de veículos terrestres a motor foi introduzida entre nós pelo Dec-Lei nº 408/79, de 25 de Setembro), todas elas sensíveis à fragilidade de certos participantes no tráfego, lesados mais frágeis - v.g. peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas - , quando confrontados com o risco próprio dos veículos.
Por outras palavras, «a posição tradicional, porventura justificada em certo momento, esquece hoje, que, por exemplo, o peão e o ciclista (esse “proletariado do tráfego” de que alguém falava) são vítimas de danos resultantes, muitas vezes, de reacções defeituosas ou pequenos descuidos, inerentes ao seu contacto permanente e habitual com os perigos da circulação, de comportamentos reflexivos ou necessitados (face aos inúmeros obstáculos colocados nas “suas” vias) ou “condutas” sem consciência do perigo (maxime de crianças) e a cuja danosidade não é alheio o risco da própria condução», de tal modo que bem pode dizer-se «que esse risco da condução compreende ainda esses outros “riscos-comportamentos” ou que estes não lhe são, em princípio, estranhos» (Brandão Proença, A conduta do lesado como pressuposto e critério de imputação do dano extra-contratual, Almedina, Coimbra, 1997, p. 275 e 276).
Começou-se, então, a defender que, sem prejuízo do concurso do lesado, a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só seria excluída quando o acidente fosse devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resultasse exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
(Neste sentido: Calvão da Silva, RLJ, ano 134, p. 112 e sgs., Ana Prata, «Responsabilidade civil: duas ou três dúvidas sobre ela», Estudos em comemoração dos cinco anos da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, 2001, p. 345, Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10ª edição reelaborada, Almedina, 2006, p. 639, nota 1; ou, desde há quase 30 anos, Jorge Sinde Monteiro, «Responsabilidade civil», RDEc., Ano IV, nº 2, Jul./Dez., 1978, p. 313 e sgs., e «Responsabilidade por culpa, responsabilidade objectiva, seguro de acidentes», RDEc., Ano V, nº 2, Jul./Dez., 1979, p. 317 e sgs., e Ano VI/VII, 1980, nº 1981, p. 123 e sgs.).
Este entendimento seria permitido pela própria redacção do art. 505º do C.C., já que a sua ressalva inicial («Sem prejuízo do disposto no artigo 570º») reportar-se-ia à responsabilidade fixada no nº 1 do art. 503º; e esta é objectiva.
Logo, resultaria do próprio art. 505º citado a possibilidade de concorrência entre a culpa do lesado (art. 570º do C.C.) e o risco da utilização do veículo (art. 503º do C.C.), só se excluindo a responsabilidade pelo risco quando o acidente fosse imputável - isto é, unicamente devido, com ou sem culpa - ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resultasse - isto é, exclusivamente resultasse - de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
Esta interpretação não colidiria ainda com o Direito comunitário, por o mesmo deixar aos Estados membros uma ampla margem de conformação dos seus concretos regimes de responsabilidade civil.
Por outras palavras, os «artigos 503º nº1, 504º nº1, 505º e 570º do Código Civil, quando interpretados no sentido de que a existência de culpa exclusiva ou parcial da vítima pode fundamentar a exclusão ou redução da indemnização, por lesões sofridas em consequência de acidente de viação, não colidem com o Direito comunitário, particularmente com os nº 3°, n°1 da Primeira Directiva (72/166/CEE), 2° n°1 da Segunda Directiva (84/5/CEE) e 1°-A da Terceira Directiva (90/232/CEE), introduzido pelo art. 4° da Quinta Directiva (2005/14/CE), todas relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de automóveis, por competir à legislação do Estado-membro regular, no seu direito interno, o regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação de veículos automóveis» (Ac. do STJ, de 10.05.2012).
