Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
314/18.3T8FAF.G1
Relator: CONCEIÇÃO SAMPAIO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SOBRESSEGURO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (da relatora):

I - O DL 214/97, de 16 de Agosto, estabeleceu um regime especial para o seguro facultativo de danos próprios em viatura automóvel consagrando uma regulamentação expressa em matéria de sobresseguro.

II - Este regime especial não veio a ser derrogado ou alterado com a entrada em vigor do DL n.º 72/2008, de 16 de Abril, que aprovou o Regime Jurídico do Contrato de Seguro.

III - A regulamentação específica do DL nº 214/97 impondo a regra da desvalorização automática do valor seguro, com a consequente redução proporcional da parte do prémio, por forma a garantir a indemnização pelo valor seguro em caso de perda total, não conflitua com as normas previstas no RJCS que integram o chamado princípio indemnizatório, nos termos do qual a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro.

IV - Tal assim é, na medida em que, como já se antevia no preâmbulo do DL nº 214/97 "as consequências previstas para o incumprimento deste regime legal não colidem com o princípio do indemnizatório, que mantém plena aplicabilidade nos casos de normalidade contratual".

V - Ora, não se pode falar de normalidade contratual quando, encontrando-se expressamente prevista nas condições particulares da apólice a aplicação da tabela de desvalorização do valor seguro, a seguradora não procede no decurso do contrato à atualização desse valor mantendo-se o mesmo inalterado ao cabo de 5 anos, não sendo o respetivo prémio ajustado à desvalorização do valor seguro, pagando o segurado, por conseguinte, o prémio correspondente àquele valor.

VI - A manutenção do valor seguro, e correspondente reflexo no prémio devido, em desrespeito da regra da desvalorização automática, constitui a seguradora na obrigação de indemnizar, em caso de sinistro, com base no valor seguro apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I - RELATÓRIO

(..), intentou a presente ação declarativa com processo comum contra (…), S.A., pedindo seja a R. condenada a pagar-lhe a quantia global de € 32 840,57, acrescida de juros à taxa legal de 4% desde o dia 02 de Junho de 2017 e até integral pagamento e ainda em custas e demais encargos legais.

Alegou, para tanto e em síntese, que o seu veículo automóvel foi furtado no dia 30 de Março de 2017, e que tendo comunicado prontamente à Ré a ocorrência do furto com vista a acionar a cobertura de seguro correspondente, aquela veio a declinar a responsabilidade.

A Ré contestou alegando desconhecer se o furto em causa aconteceu de facto e, em caso de assim se provar ter acontecido, impugna o valor pretendido pelo Autor para ressarcimento do dano que sofreu, já que o veículo em causa valeria, à data do furto cerca de € 12.000,00 e não o valor pelo qual foi segurado no ano de 2012.
*
Foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente, condenando a Ré no pagamento, ao Autor, da quantia de € 13.596,94 (treze mil, quinhentos e noventa e seis euros e noventa e quatro cêntimos), acrescida de juros à taxa legal, contados desde o dia 2 de Junho de 2017, até efectivo e integral pagamento.
*
Inconformado com a sentença veio o Autor interpor recurso terminando com as seguintes conclusões:

A - Foi proferida pela Mt Juiz “a quo” a seguinte decisão:

