Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
76/19.7PAPTL.G1
Relator: ARMANDO AZEVEDO
Descritores: ANTECEDENTES CRIMINAIS
DETERMINAÇÃO CULPABILIDADE
DETERMINAÇÃO PENA
VALORAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/10/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I- Na ausência de prova direta, a lei não permite extrair, no todo ou em parte, o facto desconhecido que se pretende apurar, através dos antecedentes criminais do arguido pela prática de crimes da mesma natureza.
II- Os antecedentes criminais não relevam para efeitos de determinação da culpabilidade, mas apenas para a determinação da pena, cfr. artigo 124º, nº 1 do CPP e artigo 71º, nº 2 al. e) do CP.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I- RELATÓRIO

1. No processo comum singular nº76/19.7PAPTL, do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, Juízo Local Criminal de Ponte de Lima, em que é arguida M. P., com os demais sinais nos autos, por sentença proferida e depositada em 21.01.2021, foi decidido absolver a arguida da prática dos crimes de que foi acusada, ou seja, de dois crimes de furto qualificado, previstos e punidos pelos artigos 203.º e 204.º, n.º 1, alíneas b) e e) ambos do Código Penal.
2. Não se conformando com tal decisão, dela interpôs recurso o M.P., extraindo da respetiva motivação, as seguintes conclusões (transcrição):

1. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida nos presentes autos, que absolveu a Arguida M. P. da prática de dois crimes de furto qualificado, nos termos e para os efeitos dos artigos 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 1, al. b) e e), todos do CP.
2. Sucede que, no nosso humilde entendimento, o douto Tribunal a quo efetuou uma incorreta valoração da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, constando-se a existência de um erro notório na apreciação da prova, sendo, por isso, invocados os seguintes fundamentos de recurso:
a. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada - artigo 410.º, n.º 2, al. a) do CPP;
b. Erro notório na apreciação da prova – artigo 410.º, n.º 2, al. c) do CPP;
3. Em nosso entender, o douto Tribunal a quo não fez uma correta interpretação dos meios de prova que tinha ao seu dispor, nem teve em consideração toda a prova produzida em audiência de julgamento.
4. Deveriam, assim, constar da matéria de facto provada, todos os factos que foram dados como não provados e que, como tal, se consideram incorretamente julgados.
5. O douto Tribunal a quo não utilizou devidamente os meios que estão ao seu dispor para conjugar todos os indícios constantes dos autos por forma a alcançar a condenação da Arguida, nomeadamente, o princípio da livre apreciação da prova e a prova indireta.
6. O princípio da livre apreciação da prova traduz-se na apreciação das provas indicadas e produzidas em audiência, ancorada nas regras de experiência comum, e tem como limites a proibição de valoração de provas ilegais ou nulas, as provas vinculadas, as limitações decorrentes dos depoimentos indiretos ou vozes públicas, os documentos autênticos e autenticados, a obrigatoriedade de só poderem ser valoradas as provas que forem produzidas em audiência de julgamento e, por fim, os princípios da presunção de inocência e do in dúbio pro reo.
7. A prova indireta, pacificamente aceite pela doutrina e jurisprudência portuguesa, traduz-se num modo de raciocínio, aliado ao princípio da livre apreciação da prova, que o julgador deve levar a cabo nos casos em que não dispõe de meios de prova diretos.
8. A prova indireta é composta por três operações: o desmembramento do facto base ou do indício, a regra da experiência comum e a inferência de um outro facto através do raciocínio perpetrado pelo julgador.
9. Ancorando-se nas regras da experiência e nos indícios que constam do processo, mediante a denominada prova indireta ou indiciária, deveria o douto Tribunal a quo ter dado como provado os seguintes factos:

1. «Em 28.06.2019, pelas 11H00M, no interior da área de acesso restrito do Hospital – X, sito na Rua ..., em Ponte de Lima, a arguida certificou-se que ninguém estava próximo, e acedeu àquela zona, onde abriu a porta da sala e do armário ali existente, e apoderou-se de uma carteira, pertença de M. C., que continha cinquenta euros, em numerário, e diversos cartões, inclusive bancários, de tudo a arguida apoderou-se (valor pecuniário e demais bens), e fez coisa sua, contra a vontade da legítima dona.
2. Em 28.06.2019, ainda na parte da manhã, no interior da área de acesso restrito do Hospital – X, sito na Rua ..., em Ponte de Lima, a arguida certificou-se que ninguém estava próximo, e acedeu àquela zona, onde abriu a porta da sala e do armário ali existente, e apoderou-se de uma carteira, pertença de S. P., que continha vinte e cinco euros, em numerário, e diversos cartões, inclusive bancários, de tudo a arguida apoderou-se (valor pecuniário e demais bens), e fez coisa sua, contra a vontade da legítima dona.
3. A arguida M. P. atuou livre, deliberada e conscientemente, com o propósito de se apoderar dos bens supra mencionados para proveito próprio, querendo fazer dos mesmos coisas suas, apesar de saber que os mesmos não lhe pertenciam e que agia contra a vontade da sua legítima dona.
4. Mais sabia a arguida que o sobredito armário colocado no gabinete administrativo da unidade de saúde não era um local público, antes tinha acesso restricto e vedado à arguida, ademais, estava fechado, e destinava-se a guardar os pertences pessoais dos respectivos funcionários, não obstante, agiu a arguida com o propósito, que logrou efectivar, de se apoderar dos valores ali depositados.
5. A arguida estava ciente de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal».

