Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
7/16.6GTVCT.G1
Relator: AUSENDA GONÇALVES
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA NEGLIGENTE
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
PROVA PERICIAL
RECONSTITUIÇÃO DO FACTO
PENA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - Apenas existe o vício do erro notório na apreciação da prova quando, de acordo com o texto da sentença, o tribunal a valorou contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de o erro não passar despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente.

II - A prova pericial é um dos meios de prova previstos no C. P. Penal (arts. 151º a 163º) que, ao contrário de qualquer outro, designadamente o do simples exame directo, só deve ser produzido quando o processo e a futura decisão se defrontam com um “plus” de conhecimentos especializados que, por estarem para além das possibilidades de constatação e/ou percepção, efectivas ou presumidas, do tribunal nos campos técnicos, científicos e artísticos, demandam a coadjuvação de quem reúna tais conhecimentos e credibilidade necessários para apreender, com neutralidade, em linguagem comum, a referida complexidade e emitir um juízo especializado.

III - Sendo certo que a ausência de perícia pode implicar vício do processado abarcável pela parte final da alínea d) do n.º 2 do art. 120º do C. P. Penal, sempre que, não obstante a inexistência de literal e específica exigência legal de realização da mesma, ocorra situação em que a essencialidade probatória dela se revele, segundo um critério de necessidade ponderado pela especial natureza dos conhecimentos em causa, todavia, no caso, mesmo que, porventura, fosse de admitir a verificação de tal nulidade, contra o que opinámos, a mesma estaria sanada, por não ter sido arguida antes do encerramento da audiência de discussão e julgamento.

IV - A reconstituição do facto consiste num instrumento previsto no art. 150º do C. P. Penal ao serviço das autoridades judiciárias para indagarem ou obterem meios de prova, autonomizado por referência aos demais meios de prova típicos, com que se pretende determinar se um facto poderia ter ocorrido de determinada forma, mediante a reprodução ou encenação, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido a acção penalmente relevante, pela repetição, embora de modo simulado, da sua realização,

V - Tendo o objectivo principal de propiciar a percepção directa por parte da investigação sobre se a factualidade em questão ocorreu ou não de determinado modo, colhendo-se, assim, o seu valor probatório da observação directa por parte de todos os sujeitos processuais que nele intervêm, mas pode também respeitar a aspectos relativos à prova, p. ex., em situações em que seja necessário demonstrar se, em determinadas circunstâncias, uma testemunha conseguiria ter visualizado os factos que afirma ter observado.

VI - Contudo, é ponto assente que a produção da reconstituição apenas deve ser ordenada para dissipar uma dúvida inultrapassável por outra via, condição sine qua non para que se determine a sua realização.

VII - A testemunha é inquirida sobre factos que constituam objecto da prova e de que possua conhecimento directo (art. 128º, n.º 1, do C. P. Penal), i. é, que a mesma percepcionou através dos seus próprios sentidos, de forma imediata e não intermediada, enquanto no chamado depoimento indirecto a testemunha refere aquilo de que se apercebeu por outros meios de prova relativos aos factos: embora a regra seja a do testemunho directo, a lei não proíbe de forma absoluta a produção de depoimentos indirectos, apenas interdita a sua valoração se o juiz não chamar a depor a pessoa indicada pela testemunha como fonte do conhecimento que transmitiu ao tribunal, já podendo, contudo, ser valorado sempre que a fonte não puder ser inquirida, por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de ser encontrada (art. 129º, n.º 1, do mesmo código).

VIII - Validamente produzido o depoimento indirecto, a sua valoração é feita segundo o princípio geral previsto no art. 127º do C. P. Penal, devendo ser avaliado conjuntamente com a demais prova produzida, incluindo o respectivo depoimento directo, quando prestado, tudo conforme a livre apreciação e as regras da experiência comum.

IX - No caso, estando nós perante uma perícia médico-legal, sujeita ao regime previsto na Lei 45/2004 de 19/8, tendente a avaliar o nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano, o recorrente poderia ter reagido contra o respectivo relatório – que, como se sabe, se presume subtraído à livre apreciação do julgador –, não só pela via de pedido de esclarecimentos como requerendo uma nova perícia, sendo certo que, se tivessem surgido dúvidas em sede de audiência de julgamento e as mesmas apenas pudessem ser removidas pela realização de um nova perícia, nada obstava a que o tribunal oficiosamente ao abrigo do disposto no art. 340º do C. P. Penal, a determinasse. Assim não tendo procedido oportunamente, necessariamente, terá que improceder o recurso com tal fundamento.

X - No crime de ofensa à integridade física negligente, é objectivamente imputável um resultado causado por parte de uma acção humana que tenha criado um perigo juridicamente desaprovado que se realizou num resultado típico (imputação objectiva do resultado à acção) e objectivamente previsível, em abstracto e de acordo com a experiência geral: uma acção só é idónea a produzir o resultado típico quando uma pessoa normal, colocada na mesma situação do agente, tivesse podido prever que, em circunstâncias correntes, tal resultado se produziria inevitavelmente (“prognóstico posterior objectivo”).

XI - E sendo a negligência a omissão de um dever objectivo de cuidado, adequado, segundo as circunstâncias concretas de cada caso, a evitar um evento lesivo, o juízo de censurabilidade depende da capacidade pessoal do agente de reconhecer e observar o dever de cuidado e de prever o resultado e o concreto processo causal, apreciada subjectivamente, i. é, em função das faculdades ou qualidades que lhe assistem.

XII - A pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor (art. 69º, n.º 1, do C. Penal) só pode ser decretada conjuntamente com uma pena principal ou com uma pena de substituição e encontra o seu fundamento na perigosidade que a conduta imprudente do condutor revele e destina-se a actuar psicologicamente sobre ele, visando influir preventivamente na sua conduta futura, numa função adjuvante da pena principal, e, tal como acontece em relação a esta, subjaz-lhe um juízo de censura global pelo crime praticado, daí que para a sua concreta determinação se imponha também o recurso aos critérios estabelecidos no art. 71º do C. Penal, sem se poder descurar as exigências de prevenção geral (negativa ou de intimidação) que se fazem sentir, correspondentes a uma necessidade de política criminal, que se prende com a elevada taxa de sinistralidade que se regista em Portugal.

XIII - A partir da reforma do Código Penal operada pelo DL 48/95 de 15/3, que introduziu a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados nas situações referidas no n.º 1 do art. 69º do Código, só é permitida a suspensão a pena de prisão fixada até ao limite de cinco anos, não a pena de multa, nem essa pena acessória.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

No identificado processo comum singular, do Juízo Local Criminal de Viana do Castelo, do Tribunal Judicial da mesma Comarca, o arguido E. A. foi submetido a julgamento, tendo sido proferida sentença a 13/9/2018, depositada na mesma data, que o condenou pela prática em autoria material e na forma consumada de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelos arts. 13º, 15º, al. b) e 148º, n.º 1 do C. Penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa à taxa diária de 10 (dez) euros, no montante global de 500 (quinhentos) euros, bem como na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por 4 (quatro) meses nos termos do disposto no art. 69º, n.º1, a), do C. Penal.

Inconformado com o decidido, o arguido interpôs recurso, pugnando pela sua absolvição, cuja motivação rematou com as seguintes conclusões (transcrição):

