Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
480/15.0T9PTLG1
Relator: AUSENDA GONÇALVES
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA
RESPONSABILIDADE PENAL TRIBUTÁRIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/05/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I – Os vícios da contradição insanável da fundamentação e do erro notório da decisão sobre a matéria de facto, nos termos do art. 410º do CPP, nº 2, als. b) e c), respectivamente, só relevam se resultarem do texto da decisão recorrida, apreciado na sua globalidade, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, e só se devem ter por verificados quando ocorre: quanto ao primeiro, um conflito na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, que não possa ser ultrapassado ou esclarecido de forma suficiente com recurso ao teor da decisão e que incida sobre elementos relevantes do caso; e, ao segundo, uma conclusão ilógica, arbitrária, ou à margem duma análise racional ou em violação das regras de experiência comum, e que, por isso, não escapa à análise do homem médio.
II – Para o preenchimento do crime de abuso de confiança fiscal, no que concerne ao tipo subjectivo, exige-se o dolo – que pode abarcar qualquer das formas previstas no artigo 14º do C. Penal (directo, necessário e eventual) –, ou seja, o agente tem de representar os elementos do tipo, que se dirige à quebra da confiança depositada legalmente no detentor temporário da prestação tributária e imposta pelo dever de cooperação com a administração, mas, actualmente, para a violação da aludida fidúcia, já não é necessário que o contribuinte se aproprie – inverta o título da posse – da quantia retida ou deduzida, bastando que o mesmo, conhecendo o dever de entregar aquela quantia (efectivamente recebida ou retida) dentro de determinado prazo, não o cumpra.
III – Os requisitos aludidos no nº 4 do art. 105º do RGIT, aplicável por remissão aos crimes de abuso de confiança contra a Segurança Social (art. 107º, nº 2), configuram condições objectivas de punibilidade dos factos ilícitos típicos descritos em tal normativo, pelo que só após o decurso de mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação tributária e, ainda, do não pagamento, no prazo de 30 dias, após notificação para o efeito, da prestação comunicada à administração tributária, através da correspondente declaração, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, é que estão verificados todos os pressupostos indispensáveis para que a punição do crime possa desencadear-se.
IV – No caso dos autos, verifica-se que a notificação aludida foi efectuada depois de celebrado um acordo entre dois sujeitos de direito, o Estado em sentido amplo (a Segurança Social), na veste de credor, e o arguido, privado devedor, o qual importou a não exigibilidade (imediata) do crédito tributário daquele, pois conferiu a este a possibilidade de regularizar a sua situação tributária mediante o pagamento da respectiva dívida em prestações. Por isso, em situações como esta, no plano dos princípios, talvez fosse defensável uma diferente opção do legislador que considerasse que a vigência dum tal acordo obstaria a que o sujeito Estado, agora no pretendido exercício do respectivo jus puniendi, pudesse preencher a condição legalmente imposta para esse exercício, enquanto o respectivo crédito não fosse tributariamente exigível, porquanto o preenchimento da aludida condição, com tais pressupostos, poderá, em certos casos e no limite, violar os princípios da boa-fé e da confiança a que todos os sujeitos de direito estão adstritos, a começar pelo Estado, por serem ínsitos ao estado de direito e, por isso, estruturantes do nosso ordenamento jurídico fundamental.
V – Todavia, não se evidenciando nestes autos uma tal violação, não se pode olvidar a reconhecida autonomia da responsabilidade tributária (pelo imposto devido) face à responsabilidade penal tributária – daí o reconhecimento de que o accionamento desta última está objectivamente condicionada à notificação para pagamento dos créditos tributários –, pelo que, sendo o crime em causa um crime omissivo puro – que se consuma no momento em que o agente não entrega a prestação tributária devida – não é defensável, à face da lei actual, a não verificação de tal exigibilidade, por força do referido acordo, não impedindo o mesmo a responsabilidade criminal do recorrente, autónoma da responsabilidade tributária, ainda que entre ambas possa existir conexão.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Penal, do Tribunal da Relação de Guimarães:

No processo Comum Singular nº 480/15.0T9PTL da Instância Local, Secção de Competência Genérica de Ponte de Lima da Comarca de Viana do Castelo, o arguido J. M., foi julgado e condenado, por sentença proferida e depositada a 12/12/2016, como autor material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 6º e 105º, nºs 1, 4 e 7 ex vi do artigo 107º, nºs 1 e 2, do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05/06, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 6 (seis euros), no montante global de € 600 (seiscentos euros).
A arguida ..., Lda, foi também condenada, como autora material e na forma consumada de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 7º, nº 1, 12º, nº 3 e 105º, n.ºs 1, 4 e 7 ex vi do artigo 107º, nºs 1 e 2, do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 05/06, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco euros), no montante global de € 1.000 (mil euros).

Inconformado com a referida decisão, o arguido J. M. interpôs recurso, cujo objecto delimitou com as seguintes conclusões:
«1. O presente recurso versa sobre a matéria de direito mas também sobre a matéria de facto.
2. Vem o Arguido condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social p. e p. pelos artigos 6.º e 105.º, n.ºs 1, 4 e 7 ex vi do artigo 107.º, n.ºs 1 e 2 do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05/06, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis euros), num total de €600,00 (seiscentos euros).
3. No modesto entendimento do recorrente, a análise e apreciação cuidada e crítica de toda a prova produzida nos autos, que legalmente se impõe, não é suficiente, nem permite a formação da convicção positiva dos factos decisivos para a decisão da causa e a fundamentação vertida na sentença recorrida padece de contradição; ademais, e salvo o devido respeito, a Mmº Juiz “a quo”, fez uma errada apreciação da prova produzida em sede de audiência.
I – DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
4. Tal como resulta do teor da sentença recorrida, designadamente na respectiva fundamentação da convicção do Tribunal, no que à prova por declarações do arguido concerne as mesmas foram integralmente valoradas, posto que se afiguraram “sinceras, credíveis e com apoio na demais prova documental”.
5. Em concreto, e tal como resulta do teor da sentença recorrida: “ (…) Nas suas declarações confessórias, assentou a prova da factualidade típica nos seus elementos objectivos e subjectivos, assumindo o arguido a responsabilidade pela decisão de não entrega nas instituições de segurança social das quantias retidas aquando do pagamento dos salários aos trabalhadores e membros dos órgãos estatutários da sociedade arguida, esclarecendo a motivação de uma tal decisão, a evolução da vida societária que a ela conduziu, todo o enquadramento passado e situação actual e, bem assim, os esforços encetados no sentido de solver a dívida.
6. Das declarações que prestou resultou evidente que a não entrega das cotizações devidas decorreu das dificuldades de tesouraria que a sociedade arguida atravessava, integrada num contexto de ampla crise que grassou o tecido empresarial português e o sector da construção civil em particular. Neste contexto, o arguido estabeleceu prioridades, elegendo na afectação dos recursos que dispunha ao pagamento dos salários dos seus trabalhadores, em detrimento do cumprimento das suas obrigações para com a segurança social.”
7. No modesto entendimento do recorrente, a análise crítica e ponderada da prova por declarações do arguido prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento, as quais, como supra se deixou dito, foram integralmente valoradas pelo Tribunal, impunha uma decisão diferente pela Mm.º Juiz “a quo” designadamente quanto à matéria de facto vertida nos artigos 4, 6, 7, 8 e 9 da acusação pública, na parte que vai sublinhada e assinalada a negrito pelo recorrente nas suas motivações de recurso.