“Em conformidade com o exposto decide este tribunal, condenar a Ré no pagamento, ao Autor, da quantia de € 13.596,94 (treze mil, quinhentos e noventa e seis euros e noventa e quatro cêntimos), acrescida de juros à taxa legal, contados desde o dia 2 de Junho de 2017, até efectivo e integral pagamento;
No mais, absolve-se a Ré do pedido formulado pelo Autor.”
B - É desta decisão que ora se recorre, por se entender ter a douta sentença interpretado erradamente as normas legais aplicáveis à situação concreta.
C - O contrato de seguro é um contrato bilateral, oneroso, aleatório, de mera administração, consensual, formal, de execução continuada. De adesão, típico e de boa fé (cfr. José Vasques, “Contrato de Seguro”, Coimbra Editora, 1999, pag 103 e seguintes.
D - Tendo em conta o risco assumido pela ré, decorrente da celebração do contrato de seguro com o segurado, estamos no âmbito da responsabilidade contratual.
E - Assim, a Mtma. Juíz “à quo” decidiu dar como – FACTO NÃO PROVADO - o seguinte:
“ O veículo do A. à data do furto possuía o valor de € 20.714,40;”
F - Fez errada interpretação da lei e dos factos (documentos) existentes nos autos, devendo tal facto ser incluído nos factos provados, e decidindo como decidiu, extravasou, o âmbito do processo, violando as regras do formalismo processual.
G -Para além disso, entrou em manifesta contradição, ao dar tal facto como não provado, baseando-se no entanto, no referido valor de € 20.714,40 para aplicar as desvalorizações de fls 50, com o fim de apurar o quantum da indemnização que foi decretada.
H – A acção intentada pelo A. foi totalmente procedente quanto ao furto do seu veículo, que possuía a cobertura de danos próprios e quanto às reclamações efectuadas junto da R..
I – Foi também provado que o A. nunca recebeu qualquer informação da R., quer a assumir, quer a declinar responsabilidades sobre o furto do veículo.
J - Foi também dado como provado que o A. nunca mais soube do paradeiro do seu veículo e que pagou o prémio referente ao ano de 2017, em 20.01.2017, no valor de € 1173,29;
L – Como factos NÃO PROVADOS, o facto de que o veículo do A. à data do furto possuir o valor de € 20.714,40, posição defendida pelo A.
M – E ainda que o veiculo seguro tinha o valor comercial de € 12.000,00, posição defendida pela R.
N – ASSIM, não se aceita que não tenha sido dado como provado, o valor do capital seguro do veículo do A.
O – Na verdade, a Mtma. Juiz “a quo” fixa o quantum da indemnização a atribuir ao A., baseando-se na tabela de desvalorização, junta com a Apólice, com o n.º 0002873796 e as respectivas condições gerais e particulares.
P - Juntamente com a contestação, a R. juntou a apólice que regia o contrato de seguro celebrado entre A. e R., relativo a danos próprios, abrangendo a cobertura de furto e roubo, fls.29 a 50.
Q - In casu, a cobertura do dano em causa – furto – enquadra-se nos apelidados danos próprios e por conseguinte no âmbito do seguro facultativo.
R – O contrato de seguro celebrado entre A. e R. foi celebrado em 2012, cfr. se poderá verificar pelo teor do requerimento junto aos autos pela R., via CITIUS em 08.05.2018, requerimento com a Refª 29066808;
S - Se analisarmos integralmente o doc. nº 1, junto pela R. na sua Contestação - Apólice de Seguro Automóvel -, verificamos no final da apólice, que houve uma alteração contratual – Condições Particulares - no que concerne ao capital seguro, fls. 48 verso;
T - Alteração, essa, adicional, referente ao capital seguro, tendo sido estabelecido o capital de 20.714,40, com efeitos a partir de 20.01.2017.
U - Foi junto pelo A. na petição inicial, uma carta/acta (Doc. nº 6) enviado pela R. em 17.12.2017, a solicitar o pagamento do prémio de seguro referente ao ano de 2018.
V - Assim, 9 meses depois do veículo do A. ter sido furtado, verificamos que a R. continua a declarar, aceitar e reconhecer como valor do capital seguro a quantia de € 20.714,40;
