Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5468/19.9T8VNF-AJ.G1
Relator: JOSÉ CARLOS PEREIRA DUARTE
Descritores: INSOLVÊNCIA
LIQUIDAÇÃO
PODERES JURISDICIONAIS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
O despacho que, na sequência de requerimento apresentado pelo Sr. AI, no apenso de liquidação - em que requer ao tribunal a notificação de determinados terceiros para procederem à remoção do acervo documental que não seja da sociedade insolvente, bem como dos bens existentes nas instalações da sociedade insolvente que não estejam apreendidos para a massa insolvente e que sejam sua propriedade - defere o requerido, é absolutamente ineficaz por extravasar os poderes jurisdicionais do juiz titular do processo de insolvência.
Decisão Texto Integral:
Tribunal recorrido: J ... do Juízo de Comércio ... - Tribunal Judicial da Comarca ...
Recorrentes:  B..., Lda, Bs... - Instalações Eléctricas e Hidráulicas, Lda., G... - Construções, Lda., Ac... - Importação e Exportação - Importação e Exportação, Lda., AA, BB e CC         
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ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

1. Relatório

Por sentença de 27/01/2020 foi declara a insolvência da A..., SA, com sede no Parque Industrial ..., 2ª fase, Freguesia ..., ... e ..., ..., da qual foi interposto recurso pela devedora, recurso esse que constitui o apenso B e que veio a ser declarado extinto por desistência da recorrente, homologada por decisão de 14/05/2020, como consta do apenso B.
           
No apenso de liquidação - L – a então Sr.ª Administradora de Insolvência, DD, por requerimento de 21/04/2021, veio informar, além do mais, que:

“Na diligência de encerramento de estabelecimento da insolvente (…), foi a administradora da insolvência confrontada pelo administrador da insolvente, Sr. BB, que nas fracções na posse ocupadas pela insolvente, onde se encontra instalada a sede da mesma e seus escritórios, se encontram também instaladas as sedes e/ou escritórios de outras empresas detidas e administradas pelo supra identificado administrador e por seus familiares, nomeadamente:
- B..., Ldª;
- Bs..., Ldª;
- G... - Construções, Ldª;
- N... - Transporte e Aluguer de Equipamentos Construção, Ldª;
- W... - Investimentos Imobiliários, Ldª

Tendo sido inclusivamente sido exibido á (…) Administradora de insolvência, patas de contabilidade e outros livros comerciais destas empresas que ali se encontram guardadas.
E, de acordo com as informações prestadas no local supra referido BB, alguns dos bens que se encontram nas fracções na posse e ocupadas pela insolvente são propriedade dessas empresas e dele próprio.”
           
A Mmª Juiz ordenou fosse junta aos autos certidão comercial das sociedades identificadas, o que foi feito a 28/04/2021, resultando de tais certidões que a sede inscrita no registo comercial é, respectivamente:

- B..., LDA - Parque Industrial ..., 2ª fase ..., Freguesia ..., ... e ..., ...;
- Bs... - INSTALAÇÕES ELÉTRICAS E HIDRÁULICAS, LDA - Rua ... - ..., ... e ..., ...;
- G... - Construções, LDA - ..., Freguesia ..., ... e ..., ...;
- N... - INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS, LDA - Rua ..., Freguesia ..., ... e ..., ...;
- AC... - TRANSPORTES E ALUGUER DE EQUIPAMENTOS DE CONSTRUÇÃO LDA - Parque Industrial ..., 2ª fase ..., Freguesia ..., ... e ..., ...;
 - W... - Investimentos Imobiliários S.A - Rua ...
Freguesia ..., ... e ..., ....
           
A 29/04/2021 a Mmª juiz proferiu o seguinte despacho:

“Fls 3 e ss: Visto. Informe a sra administradora que das sociedades que refere a fls 5, apenas a A...c - Transportes e Aluguer de Equipamentos de Construção, Lda, tem a mesma sede que a insolvente e poderá exigir acesso às instalações.
(…)”
*
A 04/04/2022 o então Sr. Administrador EE veio apresentar requerimento em que, depois de fazer referência ao requerimento da anterior Srª Administradora apresentado a 21/04/2021 e supra referido, veio dizer, em síntese, que:

- desde pelo menos o dia 5 de Julho de 2021 que o estabelecimento da sociedade insolvente está integralmente fechado, e o acesso de terceiros ao mesmo só é feito com autorização e acompanhamento do Sr. Administrador;
- nenhuma das sociedades referidas requereu no processo o acesso e/ou permanência à sede da sociedade insolvente;
- está-se perante sociedades que só existem no plano formal, que não estarão a exercer o seu escopo social, ou se o estão a fazer, têm o seu estabelecimento em outro local que não a sua sede social;
- a morada Parque Industrial ..., 2ª Fase, ..., ... ... tem hoje a designação Rua ..., ... ..., ...;
- a B..., Lda tem o seu estabelecimento na Rua ..., Parque Industrial ... – ... - ... ..., lugar onde efectivamente exerce a sua actividade; o último ano em que as contas foram depositadas na CRC é 2017;
- a Bs... - Instalações Eléctricas e Hidráulicas, Lda. - o último ano em que as contas foram depositadas na CRC é 2016
- a G... - Construções, Lda. - o último ano em que as contas foram depositadas na CRC é 2015;
- a N... - INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS, Lda. - o último ano em que as contas foram depositadas na CRC é 2016;
- a  A...c - Transportes e Aluguer de Equipamentos de Construção, Lda.  - o último ano em que as contas foram depositadas na CRC é 2013 e a sociedade encontra-se com a actividade cessada para efeitos fiscais, em sede de IVA e IRC, desde 20 de Junho de 2016;
- a W... - Investimentos Imobiliários, S.A. – o último ano das contas depositadas na conservatória do registo comercial: 2016
- a Ac... - Importação e Exportação - Importação e Exportação, Lda. – o ultimo ano das contas depositadas na conservatória do registo comercial: 2015
- as fracções ..., ..., ..., ... e ... do prédio urbano descrito na CRP ... com o nº ...62 da freguesia ... e que integram o estabelecimento da sociedade insolvente não são propriedade desta, apesar de estarem na sua posse e de pretender ver judicialmente reconhecido um direito de retenção associado a um alegado direito de crédito.
- estas fracções não estão na posse de nenhuma das sociedades supra referidas, pressupondo que utilizavam tais fracções por conveniência e devido à coincidência de gerentes / administradores e/ou sócios/accionistas;
- a massa insolvente tem todo o interesse em que o acervo documental que não seja da sociedade insolvente, bem como os bens lá existentes que não estejam apreendidos para a massa insolvente - viaturas que não são propriedade da insolvente - sejam retirados do estabelecimento da sociedade insolvente, uma vez que a sua permanência no local cria e criará grandes constrangimentos para o normal desenrolar da liquidação do activo, nomeadamente no caso de ser necessário entregar o espaço em que se situa o estabelecimento;
- o facto de bens de terceiros estarem depositados no estabelecimento da sociedade insolvente não pode consubstanciar em (mais) um obstáculo ao normal desenrolar do processo de insolvência, em especial a liquidação do activo;
- é necessário estabelecer um prazo, que sugere seja de 30 dias, para que as referidas sociedades tenham a possibilidade de retirar do estabelecimento da sociedade insolvente os bens que não estejam apreendidos para a massa insolvente e que sejam sua propriedade bem como os seus documentos;
- as sociedades referidas intentaram pedidos de separação de bens por apenso ao processo de insolvência: B..., Lda – Apenso X; Bs... - Instalações Eléctricas e Hidráulicas, Lda. – Apenso AF; G... - Construções, Lda. – Apenso W; A...c - Transportes e Aluguer de Equipamentos de Construção, Lda. – Apenso AB e Ac... - Importação e Exportação - Importação e Exportação, Lda. – Apenso Z
- só duas dessas entidades é que, até ao momento, não tiveram intervenção neste processo:  N... - INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS, Lda e W... - Investimentos Imobiliários, S.A.
- há a possibilidade de o próprio administrador da sociedade insolvente – BB – e os seus familiares mais directos – terem bens próprios no estabelecimento da sociedade, estando também estes representados no processo de insolvência por mandatário judicial, a saber:
a. AA – Apenso AA
b. BB – Apenso AC
c. CC – Apenso AD
           
E terminou requerendo a notificação das entidades a seguir indicadas para, nas condições que indica, procederem à remoção do acervo documental que não seja da sociedade insolvente, bem como dos bens existentes nas instalações da sociedade insolvente que não estejam apreendidos para a massa insolvente e que sejam sua propriedade:
a. B..., Lda
b. Bs... - Instalações Eléctricas e Hidráulicas, Lda.
c. G... - Construções, Lda.
d. A...c - Transportes e Aluguer de Equipamentos de Construção, Lda.
e. Ac... - Importação e Exportação - Importação e Exportação, Lda.
f. N... - INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS, Lda g. W... - Investimentos Imobiliários, S.A.
h. BB
i. FF
j. AA
k. BB
l. CC

A 04/04/2022 foi proferido o seguinte despacho:

“ Req de 4-4-2022: Visto. Notifique as sociedades requeridas e os seus legais representantes nos termos e para os efeitos requeridos de em 30 dias, a começar a 2-5-2022, removerem o acervo documental e bens que lhes pertençam das instalações da insolvente, desde que não estejam apreendidos para a massa.”
           
Todas as referidas entidades foram notificadas a 08/04/2022, sendo as das alínea a) a h) na pessoa do seu Ilustre mandatário ( refª ...15), a da alínea k), na pessoa do seu Ilustre Mandatário (refª ...61), a pessoa da alínea j) pessoalmente (refª ...98),  a pessoa referida na alínea h) pessoalmente ( refª ...11), a da alínea k) pessoalmente (refª ...87), a da alínea l) pessoalmente (refª ...24) e a da alínea i) pessoalmente ( refª ...24).
           