8. Desde logo porque, tal como resulta da convicção do Tribunal vertida na sentença recorrida, se resulta evidente que a “não entrega das cotizações devidas decorreu das dificuldades de tesouraria que a sociedade arguida atravessava, integrada num contexto de ampla crise que grassou o tecido empresarial português e o sector da construção civil em particular. Neste contexto, o arguido estabeleceu prioridades, elegendo na afectação dos recursos que dispunha ao pagamento dos salários dos seus trabalhadores, em detrimento do cumprimento das suas obrigações para com a segurança social.”, jamais poderia ter sido dado como provado, como sucede no caso dos autos, que o arguido se apoderou da quantia de €7.197,86, e que a fez integrar no património da sociedade arguida e indirectamente no seu, utilizando-a em proveito próprio, enriquecendo em valor equivalente.
9. Pelo contrário, aquilo que resulta provado nos autos, designadamente declarações do arguido prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento, integralmente valoradas pelo Tribunal, é que os pagamentos em débito à segurança social a título de cotizações dos trabalhadores e membros dos órgãos estatutários não foram efectuados porque nem a sociedade arguida, nem o próprio arguido dispunham de tesouraria para o efeito, pois que foi eleita a afectação dos recursos ao pagamento dos salários dos trabalhadores.
10. Quer o arguido, quer a sociedade arguida jamais poderiam ter alegadamente apoderado e feito integrar em património seu, uma quantia que afectaram ao pagamento dos salários dos trabalhadores e, por conseguinte, não dispunham nem possuíam, como sucede no caso dos presentes autos.
11. Há, assim, no modesto entendimento do recorrente, erro notório na apreciação da prova produzida e a fundamentação vertida na decisão recorrida padece de contradição.
12. Pois que, da análise e valorização crítica da prova por declarações do arguido – que não é contraditada por nenhuma prova documental junta aos autos e foi integralmente valorada pelo Tribunal que as considerou “sinceras, credíveis e com apoio na demais prova documental” - impunha-se, como efectivamente se impõe, que a matéria vertida nos artigos 4, 6, 7, 8 e 9 da acusação pública, na parte que vai sublinhada e assinalada a negrito pelo recorrente nas suas motivações de recurso, fosse e seja dada como não provada.
13. Por conseguinte, são elementos constitutivos do tipo objectivo do crime de abuso de confiança em relação à segurança social: a) a dedução, pelas entidades empregadoras, no valor das remunerações devidas aos trabalhadores das quantias por estes legalmente devidas à segurança social; b) a não entrega, total ou parcial, dessas quantias às instituições de segurança social no prazo de 90 dias; e c) a apropriação dessas quantias pelas entidades empregadoras.
14. Ora, tal como resulta do acima exposto, jamais poderia a Mm.ª Juiz “a quo” ter dado como provada a alegada e inexistente “apropriação” quer pela sociedade arguida, quer pelo arguido, das quantias correspondente aos descontos dos salários dos trabalhadores e membros dos órgãos estatutários., impondo-se que tal matéria de facto seja dada como não provada.
15. Quanto ao tipo subjectivo de ilícito, consubstanciado na intenção de apropriação ilícita das contribuições devidas à segurança social, como resulta inequívoco da prova por declarações do arguido, a mesma nunca existiu, como efectivamente não existe, sendo que por força das dificuldades de tesouraria os pagamentos à segurança social não foram realizados porque se elegeu a afectação dos recursos ao pagamento dos salários dos trabalhadores.
16. Assim sendo, contrariamente ao que resulta da sentença recorrida, não se mostram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos típicos do crime em presença, pelo que se impunha, como se impõe, a absolvição do arguido pela imputada prática dos mesmos.
Sem prescindir do acima alegado, sempre se dirá ainda mais o seguinte:
17. Tal como plasmado no artigo 105.º, n.º 4 alínea b) do Regime Geral das Infracções Tributárias, aplicável ex vi artigo 107.º do mesmo diploma legal, o facto apenas é punível se “a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito”, sendo que, como resulta do Ac. STJ n.º 6/08 (Diário da República, 1.ª Série, de 15.05.2008) de Uniformização de Jurisprudência, tal exigência configura uma nova condição objectiva de punibilidade.
18. Ora, tal como resulta provado nos autos, a notificação para pagamento voluntário, a fls. 193-194, apenas ocorreu por carta datada de 15/02/2016, sendo que o arguido desde Outubro de 2015, encontra-se a proceder ao pagamento voluntário das cotizações em referência nos autos, nomeadamente através de um plano prestacional número 1436/2015.
19. Ora, contrariamente ao defendido pela Mm.ª Juiz “a quo” na decisão recorrida, o normativo legal em referência não distingue entre pagamento total e/ou pagamento parcial, sendo certo que um pagamento prestacional e/ou parcial não deixa de ser um pagamento.
20. Por outro lado, foi e é o próprio titular do bem jurídico, neste caso a Segurança Social, que aceitou e celebrou com o arguido o pagamento prestacional das quantias em referência nos presentes autos.
21. Pelo que, encontrando-se a quantia a ser paga, como efectivamente está pelo arguido no âmbito do acordo prestacional realizado com a segurança social, tal circunstância, no modesto entendimento do aqui recorrente, colide com a sua responsabilização penal, impondo-se a absolvição da sua imputada prática.
22. Pelo que, também assim, no modesto entendimento do recorrente, a Mm.ª Juiz “a quo” fez errada interpretação do artigo 105.º, n.º 4 alínea b) do Regime Geral das Infracções Tributárias, aplicável ex vi artigo 107.º do mesmo diploma legal.
II – DA MEDIDA CONCRETA DA PENA
Sem prescindir do acima alegado, para o caso de se considerar e determinar a manutenção da decisão recorrida, dir-se-á:
23. Ora, a determinação da medida concreta da pena em relação ao arguido é feita em função da culpa do agente e das necessidades de prevenção, cfr. artigo 13.º do RGIT e artigo 71.º, n.º 1 do Código Penal.
24. Tal como resulta do acima exposto e contrariamente ao vertido na decisão recorrida, as necessidades de prevenção no caso em concreto são diminutas e o grau de culpa do agente é mínimo, posto que a sociedade arguida já cessou a sua actividade; o arguido encontra-se a trabalhar por conta de outrem e está profissionalmente integrado; o teor das suas declarações confessórias e respectiva postura humilde, contida e emotiva; a ausência de condenações anteriores; a motivação em que agiu num contexto de conjuntura económica difícil priorizando o pagamento dos salários dos trabalhadores e a regularização das dívidas à segurança social que o arguido assumiu e tendo vindo a cumprir.
25. Pelo que, tudo ponderado, no modesto entendimento do recorrente, na fixação da medida concreta da pena a aplicar ao arguido deverá ser atendido o seu mínimo legal e em número não superior a 30 (trinta) dias de multa.
26. No que concerne ao quantitativo diário da multa, o respectivo montante é fixado em função da situação económica e financeira do arguido.
27. Ora, como resulta provado dos autos, o arguido encontra-se em situação financeira difícil e bastante precária: foi judicialmente declarado insolvente e com o salário mínimo nacional acrescido de €100,00 a título de subsídio de alimentação, suporta a despesa mensal de €350,00 a título de renda e 75€ a título de prestação de alimentos ao filho menor, sobrando-lhe apenas o valor mensal de €200,00 para fazer face às demais despesas necessárias para uma sobrevivência condigna, nomeadamente com a sua alimentação, despesas médicas e medicamentosas e vestuário. - uma coisa é o sacrifício que se pretende impor ao arguido, outra é colocá-lo em condição abaixo do limiar da sobrevivência.
28. Como resulta do preceituado no artigo 15.º do RGIT a cada dia de multa é correspondente a uma quantia entre 1€ e €500, no caso das pessoas singulares.