10. As provas que impõem decisão diversa, relativamente a esta matéria de facto dada como não provada, e que o douto Tribunal de 1ª instância desconsiderou são os depoimentos das seguintes testemunhas:
a. Agente da P.S.P. M. A. – Referiu que identificou a Arguida como suspeita pela prática dos factos, «derivado ao grande número de atos do mesmo género… tanto no hospital como várias… centros comerciais…». Mencionou a testemunha que «(…) a M. P. esteve mais ou menos envolvida nelas… nelas todas». Esta testemunha constata que a Arguida esteve no local, na data e hora da prática dos factos, não existindo nenhuma consulta ou marcação de consulta, quer para ela, quer para familiares. O Senhor Agente visualizou, através das imagens de videovigilância, a Arguida a sair do interior do Hospital para o hall de entrada, de uma zona onde não havia marcação de exames. Constatou ainda que se tratava de um dia de greve existindo um menor controlo das entradas e saídas. A testemunha inquiriu a Arguida, que negou a prática dos factos, negando inclusive, que esteve nesse dia no dito Hospital. Todavia, quando foi confrontada com as imagens já mencionou que esteve no local, alterando a sua versão.
b. M. C., Ofendida com a prática do crime. A testemunha não conseguiu identificar o agente da prática do crime, contudo, referiu que a Arguida é uma pessoa que se encontra várias vezes pelas instalações do Hospital. Mencionou ainda, com relevância, que na entrada principal do Hospital há uma entrada para um corredor que leva ao local onde se encontravam as carteiras guardadas. Referiu que o furto ocorreu entre as 8horas e 30minutos e as 10horas, porque a Ofendida entrou às 8horas, outra Colega entrou às 8horas e 30minutos e uma outra Colega entrou às 10horas, só tendo desaparecido as carteiras das duas primeiras. Era um dia de greve e em que existia menos movimento no Hospital.
c. S. P., Ofendida com a prática do crime. Esta testemunha também não conseguiu identificar o agente da prática do crime. No entanto, referiu que a área onde se encontravam as carteiras é uma área restrita, onde não existe marcação de exames. Mencionou ainda que há um corredor que liga a entrada do átrio ao local onde se encontravam as carteiras - «esse corredor fica na entrada do átrio, da entrada principal para a nossa consulta externa, supostamente a entrar para ali só serão pessoas que… (…) «ou que têm consulta, ou que vêm de outros exames (…)». Referiu ainda que o furto ocorreu entre as 8horas e 30minutos e as 10horas, porque a Ofendida entrou às 8horas e 30minutos, outra Colega entrou às 8horas e uma outra Colega entrou às 10horas, só tendo desaparecido as carteiras das duas primeiras.
11. Foram ainda desconsiderados pelo Tribunal a quo os fotogramas juntos ao processo - Registo de imagem das câmaras de videovigilância do X de Ponte de Lima -, onde se vê a Arguida acompanhada da sua filha, L. P. e, onde se podem ler as seguintes descrições:
a. «M. P., acompanhada pela sua filha menor, L. P., quando saiam da área reservada, no interior do Hospital ... no dia 28-06-2019, às 09h 13m 42s para a área da receção de visitas».
b. «M. P. e L. P., quando saiam do corredor reservado para o setor da receção de visitas do X de Ponte de Lima».
12. O douto Tribunal a quo também não considerou a informação de 21-09-2019 do X de Ponte de Lima, em que se atesta que não existe qualquer registo nesses serviços hospitalares que justifique a presença da Arguida nesse dia, a essa hora, naquele local.
13. O douto Tribunal a quo entendeu que «(…) o depoimento da filha coincidiu com o da sua mãe. Na verdade, esta acompanhou-a sempre e de que não deu por nada que fosse a sua mãe a retirar as carteiras. Acompanhou a sua mãe para obter uma declaração para entregar á Segurança Social, a fim de confirmar a baixa médica em o seu pai se encontrava» - fundamentação com a qual não concordamos.
14. Não podem ser valorados, tal como fez o douto Tribunal a quo, o depoimento prestado por L. P., bem como as declarações prestadas pela própria Arguida M. P., apurando-se contradições entre os mesmos e em relação às demais provas produzidas:
a. L. P., filha da Arguida, tem 12 (doze) anos e mostrava-se claramente assustada, não querendo falar sobre o sucedido, dizendo, após ser questionada, que podia «falar algumas coisas». Referiu ainda que no dia 28-06-2019 foi com a sua mãe ao Hospital, ao piso quatro, buscar um papel para entregar na segurança social, no entanto, no piso quatro do dito Hospital não existem serviços informativos ou administrativos. A criança respondia com frases curtas de «Sim» e «Não».
b. M. P., Arguida começou por referir o seguinte: «se tem aí as imagens eu estou a sair a porta das visitas e não a porta das consultas externas», sendo certo que ninguém lhe mencionou que as carteiras furtadas se encontravam junto do serviço de consultas externas. Também já se constatou que a porta das visitas de onde a Arguida refere que está a sair dá acesso a um corredor, que por sua vez, dá acesso ao local onde se encontravam as carteiras. A isto acresce que, a Arguida menciona que foi buscar ao Hospital um certificado multiusos para entregar na Segurança Social por causa do seu marido, todavia, também referiu que tinha esse documento em casa. Ora, se efetivamente foi buscar o dito documento verifica-se que volvidos cerca de dois anos ainda não procedeu à sua entrega nos serviços da Segurança Social. A Arguida demonstrou um comportamento desrespeitoso em relação Agente da P.S.P. M. A. tentando evidenciar uma atitude persecutória levada a cabo pelo mesmo.
15. M. P. tem averbadas as seguintes condenações no seu certificado de registo criminal:
a. Condenação pela prática de um crime de furto simples (de oportunidade de objetos não guardados), no âmbito do Proc. N.º 88/19.0PAPTL, por factos praticados em 24-07-2019, sendo a decisão data de 15-11-2019, transitada em julgado em 05-12-2019 e o boletim emitido em 09-03-2020;
b. Condenação pela prática de um crime de furto simples, no âmbito do Proc. N.º 20/19.1GBVVD, por factos praticados em 29-12-2018, sendo a decisão data de 03-03-2020, transitada em julgado em 18-06-2010 e o boletim emitido em 30-06-2020;
c. Condenação pela prática de um crime de furto simples, no âmbito do Proc. N.º 459/19.2GAPTL, por factos praticados em 29-11-2019, sendo a decisão data de 13-03-2020, transitada em julgado em 12-06-2020 e o boletim emitido em 19-06-2020;
d. Condenação pela prática de um crime de furto simples, no âmbito do Proc. N.º 13/20.6PAPTL, por factos praticados em 21-01-2020, sendo a decisão data de 14-10-2020, transitada em julgado em 03-11-2020 e o boletim emitido em 09-11-2020;
16. O douto Tribunal a quo deu como provado que «À data da prática dos factos não tinha antecedentes criminais», mencionando na sua motivação que a Arguida não tinha um passado criminal pela prática de crimes de furto, o que não é rigoroso como se afere da leitura do seu certificado de registo criminal.
17. Assim, em jeito de síntese, os indícios que constam do processo que podem levar à inferência de que a Arguida praticou os factos e, consequentemente, dar como provados os factos constantes da acusação são os seguintes:
a. A Arguida M. P. encontrava-se no local da prática dos factos, na data e hora em que os mesmos ocorreram.
b. As câmaras de videovigilância detetam a Arguida a sair de uma área de acesso reservado do Hospital.
c. M. P. é uma frequentadora assídua do X de Ponte de Lima, pelo que, conhece bem o local.
d. No dia 28-06-2019 ocorreu uma greve por parte dos funcionários da saúde, o que originou uma maior falha no controlo e acesso dos utentes às várias áreas do hospital.
e. As condições de greve e a falta de controlo de movimento dos utentes facilitaram a prática dos factos ilícitos típicos.
f. Sem ninguém mencionar essa circunstância, a Arguida sabia que os factos tinham sido praticados num local que se situa próximo da zona das consultas externas.
g. Alega M. P. que foi buscar um documento para entregar na segurança social por causa do seu marido, mas a verdade é que em 14.01.2021 ainda não o tinha feito.
h. A prova testemunhal arrolada pela acusação identificou a Arguida como sendo autora de diversos ilícitos da mesma natureza.
i. A Arguida tem averbadas no seu certificado de registo criminal quatro condenações pela prática de crimes da mesma natureza.
18. Entende o Ministério Público, salvo devido respeito por melhor opinião em contrário, que tendo em consideração os indícios descritos ancorados na prova direta de que a Arguida esteve no local no dia e hora da prática dos factos e que as carteiras das Ofendidas foram efetivamente retiradas da área de acesso restrito onde se encontravam, com fundamento nas máximas da experiência comum e no normal acontecer dos factos e, não existindo quaisquer outras circunstâncias que possam afastar os indícios mencionados, os mesmos fundamentam a factualidade descrita na acusação e que deve ser dada como provada.
19. Através de um raciocínio lógico relativamente aos índicos constantes do processo, aliado nas regras de experiência comum, culmina-se com a conclusão da existência de um determinado facto, que era desconhecido.
20. As máximas da experiência traduzem-se naquilo que se retira do que acontece na maior parte dos casos semelhantes. E, nos casos semelhantes ao dos presentes autos, os Arguidos são condenados e não absolvidos, pois efetuada uma apreciação global da prova e dos indícios, é permitido com um grau de certeza razoável incriminar o Arguido.
21. Ora, in casu, ninguém discute foram retirados do interior da área de acesso restrito do Hospital – X, sito na Rua ..., em Ponte de Lima, no dia 28-06-2019, entre as 8horas e 30minutos e as 10horas, uma «carteira, pertença de M. C., que continha cinquenta euros, em numerário, e diversos cartões, inclusive bancários» e uma «carteira, pertença de S. P., que continha vinte e cinco euros, em numerário, e diversos cartões, inclusive bancários» e, também ninguém discute que a Arguida esteve nesse local, no dia e hora em que os furtos ocorreram, pelo que, estes são os nossos factos-base.
22. A regra de experiência comum que aqui se aplica é a seguinte: alguém que vai ao Hospital sem qualquer motivo aparente, ou seja, sem necessidade de obter a prestação de um serviço aí realizado, ou até mesmo uma informação ou documento, esse alguém tem um vasto certificado de registo criminal pela prática de crimes de furto e, durante o tempo em que permanece no local desaparecem duas carteiras com os pertences que se encontravam no seu interior, diz-nos essa regra que foi esse alguém que praticou os furtos em causa.
23. Logo, infere-se daqueles factos-base, aliados aos indícios acima descritos, devidamente alicerçados nas regras de experiência comum que, quem retirou as carteiras daquela área de acesso restrito foi a aqui Arguida M. P..
24. Assim, e salvo melhor opinião em contrário, parece-nos que o douto Tribunal a quo se escudou no princípio do in dúbio pro reo, ignorando por completo os indícios constantes dos autos que levam à incriminação da Arguida.
25. Refere o douto Tribunal a quo que se deparou «com dúvidas sérias de que a arguida tivesse sido a autora dos furtos», todavia, o douto Tribunal também não verificou, como deveria, as provas produzidas e todos os indícios constantes dos autos que nos permitem chegar a essa conclusão.
26. Parece-nos, pois, que o facto de o douto Tribunal a quo ignorar, por completo, a prova indireta constante dos autos e que nos leva à incriminação da Arguida, pode consubstanciar o vício constante do artigo 410.º, n.º 2, al. a) do CPP e, constitui um erro notório na apreciação da prova a apreciação que o douto Tribunal a quo efetua do certificado de registo criminal da aqui Arguida bem como a interpretação que efetua dos fotogramas juntos ao processo, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, al. c) do CPP.
27. As normas violadas com a sentença recorrida foram se seguintes: artigos 71.º e 203.º do CP e 125.º e 127.º do CPP.
28. Assim entendemos que não resta qualquer dúvida que a Arguida deveria ter sido condenada pela prática de dois crimes de furto, devendo os factos dados como não provados passarem a constar do elenco dos factos provados e assim se proceder à sua condenação.
29. No entanto, em vez de ser condenada pela prática de dois crimes de furto qualificado, nos termos e para os efeitos das disposições conjugadas dos artigos 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 1, al. b) e e), todos do CP, deveria a Arguida ser condenada pela prática de dois crimes de furto simples, previstos e punidos pelo artigo 203.º, n.º 1 do CP, tendo em consideração o disposto no n.º 4 do artigo 204.º do CP, uma vez que somente se provou que foram retirados €50,00 (cinquenta euros) à Ofendida M. C. e €25,00 (vinte e cinco euros) à Ofendida S. P..
30. Considerando o disposto nos artigos 40.º, 70.º, 71.º e 77.º do CP, entendemos, salvo devido respeito por melhor opinião, que a Arguida deveria ter sido condenada pela prática de dois crimes de furto simples, previstos e punidos pelo artigo 203.º, n.º 1 do CP, numa pena única de 220 (duzentos e vinte) dias de multa à razão diária de €6,00 (seis) euros, o que perfaz um total de €1.320,00 (mil trezentos e vinte euros).