«I - Não há elementos de prova que permitam formar a convicção do tribunal para além da dúvida razoável quanto à dinâmica do acidente de viação ocorrido.
II - O relatório de episódio de urgência e, a informação clínica prestada pelo Centro de Saúde quanto aos antecedentes clínicos do assistente, refuta absolutamente que este tenha sofrido de perda de consciência e estiramento cervical, com parestesia dos ombros, como consequência directa e necessária do embate descrito.
III - Não tendo sido elaborada qualquer reconstituição do acidente nem qualquer perícia aos veículos envolvidos no embate, não é possível conhecer com certeza a causa e a concreta dinâmica do acidente e estamos perante uma nulidade insanável nos termos do artigo 119º e 120º, ambos do Código de Processo Penal.
IV - O passageiro que circulava no veículo que foi embatido pela traseira não é capaz de prestar depoimento isento, objetivo e seguro quanto à dinâmica do acidente porque não consegue ter visibilidade à retaguarda.
V - Através da fotografia da carrinha do assistente e guia de transporte, elementos juntos aos autos, é possível concluir que o assistente circulava com carga que ultrapassava os contornos envolventes da caixa à retaguarda e que o painel P2 não estava colocado no ponto mais à retaguarda do objeto transportado.
VI - A violação da regra de colocação da sinalização do painel P2 e a mercadoria carregada prejudicou a visibilidade, contribuindo para a ocorrência do acidente.
VII - O tamanho da carga que ultrapassava o contorno envolvente à retaguarda do veículo do assistente pode e deve ser obtido mediante cálculo aritmético, desde que sejam conhecidos os tamanhos da caixa de carga e da mercadoria.
VIII - Era essencial conhecer concretamente o tamanho da carga que ultrapassava o contorno envolvente do veículo à retaguarda pois só assim, poderia o tribunal se ter apercebido que o assistente conduzia uma carrinha com carga não devidamente sinalizada, e que por isso prejudicava a visibilidade na condução do assistente.
XI - A conjugação das provas documentais, nomeadamente, a participação do acidente a fls. 6, a informação clínica, o episódio de urgência e as fotografias, impõem a absolvição do arguido.
XII - O relatório final de fls. 206 padece de diversas irregularidades, arguidas em sede de contestação, pelo que não deveria ser valorado pelo tribunal.
XIII - A testemunha M. R. não presenciou os factos, pelo que não poderia ter sido valorado pelo tribunal na qualidade de testemunha - conforme artigo 128º do Código de Processo Penal.
XIV - O relatório pericial de avaliação do dano corporal encontra-se incompleto e contém erros, pelo que padece de irregularidades arguidas em sede de contestação.
XV - O relatório pericial de avaliação do dano corporal foi elaborado quase um ano depois da data de ocorrência do embate, e baseado em elementos falseados pelo assistente, porquanto, não foram transmitidas informações relevantes para a elaboração do mesmo. Nomeadamente, não foram transmitidos as informações clínicas constantes de fls. 358 e 359, onde lê-se que o assistente padece de doenças do aparelho músculo esquelético, desde pelo menos 2012, com queixa de dores no pescoço e nos ombros.
XVI - Os ferimentos alegados pelo assistente não decorrem de causa direta e necessária do embate pois, verifica-se da informação médica que o assistente já padecia destes problemas desde 2012.
XVII - Pelo exposto, não se encontram preenchidos os elementos do tipo de ilícito negligente de que o Arguido, ora Recorrente, vem condenado.
XVIII - O tipo de crime de que foi o Recorrente condenado impõe, para que se possa punir o agente por ofensa à integridade física negligente, que este seja capaz de reconhecer as exigências de cuidado que a ordem jurídica obriga e que seja capaz de as cumprir.
XIX - Trata-se de uma medida individual, subjectiva, aferida de acordo com as suas possibilidade e capacidades concretas e que, em certos casos, poderá revelar-se susceptível de afastar a responsabilidade penal.
XX - A negligência consiste na omissão de um dever objectivo de cuidado ou diligência e na omissão de um dever de cuidado, adequado a evitar a realização de um tipo legal de crime, que se traduz num dever de previsão ou de justa previsão daquela realização, e que o agente (segundo as circunstâncias concretas do caso e as suas capacidades pessoais) podia ter cumprido.
XXI - Além desta condição, é preciso que o agente, preveja que os resultados negativos se irão verificar. Para além de que, será importante analisar a composição dos crimes negligentes, que consiste, essencialmente, numa divisão em tipo de ilícito negligente e culpa negligente.
XXII - O ilícito negligente é a conduta descuidada ou leviana do agente ao realizar a ação não pertencendo, desta forma, tal conduta à culpa negligente e sim, como estamos a ver, ao tipo de ilícito.
XXIII - O ilícito negligente concretiza-se na violação do cuidado a que, segundo as circunstâncias, o agente está obrigado, ou seja, implica a violação, por parte do agente, do cuidado que sobre ele juridicamente impende.
XXIV - Os elementos do tipo de ilícito são dois: a não observância do cuidado objectivamente adequado a impedir a ocorrência do resultado típico e a previsibilidade objectiva do perigo para determinado bem jurídico.
XXV - Este último elemento, irá permitir afirmar ou negar a existência do tipo de ilícito negligente, ou seja, é este elemento da previsibilidade objectiva que nos levará à conclusão no sentido de haver ou não uma verdadeira violação do dever de cuidado. Assim,
XXVI - Aquele elemento estará preenchido, quando a acção praticada pelo agente, aos olhos de uma pessoa cuidadosa, for considerada de forma a ser possível a verificação de um resultado desvalioso.
XXVII - Neste caso, em que é previsível o perigo de modo objectivo, o agente tem que actuar em conformidade com o cuidado objectivamente exigível.
XXVIII - Pode acontecer, que o agente tenha atuado com o cuidado exigível, mas apesar disso tenha tido lugar um resultado desvalioso, e, aqui, este resultado não será imputável à sua ação, pois ao não haver desvalor da ação não existe ilícito.
XXIX - Quanto ao primeiro elemento, que diz respeito à violação do dever de cuidado, este implica que na hipótese de este dever ser observado, e por isso não violado, haveria uma enorme probabilidade do resultado desvalioso ser impedido e, portanto, não se verificar.
XXX - Quanto à culpa negligente explica-se, segundo Taipa de Carvalho, como sendo a atitude ético-pessoal de descuido ou leviandade do agente perante o bem jurídico lesado ou posto em perigo pela respetiva ação ilícita negligente, i.e., a violação do cuidado que o agente, segundo os seus conhecimentos e capacidades pessoais, está em condições de prestar.
XXXI - Assim, os pressupostos da culpa negligente são: a previsibilidade subjectiva do perigo e a possibilidade de o agente ter cumprido o dever objetivo de cuidado.
XXXII - Antes de avançar, é relevante reforçar que, aqui, o critério da previsibilidade subjetiva, como a expressão denuncia, tem, obrigatoriamente, que ser analisado subjetiva e individualmente, ao contrário da previsibilidade objectiva (elemento do ilícito negligente), uma vez que se trata de um critério objetivo. Ora,
XXXIII - Previsibilidade subjectiva do perigo representa a possibilidade de o agente, segundo as suas capacidades individuais e as circunstâncias concretas em que a ação é praticada, ter previsto os perigos ou riscos da sua ação.
XXXIV - Descendo ao caso vertente, e de acordo com o que supra se expôs, podemos concluir que não estão preenchidos os elementos do tipo legal de crime negligente de que o Arguido, ora Recorrente, foi condenado, uma vez que o Arguido foi um condutor diligente, que tentou evitar o sinistro sub judice, porém, por circunstâncias a si transcendentes, designadamente, o facto de o assistente ter guinado para a esquerda sem que nada o fizesse prever, obstou a que o Arguido, ora Recorrente, pudesse evitar a colisão, por mais diligente e prudente que fosse.
XXXV - Aliás, sendo o Arguido um condutor experiente e habilitado a conduzir desde 1991, por mais previdente que possa ser o seu comportamento em estrada destinado ao tráfego rápido, como na via em questão, não pode contrariar as leis da física relativamente à distância de reacção, que é medida de acordo com a velocidade instantânea do veículo e com o tempo de reacção do condutor, muito menos quando se depara com um veículo que ao circular à sua frente, interfere na sua rota.
XXXVI - Pelo que, não poderá ser outra a conclusão, de que não estão verificados, os pressupostos do ilícito negligente, na medida em que, o acidente, não se ficou a dever a negligência do Arguido, ora Recorrente, mas deveu-se a circunstâncias estranhas à sua vontade e à sua capacidade de previsão e reacção, e que, não seria de exigir a um homem médio colocado naquelas circunstancias e com as capacidades do Arguido, agir de outra maneira.
XXXVII - Por outro lado, também não se logrou provar conforme já enfatizamos no item anterior, o nexo de causalidade entre o facto e os danos causados ao assistente, uma vez que este já padecia da síndrome vertebral com irradiação de dor desde pelo menos, 2012.
XXXVIII - Os elementos do tipo legal de crime de ofensas à integridade física por negligência não se encontram todos preenchidos, pelo que, o Tribunal a quo, fez uma subsunção errada dos factos ao crime, previstos no artigo 148º nº 1 do C.P, o qual devia ter interpretado e aplicado no sentido da absolvição do Arguido, ora Recorrente.
XXXIX - Caso assim não se entenda, o que não se concede e se considere que os factos praticados pelo recorrente consubstanciam a prática de um crime de ofensas à integridade física por negligência previsto e punido pelo artigo 148º do C.P. deve ter-se em atenção as regras plasmadas no artigo 40º nº 1 e 2 do C.P, de acordo com o qual: a aplicação das penas visa (.) a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa
XL - Para além disso, na determinação da medida da pena, o julgador deve ter em atenção as circunstâncias previstas no artigo 71º do C.P, que visam fornecer ao Julgador módulos de vinculação na escolha da medida da pena.
XLI - O enquadramento fáctico-jurídico, prevê que a determinação da medida da pena, dentro dos limites mínimos previstos na lei é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
XLII - Ou seja, o Tribunal, deve atender a todas as circunstâncias, que não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido.
XLIII - In casu, não nos podemos esquecer que estamos perante uma conduta negligente - em que o arguido não previu os factos integradores do tipo de ilícito (negligência consciente).
XLIV - Por outro lado, o arguido tem 46 anos de idade e não tem antecedentes criminais. O crime que lhe foi imputado foi um episódio único na sua vida, sendo por isso um condutor exemplar.
XLV - Para além disso, o Arguido está inserido profissional e socialmente e tem a seu cargo dois filhos menores, e sempre se mostrou cooperante para a descoberta da verdade, prestando declarações em audiência de julgamento. Sendo considerado no seu meio familiar e profissional como um excelente pai, colega e trabalhador.
XLVI - Por sua vez, as consequências decorrentes do acidente de viação, com o devido respeito, não foram de tal forma gravosas que culminaram na perda da vida ou em incapacidades permanentes, para o assistente.
XLVII - Ponderadas todas estas circunstâncias, deve considerar-se adequada a pena de admoestação.
XLVIII - Por outro lado, tribunal a quo aplicou ao arguido/ora recorrente a pena acessória de 4 meses de proibição de conduzir veículos motorizados, de acordo com o disposto no art. 69º nº 1 a) do C.P. Sucede que a aplicação da pena acessória de inibição de conduzir, deve ter por base as circunstâncias do caso concreto, a culpa do agente e as exigências de prevenção e, tem de respeitar os princípios da necessidade, da mínima restrição de direitos e da adequação e proporcionalidade.
XLIX - Além do mais, tenhamos presente o princípio do carácter não automático dos efeitos das penas. Este princípio encontra-se consagrado no artigo 65º nº 1 do CP, nos termos da qual nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de direitos civis, profissionais e políticos. Assim para que se justifique a aplicação de uma pena acessória é necessário que o juiz comprove, no facto, um particular conteúdo ilícito, que justifique materialmente a aplicação em espécie da pena acessória, Figueiredo Dias in Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime Aequitas, Editorial Noticias, 1993, p. 158.
L - Para além disso, a aplicação da pena acessória de inibição de conduzir, não serve as finalidades da reintegração social do agente, mas tão só a sua dissuasão da prática da infracção a que se reporta. Ou seja, esta pena, serve exigências de prevenção especial e não geral.
LI - E, salvo o devido respeito, ao nível da prevenção especial, não estão reunidos elementos que fundamentem a aplicação da pena acessória.
LII - Com efeito, o tribunal a quo na aplicação da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, considerou automática a aplicação da pena acessória, não tendo verificado se os elementos e pressupostos estariam preenchidos no caso concreto e esta consideração retira-se da própria ausência de motivação na sentença para a sua aplicação- que se fez por pura remissão.
LIII - Ora, no caso em concreto e uma vez que o grau de ilicitude do facto e a censurabilidade da conduta do arguido foram diminutos, não existe justificação para a pena acessória aplicada.
LIV - Na verdade, não nos podemos esquecer que estamos perante uma conduta negligente - em que o arguido não previu os factos integradores do tipo de ilícito (cfr. Consta da douta sentença que considerou que: o arguido não previu como possível a possibilidade de, naquelas circunstâncias, colidir com o veículo das vítimas, provocando, desse modo, lesões na sua integridade física.)
LV - Sem prescindir e caso assim não se entenda, no caso de se entender ser de aplicar a pena acessória de inibição de conduzir, seja a mesma suspensa na sua execução, atendendo todos os circunstancialismos supra invocados, porquanto, a simples censura do facto, a ameaça da inibição de condução, se o venerado desembargador a considerar necessária, bastam para a realização de forma adequada e suficiente das finalidades da punição de prevenção geral e prevenção especial.
LVI - Caso assim não se entenda e sem prescindir, sempre se diga que, face à matéria dada como provada, o período de 4 meses é excessiva pois na determinação da pena acessória deve ter-se por base as circunstâncias do caso concreto, a culpa do agente e as exigências de prevenção.
LVII - In casu, para além dos factos supra referidos, convém ter em linha de conta que o arguido é profissionalmente activo e utiliza o seu automóvel para as suas deslocações profissionais e também pessoais. Para além disso, esta pena não parece ter em conta a ilicitude diminuta do facto, a inexistência de antecedentes criminais e as condições pessoais do arguido e a sua situação pessoal e profissional, e nem mesmo as exigências de prevenção especial e geram o justificam.
Pelo que, a medida acessória a ser aplicada deve ser reduzida para o seu limite mínimo de três meses.

