Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
354/13.9TAMDL.G1
Relator: FERNANDO MONTERROSO
Descritores: FALSIDADE
DEPOIMENTO DE TESTEMUNHA
ELEMENTOS ESSENCIAIS DO CRIME
JUSTA CAUSA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/26/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: O inciso «sem justa causa», constante do nº 2 do artº 360º, do CPP, não integra o tipo objectivo do crime de recusa a depor.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
No 2º Juízo do Tribunal Judicial de Mirandela, em processo comum com intervenção do tribunal singular (Proc. nº 354/13.9TAMDL), foi proferida sentença que: condenou
1 - Absolveu o arguido António M. da prática, em autoria material, de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. no art. 360°, n ° 3, do Código Penal;
2 - Condenou o mesmo arguido, como autor material, por um crime de falsidade de testemunho, p. e p. no art. 360°, n ° 1 e 2, do Código Penal, na pena de 9 (nove) meses de prisão.
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O arguido António M. recurso desta sentença.

Alega que em resumo:

É elemento do tipo de crime por que foi condenado que o agente não tenha «justa causa» ao recusar-se a depor. A falta de justa causa é que transforma a conduta/ação do arguido em atitude/ação ilícita, digna de sanção penal;

Não cabe ao arguido provar a existência de «justa causa» para evitar a condenação, mas ao Ministério Público a alegação e prova de todos os elementos constitutivos do crime;

Sendo a acusação omissa quanto a um elemento essencial, deveria ter sido rejeitada;

Não tendo sido a acusação rejeitada, deve o arguido ser absolvido.

Subsidiariamente, a única testemunhas ouvida no julgamento nada referiu acerca da eventual existência de justa causa do arguido para a recusa de prestar declarações. A testemunha não referiu, se questionou, ou não, o arguido, aquando da inquirição como testemunha, acerca de uma possível justificação, que juridicamente pudesse vir a ser considerada justa causa de recusa em depor.