A B..., Lda, a Bs... - Instalações Eléctricas e Hidráulicas, Lda., a G... - Construções, Lda., a Ac... - Importação e Exportação - Importação e Exportação, Lda., AA, BB e CC vieram interpor recurso do despacho proferido a 04/04/2022, pedindo seja o mesmo declarado nulo, tendo concluído as suas alegações com as seguintes conclusões:
I- O Tribunal, na sequência de um requerimento que lhe foi dirigido pelo  Exmo. Sr. AI, proferiu, com data de 7/4/2022, o seguinte despacho:
“Req de 4/4/2022: Visto. Notifique as sociedades requeridas e os seus legais representantes nos termos e para os efeitos requeridos de em 30 dias, a começar em 2/5/2022, removerem o acervo documental e bens que lhes pertençam das instalações da insolvente, desde que não estejam apreendidos para a massa.”.
II- Sucede que, o referido despacho é, salvo o devido respeito, nulo por duas ordens de razão a saber: a) não especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; b) o juiz conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento.
III- Nos termos do artº154º, nº1 do C.P.C., as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.
IV- Por seu lado, dispõe o nº1, do artº205º da CRP, que “as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
V- A fundamentação das decisões deve apresentar uma densidade suficiente para que se possam dar por satisfeitos os objectivos constitucionais (artº205º, nº1 da CRP) e legais (artº154º do C.P.C.): permitir aos destinatários exercitar com eficácia os meios legais de ração ao seu dispor e assegurar a transparência e a reflexão decisória, convencendo, e não apenas impondo.
VI- Sucede que, ao contrário do que a lei prescreve, a decisão recorrida não se encontra fundamentada, ainda que mínima e sucintamente, nem de facto nem de direito,
VII- Razão pela qual é nula, nos termos do disposto nos artºs 205º, nº1 da CRP e 154º, 615º, nº1, al.b) e 613º, nº3 todos do C.P.C.,
VIII- Nulidade essa que aqui se invoca para todos os devidos e legais efeitos.
IX- Por outro lado, mas concomitantemente, a referida decisão é igualmente nula já que o juiz conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento – artº615º, nº1, al.d) do C.P.C..
X- Por um lado, o caso sub judice não é um dos casos excepcionais previstos na lei e, por outro lado,
XI- A decisão foi proferida sem que os respetivos visados, nomeadamente os aqui Recorrentes fossem previamente ouvidos.
XII- Além disso, nos termos do preceituado no artº3º, nº3 do C.P.C., o juiz deve observar e fazer cumprir ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas de pronunciarem.
XIII- Ora, o caso sub judice não configura uma situação de manifesta desnecessidade, pelo contrário.
XIV- A lei visa a proibição das “decisões surpresa”, impedindo, dessa forma, que o juiz decida questões de direito ou de facto sem que as partes tenham a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
XV- Por isso mesmo, não tendo a decisão recorrida sido precedida da audição dos visados, sendo que a omissão dessa formalidade pode, como é óbvio, influir no exame ou na decisão da causa, é a mesma nula nos termos do disposto nos artºs 3º, nºs 2 e 3; 195º, nº1; 613º, nº3 e 615º, nº1, al.d) todos do C.P.C.,
XVI- Nulidade essa que aqui também se invoca para todos os devidos e legais efeitos.

Não consta dos autos tenham sido apresentadas contra-alegações.

A Mmª Juiz pronunciou-se quanto à impetrada nulidade dizendo:
“ Não se vislumbra qualquer nulidade no despacho, que é de cristalina clareza. Qualquer bem que não esteja apreendido para a massa tem e deve ser entregue ao respectivo proprietário pois a massa não deve ser onerada com a sua guarda e manutenção”.

Vislumbrando-se que o despacho recorrido excede os poderes jurisdicionais do juiz titular no âmbito do apenso de liquidação e, como tal, não se pode manter, ao abrigo do disposto nos art.ºs 652º n.º 1 e art.º 3º n.º 3, ambos do CPC, foi ordenado fossem ouvidas as partes, incluindo o Sr. AI, em 10 dias quanto á possibilidade de, face à factualidade referida no Relatório supra, esta Relação conhecer oficiosamente da referida questão.

Pronunciou-se apenas a S... Engenharia, SA dizendo, em síntese, que:
- tendo em consideração o disposto nos artigos 128º, n.º 1, alínea a) da LOSJ e 91º n.º 1 do CPC, o Tribunal a quo era e é competente para conhecer do pedido formulado nos autos pelo administrador da insolvência;
- a questão suscitada nos autos não se reconduz a uma questão de competência decisória, que possa ser conhecida oficiosamente pela Relação, mas a erro de julgamento;
- para que a Relação a pudesse conhecer, a insolvente deveria tê-la suscitado em sede de recurso, o que não se verificou;
- caso a Relação decida conhecer a questão identificada no despacho, a decisão que vier a ser proferida estará ferida de nulidade nos termos do disposto no 615º n.º 1 alínea d), aplicável ex vi 666º n.º 1, ambos do CPC;
- caso assim não se entenda, nos termos do artº 58º do CIRE o administrador da insolvência exerce a sua atividade sob a fiscalização do juiz, que pode, a todo o tempo, exigir-lhe informações sobre quaisquer assuntos ou a apresentação de um relatório da atividade desenvolvida e do estado da administração e da liquidação;
- o ponto 11 do preâmbulo do Decreto-Lei nº. 53/2004, refere que a desjudicialização não envolve a diminuição dos poderes que ao juiz devem caber no âmbito da sua competência própria, pelo que não se pode concluir que, no âmbito do incidente de liquidação os poderes cometidos ao Tribunal se encontram limitados à apreciação do cumprimento da legalidade e, concretamente, a violação de normas procedimentais;
- podia o Tribunal a quo – tal como se verificou – determinar a notificação dos terceiros para remoção dos bens de sua propriedade que ainda se encontrem armazenados no estabelecimento comercial da Insolvente;
- ainda que o administrador de insolvência não tivesse pedido de notificação de terceiros e, por sua iniciativa, tivesse procedido à notificação das sociedades em causa, sempre o Tribunal a quo poderia ser chamado a apreciar – a posteriori – a  legalidade da atuação do administrador da insolvência.
- cita ainda o disposto no art.º 55º nº 1, alíneas a) e b), 46º, 47º, 51º, n.º 1, 172º, n.º 1, todos do CIRE, para dizer que incumbe ao administrador da insolvência pugnar pelo não agravamento da situação financeira da massa insolvente, pois só assim poderá dar integral cumprimento ao objetivo primordial do processo de insolvência patente no artº. 1º. do CIRE e que se reconduz à satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência ou, quando tal não se afigure possível, pela liquidação do património do devedor insolvente.
- o facto que levou o administrador da insolvência a formular o pedido de notificação de terceiros para remoção dos bens de sua titularidade que se encontrem depositados no estabelecimento comercial da Insolvente foi a pendência do Procº nº 622/19...., a correr termos no Juízo Central Cível ... – Juiz ..., intentada pela requerente em que pede, em essência, lhe seja reconhecida e declarada a propriedade e posse da Requerente sobre o prédio que identifica, seja reconhecida e declarada a qualidade de locatária financeira e de possuidora do prédio que também identifica, a condenação da Insolvente a, por si ou por terceiro, a abster-se de praticar quaisquer atos que perturbem ou impeçam a posse, a propriedade ou a locação financeira da Requerente e a pagar uma sanção pecuniária compulsória;
- caso a acção venha a ser julgada procedente terá o administrador da insolvência de diligenciar não só pela entrega das frações, mas também pela remoção dos bens existentes nos imóveis da Requerente, sob pena de a Massa Insolvente se ver obrigada ao pagamento da sanção pecuniária compulsória supra mencionada, o que interferia com o ressarcimento dos créditos sobre a insolvência definitivamente reconhecidos e graduados nos autos.;
- a Massa Insolvente apreendeu a favor da massa insolvente um direito de crédito litigioso sobre a Requerente que alega ser devido pela construção  do edifício em regime de propriedade horizontal, arrogando-se ainda titular de um  direito de retenção sobre as frações autónomas onde se encontram depositados os  bens cuja remoção o administrador da insolvência agora pretende.