Nestes termos e nos melhores de direito doutamente supríveis, requer a Vossa Excelência seja reapreciada a matéria de facto e a matéria de direito devidamente especificada ao longo do recurso, e consequentemente, Vossas Excelências Venerandos Desembargadores se dignem dar provimento ao presente recurso, revogando a decisão recorrida e substituindo-a por vosso douto Acórdão que absolva o arguido do crime de que vinha acusado. Só assim será feita a douta e habitual JUSTIÇA!».

O recurso foi regularmente admitido.

O assistente respondeu ao recurso dizendo que deve ser negado provimento ao mesmo, mantendo-se a decisão recorrida, por não merecer qualquer tipo de censura.

O Ministério Público, em 1ª instância, também respondeu ao recurso, pugnando pela sua total improcedência, por entender que todos os elementos de prova que serviram para formar a convicção do tribunal foram congruentes e credíveis, sustentando cabalmente todos os factos que ficaram a constar da sentença recorrida, que se mostra devidamente fundamentada, não tendo havido violação de qualquer preceito legal, designadamente do vício de erro notório a que alude o nº 2 do art. 410º do CPP, e, por isso, não merece qualquer censura. Também sustenta que o crime pelo qual o arguido acabou por ser condenado se encontra correctamente enquadrado na matéria de facto que foi dada como provada e que a pena aplicada é perfeitamente ajustada à medida da culpa do arguido, não tendo qualquer cabimento a pretendida suspensão da pena acessória de inibição de conduzir.

E, neste Tribunal, a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer, complementando o argumentado em 1ª Instância, para que remete, sustentado que a pena acessória aplicada ao arguido não pode ser confundida com a sanção acessória de inibição de conduzir prevista no art. 147º do C. da Estrada, não podendo ser suspensa na sua execução sob pena de violação dos princípios da legalidade e da tipicidade.

Foi cumprido o art. 417º, n.º 2, do CPP, tendo o arguido respondido ao parecer reiterando toda a argumentação feita em sede de alegações de recurso, pugnando uma vez mais pela sua absolvição.

Efectuado exame preliminar e, colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, nos termos do art. 419º, n.º 3, al. c), do CPP.
*
II – Fundamentação

Na medida em que o âmbito dos recursos se delimita pelas respectivas conclusões (art. 412º, n.º 1, do CPP), sem prejuízo de questões que importe conhecer oficiosamente, por obstarem à apreciação do seu mérito (1), no recurso suscitam+-se as seguintes questões (organizadas pela ordem lógica das consequências da sua eventual procedência):

1. As nulidades decorrentes da não realização de perícia aos veículos/reconstituição do acidente e valoração de depoimento proibido;
2. O enquadramento jurídico dos factos;
3. A substituição da medida da pena (admoestação);
4. A medida da pena e sua substituição.
*
Importa apreciar e decidir tais questões, para o que deve considerar-se como pertinentes os factos considerados provados e não provados na decisão recorrida (sic):

Factos provados

1. No dia .. de … de 2015, pelas 18.015h, o assistente J. M. conduzia o veículo automóvel ligeiro de mercadorias matrícula ..., na Auto-Estrada A28, no sentido norte/sul, ou seja, Viana do Castelo/Porto, pela via mais à direita atento o referido sentido de trânsito.
2. Em igual via e sentido de trânsito, seguia, atrás do veículo conduzido pelo assistente, um veículo automóvel conduzido por José.
3. Atrás do veículo referido em 2), seguia o veículo automóvel matrícula ..., veículo automóvel este conduzido pelo ora arguido E. A..
4. O ofendido conduzia o veículo melhor id. em 1) a uma velocidade de cerca de 70/80 km/h, sendo que o veículo automóvel que seguia atrás dele e referido em 2) circulava a uma velocidade semelhante àquela.
5. A dado momento, o veículo automóvel conduzido pelo arguido – que seguia animado de velocidade não concretamente apurada mas bastante superior à referida em 4) – iniciou manobra de ultrapassagem, pela esquerda, do veículo conduzido por José.
6. Após ter ultrapassado o veículo referido em 5), o arguido, já próximo do Km 68,500, voltou à faixa mais à direita da A28, momento em que embateu na traseira do automóvel ligeiro de mercadorias matrícula ....
7. Como consequência directa e necessária do embate descrito, o assistente sofreu perda de consciência e estiramento cervical, com parestesias dos ombros.
8. As lesões referidas em 7) determinaram um período de 166 para a consolidação médico-legal sem afectação da capacidade de trabalho geral e com 30 dias de afectação da capacidade de trabalho profissional.
9. A via e local onde ocorreu o supra descrito acidente de viação é uma auto-estrada, composta por duas vias de trânsito, com duas bermas e duas valetas e descreve uma recta, tendo a faixa de rodagem uma largura de 7,2 metros.
10. O piso é composto por asfalto betuminoso, em bom estado de conservação e na altura do descrito acidente, encontrava-se seco.
11. O limite de velocidade permitido no local é de 120 km/h.
12.Relativamente à sinalização, a mesma, atento o sentido de marcha do ofendido e arguido, é composta por: a. Sinalização vertical:- Sinais de proibição:– Sinal “C20a” – fim de todas as proibições impostas anteriormente por sinalização a veículos em marcha; - Sinal “C13” – proibido exceder a velocidade máxima de 120 km/hora. - Sinais de obrigação: - Sinal “D8” – Obrigação de transitar à velocidade mínima de 50 km/hora. - Sinais Complementares: Sinal “02c” – Demarcação hectométrica da via (68,500). b. Sinalização horizontal: Marcas longitudinais:- Marca “M2” – Linha descontínua;
13. O embate supra descrito poderia ter sido evitado se o arguido tivesse prestado a atenção e cuidados necessários à manobra de ultrapassagem que realizou ao veículo conduzido por José, e, ao voltar à via da direita, adequasse a velocidade do seu veículo automóvel à dos demais utentes da via de forma a poder executar as manobras necessárias para fazer parar o seu veículo no espaço livre e visível à sua frente, sabendo que, ao assim agir, imprudente e distraidamente, podia fazer com que o seu veículo embatesse em veículos que aí circulassem e onde pretendia entrar, conforme veio a acontecer e provocar a morte ou ofensas à integridade física das pessoas que neles circulassem.
14. O arguido sabia que a sua descrita actuação o tornava incurso em responsabilidade criminal.
15. O arguido é director bancário, no que aufere cerca de 3000 euros por mês e a esposa é bancária, auferindo mensalmente cerca de 1500 euros.
16.Residem com 2 filhos de 8 e 15 anos em casa própria, pela qual paga mensalmente 1200 euros.
17.Tem ainda como despesa mais relevante a renda da casa de Lisboa no que despende mensalmente cerca de 700 euros.
18. Não tem antecedentes criminais.
19. É um condutor experiente e habitualmente conduz com segurança.
20. Nas circunstâncias de tempo e local id. em 1. o veículo .. transportava material.

Factos não Provados

1. Que foi o veículo conduzido pelo assistente que de repente guinou para a faixa da esquerda dando causa ao embate entre a sua frente direita e a traseira esquerda do veículo conduzido pelo assistente.
2. Que o assistente transportava material que prejudicava a visibilidade dos veículos na via e que lhe retirou a visibilidade na condução.
*
E a motivação que incidiu sobre a matéria de facto foi a seguinte:

A convicção do tribunal formou-se no correlacionamento da prova documental, pericial e pessoal produzida, que foram as declarações do arguido, declarações do assistente e depoimentos prestados por todas as testemunhas inquiridas, conjugados com as regras de experiência comum e do normal acontecer.