Nestes termos e nos melhores de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada a douta sentença recorrida, e substituída por outra que considere como provados os factos que foram dados como não provados e, consequentemente se absolva a Arguida M. P. pela prática de dois crimes de furto qualificado, previstos e punidos pelos artigos 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 1, al. b) e e), todos do CP e se condene pela prática de dois crimes de furto simples, nos termos do artigo 203.º, n.º 1 do CP, numa pena única de 220 (duzentos e vinte) dias de multa à razão diária de €6,00 (Seis euros).
Fazendo-se, assim, a acostumada justiça!
3. A arguida respondeu ao recurso interposto pelo M.P., tendo concluído no sentido de que deverá ser mantida a sentença recorrida e, consequentemente, o recurso julgado improcedente.
4- Nesta instância, o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto apôs o seu visto.
5. Após ter sido efetuado exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

II- FUNDAMENTAÇÃO

1- Objeto do recurso

O âmbito do recurso, conforme jurisprudência corrente, é delimitado pelas suas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo naturalmente das questões de conhecimento oficioso (1) do tribunal, cfr. artigos 402º, 403º e 412º, nº 1, todos do CPP.

Assim, considerando o teor das conclusões do recurso interposto no sentido acabado de referir, as questões a decidir reconduzem-se às matérias seguintes:

- Vícios de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão e de erro notório na apreciação da prova, cfr. artigo 410º, nº 2 als. a) e c) do CPP;
- Impugnação da matéria de facto, com recurso à prova gravada e documental de acordo com a previsão do artigo 412º, nºs 3 e 4 do CPP, por incorretamente julgados os factos (todos) considerados como não provados, que devem ser considerados como provados; e o facto provado nº 7, que deverá refletir o conteúdo do certificado de registo criminal atualizado constante e de fls. 62 e seguintes; e
- Em consequência da preconizada alteração factual, a condenação da arguida pela prática, em lugar dos dois crimes de furto qualificado de que se encontra acusada, de dois crimes de furto simples p. e p. pelo artigo 203º, nº 1 do CP numa pena única de multa.

2- A decisão recorrida

1. Na sentença recorrida foram considerados como provados e não provados os seguintes factos, seguidos da respetiva motivação de facto (transcrição):

Da discussão da causa resultou provado.

1. No dia 28.06.2019, pelas 11h00 a arguida dirigiu-se ao Hospital – X, sio na Rua …, em Ponte de Lima, tem acedido ao seu interior na companhia da sua ilha menor L. P..
2. A arguida no exercício da sua profissão aufere o salário de 700,00€ 3. Vive em casa própria.
4. Tem uma filha menor a seu cargo.
5º. Está integrada socialmente.
6. Possui o 9.º ano de escolaridade.

7. À data da prática dos factos não tinha antecedentes criminais.

Factos não provados.

- Em 28.06.2019, pelas 11H00M, no interior da área de acesso restrito do Hospital – X, sito na Rua ..., em Ponte de Lima, a arguida certificou-se que ninguém estava próximo, e acedeu àquela zona, onde abriu a porta da sala e do armário ali existente, e apoderou-se de uma carteira, pertença de M. C., que continha cinquenta euros, em numerário, e diversos cartões, inclusive bancários, de tudo a arguida apoderou-se (valor pecuniário e demais bens), e fez coisa sua, contra a vontade da legítima dona.
- Em 28.06.2019, ainda na parte da manhã, no interior da área de acesso restrito do Hospital – X, sito na Rua ..., em Ponte de Lima, a arguida certificou-se que ninguém estava próximo, e acedeu àquela zona, onde abriu a porta da sala e do armário ali existente, e apoderou-se de uma carteira, pertença de S. P., que continha vinte e cinco euros, em numerário, e diversos cartões, inclusive bancários, de tudo a arguida apoderou-se (valor pecuniário e demais bens), e fez coisa sua, contra a vontade da legítima dona.
- A arguida M. P. atuou livre, deliberada e conscientemente, com o propósito de se apoderar dos bens supramencionados para proveito próprio, querendo fazer das mesmas coisas suas, apesar de saber que os mesmos não lhe pertenciam e que agia contra a vontade da sua legítima dona.
- Mais sabia a arguida que o sobredito armário colocado no gabinete administrativo da unidade de saúde não era um local público, antes tinha acesso restrito e vedado à arguida, ademais, estava fechado, e destinava-se a guardar os pertences pessoais dos respetivos funcionários, não obstante, agiu a arguida com o propósito, que logrou efetivar, de se apoderar dos valores ali depositados.
- A arguida estava ciente de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

Motivação da decisão de facto

O Tribunal formou a sua convicção sobre a matéria de facto provada e não provada com base na apreciação crítica e global dos meios de prova abaixo indicados, e de acordo com o princípio da livre apreciação da prova (artigo 127.º do Código de Processo Penal), segundo juízos de experiência comum e de normalidade social.