«Assim, uma interpretação progressista ou actualista do art. 505º, que tenha em conta (art. 9º, nº 1) a unidade do sistema jurídico - isto é, que considere o sistema jurídico global de que a norma faz parte e, neste, o referido acervo de normas que consagram o concurso da culpa da vítima com o risco da actividade do agente, e repute adquirida, como princípio geral e universal do pensamento jurídico contemporâneo, essa regra do concurso - e as condições do tempo em que tal norma é aplicada - em que a responsabilidade pelo risco é enfocada a uma nova luz, iluminada por novas concepções, de solidariedade e justiça – impõe (…) que se tenha por acolhida, naquele normativo, a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, nem sequer se lhe podendo opor o obstáculo representado pelo nº 2 do mesmo art. 9º, já que tal interpretação tem um mínimo de correspondência ou ressonância nas palavras da lei» (Ac. do STJ, de 04.10.2007, Santos Bernardino).
(No sentido da interpretação referida, e na jurisprudência, para além dos acórdãos já citados: Ac. da RL, de 15.04.2008, Processo nº 10793/2007-7, Ac. da RC, de 03.06.2008, Processo nº 801/2002-C1, Ac. da RP, de 18.06.2008, Processo nº 0852331, Ac. do STJ, de 22.01.2009, Processo nº 08B3404, Ac. da RP, de 04.03.2009, Processo nº 0817543, Ac. da RC, de 21.01.2014, Processo nº 215/10.3TBCVL.CA, Ac. da RP, de 23.01.2017, Carlos Querido, Processo nº 1601/12.0TBMCN.P1e Ac. do STJ, de 01.06.2017, Lopes do Rego, Processo nº 1112/15.1T8VCT.G1.S1).
Concluindo, o «regime normativo decorrente do estatuído nas disposições conjugadas dos arts. 505º e 570º do CC deve ser interpretado, em termos actualistas, como não implicando uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre culpa do lesado e risco do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura».
Logo, competirá «ao Tribunal formular um juízo de adequação e proporcionalidade, perante as circunstâncias de cada caso concreto, pesando, por um lado, a intensidade dos riscos próprios da circulação do veículo e a sua concreta relevância causal para o acidente; e, por outro, valorando a gravidade da culpa imputável ao comportamento, activo ou omissivo, do próprio lesado e determinando a sua concreta contribuição causal para as lesões sofridas, de modo a alcançar um critério de concordância prática que, em determinadas situações, não conduzirá a um automático e necessário apagamento das consequências de um risco relevante da circulação do veículo, apenas pela circunstância de ter ocorrido alguma falta do próprio lesado, inserida na dinâmica do acidente» (Ac. do STJ, de 01.06.2017, Lopes do Rego, Processo nº 1112/15.1T8VCT.G1.S1, com bold apócrifo).
(…)»
Contudo, e tal como igualmente ali sucedeu, verifica-se no caso dos autos que que o atropelamento de António (com cerca de 50 anos, e sem que se provasse qualquer ausência ou diminuição das suas capacidades de entendimento e vontade), se deveu à forma negligente e desatenta com que iniciou a travessia de uma via de trânsito: fê-lo de noite, numa zona mal iluminada, vestido de escuro, sem qualquer dispositivo que sinalizasse a sua presença, e quando chovia; fê-lo quando ele próprio já se teria apercebido de um veículo automóvel em circulação, numa trajectória que se cruzaria com a sua travessia; e fê-lo a menos de 50 metros de uma passadeira para peões.
Mais se verifica que não se provou que o Condutor do veículo depois atropelante haja violado qualquer disposição de Direito Estradal, nomeadamente que circulasse em excesso de velocidade (absoluto - no caso, superior a 50 K/H - ou relativo -, v.g. mercê das características da via), ou sem sinalizar devidamente a sua presença.
Logo, uma outra conclusão se impõe: o atropelamento de António, não só se deveu à conduta dele próprio, como se deveu exclusivamente a essa sua conduta.
Ficou, por isso, excluído o concurso de culpa (sua, e não leve) com a responsabilidade pelo risco do veículo atropelante (potencialmente existente)».