Assim, o tribunal atendeu nomeadamente:

- aos relatórios médicos de fls. 33 a 34 v e de fls. 57 a 58 v.;
- à participação de acidente de viação de fls. 6 e ss (conjugada com o aditamento de fls. 140); elementos clínicos de fls. 28 a 30 e 44 a 45; RIC de fls. 83; relatório final de fls. 206 e ss; CRC de fls. 296; doc. de fls. 305 v a 312; certidão de fls. 322 e ss; doc. de fls. 335, doc. de fls. 341 a 365;
- às declarações do arguido E. A., o qual declarou que circulava no dia e hora em causa na condução do seu veículo, na faixa da esquerda, à velocidade máxima de 100 km /h e a determinada altura uma carrinha de faixa aberta guinou para a esquerda, causando o embate. Chegou a travar. Pensa que ficaram marcas no local. Esteve no local até a viatura se rebocada. A polícia demorou cerca de 30 minutos a chegar. Questionado sobre a posição final dos veículos respondeu que a carrinha ficou na berma e o veículo dele ficou também na berma, fruto do peão que deu.
É director bancário, no que aufere cerca de 3000 euros por mês e a esposa é bancária, auferindo mensalmente cerca de 1500 euros. Residem com 2 filhos de 8 e 15 anos em casa própria, pela qual paga mensalmente 1200 euros. Tem ainda como despesa mais relevante a renda da casa de Lisboa no que despende mensalmente cerca de 700 euros.
- às declarações do assistente J. M., que contou ao tribunal que circulava no dia, hora e local em causa, na faixa da direita, talvez há 500, 600 m, e de repente sentiu um estrondo; foi embatido na traseira da sua carrinha. Ainda andou 30, 40 metros até se imobilizar na berma. O outro veículo ficou imobilizado mais atrás, na berma. Os colegas seguiam noutro veículo 200/300 metros atrás dele. Questionado sobre se trazia carga na carrinha respondeu que sim e que a carga, sinalizada, estaria 60, 80 cm fora da carrinha.
- ao depoimento da testemunha J. B., o qual contou ao tribunal que ia dentro da carrinha com o assistente. O acidente foi a meio da ponte. Iam na faixa direita e sentiram uma “cacetada” por trás. Ainda andaram 70, 80 m até parar. Atrás vinham dois colegas, a 200/300 metros.
Circulavam à velocidade de 70/80 km; vinham carregados. A carga estava sinalizada, tinha o sinal “p2” atrás.
O carro só travou quando bateu.
Ninguém mexeu nos carros até chegar a polícia.
- ao depoimento da testemunha R. F., que contou ao tribunal que presenciou o acidente, que foi a meio da ponte. Ia com o José, atrás do carro embatido, para ajudar num trabalho (seguiam a 70, 80 Km /h; ele era o passageiro), seguiam à distância de cerca de 250 m do veículo do assistente, na faixa da direita.
Sobre o que concretamente aconteceu respondeu que o veículo do arguido vinha com bastante velocidade, ultrapassou-os, entrou na faixa da direita, andou cerca de 100 m e embateu na carrinha do assistente. Bateu alinhado, no centro do carro.
Depois do embate, o carro que bateu ficou logo a seguir, na berma. O carro do J. M. foi projectado e ficou na berma. Eles foram à faixa da esquerda e ultrapassaram; depois do acidente, não pararam.
Ficaram vidros na faixa da direita, do Ford.
- ao depoimento da testemunha José, que circulava noutro veículo atrás do assistente, talvez à distância de 200/250 m e à velocidade de cerca de 70 km/h. Sobre o que concretamente se passou contou ao tribunal que um carro ultrapassou-o, encostou à direita e bateu na traseira do veículo do assistente.
A ultrapassagem foi a grande velocidade. O veículo do assistente ainda andou uns metros para a frente.
No fim do acidente ele passou pela esquerda, os carros já estavam parados, ainda viu o Viana a sair da carrinha, os carros ficaram na berma do lado direito (rectius, a carrinha na berma, o carro quase a entrar na berma). Os vidros ficaram entre o lado direito e a berma.
-ao depoimento da testemunha J. R., agente da BT, que foi quem fez a investigação, recolheu o testemunho dos intervenientes, e foi depois ao local (mas isto passado muito tempo). Chegou à conclusão que o embate foi na via da direita, pois os vestígios estavam entre o lado direito e a berma. Do lado esquerdo não havia vestígios nem marcas de travagem. Não viu os veículos. Confrontado com as fotografias juntas aos autos refere que mais confirmam que o embate foi do lado direito da faixa: se o embate fosse na diagonal, os danos eram na extrema da carrinha (no ângulo) e não foram (e nesse caso a carrinha rodopiava ou embatia no separador central).A posição final da carrinha não é compatível com a dinâmica relatada pelo arguido.
-ao depoimento da testemunha Maria, esposa do assistente, que contou ao tribunal que ele telefonou-lhe a contar do acidente. Foi levar a casa a carga com o reboque e depois ela foi levá-lo ao hospital porque estava cheio de dores (que não tinha antes). No hospital foi medicado com analgésicos. Continua a ter dores no pescoço e costas. Cada vez está pior, sobretudo com as mudanças de tempo.
- ao depoimento da testemunha H. M., da GNR BT, que acompanhou o participante ao local. Tem presente a participação elaborada. Ajudar a tirar medidas na recolha dos vestígios.
- ao depoimento da testemunha F. R., também da GNR BT, que foi ao local após o acidente vendo os veículos na berma, conforme estão no croquis.
Os vestígios eram do automóvel ligeiro de passageiros. A maior concentração de vestígios estava na berma. Também havia na via, não fez constar do croquis.
Disseram-lhe que os veículos foram encostados na berma, não sabe a posição original.
- ao depoimento da testemunha A. M., profissional de Seguros da X Seguros, que foi gestora do processo na parte final e que questionada respondeu que a seguradora assumiu 50% de responsabilidade.
- ao depoimento da testemunha L. F. que faz algumas viagens com o arguido e a quem ouviu falar do acidente logo dias depois. Ele contou da guinada da carrinha. O arguido viaja muito e faz muitos km. É um condutor bastante seguro e experiente.
- ao depoimento da testemunha M. H., que conhece o arguido da …. Contou ao tribunal que no dia e hora em causa passou no local, no sentido norte/ sul. Ultrapassou a carrinha (e outros carros) e quando vem a passar da esquerda para a direita, para sair para Darque, viu pelo retrovisor a carrinha a fazer uma manobra repentina para a esquerda e apercebeu-se de um acidente (porque a carrinha não continuou com a manobra; não viu o embate). Não se apercebeu do carro do arguido. Havia um carro ligeiro entre o dela e a carrinha quando houve o acidente; quando vem do lado esquerdo, atrás do seu veículo, à frente do arguido, viria outro veículo.
Analisada conjugada e criticamente a prova produzida, temos então que o tribunal se deparou com duas versões contraditórias da dinâmica do acidente, cada uma delas suportada por prova testemunhal, logrando impor-se a versão do assistente, sustentada e corroborada pelos depoimentos isentos, objectivos, seguros, credíveis e no essencial coerentes entre si pelas testemunhas que respectivamente seguiam a seu lado e no veículo que circulava imediatamente atrás (J. B., R. F. e José), e que como tal presenciaram o embate, sendo que a versão apresentada é coerente com os danos verificados nos veículos (parte frontal/parte traseira), a posição final dos mesmos (na berma) e bem assim a localização da maioria dos vestígios que ficaram no local (cfr. fotografias juntas aos autos e depoimento das testemunhas J. R. e F. R. da GNR BT), assim se formando no tribunal a convicção de que o embate ocorreu quando o veículo conduzido pelo arguido entrou na faixa de trânsito em que seguia o assistente, sem atentar no trânsito que aí circulava, causando assim o embate.

Da conjugação desta prova resultou para o tribunal cabalmente infirmada a versão do arguido de que o embate terá ocorrido quando o ligeiro de mercadorias repentinamente invadiu a sua faixa de rodagem, versão corroborada pela testemunha M. H., mas que não logrou convencer o tribunal, por ter sido infirmada pela demais prova produzida, nos termos expostos, e ainda por ser muito pouco credível, face às regras de experiência comum e do normal acontecer, que esta testemunha pudesse ter visto o que afirmou que viu, à sua rectaguarda, ou seja, pelo retrovisor, quando vai a conduzir e a efectuar a manobra que referiu, e com veículos de permeio entre o seu e a carrinha (para tanto seria necessário que de facto circulasse no local, que tivesse visibilidade e que tivesse olhado nesse preciso instante… não logrou convencer o tribunal desse conjunto de factos coincidentes- note-se aliás que as outras testemunhas, presenciais, colocam-se de forma credível umas às outras no local e esta testemunha ninguém a viu).

Em face do exposto, formou-se no tribunal a convicção serena e segura, para além de qualquer dúvida razoável, que o arguido praticou os factos que resultaram provados.

Atendeu-se à prova documental e pericial supra referida (elementos clínicos e relatório médico legal já constante da fase de Inquérito) quanto às consequências que do acidente advieram para o assistente (sustentadas pelas suas declarações e depoimento da esposa e não infirmadas pela demais prova documental junta na fase de julgamento).
Valoraram-se as declarações do arguido quanto à sua situação económica e o depoimento das testemunhas que o conhecem quanto à sua experiência como condutor.
Tomou-se em consideração o CRC junto aos autos.
A factualidade não provada decorreu de ter sido apurado facto em manifesta contradição com a mesma (ponto 1.) e da ausência de prova da sua verificação (ponto 2).
*
III- O Direito.

1. As nulidades.

O arguido na conclusão III invoca uma nulidade que reputa de insanável nos termos do artigo 119º e 120º, do C. de Processo Penal, alegando que não foi elaborada uma reconstituição do acidente nem qualquer perícia aos veículos envolvidos no embate, não sendo possível conhecer com certeza a causa e a concreta dinâmica do acidente.