X – Não pode a Mtma Juiz “a quo” aplicar a tabela de desvalorização anexa à Apólice, reportando-se à data inicial da celebração do contrato de seguro, porquanto o valor do capital seguro foi alterado por vontade das partes em 2017.
Z - Nesse sentido, o disposto no Acórdão datado de 11.07.2013 do Tribunal da Relação de Guimarães – Proc. 2135/12.8TBBRG.G1, que diz o seguinte:
…”E é claro e já resulta do que acima se disse, que as normas do RJCS, citadas pela Apelante, terão que ser lidas em consonância com aquelas outras do Dec. Lei 214/97 de 16 de Agosto, pois são estas que definem as regras a seguir em matéria de sobresseguro e é com base nelas que se calcula o valor a considerar para efeito de indemnização – o valor do interesse seguro ao tempo do sinistro, conforme refere o artº 130º, nº 1 do RGCS, mas atendendo às regras de fixação desse valor constantes daquele DL….”
AA - Não resulta da matéria de facto o valor real do veículo, à data do sinistro, pelo que a R. devia ter sido obrigada a pagar o montante correspondente ao valor seguro, ou seja os € 20.714,40.
BB - O surgimento do Dec.Lei 214/97 surgiu para assegurar uma maior transparência das cláusulas das apólices de seguro, Pondo fim às situações de sobresseguros, que colocavam os segurados numa situação desvantajosa.
CC - Assim, decidindo-se pela obrigação da seguradora INDEMNIZAR com base no valor do capital seguro, apurado à data do vencimento do prémio, imediatamente anterior à ocorrência do furto, far-se-á uma aplicação correcta da Lei.
DD - Nesse sentido, o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães em 18.06.2013 – Proc. 703/10.1TBEPS.G1,
“…E se é certo resultar da matéria de facto provada que o automóvel seguro, à data do sinistro, valia apenas € 15.479,00, o que evidencia um manifesto excesso do valor seguro, de nada adianta à R. seguradora querer valer-se, agora, desta situação de “sobresseguro”, tanto mais que poderia e deveria ter-se certificado da justeza daquele valor de € 32.000,00, designadamente em função da idade do veículo e da influência depreciativa que esta exerce na valia económica desse bem de consumo.
Se não o fez foi porque não o quis ou por negligência dos respectivos serviços, pelo que nem mesmo a sua alegada “boa fé” na aceitação daquele valor, a exonera da obrigação de realizar a prestação convencionada e que no caso dos autos, consiste na prestação indemnizatória de capital, no montante correspondente ao do valor seguro, ou seja € 32.000,00….”
EE - Assim, o montante de € 20.714,40 sobre o qual foi calculado o montante devido a título de prémio, foi acordado entre A. e R.. nos termos do disposto no artº 405º do CC,
FF - Assim, os danos por perda total do veículo segurado têm de ser ressarcidos em face daquele montante acordado - € 20.714,40 -.
GG - Em virtude de não haver prova em contrário têm de ser cumpridos os contratos.
HH - Pelo que, deve ser alterado o facto dado como não provado, - O veículo do A. à data do furto possuía o valor de capital seguro de € 20.714,40; - para os factos dados como provados;
II - Fixando-se, que o veículo do A. à data do furto possuía de capital seguro o valor de € 20.714,40;
JJ – Decidiu erradamente a Mtma. Juiz “ a quo”, quando não ordena o estorno do prémio pago pelo A., relativamente a 2017, fls. 77;
LL – A data do furto reporta-se a Março de 2017, assim a R. deveria ter efectuado um estorno do prémio pago, relativo aos meses de Abril a Dezembro de 2017;
MM – Pelo que deve ser revogada a sentença recorrida e, em consequência, fixar-se que à data do furto o valor segurado do veículo furtado, era de € 20.714,00 e em consequência, condenando-se a R. no pagamento da indemnização com referência a tal valor e ainda ordenado o estorno do prémio do seguro pago referente ao ano de 2017.
*
Foram apresentadas contra-alegações, pugnando a Recorrida pela improcedência da apelação e manutenção do decidido.
*
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
*
II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