E concluiu dizendo que esta Relação deverá pronunciar-se única e exclusivamente, sobre as questões suscitadas nas alegações de recurso apresentadas pela Recorrente.

2. Questões a apreciar

O objecto do recurso, é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (art.ºs 608º n.º 2, 609º, 635º n.º 4, 637º n.º 2 e 639º n.ºs 1 e 2 do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.
Pelas razões que adiante melhor serão explicitadas, constitui questão de conhecimento oficioso saber se o despacho recorrido excede os poderes jurisdicionais do juiz titular no âmbito do apenso de liquidação e, como tal, não se pode manter.

3. Fundamentação de facto

As incidências fáctico-processuais que relevantes para a decisão são as contantes do antecedente relatório que, por brevidade, se dão aqui por reproduzidas.

4. Direito

4.1. Âmbito dos poderes do juiz no incidente de liquidação / Competência decisória

Dispõe o art.º 1º do CIRE que o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.

E na perspectiva da execução universal, o art.º 36º n.º 1, alínea g) do CIRE dispõe que, na sentença que declarar a insolvência, o juiz decreta a apreensão, para imediata entrega ao administrador da insolvência, de todos os bens do devedor.
E o art.º 149º n.º 1 dispõe que proferida a sentença declaratória de insolvência, procede-se à imediata apreensão de todos os bens integrantes da massa insolvente.
E, finalmente, no que releva o art.º 150º n.º 1 do CIRE dispõe que o poder de apreensão resulta da declaração de insolvência, devendo o administrador da insolvência diligenciar, no sentido de os bens lhe serem imediatamente entregues, para que deles fique depositário, regendo-se o depósito pelas normas gerais e, em especial, pelas que disciplinam o depósito judicial de bens penhorados.

No que à liquidação diz respeito, o n.º 1 do art.º 158º do CIRE dispõe que Transitada em julgado a sentença declaratória da insolvência e realizada a assembleia de apreciação do relatório, o administrador da insolvência procede com prontidão à venda de todos os bens apreendidos para a massa insolvente, independentemente da verificação do passivo, na medida em que a tanto se não oponham as deliberações tomadas pelos credores na referida assembleia, apresentando nos autos, para o efeito, no prazo de 10 dias a contar da data de realização da assembleia de apreciação do relatório, um plano de liquidação de venda dos bens, contendo metas temporalmente definidas e a enunciação das diligências concretas a encetar.

O processo de insolvência, muito embora seja um processo judicial e, nessa medida, haja sempre julgar á intervenção de um juiz, havendo também lugar á intervenção do Ministério Público, prevê outros intervenientes, que o CIRE designa de “órgãos de insolvência”, concretamente o Administrador de insolvência, Comissão de credores e Assembleia de Credores e que podem ser considerados intervenientes lato sensu (Carvalho Fernandes e João Labareda, in CIRE Anotado, 3ª edição, pág. 312), aos quais são atribuídas diversas competências.

O modelo de distribuição de competências pelos referidos intervenientes no processo de insolvência adoptado pelo CIRE, traduz uma intenção de desjudicialização do referido processo.

Assim, consta do ponto 10) do Preâmbulo do CIRE (sublinhado nosso):
“A afirmação da supremacia dos credores no processo de insolvência é acompanhada da intensificação da desjudicialização do processo.
Por toda a parte se reconhece a indispensabilidade da intervenção do juiz no processo concursal, tendo fracassado os intentos de o desjudicializar por completo. Tal indispensabilidade é compatível, todavia, com a redução da intervenção do juiz ao que estritamente releva do exercício da função jurisdicional, permitindo a atribuição da competência para tudo o que com ela não colida aos demais sujeitos processuais.
(…)
Ainda na vertente da desjudicialização, há também que mencionar o desaparecimento da possibilidade de impugnar junto do juiz tanto as deliberações da comissão de credores (que podem, não obstante, ser revogadas pela assembleia de credores), como os actos do administrador da insolvência (sem prejuízo dos poderes de fiscalização e de destituição por justa causa).”

Neste sentido afirma-se no Ac. do STJ de 04/04/2017, processo 1182/14.0T2AVR-H.P1, consultável in www.dgsi.pt/jstj, que o “CIRE é norteado pela desjudicialização, ampla autonomia dos credores, latos poderes do administrador, mormente, no que respeita à liquidação do activo do insolvente. “

E também Catarina Serra, in Lições de Direito de Insolvência, 2ª edição, pág. 74 refere:
“Quanto ao juiz e às funções que desempenha o Código da Insolvência e Recuperação de Empresas adotou um novo entendimento. Deu, numa palavra, inicio ao processo de desjudicialização. O juiz limita-se a intervir nas fases verdadeiramente jurisdicionais, ou seja, nas fases da declaração de insolvência, de homologação do plano de insolvência e da verificação e graduação de créditos.”