Embora a vertente recursiva atinente à matéria de facto não tenha sido suficientemente explicitada, tudo leva a crer que o recorrente teria em mira impugnar a respectiva decisão pela via dos vícios do art. 410º, n.º 2 e pela do erro de julgamento, por deficiente apreciação dos meios de prova (testemunhal, documental e pericial) invocados no corpo da respectiva motivação, mas o mesmo acabou por não transpor para as conclusões delimitadoras do objecto do recurso essa pretensão.

Ora, como é consabido, as conclusões constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, não pode este tribunal conhecer do putativo erro de julgamento e a impugnação da matéria de facto pela via mais restrita consentida pelo art. 410º, n.º 2, do CPP, a que o recorrente também alude, foi efectuada fora das condições legais e não se detecta a existência de qualquer dos vícios formais previstos no preceito.

Com efeito, num pequeno parêntesis, dir-se-á que quanto aos vícios formais previstos nesse art. 410º, n.º 2, seria suposto que a impugnação incidisse no eventual erro na construção do silogismo judiciário, não no chamado erro de julgamento, na injustiça ou na desadequação da decisão proferida ou na sua não conformidade com o direito substantivo aplicável (2). Tratar-se-ia, nessa vertente, de saber se na decisão recorrida se reconhece qualquer desses vícios, necessariamente resultantes do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

O que significa que só assumem tal natureza os erros constatáveis pela simples leitura do teor da própria decisão sobre a matéria de facto, não sendo admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para os fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (3).

A jurisprudência tem relacionado o vício contemplado na alínea c) de tal preceito apenas aos erros que, ponderados os factos provados e não provados, advêm de o tribunal ter retirado uma conclusão ilógica ou arbitrária, à margem duma análise racional ou em violação das regras de experiência comum, e que, por isso, não escapa à análise do homem médio (4). Assim, apenas existe o vício do erro notório na apreciação da prova quando, de acordo com o texto da sentença, o tribunal a valorou contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de o erro não passar despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente (5). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, traduzido, basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido ou dar-se como não provado o que não pode ter deixado de ter acontecido (6).

Como linearmente se extrai, no caso em apreço, não se constata pela simples leitura do teor da decisão recorrida o vício (formal) que o recorrente lhe pretenderia assacar, pois, para além de os factos considerados provados sustentarem cabalmente a sua condenação, também não são contraditórios em si mesmos ou com aqueles que foram dados como não provados ou com a fundamentação que sobre eles incidiu, assim como também não se vislumbra que a apreciação dos meios de prova tivesse afrontado qualquer princípio jurídico ou as regras da experiência comum.

Em suma, neste e nos demais aspectos versados no recurso, o que está verdadeira e unicamente em causa é que o recorrente, não se conforma com a circunstância de o tribunal de 1ª instância ter acolhido uma versão dos factos que lhe era desfavorável sobre a matéria de facto, aí fazendo radicar o aludido vício que aponta à decisão recorrida e que expressamente apoda, de erro notório na apreciação da prova.

Constituem objecto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não do respectivo agente e a determinação da pena ou da medida de segurança a aplicar (art. 124º, n.º 1, do CPP), aqui se incluindo, naturalmente, os factos relevantes alegados pela acusação e pela defesa bem como os resultantes da discussão da causa e, ainda, os factos dos quais podem ser inferidos aqueles outros.

Com efeito, para que se possa atribuir a alguém a responsabilidade de um acto com relevância penal, tal circunstância está dependente da demonstração da sua participação no acontecimento através da produção da prova. E nos termos do art. 341º C. Civil “as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos”.

Como sublinha Figueiredo Dias, a verdade processual – a resultante da prova – é uma verdade subtraída à influência que sobre ela acusação e defesa pretendam exercer, através dos respectivos comportamentos processuais, e, também, uma verdade que, não sendo absoluta, há-de ser uma verdade judicial, prática e, sobretudo, uma verdade processualmente válida, não obtida a todo o preço (7).

Nesta decorrência, afirmando o princípio da legalidade da prova, dispõe o art. 125º, do CPP, que são admissíveis todas as provas que não forem proibidas por lei. Ao invés, são proibidas – nulas – as provas obtidas mediante métodos proibidos de prova (art. 126º), sendo admissíveis, por outro lado, todos os meios de prova que não sejam vedados por lei.

E de harmonia com o disposto no art. 127º, do mesmo diploma as provas são, em princípio, apreciadas segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador sendo necessário que o processo de formação dessa convicção seja explicado, esclarecendo-se nomeadamente porque se entende que ele se encontra em conformidade com as regras da experiência.

1.1. A não realização de perícia.

Centremo-nos, pois, nesta invocada nulidade.
A prova pericial é um dos meios de prova previstos no C. P. Penal, encontrando-se regulada nos arts. 151º a 163º, dispondo o primeiro normativo que a prova pericial tem lugar quando a percepção ou apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos.

Já Manuel de Andrade (8) afirmava que a perícia «[t]raduz-se na percepção, por meio de pessoas idóneas para tal efeito designadas, de quaisquer factos presentes, quando não possa ser directa e exclusivamente realizada pelo juiz, por necessitar de conhecimentos científicos ou técnicos especiais, ou por motivos de decoro ou de respeito pela sensibilidade (legítima susceptibilidade) das pessoas em quem se verificam tais factos; ou na apreciação de quaisquer factos (na determinação das ilações que deles se possam tirar acerca doutros factos), caso dependa de conhecimentos daquela ordem, isto é, de regras de experiência que não fazem parte da cultura geral ou experiência comum que pode e deve presumir-se no juiz, como na generalidade das pessoas instruídas e experimentadas.».

Identicamente, Germano Marques da Silva (9) define a perícia como a actividade de avaliação dos factos relevantes realizada por quem possui especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos.

A perícia é ordenada por despacho da autoridade judiciária competente, oficiosamente ou a requerimento de qualquer sujeito processual (art. 154º, n.º 1, do CPP), competindo a sua determinação ao Ministério Público na fase do inquérito, com ressalva do caso previsto no nº 3 do art. 154º (cuja competência é deferida ao juiz de instrução), e ao juiz de instrução ou do julgamento, em cada uma das fases respectivas.

Mas a perícia, ao contrário de qualquer outro meio de prova, designadamente do simples exame directo, é um meio de prova que só deve ser produzido quando o processo e a futura decisão se defrontam com conhecimentos especializados que estão para além das possibilidades de constatação e/ou percepção, efectivas ou presumidas, do tribunal nos campos técnicos, científicos e artísticos.

Ou seja, apenas quando o tribunal se depara com questões que exigem o referido “plus” de tais conhecimentos é que é suposto que seja coadjuvado por quem reúna os conhecimentos e credibilidade necessários para apreender, com conhecimento e neutralidade, em linguagem comum, a referida complexidade e emitir um juízo especializado.
No caso concreto, a matéria submetida à apreciação do tribunal, salvo o devido respeito por opinião contrária, não exige um conhecimento especializado que impusesse a realização de uma perícia nos termos agora ventilados pelo recorrente, que, aliás, anteriormente não a reputou de necessária, pois a não requereu em qualquer das aludidas fases processuais.

Do que aqui se tratou foi apurar a responsabilidade – e respectiva medida – pela produção do evento verificado (acidente), segundo um juízo que, em face do concreto circunstancialismo, para além de não carecer de um especial saber técnico/científico, pôde perfeitamente ancorar-se na panóplia de meios de prova existentes nos autos, designadamente os depoimentos prestados testemunhas que presenciaram os factos, como sucedeu, e que descreveram o resultado da sua observação e da apreensão que fizeram dos mesmos, permitindo ao tribunal afirmar a factualidade tida por assente.

Na verdade, o juízo exigível para se considerar a indiciação suficiente deve afirmar-se numa fórmula de forte ou alta probabilidade de condenação, de forte convicção de condenação do arguido.

Ora, ressalta da decisão recorrida sobre os factos uma imagem lógica do que realmente aconteceu, sem que subsistam dúvidas de que o recorrente foi o responsável pela produção do sinistro. E também resulta da respectiva motivação, acima transcrita, que a Sra. Juíza indicou cabalmente os fundamentos que foram decisivos para a formação da sua convicção e as razões pelas quais relevaram os meios de prova de que se socorreu e obtiveram credibilidade no seu espírito.

É certo que a ausência de perícia pode implicar vício do processado abarcável pela parte final da alínea d) do n.º 2 do art. 120º do CPP, sempre que, não obstante a inexistência de literal e específica exigência legal de realização da mesma, ocorra situação em que a essencialidade probatória dela se revele, segundo um critério de necessidade ponderado pela especial natureza dos conhecimentos em causa.

Todavia, mesmo que, porventura, fosse de admitir, contra o que opinámos, a verificação de tal nulidade, esta estaria sanada, por não ter sido arguida antes do encerramento da audiência de discussão e julgamento.

Improcede, pois, este segmento do recurso.

1.2. A reconstituição do acidente.

O recorrente também pugna pela necessidade de uma reconstituição dos factos, sem a concretizar, mas infere-se da sua alegação que se está a reportar à dinâmica do acidente.

Vejamos.

A reconstituição do facto como típico meio de prova vem prevista no art. 150º do CPP, definindo a lei os respectivos pressupostos e procedimento.

A reconstituição do facto consiste num instrumento ao serviço das autoridades judiciárias para indagarem ou obterem meios de prova, mediante a «reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo», que vem regulado no n.º 2 do citado preceito, com indicação dos respectivos pressupostos procedimentais, que devem ser fixados no despacho que a determinar.

Previsto como meio de prova, autonomizado por referência aos demais meios de prova típicos, uma vez realizado e documentado em auto ou por outro modo – eventualmente em registo audiovisual (art. 150º, n.º 2, 1ª parte, in fine do CPP) –, vale como meio de prova processualmente admissível sobre os factos a que se refere, isto é, como meio válido de demonstração da existência de certos factos, a valorar, como os demais meios, «segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente» (art. 127º do CPP) (10).