As questões decidendas a apreciar, delimitadas pelas conclusões do recurso, são as seguintes:

– Saber se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto;
- Saber se a seguradora está constituída na obrigação de indemnizar com base no valor seguro;
- Saber se o recorrente tem direito ao estorno do prémio do seguro pago referente ao ano de 2017.
*
III - FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Os factos

3.2.1. Factos Provados

Na 1ª instância foi dada como provada a seguinte factualidade:

a. O A. é proprietário de um veículo de marca BMW, com a matrícula UJ, série 765;
b. No dia 30 de Março de 2017, o A. saiu da sua residência sita na Rua de …, por volta das 20,50 horas, e dirigiu-se para o salão paroquial da paróquia de …, que se situa em frente à Igreja Matriz desta cidade, deslocação que terá demorado cerca de 10 minutos;
c. Estacionou o seu veículo na Rua do …, que se situa junto à referida Igreja Matriz e foi para a reunião, que iria decorrer no salão paroquial.
d. Quando a reunião acabou, cerca das 22, 40 horas, o A. ao sair do salão paroquial, foi na direcção do local onde tinha estacionado o seu veículo e verificou que ele não se encontrava lá.
e. O A. ficou assustado e de imediato tentou saber se alguém tinha visto o que se tinha passado com o seu veículo, não tendo obtido qualquer informação, a não ser de algumas pessoas que confirmaram que o carro esteve estacionado naquele sítio.
f. De imediato se dirigiu às instalações da GNR, Posto de Fafe ainda no próprio dia, por volta das 23,45h e participou o furto do seu veículo, que deu origem ao NUIPC nº 000194/17.6GAFAF.
g. O inquérito correu termos no DIAP do Tribunal Judicial de Fafe, sob o processo nº 194/17.6GAFAF e no âmbito do mesmo, foi ordenado o seu arquivamento, “por insuficiência de indícios”;
h. O A. celebrou com a R. um contrato de seguro em 20-01-2012, titulado pela apólice 0002873796, em que transferiu para a mesma, a responsabilidade por danos próprios relativos ao do seu veículo.
i. O A. participou junto dos serviços da R., a ocorrência do furto, supra alegado em 31.03.2017.
j. Em 21 de Abril o A. entregou as duas chaves que tinha do seu veículo a um averiguador, para aquelas serem analisadas, com vista a instruir o processo de sinistro que estava em regularização;
k. Desde a data da entrega das chaves do veículo, que posteriormente lhe foram devolvidas, o A. não mais teve qualquer notícia dos serviços administrativos da R., sobre os resultados da instrução do processo de averiguação.
l. O A. em 03.09.2017, reclamou por escrito, junto dos serviços da Ré, a ausência de qualquer informação;
m. O A. reclamou também junto da ASSF, tendo em 02.10.2017 recebido uma carta da referida Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, em que informava que a R. declinava a responsabilidade na regularização do sinistro;
n. O A. nunca recebeu qualquer informação da R., quer a assumir quer a declinar a responsabilidade sobre o furto do veículo.
o. O A. nunca mais soube do paradeiro do seu veículo.
p. O Autor pagou o prémio de seguro anual referente ao ano de 2017, em 20-01-2017, no valor de € 1173, 29;
*
3.1.2. Factos Não Provados

Inversamente, foram dados como não provadas os factos:

a. O veículo do A. à data do furto possuía o valor de € 20.714,40;
b. O A. efectuou inúmeras diligências, no sentido de obter o ressarcimento da indemnização do veículo furtado, nomeadamente junto da R., do seu mediador, pessoalmente e por telefone, por várias vezes, no que despendeu tempo e dinheiro que representam prejuízos não inferiores a € 250,00.
c. Utilizava-o na sua vida corrente e normal, como ir buscar os filhos à escola, ir para o trabalho, ir aos seus fornecedores, ficando privado desse uso ordinário em consequência do furto e ainda pelo facto de a R. e eximir das suas responsabilidades.