29. Ora, vertendo ao caso dos autos e à factualidade apurada quanto à situação económica do arguido, reputa-se justa a fixação de um quantitativo diário da multa próximo do seu limite mínimo e em número não superior a €2,50 (dois euros e cinquenta cêntimos).
30. A decisão recorrida enferma, assim, do vício referido no artigo 410.º n.º 2 alíneas b) e c) do Código de Processo Penal e fez uma errada aplicação do disposto nos artigos 105.º e 107.º do Regime Geral das Infracções Tributárias.».
Termina dizendo que deve ser alterada a matéria de facto vertida nos artigos 4, 6, 7, 8 e 9 da acusação pública, e, consequentemente, ser absolvido da prática do crime pelo qual foi condenado. Para o caso de assim se não entender, a medida concreta da pena a aplicar-lhe deverá ser reduzida, atendendo-se ao seu mínimo legal e em número não superior a 30 (trinta) dias de multa, reputando justa a fixação de um quantitativo diário da multa próximo do seu limite mínimo e em número não superior a €2,50 (dois euros e cinquenta cêntimos), considerando a sua situação económica.

O recurso foi regularmente admitido por despacho proferido a fls. 544.

O Ministério Público, em 1ª instância, apresentou resposta à motivação, pugnando pela improcedência do recurso, dizendo, em suma, que a sentença recorrida não merece qualquer censura, tendo o tribunal a quo feito uma correcta apreciação dos factos e do direito aplicável ao caso, concordando com os fundamentos da mesma.
Neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu fundamentado parecer em que defende a improcedência do recurso na parte respeitante à impugnação da matéria de facto. Quanto ao preenchimento da condição objectiva de punibilidade – notificação do arguido, para no prazo de trinta dias proceder ao pagamento da dívida e demais acréscimos legais –, aduz que tendo esta sido efectuada em momento temporal coincidente com a pendência do plano prestacional a que o arguido se vinculou e que se encontrava a cumprir não se pode ter por verificada a referida condição, devendo nesta parte o recurso obter total procedência.
O assistente Instituto de Segurança Social não respondeu ao recurso.

Foi cumprido o art. 417º, nº 2, do CPP.

Efectuado exame preliminar e, colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
*
Na medida em que o âmbito dos recursos se delimita pelas respectivas conclusões (arts. 403º e 412º, nº 1, do CPP), suscitam-se neste recurso as seguintes questões, ordenadas pela ordem da respectiva prejudicialidade:
1ª – A decisão proferida sobre os factos 4, 6, 7, 8 e 9, sofre de erro notório e contradição na fundamentação;
2ª – A não verificação da condição objectiva de punibilidade aludida no art. 105º, nº 4, alínea b), do RGIT;
3ª – Deve fixar-se a medida da pena em não mais de 30 dias e o respectivo montante diário em quantia não superior a € 2,50.

Cumpre, pois, apreciar tais questões e decidir. Para tanto, deve considerar-se como pertinente ao conhecimento do objecto do recurso na decisão recorrida sobre a matéria de facto que a seguir se transcreve.
Factos provados:
«a) Factos Provados
Discutida a causa penal resultaram provados os seguintes factos:
Da acusação pública:
1. A primeira arguida, “…, LDA, é uma pessoa coletiva com o NIF …. e NISS …., encontra-se registada para o exercício de “Construção de edifícios” (CAE …), tem sede no Lugar de …., … e encontra-se inscrita no ISS,IP desde a data da sua constituição, em 16 de julho de 2010.
2. A gerência da sociedade esteve sempre a cargo do arguido J. M..
3. No exercício de tais funções, era o arguido quem dirigia as atividades de gestão e administração da sociedade arguida, administrando-a e decidindo em seu nome e no seu interesse, competindo-lhe determinar a afetação dos meios financeiros ao cumprimento das respetivas obrigações correntes, designadamente proceder ao pagamento das remunerações aos empregados, pensionistas e aos gerentes da mesma – inclusive a ele próprio - , cabendo-lhe, igualmente, a tarefa de efetuar as deduções a tais remunerações, correspondentes às cotizações devidas à Segurança Social, e o consequente preenchimento e entrega das respetivas Declarações de Remuneração, no Centro Regional da Segurança Social e do respetivo montante referente às deduções assim realizadas, nas retribuições salariais, até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que diziam respeito, no referido Centro Regional da Segurança Social.
4. No exercício desta atividade, em data não concretamente apurada, mas sempre anterior a fevereiro de 2012, o arguido decidiu não entregar as quantias referentes às contribuições descontadas e retidas dos salários dos seus trabalhadores, bem como aos seus membros estatutários, as quais a sociedade arguida se encontrava legalmente obrigada a entregar à Segurança Social, fazendo-as suas e integrando-as no património da sociedade arguida, por forma a que as mesmas não fossem recebidas pelo seu legal credor, a Segurança Social, prejudicando, assim, esta entidade.
5. Na execução do referido plano, o arguido efetivamente pagou aos trabalhadores e aos membros estatutários da sociedade arguida, as remunerações respeitantes ao período compreendido entre fevereiro de 2012 a agosto de 2012 e setembro de 2013 a dezembro de 2014 e, de igual modo, procedeu ao desconto de 11% no vencimento dos trabalhadores, e de 10% e 9,3% no vencimento do membro estatutário, neste período, correspondente às respetivas contribuições para a Segurança Social, no montante global de € 7197,86, assim distribuídos:


6. Pese embora tenha efetuado os descontos supra referidos, o arguido não procedeu à sua entrega na Segurança Social nos prazos legalmente estipulados, isto é, até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitavam, nem nos 90 dias seguintes ao terminus deste prazo, como a tanto estava obrigado, apoderando-se dessas quantias.
7. O arguido ao não efetuar os pagamentos acima discriminados à Segurança Social, fez seus 7.197,86€, integrando-os no património da sociedade arguida e utilizando-os em proveito desta e, logo, no seu património, obtendo desse modo vantagens patrimoniais e benefícios que sabia ser indevidos e proibidos por lei, uma vez que assumia, naquele período, a gerência da mesma sociedade e estava ciente da obrigação legal de entregar tais quantias.
8. Em todos aqueles períodos de tempo, sabia o arguido que o montante que gastou e utilizou em proveito da sociedade arguida pertencia ao Instituto de Segurança Social Portuguesa e a este devia ter chegado juntamente com as folhas das remunerações processadas.
9. Agiu sempre o arguido, de modo livre e consciente, sabendo que ao deduzir as mencionadas quantias e ao não entrega-las às instituições da Segurança Social – fazendo reverter e despendido em benefício da sociedade arguida as quantias deduzidas, e, indiretamente, em seu proveito próprio, assim enriquecendo, desde logo, o seu património e o da sociedade, em igual montante - estava a prejudicar a Segurança Social, pelo menos, em valor equivalente.
10. O arguido e a sociedade arguida, na pessoa daquele, foram, posteriormente, notificados para no prazo de 30 dias, proceder à entrega da quantia em dívida, sob pena de não o fazendo seguir o respetivo procedimento criminal os seus legais termos, não tendo, nesse prazo, procedido ao respetivo pagamento integral.
11. Estava o arguido ciente, ademais, que as suas condutas o faziam incorrer a si e à sociedade arguida em responsabilidade criminal, por proibidas e punidas por lei.
Da audiência de discussão e julgamento:
12. O arguido exerce a profissão de camionista por conta de outrem, auferindo mensalmente o salário mínimo nacional, acrescido de subsídio de alimentação no valor médio de 100 € mensais.