E acrescenta, na pág. 75:
“ Uma vez desvalorizado o papel do juiz no processo de insolvência, quem tem o poder decisivo são os credores. Não obstante isto, o administrador da insolvência é, também um órgão determinante para o curso do processo.”

O Administrador de insolvência é um dos órgãos da insolvência, cujo estatuto está plasmado na Secção I, do Capítulo II e que compreende os artigos 52º a 66º do CIRE.

Desse estatuto relevam as suas funções, plasmadas no art.º 55º e concretamente, a alínea a) do n.º 1, donde resulta que cabe ao administrador da insolvência, com a cooperação e sob a fiscalização da comissão de credores, se existir, “Preparar o pagamento das dívidas do insolvente à custa das quantias em dinheiro existentes na massa insolvente, designadamente das que constituem produto da alienação, que lhe incumbe promover, dos bens que a integram.” ou, dito de forma mais singela, promover a venda dos bens do insolvente, tendo em vista o pagamento das dívidas do insolvente.

A este respeito referem Carvalho Fernandes e João Labareda, in CIRE Anotado, 3ª edição, pág. 332:
“Os poderes do Administrador têm em vista a satisfação de interesses que não são próprios: corresponde-lhe, por isso, a natureza de verdadeiros poderes funcionais, que ele não só pode, como, sobretudo, deve desempenhar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado (cfr. artigo 59º, in fine). Mesmo quando a lei lhe atribui a possibilidade de opção entre várias alternativas, o administrador deve agir de acordo com aquela que, segundo as circunstâncias concretas e ao olhar de um gestor criterioso e ordenado, se evidenciar como a mais favorável e proveitosa para a melhor tutela dos interesses dos credores. É a esta luz que têm sempre que ser avaliadas as faculdades múltiplas que cabem ao administrador, bem como os deveres que sobre ele impendem. E a essa mesma luz será apreciado o seu procedimento e, correspondentemente, medida a sua responsabilidade.”

Por outro lado, no exercício das suas funções, além de estar sujeito à fiscalização da comissão de credores (art.º 55º n.ºs 1 e 5 e 68º do CIRE), o administrador está também sujeito à fiscalização do juiz do processo, dispondo o art.º 58º do CIRE que o administrador de insolvência exerce a sua actividade sob a fiscalização do juiz, que pode, a todo o tempo, exigir-lhe informações sobre quaisquer assuntos ou a apresentação de um relatório da actividade desenvolvida e do estado da administração e da liquidação.

Mas o poder de fiscalização não se confunde com um poder de orientação ou direcção (pelo que nesta parte não se acompanha, com todo o respeito, o Ac. da RL de 25/06/2015, processo 96/14.8T8BRR-D.L1-6, citado pela S... Engenharia) nem de substituição do administrador pelo juiz.

A este respeito referem Carvalho Fernandes e João Labareda, in ob. cit., pág. 340-341 (sublinhado nosso):
“Com efeito, no art.º 141º do CPEREF cometia-se ao liquidatário judicial a administração dos bens componentes da massa falida, mas ela era sujeita à direcção do juiz.
Ora, este poder directivo do juiz desapareceu com o actual Código, atribuindo-se, em alternativa, ao tribunal competência fiscalizadora de toda a actividade do administrador.
(…)
Este ajustamento estratégico da posição do juiz tem a virtualidade de acentuar dois valores fundamentais do processo de insolvência, que se haviam desenhado com a publicação do CPEREF.
Um, o da crescente privatização do processo, significando isso que é deixada aos credores uma larga margem de intervenção para melhor tutela dos seus interesses que, de resto, constitui a única finalidade expressamente assumida pela lei logo em sede do art.º 1º do Código.(…)
Outro vetor complementar e não menos importante é o da crescente confinação do papel do juiz ao garante da legalidade, aí em todos os aspectos em que ela se projecta.
(…)
Mas o facto de não lhe caber a direcção da administração tem como reflexo fundamental a circunstância de, fora dos poderes que lhe estão concretamente assinados, o juiz não dispor da faculdade de instruir o administrador sobre o modo de proceder, não poder impedi-lo de actuar, nem, por contrapartida, o administrador estar sujeito a cumprir indicações que, nesses domínios, o juiz seja tentado a dar-lhe.”

Mas além das normas do CIRE há que considerar as normas da Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro, que estabelece o estatuto do administrador judicial, dispondo o n.º 1 do art,º 2º que o administrador judicial é a pessoa incumbida da (…) gestão ou liquidação da massa insolvente no âmbito do processo de insolvência, sendo competente para a realização de todos os atos que lhe são cometidos pelo presente estatuto e pela lei e, nos termos do art.º 12º n.º 1, os administradores judiciais devem, no exercício das suas funções e fora delas, considerar-se servidores da justiça e do direito e, nos termos do n.º 2,, no exercício das suas funções, devem atuar com absoluta independência e isenção, estando-lhes vedada a prática de quaisquer atos que, para seu benefício ou de terceiros, possam pôr em crise, consoante os casos, a recuperação do devedor, ou, não sendo esta viável, a sua liquidação, devendo orientar sempre a sua conduta para a maximização da satisfação dos interesses dos credores em cada um dos processos que lhes sejam confiados.

Tendo em consideração tudo o exposto impõe-se concluir que no âmbito da liquidação os poderes cometidos ao tribunal estão limitados à apreciação do cumprimento da legalidade e, concretamente, a violação de normas procedimentais.