Esta apreciação livre das provas tem de ser entendida como uma apreciação convicta do julgador, subordinada apenas à sua experiência e prudência e guiando-se sempre por fatores de probabilidade e nunca de certezas absolutas, estas quase sempre inatingíveis, nunca entendida num sentido arbitrário, de mero capricho ou de simples produto do momento, mas como uma análise serena e objetiva de todos os elementos de facto que foram levados a julgamento, tudo por forma a que uma resposta dada a determinada questão "deva refletir o resultado da conjugação de vários elementos de prova que na audiência ou em momento anterior foram sujeitos às regras da contraditoriedade, da imediação ou da oralidade" – veja-se Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, II vol., pág. 209.
Assim, a convicção do julgador resultou da experiência, prudência e saber, sendo certo que é no contacto pessoal e direto com as provas, designadamente com a testemunhal, que estas qualidades de julgador mais são necessárias, pois é com base nelas que determinado depoimento pode ou não convencer quanto à veracidade ou probabilidade dos factos sobre que recai, constituindo uma das manifestações dos princípios da oralidade e da imediação, por via das quais o julgador tem a oportunidade de se aperceber da frontalidade, tibieza, lucidez, rigor e firmeza com que os depoimentos são produzidos, mesmo do confronto imediato entre os vários depoimentos, do contraditório formado pelos intervenientes, melhor ajuizando e aquilatando desta forma da sua validade.

Declarações da arguida.

Admitiu que no dia e hora referida na acusação, foi ao Hospital de …, a fim de obter uma declaração para entregar da Segurança Social. Tal declaração dizia respeito à confirmação da baixa médica em que o seu marido se encontrava. Negou perentoriamente de que fosse a autora dos furtos. Quem a transportou ao Hospital foi o seu primo, a testemunha M. O.. A testemunha L. P., sua filha, acompanhou-a nesse dia tendo, também acedido ao interior do Hospital. Confirmou ser ela e a sua filha, as pessoas constantes do registo de imagem a fls. 19, esclarecendo que tais imagens foram recolhidas junto à porta principal da saída do Hospital.
Prestou declarações sobre a sua situação económica social e familiar. Testemunhal

Análise crítica e motivação dos depoimentos

As testemunhas da acusação M. C. e S. P., ofendidas, donas das carteiras furtadas, confirmaram em julgamento de que as suas carteiras foram furtadas, descrevendo o local em que as mesmas encontravam e os respetivos acondicionamentos. Não viram a arguida no espaço reservado onde se encontravam acondicionadas as carteiras.
Confirmaram o registo da imagem contante de fls. 19 e de que estas imagens foram captadas à porta de saída principal do hospital e por isso não dizem respeito ao acesso ao espaço onde as carteiras se encontravam. As carteiras foram encontradas abandonadas na via pública num local próximo do Hospital. Neste circunstancialismo a PSP de Ponte de Lima, tomou conta da ocorrência do furto e foi então que procedeu às devidas averiguações. Nestas averiguações fez parte a testemunha o Agente M. A., com domicílio profissional na PSP – Esquadra Ponte de Lima, que por existirem fortes suspeitas sobre a arguida de outros furtos no passado, também neste apontou a suspeita sobre a arguida. Neste contexto chegou-lhe ao conhecimento o registo da imagem de fls.19. Quando teve conhecimento das imagens, o dia, hora em que foram captadas que coincidiram com o data e hora do desaparecimento das carteiras, a testemunha M. A. conclui a autora do furto foi a arguida.
Quanto às testemunhas de defesa, a filha da arguida e o primo, como sura se fez referência, apresentaram uma narrativa coincidente com a versão dos factos dada pela arguida. De salientar que o depoimento da filha coincidiu com o da sua mãe. Na verdade, esta acompanhou-a sempre e de que não deu por nada que fosse a sua mãe a retirar as carteiras. Acompanhou a sua mãe para obter uma declaração para entregar á Segurança Social, a fim de confirmar a baixa médica em o seu pai se encontrava.
Assim soposando no seu conjunto os depoimentos das testemunhas da acusação e os depoimentos das testemunhas de defesa, o tribunal ficou com dúvidas sérias se a arguida foi a autora dos furtos. Na verdade, a prova indireta recolhida foi insuficiente para se dar como provado o facto provando, ou seja, que a arguida foi a autora dos furtos. Com indicio de prova só temos o registe de imagem já referido, a qual foi captada á saída da entrada principal do Hospital. O que é insuficiente para se poder aferir de que pelo menos a arguida tivesse entrado no espaço reservado onde se encontravam acondicionadas as carteiras. Por sua vez a suspeita criada pelo Sr. Agente da PSP, por muito válida e razoável para que possa ser aceite é insuficiente para podermos concluir que foi a arguida a autora dos furtos bem como o modo operando que esta encetou até aceder ao local onde se encontravam as carteiras.

Assim o deparou-se o Tribunal com duvidas sérias de que a arguida tivesse sido a autora dos furtos. O tribunal não podere servir de presunções nem de suspeições sem um mínimo de credibilidade para que se incriminar qualquer agente da pratica de um crime e, neste caso particular, a arguida.
Por sua vez a arguida em conjunto justificaram as testemunhas de defesa, apresentaram uma justificação, a qual a razão porque nesse dia a arguida na companhia do seu primo e da filha se deslocaram ao Hospital

Documental:

- Informação da X de fls. 16; - Informação policial de fls. 18; - Fotogramas de fls. 19 e 20, 15 e 16. Toda esta prova apesar de ser prova aceite como verdadeira, é insuficiente para se poder inferir em conjunto com a prova testemunhal de que foi a arguida a autora dos furtos.
Como se disse os factos indiciários e a prova destes indícios foi insuficiente para se imputar à arguida a prática do furto.
- Certificado de registo criminal válido de fls. 26, de onde resulta que a arguida não tem passado criminal em particular a prática de furtos.
No que diz respeito aos comportamentos dos arguidos, á sua situação social e familiar e económica o tribunal deu destaque ás suas próprias declarações como supra se disse.

3- Apreciação do recurso

3.1. O recorrente insurge-se contra a matéria de facto da decisão recorrida.

Como é sabido, a matéria de facto pode ser impugnada por duas formas: através da invocação dos vícios do artigo 410.º n.º2 do CPP, ou seja, pela designada “revista alargada”, ou através da impugnação ampla da matéria de facto, nos termos do artigo 412.º n.º3 e 4 do mesmo diploma.
No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, os quais têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos estranhos àquela, para a fundamentar.
No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise da prova produzida em audiência, mas dentro dos limites do ónus de especificação imposto pelos números 3 e 4 do artigo 412.º do CPP.