13. Vive sozinho, em casa arrendada, contra o pagamento da quantia mensal de 350 €.
14. Tem um filho menor, de 10 anos de idade, a quem paga prestação alimentar no valor mensal de 75 €.
15. Foi declarado insolvente.
16. A sociedade arguida cessou a sua atividade.
17. Não possui qualquer património.
18. O arguido encontra-se a proceder ao pagamento em prestações das cotizações em causa nos presentes autos, através do plano prestacional número 1436/2015, que requereu, por sua iniciativa, com início em outubro de 2015.
Dos autos:
19. Os arguidos não têm antecedentes criminais registados nos respectivos certificados do registo criminal.
b) Facto não provado
Após a notificação referida em 10 o arguido não procedeu a qualquer pagamento, não tendo, até à presente data, liquidado qualquer outra quantia.
b) Facto não provado
Após a notificação referida em 10 o arguido não procedeu a qualquer pagamento, não tendo, até à presente data, liquidado qualquer outra quantia.
Fundamentação da matéria de facto:
«A convicção do Tribunal relativamente à matéria de facto resultou da avaliação englobante do contexto probatório dos autos, designadamente, os documentos que deles constam, da prova por declarações do arguido e da prova testemunhal produzida, analisada à luz das regras de experiência comum e da lógica, a coberto do princípio da livre apreciação da prova a que alude o artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Concretizando:
No que à prova documental concerne valorou-se:
- O teor do mapa de cotizações de fls. 59, quanto à quantificação dos valores a que se alude em 5;
- Os extratos de remunerações de fls. 78-87, coadjuvantes da prova dos factos vertidos em 4 e 5;
- A listagem da conta corrente de fls. 86, coadjuvante da prova dos factos mencionados em 4 e 5, porquanto da sua análise se retira que não deram entrada nos serviços da SS os valores das cotizações descontadas nos salários dos trabalhadores;
- Os documentos de fls. 113-121, coadjuvante da prova dos factos mencionados em 4 e 5;
- As cópias dos recibos de vencimento de fls. 126-127 (dos quais resulta a menção da retenção à taxa de 11% relativa a cotizações para a SS), as declarações de rendimentos de fls. 128-129 e os mapas de presenças de fls. 130-132, coadjuvantes da prova dos factos mencionados em 4 e 5;
- As cópias do contrato e cartas de fls. 136, 138-139, coadjuvantes da prova dos factos mencionados em 4 e 5;
- A notificação para pagamento voluntário de fls. 193-194, datada de 15/02/2016, coadjuvante da prova dos factos mencionados em 10 e 11;
- A comunicação de fls. 196, coadjuvante da prova dos factos vertidos em 10 e 18;
- Os certificados do registo criminal de fls. 290-291, dos quais se extrai a ausência de registo de condenações em nome dos arguidos.
- A certidão permanente de fls. 292-294, quanto aos factos mencionados em 1 e 2;
- A consulta à base de dados da SS junta a fls. 295-296, coadjuvante da prova do facto mencionado em 12;
- O mapa de cotizações em falta e os documentos de fls. 299-306, coadjuvantes da prova do facto mencionado em 18 e dos quais resulta a infirmação do facto que se deu por não provado.
No que à prova por declarações do arguido concerne foram as mesmas integralmente valoradas, não vislumbrando o Tribunal qualquer razão para colocar em crise a versão por ele narrada, posto que se nos afiguraram sinceras, credíveis e com apoio na demais prova documental a que se fez referência. Nas suas declarações confessórias assentou a prova da factualidade típica nos seus elementos objetivos e subjetivos, assumindo o arguido a responsabilidade pela decisão de não entrega nas instituições de segurança social das quantias retidas aquando do pagamento dos salários de trabalhadores e membros dos órgãos estatutários da sociedade arguida, esclarecendo a motivação de uma tal decisão, a evolução da vida societária que a ela conduziu, todo o enquadramento passado e situação atual e, bem assim, os esforços encetados no sentido de solver a dívida.
Das declarações que prestou resultou evidente que a não entrega das cotizações devidas decorreu das dificuldades de tesouraria que a sociedade arguida atravessava, integrada num contexto de ampla crise que grassou o tecido empresarial português e o setor da construção civil em particular. Neste contexto, o arguido estabeleceu prioridades, elegendo na afetação dos recursos de que dispunha ao pagamento dos salários dos seus trabalhadores, em detrimento do cumprimento das suas obrigações para com a segurança social.
A sua postura contida, humilde e a emoção que deixou fluir no decurso da audiência, imprimiram ao seu discurso uma genuinidade a que o Tribunal não foi indiferente. Nas declarações por ele prestadas assentou ainda a prova das condições pessoais, profissionais e económicas carreadas à factualidade assente, as quais também neste particular se nos afiguraram verosímeis e, por isso, dignas de crédito.
Os esforços encetados pelo arguido para o pagamento da dívida em causa nos autos e a autonomia na sua liquidação em prestações foram corroborados pela testemunha M. l., em moldes que se nos afiguraram sinceros, nada abalando a credibilidade que nos mereceu o respetivo relato.».
*
1. Erro notório e contradição na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto.
Sustenta o recorrente que a decisão proferida sobre os factos 4, 6, 7, 8 e 9, sofre de erro notório e contradição da respectiva fundamentação.
Vejamos.
Como vem sendo unanimemente defendido na jurisprudência a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias, pelo âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no art. 410º, nº 2, do CPP, ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o art. 412º, nºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma.
Neste caso, a impugnação incide, não no eventual erro (de julgamento) na apreciação da prova, mas apenas nos vícios apontados naquela primeira vertente, os quais, apreciados nessa perspectiva, visam o erro na construção do silogismo judiciário, não o chamado erro de julgamento, a injustiça ou a desadequação da decisão proferida ou a sua não conformidade com o direito substantivo aplicável (1).
Por conseguinte, trata-se de saber se na decisão recorrida se reconhece uma errónea construção de silogismo judiciário (contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão) ou qualquer outro dos vícios a que alude o art. 410º, nº 2, do CPP (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ou erro notório), necessariamente resultantes do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
O que significa que só assumem tal natureza os erros constatáveis pela simples leitura do teor da própria decisão da matéria de facto, não sendo admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para os fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (2). Apenas será de admitir a conveniência ou a cautela de, ainda assim, sindicar a fundamentação que haja sido feita sobre os factos provados e não provados, para se fazer uma avaliação correcta e poder concluir se, afinal, para um facto em aparente contradição com a lógica mais elementar e as regras da experiência comum, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, não foi fornecida naquela fundamentação um qualquer esclarecimento que torne compreensível o julgamento efectuado: por exemplo, se um facto dado como provado (ou não provado) contraria o senso comum, ou seja, a normal e corrente compreensão e interpretação das situações da vida, só a clara explicitação do percurso trilhado para a formação da respectiva convicção e a razoabilidade desta poderão legitimar a sua aquisição processual.
Assim, o vício atinente à contradição insanável de fundamentação, «tal como os demais previstos nas als. a) e c), tem de resultar do texto da decisão recorrida e só se verifica quando, de acordo com um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação, não só não justifica como impõe uma decisão contrária ou, quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se concluir que a decisão não resulta suficientemente esclarecida, dada a colisão entre os fundamentos invocados» (3).
Este vício, como resulta da letra da al. b) do art. 410º, só se deve e pode ter por verificado quando ocorre uma contradição insanável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, ou seja, um conflito inultrapassável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, o que significa que nem toda a contradição é susceptível de o integrar, mas apenas a que incida sobre elementos relevantes do caso e se mostre insanável ou irredutível, isto é, que não possa ser ultrapassada ou esclarecida de forma suficiente com recurso ao teor da decisão recorrida no seu todo, por si só ou com o auxílio das regras da experiência.