Concretamente, no âmbito da liquidação e no enquadramento de que o juiz é o garante da legalidade dos actos relacionados com a venda, a jurisprudência mais recente vem admitindo a possibilidade de ser decretada a anulação da venda, à luz do disposto no n.º 1 do art.º 195º do CPC, aplicável ex vi art.º 17º do CIRE, se forem violadas regras procedimentais.
A titulo exemplificativo, cfr. o Ac. do STJ de 04/04/2017, processo 1182/14.0T2AVR-H.P1 e o Ac. do STJ de 15/02/2018, processo 4488/11.6TBLRA-M.C1.S1, ambos consultáveis in www.dgsi.pt/jstj.

Relativamente ao Ac. do STJ citado em último lugar refere-se:
“Na verdade, o que o acórdão do STJ de 04.04.2017, prolatado no processo n.º 1182/14.0T2AVR-H.P1, decidiu foi que o disposto no artigo 163º do CIRE, na interpretação que não permite anular a venda, com o fundamento de que tal excederia os poderes jurisdicionais do juiz titular do processo de insolvência em relação aos actos praticados na liquidação do activo, viola o artigo 20º, nºs 1 e 5, da Constituição da República, na medida em que não assegura, imediatamente no processo, a tutela efectiva para o direito infringido, desconsiderando a possibilidade de pronta intervenção do julgador.
(…)
É, de facto, intolerável a protecção da eficácia dos actos praticados pelo administrador da insolvência, mesmo que produzidos com total desrespeito pelas normas que tutelam as operações da fase de liquidação, sendo indispensável e urgente, a nosso ver, uma intervenção legislativa que corrija este estado de coisas. Na actual situação, o administrador da insolvência pode atropelar as disposições legais, omitir procedimentos essenciais, fazer e desfazer a seu critério, deixando aos que se mostrem lesados com a sua actuação, a possibilidade, no horizonte, de moverem uma acção declarativa em que lhe peçam responsabilidades.
A celeridade e a desjudicialização do processo de insolvência não podem ter esse preço. Como se diz no acórdão deste STJ e desta secção, a que fizemos referência, “a celeridade, a desburocratização, a desjudicialização e os amplos poderes do administrador da insolvência, no incidente de liquidação da massa insolvente, não devem ser interpretados de forma a excluir o papel imparcial e soberano do juiz, relegando-o para um papel secundário de mero controlo, ou no limite, nem sequer lhe consentindo que possa apreciar a irregularidade do negócio em que interveio o administrador da insolvência”. Aceitar tal interpretação seria o mesmo que desistir do princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva para o direito infringido, desconsiderando a possibilidade de imediata actuação do julgador. “

Destarte, o que este Ac. afirma, é apenas e tão só, a possibilidade de ser decretada a anulação da venda, à luz do disposto no n.º 1 do art.º 195º do CPC, aplicável ex vi art.º 17º do CIRE, se forem violadas regras procedimentais e não que o juiz tenha poderes latos de intervenção na liquidação e muito menos que os poderes jurisdicionais do juiz titular do processo de insolvência não têm quaisquer limites.

Ao invés, o administrador judicial tem, no âmbito da insolvência, o poder de praticar todos os actos necessários à gestão da massa insolvente.

Assim, do confronto entre as funções do juiz e a as funções dos órgãos da insolvência, nomeadamente do Administrador de Insolvência, resulta que a intervenção do juiz no processo de insolvência em geral e, em particular, no incidente de liquidação, está limitada ao que estritamente releva do exercício da função jurisdicional e, concretamente, a determinados âmbitos, domínios, fases e a determinados actos.

Não tem aqui relevância o disposto no art.º 128º n.º 1 alínea a) da LOSJ que dispõe que compete aos juízos de comércio preparar e julgar: a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização, sendo que o n.º 3 do mesmo normativo dispõe que tal competência abrange os respetivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões.
E isto porque este normativo estabelece a competência material do juízo de comércio, mas não estabelece o âmbito, domínio ou fases do processo de insolvência ou dos seus apensos concreto em que há lugar a intervenção jurisdicional. Tal apenas resulta do CIRE.

Também não está em causa a aplicação do disposto no art.º 91º, n.º 1 do CPC, porque a insolvência constitui um processo especial, que se rege por normas próprias, nomeadamente as que estabelecem os limites da intervenção jurisdicional que o legislador do CIRE quis prosseguir.

Também não estamos perante um erro de julgamento. Este pressupõe que o tribunal intervém num âmbito do processo que lhe é licito intervir, mas decide erradamente os factos (erro de julgamento de facto) ou o direito substantivo (interpreta mal o direito aplicável ou aplica norma não aplicável). O erro de julgamento é um vicio intrínseco á decisão.
Isto não tem qualquer relação com a questão das atribuições do juiz no processo de insolvência e apensos.
Se o juiz intervém num domínio, âmbito ou fase em que o CIRE não prevê a sua intervenção, extravasa das atribuições que estão cometidas por lei.

4.2. Do conhecimento ofícioso da referida questão

Como refere Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 6ª edição, pág. 137, “uma vez interposto recurso, é lícito ao tribunal ad quem conhecer oficiosamente de determinadas questões relativas ao segmento decisório sob apreciação, sejam de natureza processual (…) sejam de natureza substantiva, desde que estejam acessíveis os necessários elementos de facto e seja respeitado o contraditório, tendo em vista evitar decisões surpresa, nos termos do art.º 3º n.º 3.”.
E no mesmo sentido, a pág. 141 refere: “Do mesmo modo, para a decisão do recurso, pode o tribunal apreciar tais questões [de conhecimento oficioso] ex officio, ainda que sobre as mesmas não tenha existido anterior pronúncia ou não tenham sido suscitadas pelo recorrente ou pelo recorrido, embora deva acutelar o principio do contraditório, a fim de evitar decisões surpresa ( art.º 3º n.º 3).
E na nota (219), pág. 137 refere: “A regra que impede o tribunal de recurso de conhecer questões novas não vale quanto às questões de conhecimento oficioso, de que podem conhecer tanto o tribunal a quo como o tribunal ad quem, ainda que as partes as não tenham suscitado.”