Com a reconstituição do facto pretende-se determinar se um facto poderia ter ocorrido de determinada forma, mediante a reprodução ou encenação, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido a acção penalmente relevante, pela repetição, embora de modo simulado, da sua realização (11).

A finalidade principal é, pois, verificar se poderia ter ocorrido de certa forma um determinado facto que a entidade investigante julgue ter acontecido, nomeadamente resultante das declarações dos vários intervenientes processuais, confirmando-o ou infirmando-o.

Dito por outras palavras, é um instrumento que visa facultar ao tribunal as ferramentas necessárias para a fundamentação das suas decisões.

Destarte, a reconstituição do facto consiste numa acção cujo objectivo é a percepção directa por parte da investigação sobre se a factualidade em questão ocorreu ou não de determinado modo, colhendo-se, assim, o seu valor probatório da observação directa por parte de todos os sujeitos processuais que nele intervêm.

Podendo também respeitar, como se disse, a aspectos relativos à prova, como por exemplo, as situações em que seja necessário demonstrar se, em determinadas circunstâncias, uma testemunha conseguiria ter visualizado os factos que afirma ter observado.

Traçados em linhas gerais os pressupostos e as finalidades subjacentes a este meio de prova, é ponto assente que a sua produção apenas deve ser ordenada para dissipar uma dúvida inultrapassável por outra via. Ora, no caso concreto, o próprio recorrente não invoca uma dúvida com tais contornos nem se vislumbra que se tenha verificado essa condição sine qua non para que se determinasse a realização da reconstituição.

Com efeito, relembra-se que o que estava em causa era um embate entre dois veículos, cujos condutores apresentaram uma divergência inconciliável de depoimentos sobre a forma como o mesmo se verificou. Porém, todos os aduzidos elementos probatórios, conjugados entre si, analisados criticamente, segundo o critério da probabilidade lógica prevalecente dos contributos colhidos que melhor se conjugassem entre si e/ou com a experiência comum, facultaram à Julgadora as ilações expressas na decisão quanto à matéria em apreço, não se detectando qualquer patente irrazoabilidade na convicção probatória formada com imediação, incompatível com o acolhimento do sentido por que pugnou o recorrente quanto aos pontos referidos no recurso.

Assim, como se extrai da fundamentação que incidiu sobre a matéria de facto, em face de conjugação dos diversos elementos de prova recolhidos, não se suscitaram quaisquer dúvidas que o acidente se ficou a dever à conduta negligente do recorrente.

1.3. A valoração proibida de meio de prova.

O recorrente vem também suscitar a questão da valoração do depoimento da testemunha M. R. nos termos do art. 128º do CPP, alegando que esta não presenciou os factos.

Não têm razão.

É certo que uma prova proibida é como se não existisse e, porquanto, ressalvado o caso previsto no n.º 4 do art. 126º do CPP, não pode ser aproveitada ou utilizada para qualquer outro fim processual.

Em regra, todas as pessoas têm capacidade para depor como testemunhas e são admitidas a depor sobre quaisquer factos controvertidos que interessam à decisão da causa, a não ser que exista qualquer limite formal, decorrente da incapacidade ou inabilidade para depor.

Não está em causa nenhuma dessas limitações, mas sim a suposta violação de normas de direito probatório material, concretamente a formação da convicção do tribunal com base neste depoimento.

Dispõe o art. 128º, n.º 1, do CPP que a testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto da prova, sendo que, anteriormente, já tivemos o ensejo de mencionar quais os factos que constituem o objecto da prova.

A testemunha tem conhecimento directo dos factos quando os percepcionou de forma imediata e não intermediada, através dos seus próprios sentidos, enquanto no chamado depoimento indirecto «a testemunha refere meios de prova, aquilo de que se apercebeu foi de outros meios de prova relativos aos factos, mas não imediatamente dos próprios factos» (12).

Por sua vez, dispõe o art. 129º, n.º 1, do mesmo diploma: «Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.».

Da concatenação destes preceitos resulta que, embora a regra seja a do testemunho directo, a lei não proíbe de forma absoluta a produção de depoimentos indirectos: a lei interdita a valoração do depoimento indirecto, a sua utilização como meio de prova, mas apenas se o juiz não chamar a depor a pessoa indicada pela testemunha como fonte do conhecimento que transmitiu ao tribunal, já podendo, contudo, ser valorado sempre que a fonte não puder ser inquirida, por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de ser encontrada.

Validamente produzido o depoimento indirecto, a sua valoração é feita segundo o princípio geral previsto no art. 127º do CPP, devendo ser avaliado conjuntamente com a demais prova produzida, incluindo o respectivo depoimento directo, quando prestado, tudo conforme a livre apreciação e as regras da experiência comum.

Ora, no caso vertente, não podendo este tribunal apreciar/conhecer da matéria de facto, também é inquestionável que lhe está vedado, sindicar a razão de ciência da testemunha e conhecer do respectivo teor, aferindo, pois, se o mesmo apenas relatou os factos que directamente percepcionou ou se se limitou a descrever aquilo que lhe foi transmitido por terceiros.

Ainda assim, o exame da motivação que incidiu sobre a matéria factual permite inferir que o depoimento prestado pela testemunha M. R., conjugado com os demais depoimentos e o teor dos elementos documentais, serviu para alicerçar a convicção do julgador, isto é, constituiu meio de prova de que o tribunal se socorreu para dar como provada a matéria de facto que levou à condenação do arguido/recorrente. Sendo assim, importa verificar se, como alegado por este, tal depoimento teria incidido sobre matéria legalmente vedada e, não obstante, foi, nessa parte, considerado para a aquisição da matéria de facto tida por provada.

Da fundamentação da decisão consta o seguinte extracto: «a testemunha J. R., agente da BT, que foi quem fez a investigação, recolheu o testemunho dos intervenientes, e foi depois ao local (mas isto passado muito tempo). Chegou à conclusão que o embate foi na via da direita, pois os vestígios estavam entre o lado direito e a berma. Do lado esquerdo não havia vestígios nem marcas de travagem. Não viu os veículos. Confrontado com as fotografias juntas aos autos refere que mais confirmam que o embate foi do lado direito da faixa: se o embate fosse na diagonal, os danos eram na extrema da carrinha (no ângulo) e não foram (e nesse caso a carrinha rodopiava ou embatia no separador central). A posição final da carrinha não é compatível com a dinâmica relatada pelo arguido».

A Sra. Juíza não se limitou a revelar as razões pelas quais os concretos meios de prova foram geradores da convicção que adquiriu sobre a realidade dos factos tidos por provados e a inveracidade dos demais, apoiando-se nas regras de experiência comum, antes descreveu, em geral, o que cada uma das testemunhas transmitiu na audiência de julgamento.

Independentemente do grau de adesão que suscite o estilo da fundamentação assim expressa, o certo é que flui da sua formulação, quanto ao segmento respeitante à questionada testemunha M. R.., que este, apesar de não ter presenciado o acidente, deslocou-se ao local em questão para recolha dos vestígios que aí percepcionou, tendo, designadamente, constatado que não havia rastos de travagem, para além de ter ouvido os intervenientes. Ou seja, a testemunha relatou o que percepcionou no âmbito daquela sua diligência e foi o resultado dessa percepção que ficou a constar da fundamentação.

Assim, sendo o depoimento da dita testemunha valorado na parte em que forneceu as informações que obteve aquando da recolha de indícios, no exercício do seu cargo de militar da GNR, é descabido o argumentado pelo recorrente quanto à putativa natureza indirecta desse depoimento e ao decorrente obstáculo para a formação da convicção da Julgadora.

Pelo que, atendendo aos termos em que a Senhora Juíza nos apresenta a formação da sua convicção, não estamos perante um depoimento que possa reputar-se de “ouvir dizer” que pudesse defraudar os direitos do arguido.

Em conclusão, nenhuma censura merece a decisão recorrida, ao assentar também no exame do dito contributo para considerar que o recorrente foi o único responsável pela produção do acidente.

1.4. As irregularidades do relatório pericial de avaliação do dano corporal.

Sustenta ainda o recorrente que o relatório de avaliação de dano corporal, para além de se encontrar incompleto e conter erros, foi elaborado quase um ano depois da data de ocorrência do embate e foi baseado em elementos falseados pelo assistente, não tendo sido transmitidas as informações clínicas constantes de fls. 358 e 359, onde se lê que este padece de doenças do aparelho músculo-esquelético, desde pelo menos 2012, com queixa de dores no pescoço e nos ombros.

Vejamos.

Como se aludiu no ponto 1.1., a prova pericial tem lugar quando a percepção ou apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos e é ordenada oficiosamente ou a requerimento, por despacho da autoridade judiciária.

No caso, estamos perante uma perícia médico-legal, tendente a avaliar o nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano, os períodos de incapacidade e a respectiva afectação na capacidade de trabalho geral e profissional, sujeita ao regime previsto na Lei 45/2004 de 19/8.

Sob a epígrafe requisição de perícias prescreve o art. 3 desta Lei:

«1 - As perícias médico-legais solicitadas por autoridade judiciária ou judicial são ordenadas por despacho da mesma, nos termos da lei de processo, não sendo, todavia, aplicáveis às efectuadas nas delegações do Instituto ou nos gabinetes médico-legais as disposições contidas nos artigos 154.º e 155.º do Código de Processo Penal.
2 - Por razões de celeridade processual, a requisição dos exames periciais deve ser acompanhada das informações clínicas disponíveis ou que possam vir a ser obtidas pela entidade requisitante até à data da sua realização.».