Identicamente, a jurisprudência tem considerado os vícios contemplados na al. c) de tal preceito apenas como os erros que, ponderados os factos provados e não provados, advêm de o tribunal ter retirado uma conclusão ilógica ou arbitrária, à margem duma análise racional ou em violação das regras de experiência comum, e que, por isso, não escapa à análise do homem médio (4). Assim, apenas existe o vício do erro notório na apreciação da prova quando, de acordo com o texto da sentença, o tribunal a valorou contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente (5). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, traduzido, basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido (6) ou dar-se como não provado o que não pode ter deixado de ter acontecido.
Ora, no caso em apreço, não se constata pela simples leitura do teor da decisão recorrida qualquer dos vícios (formais) que o recorrente lhe assaca, com os mencionados contornos que a lei lhes oferece, aliás, incompatíveis com os próprios termos do arrazoado recursivo.
Com efeito e em suma, o que está verdadeira e unicamente em causa no recurso é que o recorrente não se conforma com a circunstância de a sua posição sobre a matéria de facto não ter sido totalmente acolhida no julgamento proferido pela 1ª instância, aí fazendo radicar os aludidos vícios que apontou à decisão recorrida e que expressamente apodou, concomitantemente, de erro notório na apreciação da prova e de contradição na fundamentação da decisão.
Destarte, é forçoso concluir, face à concreta argumentação expendida nas conclusões de recurso, complementadas com a respectiva motivação, que o recorrente invoca a existência destes vícios fora das analisadas condições legais, pois que se limita a extrair as ilações que tem por pertinentes da prova produzida, que contrapõe à do julgador, sem que logre demonstrar, através da análise estribada apenas na leitura do próprio texto do acórdão recorrido, a existência de qualquer ilogismo de percurso ou conclusão contrária à lógica das coisas, ao alcance, pela sua evidência, do homem comum.
A real discordância do recorrente radica no facto de ter sido considerado provado que o mesmo integrou no património da sociedade arguida, e utilizou em proveito desta, as quantias referentes às contribuições descontadas e retidas dos salários dos seus trabalhadores, bem como dos seus membros estatutários, no período em causa, por forma a que as mesmas não fossem recebidas pelo seu legal credor, a Segurança Social, quando das suas declarações, segundo invoca, resultou evidente que essa não entrega das quotizações devidas decorreu das dificuldades de tesouraria que a sociedade arguida atravessava, tendo disponibilizado tais quantias para pagar os salários aos trabalhadores, nunca tendo tido qualquer intenção de apropriação.
Embora a objecção expendida em torno da alegada apropriação nada tenha a ver com qualquer dos vícios arguidos, aproveita-se o ensejo para esclarecer que, salvo o devido respeito, a mesma só poderá dever-se a um descuido jurídico, porquanto, como é sabido, a vertente objectiva do crime de abuso de confiança contra a segurança social já não reclama o elemento de apropriação. A apropriação deixou de ser requisito do crime, pelo que, já não é necessário que o agente se aproprie da quantia deduzida, bastando que o mesmo, conhecendo o dever de entregar aquela quantia (efectivamente retida) dentro de determinado prazo, não o cumpra, assim como também não é necessário para a verificação do crime que o agente retire um proveito directo das quantias retidas, sem prejuízo de o destino destas quantias, se vier a apurar-se em concreto, poder relevar na definição da responsabilidade penal do agente, nomeadamente para efeitos de escolha e medida da pena (7).
A vertente subjectiva do crime, por maioria de razão, já não reclama o dolo de apropriação e, como, tal o lado subjectivo do ilícito não tem de compreender qualquer pensamento sobre a apropriação. De facto, apesar de se estar perante um crime doloso, ou seja, o agente tem de representar os elementos do tipo, designadamente, a violação da entrega dos valores das prestações deduzidas à Segurança Social que a lei lhe impõe e, em todo o caso, como já se referiu, para a violação da aludida relação já não é necessário que o agente se aproprie da quantia deduzida, bastando que o mesmo, conhecendo o dever de entregar aquela quantia (efectivamente recebida ou retida) dentro de determinado prazo, não o cumpra.
Assim, o elemento subjectivo esgota-se no dolo, que se dirige à quebra dessa confiança depositada legalmente no detentor temporário das prestações e que pode abarcar qualquer uma das formas previstas no artigo 14º do C. Penal – directo, necessário e eventual.
De todo o modo, sempre se dirá que os factos verdadeiramente essenciais ficaram a constar dos factos provados, ou seja, que os montantes em causa, por decisão do recorrente, foram afectos ao cumprimento de obrigações decorrentes da actividade da sociedade arguida.
Por conseguinte e sem necessidade de maiores desenvolvimentos, improcede a deduzida impugnação da matéria de facto.

2. A condição prevista no art. 105º, nº 4, alínea b), do RGIT.
O recorrente, além do mais, demanda no recurso que a sua notificação para pagamento voluntário da quantia em dívida (fls. 193-194), apenas ocorreu por carta datada de 15/02/2016, num momento em que se encontrava a proceder ao pagamento voluntário das quotizações em referência nos autos, nomeadamente através do plano prestacional número 1436/2015, tendo sido o próprio titular do bem jurídico, a Segurança Social, que aceitou e celebrou consigo em Outubro de 2015, o pagamento faseado de tal quantia, pelo que, encontrando-se a mesma a ser paga, tal circunstância, colide com a sua responsabilização penal, impondo-se a sua absolvição.
O Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto também defendeu que não se pode ter por verificada a condição objectiva de punibilidade imposta pela lei porque o recorrente foi notificado para, no prazo de trinta dias, proceder ao pagamento da dívida e demais acréscimos legais numa data em que estava pendente o plano prestacional acordado entre ele e a Segurança Social, o qual o mesmo se encontrava a cumprir.
Analisando:
Como é sabido, a responsabilidade tributária pelo imposto devido e a responsabilidade penal tributária não podem ser confundidas. A autonomia de ambas essas responsabilidades é salientada por Germano Marques da Silva (8) nestes termos: «O facto gerador da dívida de imposto existe independentemente da prática de qualquer crime: a obrigação tributária é autónoma relativamente à responsabilidade penal pela prática de crime tributário e é geralmente proveniente da prática de facto ilícito, ainda que entre a dívida tributária e a responsabilidade pelo crime exista conexão».
Ora, parece evidente que o «facto de existir uma obrigação de pagar impostos incumprida impele a sequente reacção da máquina fiscal com recurso à respectiva execução, mas tal não significa, necessariamente, que o devedor entrou no domínio da violação penal», pois o não cumprimento de uma obrigação para com o Estado, a verificar-se, não pode equivaler automaticamente a uma infracção penal, «sob pena duma instrumentalização do direito penal à revelia de princípios e valores». «Para que o mero incumprimento se transmute em crime é necessário algo mais do que este incumprimento o que só se pode traduzir na existência da violação do valor, ou bem jurídico, como base no qual a norma penal foi construída. No caso concreto do normativo em análise tal valor, como já se referiu, consubstancia-se no desrespeito pela relação de confiança em que assenta a relação fiscal e na circunstância de o arguido não entregar ao estado uma quantia que recebeu como mero substituto.» (9).
Nessa senda, prescreve o art. 105º, nº 4, alíneas a) e b), do RGIT (Regime Geral das Infracções Tributária aprovado pela Lei 15/2001, de 5/6 (10)), relativamente ao crime de abuso de confiança fiscal, aplicável por remissão aos crimes de abuso de confiança contra a Segurança Social (nos termos do art. 107º, nº 2), que os factos (descritos nos números anteriores) só são puníveis se: a) tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação; b) a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
Com a citada norma da alínea b), introduzida pela Lei 53-A/2006, de 29/12, pretendeu o legislador «evitar a proliferação de procedimentos criminais, a melhoria da eficiência do sistema, bem como distinguir em lei expressa o comportamento do arguido cumpridor das suas obrigações declarativas perante a administração fiscal e a segurança social daqueles outros que ocultam tal informação, por não serem actuações com a mesma valoração criminal» (11).