No caso vertente, o recorrente suscita o vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão a que se alude na al. a ) do nº2 do artigo 410º do CPP, o qual, como decorre da sua designação, refere-se aos factos considerados provados na decisão recorrida e não à sua prova, e verifica-se quando esses factos, por não serem bastantes ou suficientes, não permitem, segundo as possíveis soluções de direito, a decisão assumida. Porque o vício se reporta a uma insuficiência dos factos apurados na decisão, decorre que a sua verificação está normalmente associação a uma deficiente investigação do objeto do processo, tal como o mesmo decorre da acusação, da contestação e do que resultar da discussão da causa, em conformidade com o disposto no nº2 do artigo 368º do CPP.
Por isso, tal como se refere no Ac. RL de 18-07-2013 (2) citado pelo recorrente, «A insuficiência para decisão da matéria de facto provada não se confunde com a insuficiência da prova para os factos que erradamente foram dados como provados. Na primeira critica-se o Tribunal por não ter indagado e conhecido os factos que podia e devia, tendo em vista a decisão justa a proferir de harmonia com o objeto do processo; na segunda censura-se a errada apreciação da prova levada a cabo pelo Tribunal: teriam sido dados como provados factos sem prova para tal».
Assim, segundo Simas Santos e Leal Henriques, “A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada existe quando os factos provados são insuficientes para justificar a decisão assumida, ou quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso submetido a apreciação; no cumprimento do dever de descoberta da verdade material, que lhe é imposto pelo normativo do art.º 340.º do Código de Processo Penal, o tribunal podia e devia ter ido mais longe; não o tendo feito, ficaram por investigar factos essenciais, cujo apuramento permitiria alcançar a solução legal e justa”, Cfr. Código de Processo Penal Anotado, pág. 738, parafraseando o acórdão do STJ de 99/06/02, processo n.º 288/99.
O aludido vício “é impeditivo de bem se decidir, tanto no plano objetivo como subjetivo, o julgador quedou-se por uma investigação lacunar, deixou de indagar factos essenciais à decisão de direito, figurando na acusação, defesa ou resultantes da decisão da causa, impedindo de bem decidir no plano do direito , comprometendo a conclusão final do silogismo judiciário..”, cfr. Ac STJ de 08.01.2014, processo 7/10.0TELSB.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
O recorrente concluiu que se verifica o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, porque, segundo refere, o tribunal recorrido ignorou por completo a prova indireta constante dos autos (cfr. conclusão 26) e, por assim ter procedido, absolveu a arguida. Todavia, esta alegação do recorrente não colhe, desde logo porque o vício apontado, como dissemos, nada tem que ver com a insuficiência da prova, mas antes com insuficiência de factos. Por conseguinte, a circunstância de o julgador não ter considerado uma determinada prova ou não a ter apreciado corretamente não é suscetível de conduzir à ocorrência do apontado vício.
Outrossim, no sentido de evidenciar a verificação do aludido vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão, o recorrente não se atém ao texto da sentença recorrida.
Na verdade, na motivação do recurso, considerada na sua globalidade, o recorrente procura demonstrar que ocorreu erro de julgamento pelo facto de a prova indiciária ter sido incorretamente apreciada e julgada, socorrendo-se não apenas ao texto da decisão recorrida, mas sobretudo de elementos que lhe são estranhos, com particular relevância para a gravação da prova produzida oralmente em audiência de julgamento. Ou seja, do que disseram, em audiência de discussão e julgamento, a arguida e as testemunhas, procurando dar conta das partes das declarações e dos depoimentos prestados que, no seu entender, deveriam ter conduzido o tribunal recorrido a considerar como provados os factos não provados indicados na sentença.
Nesta conformidade, temos por não verificado o mencionado vício, pelo que não assiste razão ao recorrente quanto a esta questão.

3.2- O recorrente alega ter o tribunal a quo incorrido em erro notório na apreciação da prova da al. c) do nº 2 do artigo 410º do CPP, alegando, em defesa da sua tese, o seguinte:

“…é suscetível de consubstanciar um erro notório na apreciação da prova, a apreciação que o douto Tribunal a quo efetua do certificado de registo criminal da aqui Arguida – artigo 410.º, n.º 2, al. c) do CPP. O Tribunal dá como provado que à data da prática dos factos não existia qualquer averbamento no seu certificado de registo criminal, no entanto, encontra-se junto aos autos um certificado de registo criminal da Arguida, onde se encontram averbadas quatro condenações posteriores pela prática de crimes de furto que, apesar de serem posteriores, deveriam ter sido levadas em consideração nos termos e para os efeitos do artigo 71.º, n.º 2, al. e) do CP.
Um outro aspeto suscetível de consubstanciar um erro notório na apreciação da prova é a análise que o douto Tribunal a quo faz relativamente aos fotogramas das imagens de videovigilância junto aos autos. Ou seja, a Arguida mencionou que a imagem foi captada junto à porta principal de saída do Hospital. Refere ainda o douto Tribunal a quo que as Ofendidas «Confirmaram o registo da imagem constante de fls. 19 e de que estas imagens foram captadas à porta de saída principal do hospital e por isso não dizem respeito ao acesso ao espaço onde as carteiras se encontravam». No entanto, as Ofendidas também explicaram que da entrada/saída de onde são captadas as imagens, há um corredor do lado esquerdo que leva ao local onde as carteiras de encontravam. Local esse de acesso reservado ao público. Do mesmo modo, na descrição dos fotogramas, afere-se que a Arguida estava a sair de uma área reservada em direção à dita entrada/saída do hospital, ou seja, a área de receção das visitas.
Ora, em face do exposto, afigura-se-nos como notória a apreciação errónea destas imagens lavada a cabo pelo douto Tribunal a quo, devendo ser feita uma apreciação de toda a prova produzida, inclusive dos depoimentos das Ofendidas, por forma a perceber-se que a Arguida vinha do dito corredor que dava acesso ao local onde se encontravam as carteiras furtadas.
Em suma, e atendendo aos argumentos supra expostos, somos do entendimento de que a decisão recorrida não efetuou a devida apreciação da prova produzida, resultando claro das provas aqui e agora explanadas que deveriam ter sido provados os factos constantes da douta acusação pública.”.

Em face da alegação do recorrente, verifica-se que o vício de erro notório na apreciação da prova vem suscitado com um duplo fundamento, a saber:

1- Errada consideração como provado do ponto 7 dos factos considerados como provados, com o seguinte teor: “7- À data da prática dos factos não tinha antecedentes criminais.”, o qual foi assim considerado, como decorre da fundamentação da matéria de facto da sentença recorrida, com base no certificado de registo criminal de junto fls. 26. A errada consideração como provado do referido facto, segundo a recorrente, decorre de, posteriormente, em 09.12.2020, ter sido junto aos autos certificado de registo criminal atualizado do qual decorre ter a arguida sofrido quatro condenações pela prática, em cada uma delas, de um crime de furto simples (cfr. certificado junto a fls. 62 e segs.); e
2- A notória apreciação errónea das imagens da videovigilância a que se refere as fotos juntas a fls. 19-20, quando na fundamentação da matéria de facto da sentença se refere que as ofendidas «Confirmaram o registo da imagem constante de fls. 19 e de que estas imagens foram captadas à porta de saída principal do hospital e por isso não dizem respeito ao acesso ao espaço onde as carteiras se encontravam».
O vício de erro notório na apreciação na prova verifica-se quando, analisada a decisão recorrida na sua globalidade e sem recurso a elementos extrínsecos, resulta de forma inequívoca que o tribunal fez uma apreciação ilógica da prova, em patente oposição às regras básicas da experiência comum, ou seja, sempre que para a generalidade das pessoas seja evidente uma conclusão contrária à exposta pelo tribunal. Trata-se de um erro ostensivo, que é detetado pelo homem médio. Através da indicação das provas que serviram para formar a convicção do julgador e do seu exame crítico, o tribunal ad quem verifica se o tribunal a quo seguiu ou não um processo lógico e racional na apreciação da prova.
Como se escreveu no acórdão do STJ de 27/10/2010, “ o erro notório na apreciação da prova, nos termos do artigo 410º, nº 2, al. c) do CPP, é uma anomalia de confeção técnica decisória, a resultar do texto da decisão recorrida, quando nela existam ou se revelam distorções de ordem lógica entre factos provados e não provados ou que traduzam uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorreta, que, por isso mesmo não passa despercebida imediatamente a uma verificação e observação sem esforço, tomando-se como ponto de referência o homem médio (…)» - cfr. CJ - ASTJ – Ano XVIII, tomo III, pág. 243 e ss.
Ora, ao contrário do sustentado pelo recorrente, a sentença recorrida não padece do suscitado vício de erro notório na apreciação da prova, isto porque o recorrente, nos casos em que refere ocorrer esta anomalia de confeção da decisão e no sentido de a demonstrar, não se limita a invocar o texto da decisão recorrida, invocando também elementos que lhe são estranhos.
Assim, quanto à ausência de antecedentes criminais da arguida na data da prática dos factos, como bem refere o recorrente, na sentença recorrida apenas se considerou o certificado de registo criminal junto a fls. 26, do qual resulta efetivamente que a arguida na data dos factos destes autos não tinha quaisquer condenações averbadas.
A alegação do recorrente de que a arguida tinha antecedentes criminais baseia-se no certificado de registo criminal junto a fls. 62 e segs., o qual não é referido em parte alguma da sentença.
Por isso, quanto à questão dos antecedentes criminais da arguida, a ter ocorrido o apontado erro, só é possível demonstrá-lo e, consequentemente, proceder à alteração da matéria de facto considerada como provada com base em elementos externos à sentença. Ou seja, com recurso ao certificado de registo criminal junto a fls. 62 e seguintes não referido na sentença. De qualquer modo, importa, desde já, dizer que o teor deste certificado não contraria o facto provado nº 7 da sentença recorrida, porquanto dele resulta que efetivamente a arguida sofreu quatro condenações, mas as respetivas decisões condenatórias são posteriores aos factos dos presentes autos. Ou seja, na data da prática dos factos, efetivamente, a arguida não tinha qualquer condenação averbada no seu certificado de registo criminal, pelo que não tinha antecedentes criminais. Mas relativamente a esta questão – antecedentes criminais da arguida – ainda regressaremos aquando da apreciação do suscitado erro de julgamento da matéria de facto.
O mesmo se diga relativamente à questão da apreciação errónea das imagens da videovigilância a que se refere as fotos juntas a fls. 19-20. Ou seja, no sentido de evidenciar o indicado erro, o recorrente recorre aos depoimentos gravados das ofendidas, os quais são naturalmente externos à sentença recorrida. De igual modo assim procede o recorrente quando se refere à “descrição dos fotogramas”, ou seja, as legendas ou anotações constantes das mencionadas fotos, as quais foram apostas pelo agente investigador, ou seja, a testemunha M. A., depoimento gravado considerado pelo recorrente essencial no sentido de comprovar a incorreta apreciação da prova, cujo depoimento transcreveu.
Por conseguinte, a sentença recorrida também não padece de erro notório na apreciação da prova, constatando-se que o recorrente, como, aliás, é frequente nos recursos em que se impugna a matéria de facto, confunde os vícios de confeção da decisão com o erro de julgamento da matéria de facto.
Pelo exposto, julgamos não assistir razão ao recorrente, quanto ao suscitado vício de erro notório na apreciação da prova.