Por outro lado, preceitua o art. 157º do CPP: «1 - Finda a perícia, os peritos procedem à elaboração de um relatório, no qual mencionam e descrevem as suas respostas e conclusões devidamente fundamentadas. Aos peritos podem ser pedidos esclarecimentos pela autoridade judiciária, pelo arguido, pelo assistente, pelas partes civis e pelos consultores técnicos.».

E resulta ainda do art. 158º do mesmo diploma: «1 - Em qualquer altura do processo pode a autoridade judiciária competente determinar, oficiosamente ou a requerimento, quando isso se revelar de interesse para a descoberta da verdade, que:

a) Os peritos sejam convocados para prestarem esclarecimentos complementares, devendo ser-lhes comunicados o dia, a hora e o local em que se efectivará a diligência; ou
b) Seja realizada nova perícia ou renovada a perícia anterior a cargo de outro ou outros peritos.
2 - Os peritos dos estabelecimentos, laboratórios ou serviços oficiais são ouvidos por teleconferência a partir do seu local de trabalho, sempre que tal seja tecnicamente possível, sendo tão-só necessária a notificação do dia e da hora a que se procederá à sua audição.».

Do quadro legal acabado de expor, resulta que o recorrente podia ter reagido contra o relatório pericial – que, como se sabe, se presume subtraído à livre apreciação do julgador –, não só pela via de pedido de esclarecimentos como requerendo uma nova perícia, sendo certo que, se tivessem surgido dúvidas em sede de audiência de julgamento e as mesmas apenas pudessem ser removidas pela realização de um nova perícia, nada obstava a que o tribunal oficiosamente ao abrigo do disposto no art. 340º do CPP, a determinasse.
Assim não tendo procedido oportunamente, necessariamente, terá que improceder também este segmento do recurso.

2. O enquadramento jurídico dos factos.

O recorrente defende que não se encontram preenchidos os elementos do tipo de ilícito negligente por que acabou por ser condenado, alegando, numa apertada síntese, que: os ferimentos invocados pelo assistente não decorrem de causa directa e necessária do embate; sempre foi um condutor diligente; tentou evitar o sinistro sub judice, porém, por circunstâncias a si transcendentes, designadamente, o facto de o assistente ter guinado para a esquerda, sem que nada o fizesse prever, obstou a que pudesse evitar a colisão, por mais diligente e prudente que fosse.

Em face desta concreta alegação, o recorrente pede a sua absolvição pelo crime de ofensa à integridade física por negligência, fazendo-o na estrita decorrência da impugnação da matéria de facto, não tendo suscitado, quanto a este crime, nenhuma questão em matéria de direito.

Ora, não tendo sido alterado o acervo fáctico, tal como sufragado, decorrentemente inexiste qualquer implicação a dirimir em termos de direito.

Não obstante o já expendido na sentença recorrida, impõe-se, ainda que muito sinteticamente, acrescentar algumas considerações neste plano do enquadramento jurídico dos factos.

Comete o crime de ofensa à integridade física negligente quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa (13).

O tipo complexo de ofensa negligente exige um resultado lesivo.

Dispõe o art. 15º C. Penal que age com negligência quem «não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias está obrigado». Da noção legal resultante desse preceito legal ressalta a ideia de que a negligência é a omissão de um dever objectivo de cuidado, adequado, segundo as circunstâncias concretas de cada caso, a evitar um evento lesivo: o «não proceder com cuidado.

Tal dever de cuidado, que pode ser violado por acção ou omissão, manifesta-se em duas vertentes: (i) o cuidado interno, enquanto dever de representar ou prever o perigo para o bem jurídico tutelado pela norma jurídica e de valorar esse perigo; (ii) o cuidado externo, enquanto dever de praticar um comportamento externo correcto, com vista a evitar a produção do resultado. O cuidado externo desdobra-se em três exigências principais, a saber: (i) o dever de omitir acções perigosas; (ii) o dever de actuar prudentemente em situações perigosas; (iii) o dever de preparação e informação prévia.

Afirmada a lesão do dever objectivo de cuidado, cumpre, depois, verificar se o resultado típico pode objectivamente ser imputado à conduta descuidada do agente.

O resultado produzido, lesão (dano/violação) dos bens protegidos, deve encontrar-se numa relação tal com a acção violadora do cuidado que permita afirmar que aquele tem como causa esta última. Questão delicada é, então, a de saber quando pode afirmar-se tal nexo.

Exige-se desde logo um nexo de causalidade natural. O resultado tem de ter como sua causa natural a acção.

Acresce, depois, a exigência de que tenha sido precisamente a acção violadora do dever de cuidado, de entre as várias condições que concorreram para que o evento se desse, aquela causa específica que produziu o resultado. É o designado nexo de causalidade adequada.

«A imputação objectiva do resultado implica causalidade conforme às leis científico-naturais, previsibilidade objectiva, de acordo com um critério de “causalidade adequada” (art. 10º do Código Penal) e concretização do risco proibido criado, potenciado ou não diminuído no resultado» (14).

Como é sabido, uma acção será adequada para produzir um resultado (causalidade adequada) quando uma pessoa normal, colocada na mesma situação do agente, tivesse podido prever que, em circunstâncias correntes, tal resultado se produziria inevitavelmente (“prognóstico posterior objectivo”). Isto significa que só será objectivamente imputável um resultado causado por parte de uma acção humana quando a mesma acção tenha criado um perigo juridicamente desaprovado que se realizou num resultado típico (imputação objectiva do resultado à acção) (15).
Não basta a existência de nexo causal, é necessário que o resultado seja objectivamente previsível. Só é causa a condição que, em abstracto e de acordo com a experiência geral, é idónea a produzir o resultado típico.

Quanto à culpa, o juízo de censurabilidade depende da capacidade pessoal do agente de reconhecer e observar o dever de cuidado e de prever o resultado e o concreto processo causal. Esta capacidade é apreciada subjectivamente, isto é, em função das faculdades ou qualidades que ao agente assistem. Não pode censurar-se ao agente a violação do dever de cuidado objectivamente imposto quando esse mesmo agente tem uma capacidade individual inferior à do homem médio. Neste sentido, refere Eduardo Correia que «é ainda necessário que o agente possa ou seja capaz segundo as circunstâncias do caso e as suas capacidades pessoais de prever ou de prever correctamente a realização do tipo legal de crime» (in Direito Criminal, I, pág. 444).

No caso, factos ocorreram no âmbito da circulação rodoviária e ressuma do que se apurou que o arguido/recorrente, depois de efectuar uma manobra de ultrapassagem e ao regressar à faixa da rodagem da direita, não conseguiu travar ou abrandar a sua marcha e embateu com o seu veículo no veículo ... em que circulava o assistente, causando-lhe as lesões descritas nos factos provados. Mais se provou que tinha a capacidade individual de evitar esse resultado, que não representou.

A condução é uma actividade perigosa que a vida moderna consente por entender que a sua permissão é mais útil que a sua proibição. Porém, com vista a atenuar os riscos que lhe são inerentes, exige-se aos condutores a observância de determinadas regras de cuidado.

Ora, ao proceder do modo descrito, o arguido violou o dever de cuidado geral que se lhe impunha de manter a distância suficiente entre o seu veículo e o que o precedia para evitar acidentes em caso de súbita paragem ou diminuição de velocidade deste e de adequar a velocidade ao concreto circunstancialismo, em violação das normas do 24º, nº 1 e 35º, nº 1 do C. da Estrada.

Vale isto por dizer que o arguido não agiu com o cuidado que lhe era imposto na circulação do seu veículo rodoviário.

Incontroversa é ainda a existência do resultado, a ofensa da integridade física do assistente.
Acresce que, face à matéria de facto dada como provada, as lesões sofridas pelo assistente foram consequência directa da conduta do arguido e esta foi a causa, objectivamente, adequada da verificação desse resultado.

Finalmente, a análise da conduta do arguido permite afirmar, sem necessidade de maiores considerandos, que se o mesmo tivesse actuado conforme o dever de cuidado que lhe era exigido o resultado não teria ocorrido: nas condições supra referidas, pode afirmar-se com segurança que se o arguido guardasse a distância devida do veículo que o precedia, não teria ocorrido o embate.

Importa, a título de conclusão, referir que era manifesto que a estrada não estava isenta de obstáculos e o arguido sabia que devia obedecer às regras de circulação estradal imposta pelo dever geral de cuidado.

Em conclusão, em face de tudo o exposto, encontram-se verificados todos os elementos que, em concreto, permitem afirmar o conteúdo do juízo de culpabilidade próprio da negligência relativamente ao arguido e fundamentar a respectiva punição.

Visto que o arguido, apesar de ser um condutor experiente, não previu como possível de, naquelas circunstâncias, colidir com o veículo do assistente, provocando, desse modo, lesões na sua integridade física, foi inconsciente a negligência com que actuou.

Assim, dúvidas não existem de que se encontram preenchidos todos os requisitos do crime em apreciação.

3. A substituição da medida da pena (admoestação).

O inconformismo do recorrente também se estende à opção pela não substituição da pena de multa que lhe foi aplicada pela pena de admoestação, verbalizando que não previu os factos integradores do tipo de ilícito, trata-se de episódio único na sua vida, sendo por isso um condutor exemplar, está inserido profissional e socialmente, sempre se mostrou cooperante para a descoberta da verdade.

O que nos insta a averiguar se o sentido pedagógico e ressocializador ínsito ao direito penal se atinge, neste caso, com a substituição por que o recorrente pugna.
Decorre do art. 60º do C. Penal (16) que são de índole formal e material os pressupostos de que a lei faz depender a aplicação da pena de admoestação, a verificarem-se no momento da decisão: que a pena concreta aplicada seja de multa não superior a 240 dias; que haja reparação do dano; que a substituição realize bastantemente as finalidades punitivas; e, em princípio, que inexista anterior condenação em qualquer pena nos três anos anteriores ao facto.