A questão de saber se o juiz da insolvência pode apreciar e decidir determinada questão, implica saber se essa questão integra algum dos domínios, âmbitos, fases ou actos em que o juiz deve intervir ou praticar no processo de insolvência, implica saber se a intervenção reclamada tem efectivo cariz jurisdicional ou cabe, antes, nas atribuições de algum dos órgãos da insolvência, é matéria de conhecimento oficioso da Relação, na medida em que:

a) é aferida por critérios legais indisponíveis – a intervenção do juiz no processo de insolvência e apensos está definida na lei e não está na disponibilidade dos intervenientes processuais, nomeadamente do juiz;
b) é questão que o próprio tribunal a quo podia suscitar oficiosamente, ou seja, o tribunal a quo pode (e deve) decidir não conhecer dada questão, se a mesma extravasar os limites das suas atribuições (apreciar e decidir questões de cariz estritamente jurisdicional e que, por isso, não estão cometidas aos órgãos da insolvência);
c) é pressuposto da tomada de decisão, inclusive pela Relação, não tendo qualquer cabimento este tribunal apreciar a impugnação de uma dada decisão, quando se verifica que a mesma não cabe no âmbito das atribuições cometidas por lei ao tribunal recorrido.

E tratando-se, como se trata de questão de conhecimento oficioso pela Relação, a mesma pode e deve conhecê-la, sem que haja qualquer nulidade por excesso de pronúncia. ao contrário da advertência dirigida a este tribunal pela S... Engenharia, SA.
                                                                                      
4.3. Consequências da referida decisão

A lei não refere directamente a consequência para uma decisão que extravasa as atribuições cometidas ao juiz no processo de insolvência e apensos, sendo que:

a) não quadra a absolvição da instância por incompetência absoluta, porque não está em causa uma estrita questão de competência material, mas de limites dos poderes jurisdicionais definidos por lei;
b) não integra as nulidades da sentença porque não estamos perante um vicio intrínseco á decisão.
Como refere  Miguel Teixeira de Sousa, in O que é uma nulidade processual? in Blog do IPPC, 18-04-2018, disponível em https://blogippc.blogspot.com/search?q=nulidade+processual, as nulidades da sentença e dos acórdãos referem-se ao conteúdo destes actos, ou seja, estas decisões não têm o conteúdo que deviam ter ou têm um conteúdo que não podiam ter.
Nomeadamente, não é um problema de excesso de pronúncia ( art.º 615º n.º 1, alínea d)), porque esta tem em vista questões que estando, em geral, no âmbito dos poderes do juiz, em concreto não pode conhecer delas por não terem sido suscitadas ou não terem sido suscitadas no momento oportuno, enquanto na situação em referência nos autos está em causa a violação dos limites dos poderes atribuídos ao juiz no processo de insolvência, realidade que é prévia á decisão.
c) não quadra ás nulidades processuais – prática de um acto que a lei não admite – art.º 195º n.º 1 do CPC – porque não está em causa o itinerário processual, a prática de um acto que o itinerário processual previsto na  lei não admite; está em causa uma realidade diversa: a intervenção do juiz num âmbito, domínio, fase, que extravasa as atribuições que lhe estão cometidas pela lei.

A decisão que extravasa os limites dos poderes atribuídos ao juiz pela lei tem semelhanças com a situação em que o juiz viola a regra do esgotamento do poder jurisdicional e para a qual a lei também não prevê directamente uma consequência.

O Professor Alberto dos Reis estudou a questão dos vícios da sentença, no seu Código de Processo Civil Anotado, Volume V, pág. 115 e segs., ali assinalando três situações: a sentença inexistente, a sentença nula, a sentença injusta.

Quanto á última, aqui irrelevante, é a sentença viciada por erro de julgamento e o meio de reacção adequado é a interposição de recurso.

Quanto á sentença inexistente, assinalava que a lei de então não a referia (o mesmo sucedendo hoje) e abarcava as situações em que o acto produzido não tinha o mínimo de requisitos essenciais para que possa ter a eficácia jurídica própria duma sentença, integrando em tal qualificação as seguintes situações (aut. e ob. cit. pág. 119 e segs): a) é produzido um acto com a forma externa de sentença, mas por alguém que não está investido do poder jurisdicional, seja pelo Estado, seja pelas partes, no domínio da arbitragem; b) a sentença tem como partes pessoas imaginárias; c) não há decisão, no sentido de que não há comando.

Todas as situações em que a sentença reúne os elementos essenciais, mas está inquinada por vícios de formação, deveriam cair na nulidade absoluta.

Na jurisprudência e no sentido de que o vício da decisão proferida depois de esgotado o poder jurisdicional se trata de uma situação de inexistência, o Ac. do STJ de 06/05/2010, processo 4670/2000.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstsj, dizendo:
“O Prof. Paulo Cunha dava vários exemplos de casos de inexistência jurídica de sentenças, sendo um deles, quanto ao que ora nos interessa, o de a sentença ser proferida por quem não tem poder jurisdicional para o fazer e o de, já depois de lavrada a sentença no processo, o Juiz lavrar segunda sentença (Paulo Cunha, Da Marcha do Processo: Processo Comum De Declaração, Tomo II, 2ª edição, pg. 360).        