3.3- O recorrente, sem se referir, em ocasião alguma, ao disposto no artigo 412º, nºs 3 e 4 do CPP, suscita a ocorrência de erro de julgamento, com fundamento na prova gravada, pretendendo a alteração da sentença recorrida no que concerne ao ponto 7 da matéria de facto considerada provada na sentença recorrida e a todos os factos nela considerados como não provados, os quais deverão ser considerados como provados.
O erro de julgamento em matéria de facto ocorre, designadamente, quando o tribunal dá como provado um facto sem que se tenha feito prova do mesmo, ou quando dá como não provado um facto que deveria, em face da prova produzida, ter sido considerado como provado.
O artigo 412º, nº 3, aI. a) e b), do CPP é claro ao estabelecer que quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, assim como as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida.
É propósito do legislador com a referida norma delimitar claramente o âmbito do recurso interposto sobre a decisão a matéria de facto, em termos de o permitir apenas nos casos em que haja uma identificação do concreto erro de julgamento ocorrido, bem como dos específicos meios de provas que concretamente o demonstram.
Por outro lado, o nº4 do artigo 412 do CPP dá concretização naquela norma, estabelecendo que no caso de as provas terem sido gravadas, as especificações previstas na aI. b) do nº 3 se fazem por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no nº 3 do art.º 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
Neste sentido, veja-se o Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 03/2012, publicado no Diário da Republica, I Série, nº 77, a 18 de Março de 2012 «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/ excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na ata do início e termo das declarações».

No caso vertente, pese embora o recorrente, como se disse, não refira o enquadramento legal com base no qual suscita o erro de julgamento, porque, apesar disso, cumpriu globalmente os necessários requisitos legais, cumpre conhecer do mérito da impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
Conforme entendimento consolidado na jurisprudência (3) e aceite pacificamente na doutrina (4), o recurso da matéria de facto visa a deteção do erro de julgamento em matéria de facto, constituindo um remédio jurídico e não um segundo julgamento como se não tivesse ocorrido um julgamento anterior.
Por isso, “a segunda instância em matéria de facto não vai à procura de uma nova convicção (que lhe está de todo em todo vedada exatamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova), mas tão só apreciar se a convicção expressa pelo tribunal a quo na decisão da matéria de facto tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os mais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si.” (5)
Por conseguinte, ao tribunal da relação, em sede recurso da matéria de facto, compete apenas sindicar a prova produzida em primeira instância, por forma a averiguar da ocorrência de erro de julgamento, mas sempre segundo o objeto do recurso definido pelo recorrente nas respetivas conclusões.

No caso em apreço, o recorrente impugna todos os factos considerados não provados na sentença, porquanto, no seu entender, a prova indiciária produzida foi incorretamente julgada.
Assim, o cerne da sua impugnação da matéria de facto situa-se na valoração na prova indireta ou indiciária, pois que, efetivamente, inexiste prova direta de que tenha sido a arguida quem retirou as carteiras pertença das ofendidas do local onde se encontravam, fazendo-as coisa sua, sendo este o facto essencial que o recorrente considera incorretamente julgado.

3.4- Na apreciação crítica da prova produzida, a efetuar nos termos do disposto no nº 2 do artigo 374º do CPP, deve o tribunal ter em conta não apenas a prova direta dos factos, mas também a chamada prova indireta ou através de presunções simples ou máximas de experiência, conforme é hoje entendimento pacífico, nomeadamente doutrina (6) e na jurisprudência (7).
A prova direta refere-se imediatamente aos factos a provar, ao tema da prova, enquanto a prova indireta ou indiciária se refere a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova (8).
Em processo penal de acordo com o disposto no artigo 125º do CPP, são admissíveis as provas que não forem proibidas, pelo que é legitimo o julgador tirar ilações de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido, cfr. artigo 349º do C. Civil.
Na formação da convicção, não está o juiz impedido de usar presunções baseadas em regras da experiência, ou seja, nos ensinamentos retirados da observação empírica dos factos. Ensina Vaz Serra (9) que “Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência de vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência (…) ou de uma prova de primeira aparência”.
Todavia, como se salienta no Ac. STJ de 06.10.2010, processo 936/08.JAPRT, disponível em www.dgsi.pt “a ilação derivada de uma presunção natural não pode, porém, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável”.
A lei não define as regras pelas quais se deve reger a prova indireta. No entanto, por um lado, importa distinguir a prova dos factos indiciantes ou indícios e, por outro, a dedução lógica, o juízo de relação necessária que há-de existir entre esse ou esses factos e o facto consequência que se pretende demonstrar.
Acresce que os factos indiciantes ou indícios deverão ser graves, precisos e concordantes, sendo que «São graves, quando as relações do facto desconhecido com o facto conhecido são tais, que a existência de um estabelece, por indução necessária, a existência do outro. São precisas, quando as induções, resultando do facto conhecido, tendem a estabelecer, direta e particularmente, o facto desconhecido e contestado. São concordantes, quando, tendo todas uma origem comum ou diferente, tendem, pelo conjunto e harmonia, a firmar o facto que se quer provar» (cfr. Carlos Maluf, "As Presunções na Teoria da Prova", in "Revista da Faculdade de Direito", Universidade de São Paulo, volume LXXIX, pág. 207) (10).

Numa síntese possível, e pese embora seja sempre necessário ter em atenção às especificidades de cada caso, podemos afirmar que no âmbito da prova indireta importa ter em consideração que:

- Os factos indiciantes ou indícios devem ser graves, precisos e concordantes, podendo ser apenas um (nesse caso terá de ser determinante) ou vários;
- Os factos indiciantes ou indícios devem obtidos através de prova direta credível, qualquer que ela seja, testemunhal, pericial, etc;
- No caso de serem vários os factos indiciantes ou indícios devem estar inter-relacionados de forma a reforçar o juízo de inferência, devendo ainda ser contemporâneos do facto a provar.
- O juízo de inferência terá de ser racional e objetivo, de acordo com as regras da experiência comum ou, sendo caso disso, dos conhecimentos pacíficos da técnica e da ciência;
- A decisão judicial, em sede motivação de facto, deverá refletir, por forma a que possa ser entendido, como foi efetuado o juízo de inferência (11).