[DA CONTESTAÇÃO]

d. O veículo seguro tinha o valor comercial de € 12.000,00.
*
3.2. O Direito

3.2.1. Da modificabilidade da decisão sobre a matéria de facto

Nos termos do artigo 662º, do Código de Processo Civil, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
O Recorrente considera que houve erro na apreciação da prova porquanto, atenta a prova documental, a alínea a) dos factos não provados deveria constar dos factos provados, fixando-se, em consequência, “que à data do furto o valor segurado do veículo furtado era de €20.714,00”.
Na sentença recorrida foi dado como não provado que o veículo do A. à data do furto possuía o valor de € 20.714,40 e fundamentou-se que tal facto não havia sido objeto de qualquer meio de prova.
Este facto respeita ao valor comercial do veículo. Trata-se de factualidade alegada por ambas as partes sendo que o tribunal não considerou demonstrado nenhum dos valores indicados pelas partes (alíneas a) e d)).
O apelante não adianta que quanto ao valor do veículo haja sido feita qualquer prova a justificar resposta diferente da que foi dada pelo tribunal recorrido.
O que se nos afigura é que o apelante mistura dois conceitos distintos: o valor do capital seguro e o valor comercial da viatura à data do furto. Com efeito, confrontando o alegado nas alíneas N) e AA) das conclusões de recurso percebe-se que o recorrente se refere ao “valor do capital seguro” e ao “valor real do veículo” como se fossem a mesma coisa, quando não são.
Ora, o que foi dado como não provado é que o veículo à data do furto possuía o valor de € 20.714,40 (e não que o valor do capital seguro era de € 20.714,40). E quanto a este facto o impugnante não aportou argumentos válidos nem indicou qualquer prova que conduza a diferente convicção.

Termos em que, nesta parte, improcede a apelação.
*
3.2.2. Do contrato de seguro facultativo e fixação do valor da indemnização

No nosso ordenamento jurídico não há uma definição legal, precisa e unitária, sobre o que é o contrato de seguro. A atual Lei do Contrato de Seguro - cuja entrada em vigor se deu em 1 de janeiro de 2009, através do Decreto-Lei n.º72/2008 de 16 de abril - tendo em vista a sua aplicação primordial ao típico contrato de seguro, evitou intencionalmente uma definição de contrato de seguro. Optou por identificar os deveres típicos do contrato de seguro, assumindo que os casos de qualificação duvidosa devem ser decididos pelos tribunais em vista da maior ou menor proximidade com esses deveres típicos e da adequação material das soluções legais ao tipo contratual adotado pelas partes (1).

Partindo dos elementos constitutivos que o caracterizam na sua essência, podemos avançar para o seu conceito como o contrato aleatório por via do qual uma das partes (o segurador) se obriga, mediante o recebimento de um prémio, a suportar um risco, liquidando o sinistro que venha a ocorrer (2).

É caracterizado, portanto, como um contrato sinalagmático, aleatório, oneroso, sucessivo ou de execução continuada e de adesão. Importa aqui concretizar dois pontos: primeiro, no que respeita à natureza sinalagmática do contrato de seguro, a mesma advém do facto de dele emanarem obrigações para ambos os contraentes, uma vez que o segurador se obriga a indemnizar o segurado pelos prejuízos sofridos em caso de realização de um risco, enquanto o segurado se obriga ao pagamento de uma soma determinada, o prémio, na data do respetivo vencimento; em segundo lugar, enquanto contrato de adesão que é, o segurador está legitimado a propor aos destinatários cláusulas contratuais gerais que não resultam da negociação prévia entre as partes, limitando-se aqueles a subscrevê-las ou a aceitá-las. O ponto de partida, porém, é que qualquer contrato, e este não é exceção, é o resultado de consenso entre os contraentes.