No Ac. da RC de 20/10/2015, processo 231514/11.3YIPRT.C1, consultável in www.dgsi.pt/jtrc, considerou-se que:
De todo o modo, e em conclusão, seja pela via da inexistência jurídica, seja por via da mera ineficácia, a decisão modificativa proferida em violação do princípio da extinção do poder jurisdicional do juiz consagrado no artigo 613.º do CPC e ainda não transitada não produz quaisquer efeitos jurídicos.

Uma decisão que viola a regra do esgotamento do poder jurisdicional, não pode produzir quaisquer efeitos, é absolutamente ineficaz.

Tendo em consideração que a decisão que extravasa os limites dos poderes atribuídos ao juiz pela lei tem semelhanças com a situação em que o juiz viola a regra do esgotamento do poder jurisdicional, na medida em que em qualquer uma destas situações o juiz não tem poder jurisdicional, a consequência para aquela será também a da ineficácia.

4.4. Em concreto

Concretamente, resulta da factualidade referida no Relatório supra que o Sr. Administrador, tendo constatado existir, no estabelecimento da insolvente, que se encontra encerrado, bens que não integram a massa insolvente, antes pertencendo a terceiros, que não têm qualquer posse ou detenção sobre tal estabelecimento, solicitou ao tribunal a notificação dos mesmos para remover os ditos bens no prazo de 30 dias.

A Mmª juiz deferiu o requerido.
           
Porém, face ao já acima exposto, a referida questão não só não diz respeito à liquidação, porque não está em causa a venda de bens apreendidos para a massa insolvente – estamos apenas perante o facto de no estabelecimento da insolvente existirem bens de terceiros – como, sobretudo, não está em causa a apreciação de qualquer questão relacionada com o cumprimento da legalidade e, nomeadamente, com o cumprimento de regras procedimentais no âmbito da liquidação, ou seja, trata-se de questão que extravasa os poderes jurisdicionais cometidos ao juiz no processo de insolvência e em particular no apenso de liquidação.
           
A notificação de terceiros para, em prazo a assinar, procederem à remoção dos bens que lhes pertencem, do estabelecimento da insolvente, com a cominação de não o fazendo, tais bens serem considerados abandonados - porque, sendo bens de terceiros, não tem a massa, sobre eles, qualquer direito ou obrigação, nomeadamente não tem qualquer dever de guarda ou conservação dos mesmos -, está no âmbito exclusivo dos poderes do Sr. Administrador de gestão da massa insolvente, neste caso do estabelecimento da insolvente, notificação essa que pode ser efectuada pelas diversas formas admitidas em direito – carta registada com AR ou notificação judicial avulsa.

É certo que o AI está sujeito á fiscalização do juiz do processo, mas não à sua direcção.
Mas in casu não foi isso que sucedeu, isto é, o juiz não actuou o poder de fiscalização em qualquer dimensão do mesmo, não tendo, nomeadamente, pedido quaisquer informações ou relatório sobre o estado da liquidação.

Por outro lado, é meridianamente claro que não integra o poder de fiscalização do juiz, o de substituir-se ao Sr. AI.
Ora, o que ocorreu foi um pedido do Sr. AI para a Sra. Juiz do processo o substituir nas suas funções, o que não tem qualquer base legal e devia ter sido indeferido, pois o juiz não é um órgão auxiliar do AI, não lhe cumprindo executar tarefas compreendidas no exercício da actividade do mesmo.

Desconhece-se se o requerimento do Sr. Administrador tem origem no facto de estar pendente uma acção intentada pela S... Engenharia contra a insolvente tendo em vista a declaração de que a mesma é proprietária / locatária financeira do prédio em que se situa o estabelecimento da insolvente, tendo ainda formulado outros pedidos de abstenção de actuação da insolvente, como afirma a S... Engenharia, tanto mais quanto o Sr. AI nada referiu nesse sentido, limitando-se a alegar que  a massa insolvente tem todo o interesse em que o acervo documental que não seja da sociedade insolvente, bem como os bens lá existentes que não estejam apreendidos para a massa insolvente - viaturas que não são propriedade da insolvente - sejam retirados do estabelecimento da sociedade insolvente, uma vez que a sua permanência no local cria e criará grandes constrangimentos para o normal desenrolar da liquidação do activo, nomeadamente no caso de ser necessário entregar o espaço em que se situa o estabelecimento.

Mas ainda que assim seja, isso irreleva para a questão em causa, não é pelo facto de a notificação ter subjacente aquelas razões que altera os dados da questão, ou seja, não passa a integrar o poder jurisdicional do tribunal: continua a ser matéria da exclusiva competência do Sr. AI.

Destarte e em face de tudo o exposto o despacho recorrido excede os poderes jurisdicionais do juiz titular no âmbito do apenso de liquidação e, como tal, é absolutamente ineficaz, pelo que não se pode manter, devendo, assim o recurso proceder, ainda que por razões de conhecimento oficioso e em consequência a decisão deve ser revogada.
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5. Decisão

Termos em que acordam os Juízes que compõem a 1ª secção da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso, ainda que por fundamentos diversos e em consequência e revogar o despacho recorrido, proferido a 04/04/2022 no apenso de liquidação.
*
Custas pelos recorrentes por ser quem tira proveito do recurso por si interposto (art. 527.º n.º 1, do CPC).
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Notifique-se
Guimarães, 02/03/2023

(O presente acórdão é assinado electronicamente)
 
Relator: José Carlos Pereira Duarte
Adjuntos:  Maria Gorete Roxo Pinto Baldaia de Morais
José Fernando Cardoso Amaral