Com decorre da sua natureza, as exigências de fundamentação da decisão judicial proferia com recurso a prova indireta são acrescidas, pois que a força persuasiva dos indícios deve ser claramente demonstrada. Talvez por isso, já Cavaleiro Ferreira (12) defendia que a apreciação da prova indireta exige “grande capacidade e bom senso do julgador”.
Por conseguinte, a prova indireta, que se caracteriza pelo facto de o julgador poder tirar ilações de factos conhecidos para afirmar um facto desconhecido, no caso destes autos assume relevância no que concerne a prova de que tenha sido a arguida quem retirou as carteiras das ofendidas do local onde se encontravam, contra a vontade delas, fazendo-as coisa sua, porquanto ninguém referiu ter presenciado tal facto. O mesmo é dizer não existe prova direta desse facto.

3.5- No caso vertente, em que, como dissemos, inexiste prova direta de que tenha sido a arguida quem subtraiu as duas carteiras pertença das ofendidas, o tribunal recorrido, após ter procedido à análise crítica da prova, concluiu que a prova indireta existente é insuficiente e, por isso, fazendo apelo ao princípio do in dubio pro reo, considerou tal facto não provado e, consequentemente, absolveu a arguida.
Contudo, argumenta o recorrente, aduzindo, nomeadamente, na conclusão 17 do recurso que “…os indícios que constam do processo que podem levar à inferência de que a Arguida praticou os factos e, consequentemente, dar como provados os factos constantes da acusação são os seguintes:
a. A Arguida M. P. encontrava-se no local da prática dos factos, na data e hora em que os mesmos ocorreram.
b. As câmaras de videovigilância detetam a Arguida a sair de uma área de acesso reservado do Hospital.
c. M. P. é uma frequentadora assídua do X de Ponte de Lima, pelo que, conhece bem o local.
d. No dia 28-06-2019 ocorreu uma greve por parte dos funcionários da saúde, o que originou uma maior falha no controlo e acesso dos utentes às várias áreas do hospital.
e. As condições de greve e a falta de controlo de movimento dos utentes facilitaram a prática dos factos ilícitos típicos.
f. Sem ninguém mencionar essa circunstância, a Arguida sabia que os factos tinham sido praticados num local que se situa próximo da zona das consultas externas.
g. Alega M. P. que foi buscar um documento para entregar na segurança social por causa do seu marido, mas a verdade é que em 14.01.2021 ainda não o tinha feito.
h. A prova testemunhal arrolada pela acusação identificou a Arguida como sendo autora de diversos ilícitos da mesma natureza.
i. A Arguida tem averbadas no seu certificado de registo criminal quatro condenações pela prática de crimes da mesma natureza.”

Não obstante o teor dos factos considerados como provados da sentença recorrida, a questão essencial é saber se a prova produzida impõe a conclusão de que foi a arguida quem praticou os factos, ou seja, quem, no dia 28-06-2019, entre as 8horas e 30minutos e as 10horas, retirou do interior da área de acesso restrito do Hospital – X, sito na Rua ..., em Ponte de Lima, uma «carteira, pertença de M. C., que continha cinquenta euros, em numerário, e diversos cartões, inclusive bancários» e uma «carteira, pertença de S. P., que continha vinte e cinco euros, em numerário, e diversos cartões, inclusive bancários».
Por isso, tendo presente o facto acabado de referir, e aqueles indícios, conclui o recorrente que, segundo as regras da experiência comum, “… alguém que vai ao Hospital sem qualquer motivo aparente, ou seja, sem necessidade de obter a prestação de um serviço aí realizado, ou até mesmo uma informação ou documento, esse alguém tem um vasto certificado de registo criminal pela prática de crimes de furto e, durante o tempo em que permanece no local desaparecem duas carteiras com os pertences que se encontravam no seu interior, diz-nos essa regra que foi esse alguém que praticou os furtos em causa.” (cfr. conclusão 22).
Todavia, não podemos concordar com esta alegação, desde logo porque pretende extrair, ao menos em parte, o facto desconhecido que se pretende apurar dos antecedentes criminais da arguida pela prática de crimes da mesma natureza, o que a lei não permite. Os antecedentes criminais não relevam para efeitos de determinação da culpabilidade, mas apenas para a determinação da pena, cfr. artigo 124º, nº 1 do CPP e artigo 71º, nº 2 al. e) do CP.
Na verdade, como refere Maia Gonçalves (13) “O tribunal, quando comprovados os elementos respeitantes aos factos da responsabilidade do arguido, das circunstâncias que graduam a sua culpa, as condições de punibilidade e os pressupostos da responsabilidade civil, entra na tramitação destinada à individualização da pena ou da medida de segurança. Aqui, e só agora, são tomados os antecedentes criminais do arguido, as perícias sobre a sua personalidade e o relatório social.”, sublinhado nosso.