(Dra. Maria João Marques Pinto de Matos)

1. Abrantes Geraldes, In “Recursos no Novo Código de Processo Civil“, pág. 133;
2. v. Ac. do Stj de 24.9.2013 (relator: Azevedo Ramos) publicado na DGSI e comentado por Teixeira de Sousa, in “Cadernos de Direito Privado”, nº 44, págs. 29 e ss.;
3. Pode inclusivamente, verificados determinados requisitos, ordenar a renovação da prova (art. 662º, nº2, al a) do CPC) e ordenar a produção de novos meios de prova (al b));
4. Abrantes Geraldes, In “Recursos no Novo Código de Processo Civil“, pág. 266 “ A Relação actua como Tribunal de substituição quando o recurso se funda na errada apreciação dos meios de prova produzidos, caso em que se substitui ao tribunal de primeira Instância e procede à valoração autónoma dos meios de prova. Confrontada com os mesmos elementos com que o Tribunal a quo se defrontou, ainda que em circunstâncias não totalmente coincidentes, está em posição de formular sobre os mesmos um juízo valorativo de confirmação ou alteração da decisão recorrida… “;
5. Miguel Teixeira de Sousa in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, 1997, p. 348.
6. Cfr. acórdãos do STJ de 19/10/2004, CJ, STJ, Ano XII, tomo III, pág. 72; de 22/2/2011, CJ, STJ, Ano XIX, tomo I, pág. 76; e de 24/9/2013, disponível em www.dgsi.pt.
7. Cfr. Ac. do S.T.J. de 3/11/2009, disponível em www.dgsi.pt.
8. Segundo Ana Luísa Geraldes, in “ Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto” (nos Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas) Vol. I, pág. 609 “ Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte… “ ; no mesmo sentido, v. Miguel Teixeira de Sousa, in “Blog IPPC” (jurisprudência 623- anotação ao ac. da RC de 7/2/2017) onde refere: “É verdade que os elementos de que a Relação dispõe não coincidem -- nomeadamente, em termos de imediação -- com aqueles que a 1.ª instância tinha ao dispor para formar a convicção sobre a prova do facto. No entanto, isso não significa que, como, aliás, o STJ tem unanimemente entendido, nem que a Relação esteja dispensada de formar uma convicção própria sobre a prova do facto, nem que funcione uma presunção de correcção da decisão recorrida. Importa, pois, verificar quais os elementos que devem ser considerados pela Relação para a formação da sua convicção sobre a prova produzida. Quanto a estes elementos, há uma diferença entre a 1.ª instância e a Relação: a 1.ª instância apenas dispõe dos meios de prova; a Relação dispõe daqueles meios e ainda da decisão da 1.ª instância. Como é claro, esta decisão, cuja correcção incumbe à Relação controlar, não pode ser ignorada por esta 2.ª instância. É neste sentido que se pode afirmar que, no juízo sobre a confirmação ou a revogação da decisão da 1.ª instância, a Relação pode utilizar um critério de razoabilidade ou de aceitabilidade dessa decisão. Este critério conduz a confirmar a decisão recorrida, não apenas quando for indiscutível que a mesma é correcta, mas também quando aquela se situar numa margem de razoabilidade ou de aceitabilidade reconhecida pela Relação. Correspondentemente, a decisão deve ser revogada se a mesma se situar fora desta margem.”;
9. Ana Luísa Geraldes, in “ Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto” (nos Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas) Vol. I, pág. 609.
10. Menezes Leitão, in “Direito das Obrigações”, Vol. I, pág. 376. É esta também a posição tradicional, destacando-se aqui a posição do Prof. Antunes Varela, in “Das Obrigações em geral”, Vol. I, pág. 677 e em “CC anotado” (com P. Lima), Vol. I, pág. 517/8.
11. Neste sentido, v. os acs. do Stj de 11-07-2013, Fonseca Ramos (Relator); de 20-01-2009 Salazar Casanova (Relator); de 29-09-2009 Nuno Cameira (Relator); de 15-01-2013 Salreta Pereira (Relator); de 30-05-2013 Fernando Bento (Relator); de 11.7.2013 Fonseca Ramos (Relator), de 05-11-2013 Alves Velho (Relator) e de 27.3.2014 Granja da Fonseca (Relator).