No caso concreto, estão as partes de acordo que entre elas foi celebrado um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, com cobertura de danos próprios, titulado pela apólice n.º 0002873796 e que de entre as coberturas contratadas consta, conforme se alcança das respetivas condições particulares, a cobertura pelo dano decorrente do furto do veículo.
Demonstrado e evento lesivo (furto), importa avaliar o montante indemnizatório a atribuir ao Autor e por cujo pagamento a Ré é responsável.
O valor seguro, tal como, aliás, o valor do veículo, consignados na apólice aquando da contratação do seguro em 2012, foi de € 20.714,40, que se manteve contratualmente inalterado até à data do sinistro em 2017.
Não se apurou o valor venal do veículo à data do sinistro.
O Tribunal a quo considerou que encontrando-se expressamente previsto nas condições particulares que o veículo seguro está sujeito à tabela de desvalorização que delas consta, atendendo ao valor do capital seguro de € 20.714,40, à data em que foi celebrado o contrato de seguro (20-01-2012) e a data do furto (30-03-2017), terá de ser aplicado ao referido valor uma desvalorização de 45,30%. Concluiu-se, então, que em termos quantitativos, esta percentagem corresponde a uma desvalorização de € 9.383, 62, o que significa que, à data do furto, o capital seguro era de € 11.330, 78.
Contra a aplicação da desvalorização insurge-se o Recorrente, defendendo que não se tendo apurado o valor real do veículo, à data do sinistro, a seguradora deve ser obrigada a pagar o montante correspondente ao valor seguro, ou seja, os € 20.714,40.
Entendimento diverso tem a Recorrida seguradora para quem o valor do capital seguro está sujeito à desvalorização mensal prevista nas condições particulares da apólice (tabela respetiva) que por simples cálculo aritmético, permite concluir que, à data do furto, o capital seguro era de € 11.330,78.
A questão posta neste recurso reconduz-se há já muito debatida questão do sobresseguro, no âmbito dos contratos de seguro.
Foi precisamente para situações como a presente que foi criado o DL nº 214/97, de 16 de Agosto, diploma que veio instituir regras destinadas a assegurar uma maior transparência em matéria de sobresseguro nos contratos de seguro automóvel facultativo.
Decorre do preâmbulo do citado diploma que: “Uma das cláusulas contratuais gerais, comum à generalidade das seguradoras operando no território nacional, que maior reparo tem merecido é a que se refere às situações de sobresseguro, em que a aplicação menos clara de certas regras de carácter técnico, desacompanhadas da necessária informação e explicação, conduz a situações inesperadas e, por vezes, verdadeiramente injustas para os segurados no momento da liquidação das indemnizações em caso de sinistro automóvel.
É o caso da manutenção do valor seguro, e correspondente reflexo no prémio devido, por falta de iniciativa do segurado no sentido da respectiva actualização, quando é certo que a indemnização a suportar pela seguradora em caso de sinistro tem em conta a desvalorização comercial entretanto sofrida pelo veículo.
Nesta conformidade, e de forma a garantir uma efectiva protecção e defesa dos consumidores subscritores de contratos de seguro automóvel facultativo, entendeu-se ser necessário regular a matéria de forma a assegurar uma maior transparência do clausulado das apólices de seguro em causa e instituir a regra da desvalorização automática do valor seguro, com a consequente redução proporcional da parte do prémio, correspondente à eventualidade de perda total, que seja calculada com base nesse valor.
O sistema introduzido garante, assim, a indemnização pelo valor seguro em caso de perda total.
As consequências previstas para o incumprimento deste regime legal não colidem com o princípio do indemnizatório, que mantém plena aplicabilidade nos casos de normalidade contratual.”.
Analisemos, pois, as normas constantes do Decreto-lei nº 214/97 com pertinência para a resolução do caso.
Desde logo, dispõe o art. 2º que “o valor seguro dos veículos deverá ser automaticamente alterado de acordo com a tabela referida no artigo 4.º, sendo o respetivo prémio ajustado à desvalorização do valor seguro", decorrendo do art. 4.º que as empresas de seguros devem elaborar a tabela de desvalorizações periódicas automáticas para determinação do valor da indemnização em caso de perda total, incluindo, necessariamente, como referências, o ano ou o valor da aquisição em novo, ou ambos, de acordo com as normas emitidas pelo Instituto de Seguros de Portugal, relativas aos critérios a adoptar na elaboração da tabela referida.
Estabelece, por sua vez, o art. 3.º que “a cobrança de prémios por valor que exceda o que resultar da aplicação do disposto no número anterior constitui, salvo o disposto no artigo 5.º, as seguradoras na obrigação de responder, em caso de sinistro, com base no valor seguro apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro, sem direito a qualquer acréscimo de prémio e sem prejuízo de outras sanções previstas na lei.”.