No mesmo sentido, vide o Ac. STJ de 13.02.2008, processo 08P213, disponível em www.dgsi.pt, segundo o qual “O CPP consagra um sistema (mitigado) da cisão: (“césure”) na fase decisória do processo, que se desdobra em duas fases: a da “questão da culpabilidade” (art. 368º do CPP), em que se fixam os factos; e a “questão da determinação da pena” (art. 369º do CPP), em que se procede a tal operação, se for caso disso. É nesta segunda fase que devem ser conhecidos e valorados os elementos referentes à pessoa do arguido, nomeadamente o CRC, a perícia de personalidade e o relatório social.”.
Mas, regressemos aos factos indiciantes ou factos base, que o recorrente sustenta estarem demonstrados, diga-se através de prova direta.
Não há dúvida de que a arguida esteve no Hospital ..., no dia e na ocasião em que os factos ocorreram. A própria arguida reconheceu esse facto, sendo que as imagens da videovigilância comprovam isso mesmo. Porém, se a arguida esteve no local onde as carteiras desapareceram (local reservado próximo da zona das consultas externas), não é possível saber. A arguida negou esse facto e as imagens apenas permitem afirmar que a arguida vem a sair de uma zona reservada (mas que não é aquela onde se encontravam as carteiras, como decorre dos depoimentos conjugados das ofendidas) para a zona de saída /entrada no hospital.
No dia dos factos, havia uma greve por parte dos funcionários do hospital, o que fez com que deixasse de existir o controle habitual dos utentes às várias zonas do hospital. É evidente que este abaixamento do controle dos utentes facilitou o acesso da arguida ao local onde as carteiras se encontravam e, em consequência, a prática por ela dos factos. Mas este argumento é igualmente válido para qualquer outra pessoa que tivesse tal propósito, pelo que não se mostra excluída a possibilidade de outrem, que não a arguida, poder ter praticado os factos. Ou seja, da ocorrência daquela greve apenas podemos concluir que a arguida, assim como todos os utentes que naquele dia e hora estiveram no hospital, caso tivessem o propósito de se apoderar das carteiras pertença das ofendidas, tiveram a tarefa facilitada.
O facto de a arguida ter dado a entender, em audiência de julgamento, que tinha conhecimento de que as carteiras das ofendidas se encontravam em local próximo das consultas externas, contrariamente ao sustentado pelo recorrente, não pode ser interpretado em seu desfavor. Com efeito, a arguida seguramente não foi confrontada com os factos pela primeira vez em julgamento, podendo perfeitamente ter tido conhecimento desse facto, designadamente, através do agente investigador M. A., testemunha que, como se diz na sentença, expressou a sua convicção de que tinha sido a arguida quem praticou os factos, e relativamente ao qual a arguida, nas declarações que prestou em julgamento, revelou grande animosidade.
Acresce dizer que, obviamente não pode ser valorado, o depoimento prestado pela testemunha agente da PSP M. A., na parte em reproduz o que a arguida terá dito, e que o recorrente transcreveu, quando a inquiriu na qualidade de testemunha em inquérito, cfr. artigos 356º, nº 7 e 357º, ambos do CPP
Por último, quanto à questão de inexistir justificação documental comprovativa da necessidade de a arguida ter-se deslocado ao Hospital ... no dia dos factos, decorre que, efetivamente, tendo a arguida alegado ter-se deslocado a este hospital com o intuito de ir buscar documento relativo à baixa médica do seu marido para ulteriormente ser apresentado na Segurança Social, este facto não se mostra comprovado. Na verdade, a informação prestada pelo Hospital … constante de fls. 16, não comprova a alegação da arguida.
Todavia, o facto de a arguida não ter logrado justificar a necessidade de ter-se deslocado àquele hospital no dia dos factos e ainda o facto de o local de onde provem a arguida no momento em que é registada a sua presença pelas câmaras de videovigilância não existirem serviços administrativos do hospital- mas que não é o local onde se encontravam as carteiras das ofendidas - não permite fazer um juízo de inferência seguro no sentido de que foi ela quem praticou os factos.
Na verdade, os indícios ténues existentes que apontam no sentido de que a arguida possa ter praticado os factos, não excluem outras hipóteses igualmente possíveis, ou seja, que outrem, quer seja utente do hospital ou não, possa ter praticado os factos.
Por isso, bem andou o tribunal recorrido ao ter concluído que a prova indireta produzida era insuficiente para considerar como provado que a arguida tenha praticado os factos, os quais foram, por isso, e bem, considerados como não provados.
Noutros termos, o tribunal recorrido, que é quem tem o poder / dever de julgar, apreciou toda a prova (direta e indireta) de forma racional e objetiva, segundo as regras da experiência comum, fazendo uma análise criteriosa da prova.
O que quer dizer que, no caso em análise, a prova produzida e examinada em audiência de julgamento suporta perfeitamente a convicção que dela formou o tribunal recorrido, sem que tenham ocorrido, consequentemente, quaisquer atropelos às regras legais de apreciação da prova.
Em síntese, a decisão recorrida está devidamente fundamentada, tendo sido claramente explicitados, sendo por isso perfeitamente percetíveis, os motivos da convicção alcançada pelo tribunal. Por outro lado, os aspetos evidenciados pelo recorrente não têm a virtualidade de impor decisão diversa da proferida, não se verificando, pois, erro de julgamento da matéria de facto por errada apreciação da prova indireta.
3.6- Como referimos supra, o recorrente insurge-se também quanto ao facto 7 dos factos provados, o qual tem a seguinte redação: “À data da prática dos factos não tinha antecedentes criminais.”.
Este facto, a ser analisado agora em sede de erro de julgamento, como decorre da fundamentação da matéria de facto da sentença, foi assim considerado com base no certificado de registo criminal da a arguida constante de fls. 26.
No entanto, encontra-se junto aos autos, a fls. 62 e segs., um outro certificado de registo criminal relativo à arguida, que é posterior àquele e do qual resulta que a arguida tem averbadas quatro condenações pela prática de crimes de furto.
Acontece que deste certificado de registo criminal não resulta não ser verdadeiro o facto provado nº 7 da sentença recorrida, porquanto as condenações são todas elas posteriores aos factos dos presentes autos. Ou seja, na data dos factos dos presentes auto a arguida efetivamente não tinha antecedentes criminais.
Ora, considerando que os antecedentes criminais do arguido apenas relevam para a determinação da pena, em conformidade com o disposto no artigo 124º, nº 1 do CPP e do artigo 71º, nº 2 al. e) do CP, e porque no caso em apreço não se apurou que a arguida tenha praticado os factos, impondo-se, por isso, manter a sua absolvição pela prática dos crimes pelos quais foi acusada, mostra-se irrelevante, uma vez que não irá ter lugar individualização de pena, levar aos factos provados as condenações sofridas pela arguida contantes do seu certificado de registo criminal atualizado. Nesta conformidade, por constituir um ato inútil, julgamos ser desnecessário proceder à alteração da redação do ponto 7 dos factos provados da sentença recorrida.
Por conseguinte, e pese embora este Tribunal da Relação pudesse ter-se limitado, por razões de celeridade, a remeter para os fundamentos da decisão recorrida, que é absolutória, cfr. artigo 425º, nº 5 do CPP, pelos fundamentos constantes da sentença recorrida, com os quais concordamos, e pelas razões acima aduzidas, julgamos não assistir razão ao recorrente, pelo que o recurso improcede na sua totalidade.

III – DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto pelo M.P. e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Sem custas, uma vez que o recorrente está delas isento (artigo 4º, nº 1 al. a) do RCP).
Notifique.
Guimarães, 10.05.2021
(Texto integralmente elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários (artigo 94º, nº 2 do C. P. Penal).

(Armando da Rocha Azevedo - Relator)
(Clarisse Machado S. Gonçalves – Adjunta)




1. De entre as questões de conhecimento oficioso do tribunal estão os vícios da sentença do nº 2 do artigo 410º do C.P.P., cfr. Ac. do STJ nº 7/95, de 19.10, in DR, I-A, de 28.12.1995, as nulidades da sentença do artigo 379º, nº 1 e nº 2 do CPP, irregularidades no caso no nº 2 do artigo 123º do CPP e as nulidades insanáveis do artigo 119º do C.P.P..
2. Proc. N.º 1/05.2JFLSB.L1-3, Relator: Rui Gonçalves, disponível em www.dgsi.pt (consultado em 30-01-2021);
3. Cfr., entre outros, Ac. do STJ de 15-12-2005, Proc. nº 05P2951 e Ac. do STJ de 9-03-2006, Proc. nº 06P461, disponíveis em www.dgsi.pt.
4. Segundo o Prof. Germano Marques da Silva “o recurso sobre a matéria de facto não significa um novo julgamento, mas antes um remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância” Forum Justitiae, Maio 99. Em sentido idêntico sustenta Damião Cunha ao afirmar que os recursos “…são entendidos como juízos de censura crítica « e não como «novos julgamentos», in O Caso Julgado Parcial, Publicações Universidade Católica, 2002, pág. 37.
5. Cfr. Ac RE, de 03.05.2007, processo 80/07-3, disponível em www.dgsi.pt.
6. Cfr., v.g. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Volume II, Lisboa, Verbo, 5ª Edição, Revista e atualizada, pág. 144 e segs..
7. Cfr., entre outros, Acs. STJ de 09.02.12, processo 1/09.3FAHRT.L1.S1, de 17.03.2016, processo 849/12.1JACBR.C1.S1, de 11.07.2007 e de 12.09.2007, respetivamente, processos 07P1416 e 07P4588; Ac. RP de 09.09.2015, processo 2/13.7GCETR.P1; e Ac. RP de 10.05.2017, processo 135/14.2GAVFR.P1, todos disponíveis em www.dgsi.pt. Na jurisprudência espanhola, vide Euclides Dâmaso, Prova Indiciária (Contributos para o seu estudo e desenvolvimento em dez sumários e um apelo premente), Julgar nº 2, 2007.
8. Cfr. Germano Marque da Silva, ob. e loc. cit.
9. Direito Probatório Material – BMJ 112/190.
10. Citado no Ac. STJ de 17.03.2004, processo 03P2612, disponível em www.dgsi.pt
11. Para maiores desenvolvimentos vide Santos Cabral, Prova Indiciária e as Novas Formas de Criminalidade, Julgar, nº 17, ano 2012
12. In Curso de Processo penal, II, pág. 292.
13. In Código de Processo Penal Anotado, 1999, 10ª edição, revista e atualizada, Almedina, pág. 657