O AUJ do STJ nº 6/2008, de 9-04-2008 (12), pôs termo à controvérsia entretanto gerada quanto à interpretação de tal preceito, fixando jurisprudência nos seguintes termos: «A exigência prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção introduzida pela Lei 53-A/2006, configura uma nova condição objectiva de punibilidade que, nos termos do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em consequência, e tendo sido cumprida a obrigação de declaração, deve o agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo (alínea b) do n.º 4 do art. 105.º do RGIT)».
Esse segmento uniformizador da jurisprudência foi fundamentado em tal acórdão, nomeadamente, com os seguintes trechos:
«Suportados na letra da lei, mas fazendo apelo a um critério teleológico na sua interpretação e com plena consciência de que o direito criminal se dirige à protecção de valores, ou bens jurídicos, não vislumbramos uma outra intenção do legislador que não a de evitar a criminalização de condutas que podiam ter um mero tratamento de natureza administrativa. Então, a denominada proliferação de inquéritos será evitada dando àquele que assumiu a sua obrigação declarativa perante a Administração Fiscal a possibilidade de regularizar a sua situação tributária.
Os elementos teleológico e histórico convergem, assim, em abono de uma interpretação segundo a qual o legislador terá pretendido descriminalizar o facto nos casos em que, tendo havido declaração da prestação não acompanhada do pagamento, este vem a ser efectuado após intimação da Administração para que o "indivíduo" regularize a sua situação tributária.
Pretendeu-se alcançar tal objectivo fazendo surgir para Administração Fiscal a obrigação de notificar o contribuinte em mora (e não em falta de declaração) e para este a condição de pagamento do montante em falta como condição de não accionamento do procedimento criminal pelo crime de abuso de confiança fiscal.
(…) A alteração legal produzida, repercutindo-se na punibilidade da omissão e ligada, de forma inextricável, ao tipo de ilícito é, todavia, algo que é exógeno ao mesmo tipo.
(…) As condições objectivas da punibilidade são aqueles elementos da norma, situados fora do tipo de ilícito e tipo de culpa, cuja presença constitui um pressuposto para que a acção anti-jurídica tenha consequências penais.
(…) As condições objectivas de punibilidade são, assim, circunstâncias que se situam fora do tipo de ilícito e da culpa e de cuja presença depende a punibilidade do facto, ou seja, são um pressuposto para que o actuar anti jurídico importe consequências penais. São condições em que uma ponderação das finalidades extrapenais tem prioridade em face da necessidade da pena.
(…) As condições objectivas de punibilidade participam de todas as garantias do Estado de Direito estabelecidas para os elementos do tipo. Jeschek exemplifica com a aplicabilidade da função de garantia da lei penal ou as exigências de prova sobre as mesmas condições.».
Constata-se, assim, que só após o decurso de mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação tributária e, ainda, do não pagamento, no prazo de 30 dias, após notificação para o efeito, da prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, é que «estão verificados no crime todos os pressupostos indispensáveis para que a punição possa desencadear-se» (13).
Mas será que, no caso em apreço, se mostra verificada a analisada condição objectiva da punibilidade da conduta protagonizada pelo arguido?
Compulsados os autos, verifica-se que a notificação aludida foi efectuada em 15/02/2016 depois de celebrado um acordo entre o Estado em sentido amplo (a Segurança Social) e os arguidos, o qual conferira a estes a possibilidade de regularizar a sua situação tributária, mediante o pagamento da respectiva dívida em prestações. Ora, esse acordo celebrado em Outubro de 2015 entre dois sujeitos de direito, o Estado, na veste de credor, e o privado devedor, importou a não exigibilidade (imediata) do crédito tributário daquele.
Claro que, no plano dos princípios, talvez fosse defensável uma diferente opção do legislador. Na verdade, perante um quadro com os contornos do ora em apreço, o comum senso jurídico poderia levar a considerar que a vigência dum tal acordo obstaria a que o sujeito Estado, agora no pretendido exercício do respectivo jus puniendi, pudesse preencher a condição legalmente imposta para esse exercício, enquanto o respectivo crédito não fosse (tributariamente) exigível, notificando o devedor para o pagamento dum seu crédito que, afinal, não lhe é devido dentro do prazo contido em tal notificação. A admissibilidade, com tais pressupostos, do preenchimento da aludida condição de punibilidade parece equivaler a “normalizar” uma espécie de “esquizofrenia” jurídica do ente Estado, bem como, no limite, poderá violar os princípios da boa-fé e da confiança a que todos os sujeitos de direito estão adstritos, a começar pelo Estado, por serem ínsitos ao estado de direito e, por isso, estruturantes do nosso ordenamento jurídico fundamental.
Todavia, não se pode olvidar a reconhecida autonomia da responsabilidade tributária (pelo imposto devido) face à responsabilidade penal tributária, sendo o crime em causa, um crime omissivo puro, que se consuma no momento em que o agente não entrega a prestação tributária devida, daí ser incontornável o reconhecimento de que o accionamento desta última está objectivamente condicionada à notificação para pagamento dos créditos que são devidos e exigíveis, não sendo defensável, à face da lei, a não verificação de tal exigibilidade, por força do referido acordo, porque o mesmo não tem a virtualidade defendida pelo recorrente de impedir a sua responsabilidade criminal.
Tendo o recorrente sido notificado para pagamento dos montantes em dívida, como foi e não tendo procedido dentro desse prazo legal a tal pagamento, face à lei vigente, tem-se por verificado, o necessário pressuposto da legitimidade da mencionada condição de punibilidade da conduta, ilícita dos arguidos.
Foi o que considerou o recente acórdão da RP de 03/02/2016 (14), embora a propósito de um imposto: «A afirmação do recorrente de que quando em 27/11/2013 foi notificado para, no prazo de 30 dias, proceder ao pagamento do IVA de Dezembro/2012, acrescido dos juros e o mais legal, nos termos do disposto na al. b) do art. 105°, nº 4 do RGIT, já a Administração Tributária tinha autorizado tal pagamento em prestações, estando em curso o plano, sendo verdadeira, é inconsequente e inconclusiva, pois, a partir dela, não formula o recorrente, pelo menos de modo claro, qualquer questão. Se o recorrente pretende fazer derivar desse acordo de pagamento o mesmo objectivo da condição de punibilidade estatuída no na al. b) do art. 105°, nº 4 do RGIT, (…) devendo considerar-se tal condição não verificada quando o acordo é pontualmente cumprido, como acontece no caso dos autos, diremos apenas que essa “equivalência”, podendo o legislador tê-la feito, o certo é que não a fez, e não pode o juiz, a pretexto de interpretação, invadir a competência do legislador.
As realidades são diferentes o que justifica materialmente a diversidade de tratamento jurídico: pagar a prestação acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito (art.º 105º, n.º4 al. b) do RGIT), não é assimilável ao acordo de pagamento, do mesmo montante em 24 prestações mensais sucessivas. O pagamento imediato como modo de liquidação de uma prestação tributária é um facto que ocorreu numa data determinada; o acordo de pagamento, diferido no tempo, reportando-nos à mesma prestação tributária, só se transforma em pagamento total, que é o que releva no caso, com a liquidação da última prestação, facto que à data da acusação, proferida nos autos em 23.1.2014, ainda não tinha ocorrido e não se pode ficcionar.