Com a epígrafe "deveres de informação pré-contratual", prescreve o art. 7.º que “a empresa de seguros, antes da celebração dos contratos a que se refere o artigo 1.º e sem prejuízo do disposto na legislação aplicável em matéria de cláusulas contratuais gerais e das demais regras sobre informação pré-contratual previstas no Decreto-Lei n.º 176/95, de 26 de Julho, deve fornecer ao tomador do seguro, por escrito e em língua portuguesa, de forma clara, as seguintes informações:

a) Os critérios de actualização anual do valor do veículo seguro e respectiva tabela de desvalorização;
b) O valor a considerar para efeitos de indemnização em caso de perda total;
c) A existência da obrigação de a empresa de seguros de anualmente, até 30 dias antes da data de vencimento do contrato, comunicar por escrito ao tomador os valores previstos nas alíneas anteriores para o próximo período contratual”.

Sobre os deveres de informação contratual estatui o art. 8.º que:

“1 — Sem prejuízo das demais regras sobre informação contratual previstas no Decreto-Lei n.º 176/95, de 26 de Junho, nos contratos a que se refere o artigo 1.º devem constar os seguintes elementos:
a) O valor do veículo seguro, a considerar para efeitos de indemnização em caso de perda total, bem como os critérios da sua actualização anual e a respectiva tabela de desvalorização;
b) O prémio devido.
2 — A empresa de seguros deve anualmente, até 30 dias antes da data de vencimento do contrato, comunicar por escrito ao tomador os seguintes elementos relativos ao próximo período contratual:
a) O valor do veículo seguro, a considerar para efeitos de indemnização em caso de perda total;
b) O prémio devido;
c) Os agravamentos e bonificações a que o prémio foi sujeito”.

Perante este quadro legal, como bem se refere no acórdão desta Relação de Guimarães de 11 de julho de 2013 (3), "a conclusão a tirar não pode deixar de ser a de que enquanto não for actualizado, nos termos legais, o valor do veículo seguro, a considerar para efeitos de indemnização em caso de perda total/furto, e tal actualização comunicada ao tomador de seguro, as seguradoras estão constituídas na obrigação de responder, em caso de sinistro, com base no valor seguro apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro".

O regime estabelecido no DL nº 214/97 é aplicável ao contrato em causa, celebrado em 20-01-2012 e que se manteve em vigor por força das sucessivas prorrogações até 30-03-2017 (data do sinistro).
Na verdade, o DL 214/97 estabeleceu um regime especial para o seguro facultativo de danos próprios em viatura automóvel consagrando uma regulamentação expressa em matéria de sobresseguro.
Este regime especial não veio a ser derrogado ou alterado com a entrada em vigor do DL n.º 72/2008, de 16 de Abril, que aprovou o Regime Jurídico do Contrato de Seguro.
A regulamentação específica do DL nº 214/97 impondo a regra da desvalorização automática do valor seguro, com a consequente redução proporcional da parte do prémio, por forma a garantir a indemnização pelo valor seguro em caso de perda total, não conflitua com as normas previstas no RJCS que integram o chamado princípio indemnizatório, nos termos do qual a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro. Tal assim é, na medida em que, como já se antevia no preâmbulo do DL nº 214/97 "as consequências previstas para o incumprimento deste regime legal não colidem com o princípio do indemnizatório, que mantém plena aplicabilidade nos casos de normalidade contratual".

Ora, não se pode falar de normalidade contratual quando, encontrando-se expressamente prevista nas condições particulares da apólice a aplicação da tabela de desvalorização do valor seguro, a seguradora não procede no decurso do contrato à atualização desse valor mantendo-se o mesmo inalterado ao cabo de 5 anos, não sendo o respetivo prémio ajustado à desvalorização do valor seguro, pagando o segurado, por conseguinte, o prémio correspondente àquele valor.