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Respondendo a magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido defendeu a procedência do recurso.
Nesta instância, o sr. procuradora-geral adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Cumpriu-se o disposto no art. 417 nº 2 do CPP.
Colhidos os vistos cumpre decidir.
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I – Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos (transcrição):
No dia 12 de Julho de 2013, entre as 11.30 e as 11.48 horas, no Posto da GNR de Alfândega da Fé, no âmbito do processo de inquérito n ° 93/l0.2TAMDL, que correu termos nos serviços do Ministério Público do T. J. de Mirandela, em que se investigava a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, o arguido foi inquirido, por agente da PSP, na qualidade de testemunha.
À pergunta feita sobre se conhecia um casal de etnia cigana, de nomes Álvaro M. , conhecido pela alcunha de L. e Manuel C. , conhecida pela alcunha de M., respondeu que conhecia os dois, há vários anos a esta parte.
Questionado se em algum momento comprou estupefacientes para o seu consumo ao dito casal, respondeu que não desejava prestar declarações.
Alertado de que se encontrava a prestar declarações na qualidade de testemunha e das consequências da recusa em prestá-las, mais concretamente, que incorria na prática de um crime, recusou novamente prestar declarações.
O arguido entendeu o significado e alcance da referida advertência, bem como das consequências penais que lhe poderiam advir de uma resposta falsa ou da omissão ou recusa de resposta à matéria em causa.
O arguido estava ciente de estar a ocultar esclarecimentos relevantes para a boa decisão da causa.
Agiu livre, voluntária e conscientemente, com a intenção de ocultar o esclarecimento sobre factos que sabia serem relevantes para a descoberta da verdade, bem sabendo que não podia dissimular ou omitir qualquer resposta quanto à aludida matéria e que estava obrigado a responder com verdade.
Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal e que por isso incorria em responsabilidade penal.
Por decisão transitada em julgado em 02-07-2003, o arguido foi condenado numa pena de prisão, pela prática de um crime de roubo e de um crime de furto, ocorridos em 13­09-2002.
Por decisão transitada em julgado em 05-03-2008, o arguido foi condenado numa pena de prisão, pela prática de um crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução, ocorrido em 17-12-2003, sendo a data de extinção de tal pena de 21-06-2012.
O arguido é conotado como sendo toxicodependente.
Não lhe são conhecidos bens ou rendimentos.
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Considerou-se não provado que:
A inquirição do arguido no âmbito do processo de inquérito n o 93/1 O.2TAMDL, ocorreu na esquadra da PSP de Mirandela.
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FUNDAMENTAÇÃO
O arguido foi condenado como autor de um crime de recusa de testemunho p. e p. pelo art. 360 nºs 1 e 2 do Cod. Penal.
Dispõem estas normas:
1 - Quem, como testemunha, perito, técnico, tradutor ou intérprete, perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento, relatório, informação ou tradução, prestar depoimento, apresentar relatório, der informações ou fizer traduções falsos, é punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias.
2 - Na mesma pena incorre quem, sem justa causa, se recusar a depor ou a apresentar relatório, informação ou tradução.
Não consta dos factos provados, como igualmente já não constava da acusação (fls. 41), que a recusa de depor por parte do arguido foi feita «sem justa causa».
A questão suscitada no recurso é a de saber se o inciso «sem justa causa», constante do nº 2 do art. 360 do Cod. Penal, integra o tipo objetivo do crime de recusa de depor. Se a resposta for afirmativa, então o arguido terá de ser absolvido, porque compete à acusação a alegação de todos os factos que integram os elementos constitutivos do crime. Não contendo a acusação factos suficientes para a condenação, nunca pode o tribunal, sob pena de violação da estrutura acusatória do processo penal, alargar a investigação a outros factos que permitam a condenação.
No sentido defendido pelo recorrente, já decidiu o acórdão da Relação de Coimbra de 30-04-2014, relatora ISABEL SILVA, com o seguinte sumário, disponível no sítio do ITIJ daquela Relação (citado na motivação do recurso):
I - O inciso “sem justa causa”, constante do nº 2 do art. 360.º do CP, integra o tipo objectivo do crime de recusa a depor.
II - Consequentemente, a acusação, para que não seja manifestamente infundada, nos termos do artigo 311.º, n.ºs 2 e 3, als. b) e d), do CPP, deve descrever os factos consubstanciadores daquela expressão.
Pese embora a consistência da argumentação, não se concorda.
Vejamos:
São exemplos de «justa causa» para a recusa de depoimento os privilégios consignados na lei processual para alguns familiares do arguido (art. 134 do CPP), a existência de segredo (art. 135 do CPP) ou a alegação pela testemunha de que das respostas resulta a sua responsabilização penal (art. 132 nº 2 do CPP).
A existência de «justa causa» para a recusa de depor é causa de «exclusão da ilicitude» (art. 31 do Cod. Penal). Ou, se se optar por outra terminologia, porventura mais adequada, faz parte dos «tipos justificadores». Nos termos do nº 1 daquele art. 31 do Cod. Penal, “o facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade”.
Verdadeiramente, a expressão «sem justa causa» usada pelo legislador é redundante, porque nenhum comportamento é criminalmente punido quando o agente atua com «justa causa». Ainda que não existisse tal expressão na norma do art. 360 nº 2 do Cod. Penal, nunca seria criminalmente punível a recusa do depoimento nos casos acima apontados (certos familiares, portadores de segredo e direito à não autoincriminação), porque a ilicitude do comportamento sempre estaria “excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade”. A inexistência de «justa causa» não faz parte do tipo de crime. A expressão «sem justa causa» não indica mais de que a recusa não é ilícita se ocorrer algum tipo justificador.
Ora, a obrigação de na acusação serem narrados os factos apenas abrange os que integram o tipo de crime, que são, nas palavras da norma do art. 283 nº 3 al. b) do CPP, os que “fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança”. A acusação não tem de «narrar» factos no sentido de demonstrar que não ocorre alguma causa de «exclusão da ilicitude» (mantendo a terminologia do Código Penal).
Tratando-se de uma causa de exclusão da ilicitude (e não de um elemento do tipo de crime), não tem a acusação de lhe fazer referência na narração dos factos, alegando que o arguido atuou “sem justa causa”. Similarmente ao que sucede, por exemplo, no crime de ofensas corporais em que a acusação não tem de afirmar que o arguido não agiu em «legítima defesa», ou sem o «consentimento do ofendido».
Afigura-se, aliás, que entendimento contrário esbarra numa dificuldade.
Na acusação devem ser narrados «factos» e não conceitos de direito. Afirmar que alguém atuou «sem justa causa» não é imputar um facto, mas formular um juízo ou conclusão que teria de resultar de factos que se consideram assentes. Isso implicaria que na acusação se discriminasse, concretizando, não terem ocorrido factos que demonstrassem não ser o caso de cada uma das hipóteses que poderiam configurar a existência de «justa causa». O que seria tarefa impossível, pois como ensina o Prof. Figueiredo Dias “os tipos justificadores ou causas de justificação são estruturalmente, por sua natureza, gerais e abstratos, no sentido de que não são em princípio referidos a um bem jurídico determinado, antes valem para uma generalidade de situações independentes da concreta conformação do tipo incriminador em análise”. (…). A causa justificativa, ao contrário do que constitucional e legalmente sucede com o tipo incriminador, não está sujeita em princípio à máxima nullum crimen sine lege, nem às suas consequências (…). Nem as concretas causas de justificação precisam de ser certas e determinadas como se exige nos tipos incriminadores; nem elas estão sujeitas à proibição de analogia; nem se está impedido de fazer causas supra legais de exclusão da ilicitude; nem relativamente a elas vale o princípio da irretroatividade da lei penal” – Direito Penal, parte geral, Tomo I, pag. 363.
Sendo tão vasto e abrangente o espectro de factos suscetíveis de integrar um tipo justificador, sempre seria votada ao insucesso a pretensão de na acusação se relatar factos que abrangessem todas as hipóteses conjeturáveis.
Em resumo, posto perante a acusação de se ter recusado a depor, o arguido pode alegar algum facto que integre o conceito de justa causa, suscetível de tornar lícito o seu comportamento. Também o juiz deverá investigar autonomamente tal facto, se a questão se suscitar no julgamento. Nesta parte, nenhuma diferença existe entre a «justa causa» do art. 360 nº 2 do Cod. Penal e as outras causas de «exclusão da ilicitude» nominadas, elencadas no art. 31 nº 2 do Cod. Penal.
O recurso improcede.

DECISÃO
Os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães negam provimento ao recurso confirmando a sentença recorrida.
O recorrente pagará 3 UCs de taxa de justiça, sem prejuízo do decidido quanto ao apoio judiciário