Conclui-se, assim, que o acordo de pagamento, entre o devedor da prestação tributária e a AT, não obsta à verificação e funcionamento da condição de punibilidade da conduta, consagrado no art.º 105º, n.º4 al. b) do RGIT.».
Por conseguinte, sendo legítima a notificação entretanto efectuada com invocação do disposto na citada al. b) do nº 4 do art. 105º, mostra-se preenchida a necessária condição de punibilidade da conduta assacada aos arguidos, sem prejuízo de o circunstancialismo dela envolvente dever ser tido em linha de conta na fixação da medida da pena a aplicar.
Assim, improcede, também nesta vertente, o recurso interposto.

3. A medida da pena.
O arguido insurge-se quanto à medida da pena que lhe foi aplicada, aduzindo que a mesma deve ser fixada no seu mínimo legal ou em montante não superior a 30 dias, assim como, atenta a sua parca situação económica, deve o respectivo quantitativo diário quedar-se em € 2, 50.
O crime pelo qual o arguido foi condenado é abstractamente punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias, fixando-se esta entre o limite mínimo de €1 e € 500 de acordo como o disposto no arts. 105º, nº 1, ex vi do artigo 107º, nº 1 e 15º do RGIT.
A Sra. Juíza optou, e bem, pela pena de multa, por ter entendido que na concreta situação, as exigências de prevenção geral e especial encontravam resposta adequada na aplicação dessa pena, opção que não vem posta em causa no recurso.
O bem jurídico que se visa proteger com esta incriminação reconduz-se, no essencial, à tutela do erário público e do interesse comum na obtenção das receitas tributárias, nelas incluídas as parafiscais (15), não podendo olvidar-se que as receitas tributárias visam a satisfação das necessidades financeiras do Estado a fim de ocorrer às atribuições que lhe são cometidas, em prol do bem comum e, também, uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza. Tais ponderações valem inteiramente para as prestações em causa nos autos.
Neste conspecto, merecem reflexão as relevantes conclusões extraídas pelo STJ no seu acórdão de 31-05-2006 (16):
«O sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza, e a tributação do património pessoal ou real deve concorrer para a igualdade entre os cidadãos (arts. 103.º, n.º 1, e 104.º, n.º 3, da CRP), pelo que é da maior evidência, quer no plano teórico quer no plano prático, que o lançamento dos impostos, mostrando-se a coberto da tutela da lei ordinária e sustentada pela lei fundamental, reclama para sua cobrança um regime punitivo deferido ao Estado, sem o qual aquela superior e pública finalidade se mostraria seriamente comprometida, integrando-se, como se integra, o delito de fuga aos impostos naquilo que se apelida de “delinquência patrimonial de astúcia”.
Por isso o jus puniendi de que o Estado se mostra detentor na luta contra os devedores de impostos e contribuições devidas à Segurança Social, quando aos credores particulares do Estado lhes é denegada igual tutela, enquanto figura incumpridora e em mora nas suas obrigações, não reveste qualquer tratamento chocante, forma diferenciada ou desproporcionada, em colisão com os princípios com dignidade constitucional sediados ao nível da igualdade dos cidadãos e da menor compressão dos direitos fundamentais - arts. 13.°, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da CRP.
Trata-se de assegurar tratamento diferenciado e desigual, de todos aceite, justificado e inteiramente compreensível, numa área e a uma entidade vocacionada à realização de fins públicos, de prossecução de incontornáveis interesses de índole financeira, nacionais e comunitários, de subsistência colectiva, de justa repartição dos rendimentos, objectivos ocupantes na pirâmide de interesses posição de topo, superiorizando-se aos privados, que extrapolam, em muito, a mera responsabilidade contratual, caso em que, se fosse essa tal natureza, então existiria manifesto excesso se se privasse de liberdade o agente da infracção, em derrogação do princípio estabelecido no art. 1.º do Protocolo n.º 4, Adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, proibindo a privação de liberdade pela única razão de se não poder cumprir uma obrigação contratual.».
São de idêntico pendor os fundamentos do decidido pelo TC no seu acórdão de 20/7/2000 (17): «Num Estado de direito, social e democrático, a assunção pelo Estado da realização do bem-estar social, através da concretização de uma democracia económica, social e cultural, com respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, legitima-se pela necessidade de garantir a todos uma existência em condições de dignidade. A realização destas exigências não só confere ao imposto um carácter de meio privilegiado ao dispor de um Estado de direito para assegurar as necessárias prestações sociais como também alarga o âmbito do que é digno de tutela penal ... Compreende-se, assim, que o dever de pagar impostos seja um dever fundamental e que a violação deste dever, essencial para a realização dos fins do Estado, possa ser assegurado através da cominação de sanções criminais».
Para o efeito visado pelo recorrente, deverá atender-se ao disposto no artigo 40º, nº 1 do C. Penal, que estabelece que a aplicação de penas ou medidas de segurança tem como finalidade a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Este preceito indica-nos que o escopo que subjaz à aplicação da pena se reconduz, por um lado, a reforçar a confiança da comunidade na norma violada e, por outro lado, à ressocialização do delinquente.
Em consonância com o estipulado no nº 1, do art. 71º, do C. Penal, a medida da pena é determinada, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo que, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, conforme prescreve o art. 40º, nº 2, do mesmo Código.
Como resulta do que se disse, a finalidade essencial da aplicação da pena, para além da prevenção especial – encarada como a necessidade de socialização do agente, no sentido de o preparar para no futuro não cometer outros crimes – reside na prevenção geral, o que significa «que a pena deve ser medida basicamente de acordo com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto … alcançando-se mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada...». «É, pois, o próprio conceito de prevenção geral de que se parte que justifica que se fale aqui de uma “moldura” de pena. Esta terá certamente um limite definido pela medida de pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade. Mas, abaixo desta medida de pena, outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas – até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral; definido, pois, em concreto, pelo absolutamente imprescindível para se realizar essa finalidade de prevenção geral e que pode entender-se sob a forma de defesa da ordem jurídica» (18). «Resta acrescentar que, também aqui, é chamada a intervir a culpa a desempenhar o papel de limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas...» (19). «Sendo a pena efectivamente medida pela prevenção geral, ela deve respeitar o limite da culpa e, assim, preservar a dignidade humana do condenado» (20).
Em suma, a pena concreta será limitada, no seu máximo, pela culpa do arguido. O princípio da culpa dispõe que «não há pena sem culpa e a medida da pena não pode, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa» (cfr. art. 40º, nº 2, do C. Penal).
Ora, é mediana a gravidade objectiva da conduta do arguido/recorrente, apesar de, com a mesma, ter atingido valores fundamentais e imprescindíveis à vida em comunidade. Realmente, intensifica-se, progressivamente, a censura ético-social relativamente a comportamentos que inibem o Estado de dar cabal satisfação às incumbências que lhe são cometidas, sobretudo, num quadro em que, perante o agravamento das dificuldades económicas, aos cidadãos, na sua generalidade, foi imposto um enorme aumento dos sacrifícios. Além disso, as condutas da natureza das ora em apreço transcendem o simples valor patrimonial, em si mesmo, das prestações tributárias retidas e não entregues e a inerente evasão fiscal, assumindo estas uma muito relevante danosidade social, para mais quando, entre nós, atinge elevadas proporções, como é sabido.