A manutenção do valor seguro, e correspondente reflexo no prémio devido, em desrespeito da regra da desvalorização automática, em caso de sinistro, constitui a seguradora na obrigação de indemnizar com base no valor seguro apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro.

É à luz desta compreensão e alcance da função da regra da desvalorização automática do valor seguro, que as normas do DL nº 214/97 e do DL n.º 72/2008, em matéria de sobresseguro, devem ser compaginadas.
O valor do interesse seguro ao tempo do sinistro, conforme refere o artigo 130.º, n.º 1 do DL n.º 72/2008, é determinado de acordo com as regras de fixação desse valor constantes do DL nº 214/97.

Como se escreveu no acórdão da Relação de Lisboa, de 19 de junho de 2014 (4), "As normas do RJCS (Regime Jurídico do Contrato de Seguro) terão que ser interpretadas em consonância com aquelas outras do DL n.º 214/97, de 16 de Agosto, pois, são estas que definem as regras a seguir em matéria de sobresseguro no ramo automóvel e é com base nelas que se calcula o valor a considerar para efeito de indemnização – o valor do interesse seguro ao tempo do sinistro, conforme refere o artigo 130.º, n.º 1 do RJCS, mas atendendo às regras de fixação desse valor constantes daquele DL."

O que tudo significa que a Ré seguradora está constituída na obrigação de responder com base no valor seguro apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro, ou seja, € 20.714,40.
A este valor acresce 20% por força da cobertura de complemento de indemnização por perda total, expressamente contratada, calculado, nos termos da al. b), da 2ª cláusula, referente à condição especial em causa, de que resulta que ao valor de € 20.714,40 acrescerão 20%, ou seja, € 4.142,88.
O Autor tem portanto direito a receber da Ré, a título de indemnização contratual pelo furto do seu veículo, o valor de € 24.857,28.
A esta indemnização acrescerão juros à taxa legal, desde o dia 2 de Junho de 2017, até efectivo e integral pagamento.
Procede, nesta parte, a pretensão do Recorrente.
Suscita ainda o Recorrente a questão do estorno do prémio do seguro pago referente ao ano de 2017.

Dispõe o art. artigo 107.º, n.º 1, do RJCS, acerca do estorno do prémio por cessação antecipada, que “salvo disposição legal em contrário, sempre que o contrato cesse antes do período de vigência estipulado há lugar ao estorno do prémio, excepto quando tenha havido pagamento da prestação decorrente de sinistro ou nas situações previstas no n.º 3 do artigo anterior.”

Como bem se decidiu na sentença recorrida, no caso dos autos, a seguradora terá de pagar ao segurado uma indemnização decorrente do furto do veículo segurado, pelo que, nos termos do citado artigo não há lugar ao estorno do prémio pago.
Nesta parte, haverá de improceder a apelação do Recorrente.
*

IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, revogando, em parte, a decisão recorrida, condenando a Ré no pagamento, ao Autor, da quantia de € 24.857,28 (vinte e quatro mil, oitocentos e cinquenta e sete euros e vinte e oito cêntimos), acrescida de juros à taxa legal, contados desde o dia 2 de Junho de 2017, até efectivo e integral pagamento.
Custas a cargo de Recorrente e Recorrida, na proporção do respetivo decaimento.
Guimarães, 26 de Setembro de 2019

Assinado digitalmente por:
Rel. – Des. Conceição Sampaio
1º Adj. - Des. Fernanda Proença Fernandes
2º Adj. - Des. Alexandra Viana Lopes


1. Referência feita no preâmbulo do Decreto-Lei n.º72/2008 de 16 de abril.
2. Menezes Cordeiro, In Contrato de Seguro e Seguro de Crédito – II Congresso Nacional de Direito dos Seguros, Memórias, Coordenação de António Moreira e M. Costa Martins, Almedina, 2001, pág. 27.
3. Disponível em www.dgsi.pt.
4. Disponível em www.dgsi.pt.