Este ilícito também viola a fidúcia ou a relação de confiança estabelecida entre o Estado e o devedor tributário, bem jurídico por aquele igualmente tutelado, porquanto «o devedor tributário encontra-se instituído em posição que poderemos aproximar da do fiel depositário» (21). Efectivamente, no caso da particular prestação em causa, as entidades devedoras de rendimentos de trabalho dependente uma vez deduzidos e retidos na parte correspondente, ficam na situação de fiéis depositários desses valores, que assim passam a pertencer ao respectivo credor tributário, perante quem se constituem na obrigação legal de os entregar, nos prazos e nos locais previstos na lei, independentemente do acto de apropriação, ficando o ilícito preenchido com a mera falta de entrega, total ou parcial, à Segurança Social da prestação deduzida nos termos da lei a que o agente se encontrava obrigado.
Por tudo isso, são significativas as exigências de prevenção geral porque sobre o arguido, enquanto gerente da sociedade também arguida, devedora de rendimentos sujeitos a retenção na fonte, impendia a obrigação de entregar à Segurança Social os montantes retidos, perfazendo a quantia de € 7.197,86, o que não fez.
Assim, se depõe contra o arguido a mediana ilicitude do seu comportamento, atendendo ao montante em causa e aos valores jurídicos atingidos, já no que respeita às necessidades de prevenção especial positiva ou de ressocialização, há que ponderar as circunstâncias de o arguido não ter antecedentes criminais, ter confessado integralmente os factos, se mostrar regularmente integrado do ponto de vista profissional e social e, muito relevantemente, ter assumido voluntariamente o pagamento da dívida, no âmbito de um plano de pagamento acordado com o Instituto credor e que se encontra a cumprir. O que, tudo, permite concluir que interiorizou o real desvalor da sua conduta.
Ora, perante o conjunto dos factos apurados, temos de reconhecer que se justifica aplicar-lhe uma pena de apenas 30 dias de multa, correspondente ao triplo do respectivo limite mínimo, embora não se afaste demasiado deste, por ser a ajustada às particularidades do caso concreto.
E, quanto à taxa diária fixada, não pode deixar de se atender ao que se demonstrou ser a muito débil situação económica do arguido, tema exemplarmente debatido pelo tribunal de 1ª instância, perante a qual, atendendo à latitude em abstracto prevista (entre 1 e 500 euros), a mesma deve situar-se em € 2,50.
Portanto, procede, nesta estrita medida, o recurso interposto.
*
Decisão:
Nos termos expostos, julgando-se parcialmente procedente o recurso, condena-se o arguido J. M. na pena de multa de trinta dias à razão diária de € 2,50 e confirma-se, no demais, a decisão recorrida.
Sem custas.

Guimarães, 5/06/2017

Ausenda Gonçalves

Fátima Furtado
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1 Nada tem a ver com qualquer de tais vícios a adequação aos princípios jurídicos aplicáveis da fundamentação utilizada para julgar o objecto em apreço. Poder-se-á discordar da decisão, como, aliás, o recorrente também demonstra ser o caso, mas não são razões de fundo as que subjazem aos vícios imputados. A arguição de tais vícios não procede quando fundada em divergências com o decidido, sendo distintos do erro de julgamento, que se traduz numa apreciação da questão em desconformidade com a lei.
2 Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2.ª ed., p. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 8ª Edição, pp. 73 e ss.
3 Ac. do STJ de 17-12-2014 (p. 937/12.4JAPRT.P1.S1 - Isabel São Marcos). No mesmo sentido, os Acs. do STJ de 14-03-2013 [(p. 1759/07.0TALRA.C1.S1 - Raul Borges): «Há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, (…) se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados»], de 11/5/1994 [(p. 045987 - Amado Gomes): «verifica-se quando, segundo um raciocínio lógico, é de concluir que a fundamentação justifica precisamente a decisão contrária ou quando, segundo o mesmo raciocínio, se conclui que a decisão não fica suficientemente esclarecida dada a colisão entre os fundamentos invocados»] e de 12/2/1997 [(p. 047001 - Joaquim Dias): «A contradição insanável de fundamentação é um vício ao nível das premissas, determinando a formação defeituosa da conclusão; se as premissas se contradizem, a conclusão logicamente correcta é impossível, não passa de mera falácia. Este vício pode ocorrer por contradição entre factos provados, contradição entre factos provados e não provados, contradição entre factos provados e motivos de facto, contradição entre a indicação das provas e os factos provados e contradição entre a indicação das provas e os factos não provados.»].
4 Cfr. v. g., o Ac. STJ de 2/2/2011 (p. 308/08.7ECLSB.S1 - Maia Costa): «O erro notório na apreciação da prova, vício da decisão previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Porém, o vício, terá de constar do teor da própria decisão de facto, não da motivação dessa decisão, ou da fundamentação de direito».
5 Cfr. Germano Marques da Silva, loc. e p. cit..
6 Cfr. Simas Santos e Leal Henriques, loc. cit., p. p. 80.
7 Cf. neste sentido, a título de ex., o acórdão da RE de 29-10-2013 (P. 933/08.6TALLE.E1 - António Latas.).
8 In “Direito Penal Tributário”, Lisboa, 2009, p. 113
9 AUJ do STJ de 29-04-2015, in DR nº 106, I, de 02-06-2015 (proferido no P. 85/14.2YFLSB e relatado pelo Conselheiro Santos Cabral).
10 Com a redacção conferida pelas Leis 53-A/2006, de 29/12, e 64-A/2008, de 31/12.
11 Tiago Milheiro, “Da Punibilidade nos Crimes de abuso de Confiança Fiscal e de Abuso de Confiança Contra a Segurança Social”, Revista Julgar - nº 11 – 2010, p. 63, onde o mesmo também informa que tal entendimento do legislador se encontra plasmado no Relatório do Orçamento de Estado para 2007, p. 57, consultado em www.portugalgov.pt no qual se escreveu: «A entrega da prestação tributária (retenções de IR/selo e IVA) está actualmente associada à obrigação de apresentação de uma declaração de liquidação/pagamento. A falta de entrega da prestação tributária pode estar associada ao incumprimento declarativo ou decorrer simplesmente da falta de pagamento do imposto liquidado na referida declaração. Quando a não entrega da prestação tributária está associada à falta declarativa existe uma clara intenção de ocultação dos factos tributários à Administração Fiscal. O mesmo não se poderá dizer, quando a existência da dívida é participada à Administração Fiscal através da correspondente declaração, que não vem acompanhada do correspondente meio de pagamento, mas que lhe permite desencadear de imediato o processo de cobrança coerciva. Tratando-se de diferentes condutas, com diferentes consequências na gestão do imposto, devem, portanto, ser valoradas criminalmente de forma diferente. Neste sentido, não deve ser criminalizada a conduta dos sujeitos passivos que, tendo cumprido as suas obrigações declarativas, regularizem a situação tributária em prazo a conceder, evitando-se assim a "proliferação" de inquéritos por crime de abuso de confiança fiscal que, actualmente, acabam por ser arquivados por decisão do Ministério Público na sequência do pagamento do imposto.».
12 In DR I, nº 94, de 15-05-2008 (proferido no P. 07P4080 e relatado pelo Conselheiro Santos Cabral).
13 V. Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Penal”, Tomo I, Coimbra Editora, p. 626.
14 P. 2607/13.7IDPRT.P1, relatado pelo Desembargador António Gomes.
15 Cfr. neste sentido, Nuno Lumbrales, “O abuso de confiança fiscal no regime geral das infracções tributárias”, Fiscalidade, Janeiro/Abril de 2003, n.º 13/14, p. 96.
16 P. 06P1294 - Armindo Monteiro.
17 In DR II de 17/10/2000.
18 Anabela Miranda Rodrigues, “A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade”, Coimbra Editora, p. 570 e s.
19 Ibidem, p. 575.
20 Ibidem, p. 558.
21 Citado Ac. do TC.