Donde, quanto aos pressupostos de natureza material, é necessário, para além da reparação do dano, que se possa concluir, consideradas as circunstâncias concretas do facto e do agente, «que a admoestação se revela um meio adequado e suficiente de realização das finalidades da punição. O que vale por exigir que o tribunal se convença, através de um juízo de prognose favorável, que o delinquente alcançará por tal via a sua (re)socialização; e ainda que a aplicação da mera admoestação não porá em causa os limiares mínimos de expectativas comunitárias ou de prevenção de integração, sob a forma de tutela do ordenamento jurídico» (17).

Estamos, assim, perante um poder-dever ou um poder vinculado sempre sujeito a uma devida e criteriosa fundamentação, no âmbito de cuja aferição há que ponderar que a pena de admoestação, como pena substitutiva (18), está prevista essencialmente para os casos em que se mostra desnecessária a aplicação de uma pena ao agente, quando, primordialmente, se trate das denominadas bagatelas penais, pelo facto em si, em que a ilicitude e ou a culpa se revelem reduzidas, bem como quando, posteriormente, houver a reparação do dano.

Ora, embora nos encontremos perante um adulto sem antecedentes criminais, não podem olvidar-se as exigências de prevenção geral decorrentes da respectiva actuação, espelhadas na natureza do bem jurídico por ele violado.

Por isso, perfilhamos o entendimento de que não se poderá lançar mão deste instituto, cujo formato de penalização não realizaria de forma adequada e suficiente as finalidades da punição: só o sacrifício inerente ao cumprimento efectivo da pena de multa aplicada constituirá suficiente incentivo à interiorização do valor violado e à correcção de condutas anti-jurídicas pelo recorrente, assim se realizando as finalidades impostas pelas prementes exigências de prevenção geral assinaladas na decisão recorrida.

Neste caso, é, pois, de rejeitar a pretendida aplicação de tal pena substitutiva, tendo em conta a natureza do crime cometido e as aludidas exigências.

4. A medida da pena acessória e sua substituição.

4.1. A medida

Nesta vertente, sublinha o recorrente que não estão reunidos os elementos necessários que fundamentem a aplicação da pena acessória, uma vez que o grau de ilicitude do facto e a censurabilidade da sua conduta foram diminutos e, para o caso de assim se não entender, deverá a mesma ser suspensa na sua execução ou em último caso ser reduzida para o seu limite mínimo de três meses.

Analisemos, então, se a razão está do seu lado.

Dispõe o n.º 1, do art. 69º do C. Penal que «é condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido: a) Por crimes de homicídio ou de ofensa à integridade física cometidos no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito rodoviário ….».

Como a própria designação indica, trata-se de uma pena acessória que só pode ser decretada conjuntamente com uma pena principal ou com uma pena de substituição.

Esta pena acessória encontra o seu fundamento na perigosidade que a conduta imprudente do agente (condutor) revele e destina-se a actuar psicologicamente sobre ele, visando influir preventivamente na sua conduta futura, mediante a privação temporária da condução de veículos, tendo, embora não principalmente, uma função preventiva adjuvante da pena principal e, tal como acontece em relação a esta, subjaz-lhe um juízo de censura global pelo crime praticado, daí que para a sua concreta determinação se imponha também o recurso aos critérios estabelecidos no art. 71º do C. Penal, sendo que a prevenção geral, a acautelar, com a aplicação da pena acessória, terá de ser uma prevenção negativa ou de intimidação.

Conforme vem sendo salientado pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores, na esteira do entendimento do Prof. Figueiredo Dias, visa a pena acessória prevenir a perigosidade do agente, sem se poder descurar as exigências de prevenção geral que se fazem sentir, correspondentes a uma necessidade de política criminal, que se prende com a elevada taxa de sinistralidade que se regista em Portugal. Trata-se de uma censura adicional pelo facto que é praticado.

Realmente, nos delitos de tráfego automóvel, à pena acessória de proibição de conduzir é, muitas vezes, associado um efeito mais penalizante do que à pena principal, de multa (que os infractores pagam sem grande inconformismos), ou de prisão suspensa na sua execução (que é vista até como menos onerosa que aquela). Daí que a pena acessória seja encarada como um importante instrumento para restabelecer a confiança da comunidade na validade da norma infringida com o cometimento de crimes no exercício da condução automóvel.

Na determinação da medida da pena acessória, o Tribunal recorrido remeteu para os critérios que presidiram à fixação da medida da pena principal e, dentro da moldura abstracta de 3 meses a 3 anos, fixou-a em 4 meses.

Verifica-se, pois, que a pena acessória fixada, muito embora seja uma sanção dependente da aplicação da pena principal, uma vez que esta é condição necessária daquela, não decorreu directa e imediatamente da aplicação desta, no sentido de que não é seu efeito automático.

Assim, como resulta do supra exposto, a pena acessória não foi fixada de forma automática, teve a mediação do julgador.

A determinação da medida concreta de pena acessória de inibição de condução é realizada de acordo com os critérios gerais utilizados para a fixação da pena principal, enunciados nos arts. 40º e 71º, n.ºs 1 e 2 do C. Penal, com a ressalva de que a finalidade a atingir pela pena acessória é mais restrita, pois tem em vista sobretudo prevenir a perigosidade do agente (função preventiva adjuvante da pena principal).

O preceito desse art. 40º, ao estabelecer que a aplicação de penas ou medidas de segurança tem como finalidade a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, indica-nos que o escopo que subjaz à aplicação da pena se reconduz, por um lado, ao reforço da confiança da comunidade na norma violada e, por outro lado, à ressocialização do delinquente. E, em consonância com o estipulado no n.º 1 do citado art. 71º, a medida da pena é determinada, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa, conforme prescreve o artigo 40º, n.º 2, do mesmo Código.

Na determinação concreta da pena acessória há que atender às circunstâncias do facto, que deponham a favor ou contra o agente, nomeadamente ao grau de ilicitude, e a outros factores ligados à execução do crime, à intensidade do dolo, aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e aos fins e motivos que o determinaram, às condições pessoais do agente, à sua conduta anterior e posterior ao crime (n.º 2 do citado art. 71º).

Dito por outras palavras, na graduação da pena deve olhar-se para as funções de prevenção, quer de ordem geral – com o objectivo de confirmar os bens jurídicos violados –, quer de ordem especial – tendo em vista gerar condições para a readaptação do agente do crime, de modo a evitar que este volte a violar tais bens – mas sem se perder de vista a culpa do agente – com atendimento das circunstâncias estranhas à tipicidade –, que a medida da pena tem como base e limite.

No caso vertente, importa, desde logo, referir que o recorrente, com a sua conduta, atingiu valores fundamentais e imprescindíveis à vida em comunidade, como são a segurança da circulação rodoviária e das pessoas face ao trânsito de veículos, a vida ou a integridade física. Realmente, não pode o Tribunal descurar as elevadas exigências de prevenção geral, na medida em que esta incriminação carece de um maior enraizamento na consciência comunitária – o que surge espelhado nas estatísticas da sinistralidade rodoviária – sendo premente a protecção dos bens jurídicos em causa através da revalidação e consolidação desta norma incriminadora. Impõe-se, cada vez mais, a necessidade de consciencializar a sociedade para a relevância que assume o respeito pelas normas que tutelam a segurança rodoviária.

Mas, por outro lado, as exigências de prevenção especial não são elevadas, desde logo, porque o arguido não representou os factos integradores do tipo de ilícito, e muito relevantemente, não tem antecedentes criminais, encontra-se bem inserido social e profissionalmente e, habitualmente, conduz com segurança.

Ora, perante o conjunto dos factos apurados quanto à pessoa do recorrente, para o qual a pena acessória constituirá um gravame, entendemos que deve ser fixada uma pena próxima do respectivo limiar mínimo, mostrando-se, por isso tudo, ajustado às particularidades do caso concreto o patamar de quatro meses, nos exactos termos fixados pela 1ª instância.

4.2. A suspensão da pena acessória.

A reforma penal do Código de 95 (operada pelo Dec. Lei nº 48/95 de 15/3), para além de ter introduzido a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, nas situações referidas no n.º 1 do art. 69º do C. Penal, alterou também o regime da suspensão da execução da pena, limitando-a à pena de prisão, nos termos o art. 50º, n.º 1, do mesmo código.

Como se colhe imediatamente do teor literal deste último normativo, só é susceptível de suspensão a pena de prisão fixada até ao limite de cinco anos, nunca a pena de multa, nem a pena acessória.

O legislador, fundado em razões de política criminal, entendeu excluir da suspensão da execução a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, quando estava em causa o cometimento de um dos crimes referidos nas alíneas a), b) e c) do nº 1 do artigo 69º do Código Penal, atentos os elevados índices de sinistralidade rodoviária.

Aliás, com as alterações introduzidas ao Código da Estrada pelo DL 44/05, de 23/2, o legislador até excluiu a possibilidade de suspensão da execução da pena acessória de inibição de conduzir nas contra-ordenações muito graves, limitando-a aos casos de contra-ordenações graves (art. 141º).

Assim, considerando a unidade do sistema jurídico e não obstante a diversa natureza jurídica da pena e da sanção acessória, também seria inconsequente admitir a suspensão da execução da proibição de conduzir aplicada na sequência da prática de um crime, quando essa suspensão não é sequer admissível por contra-ordenação muito grave.

Tal entendimento acolhe o apoio da doutrina, como se retira do expendido por Germano Marques da Silva (in “Crimes Rodoviários”, Lisboa, 1ª ed., pág. 28), quando escreve: «…ainda que a pena principal seja substituída ou suspensa na sua execução, o mesmo não pode suceder relativamente à pena acessória de proibição de conduzir.».

Também Pinto de Albuquerque (in “Comentário do Código Penal”, Univ. Católica Editora, 2.ª ed., pág. 264) comunga da mesma opinião ao asseverar que «não é admissível a suspensão da pena de proibição de conduzir, nem a sua substituição por caução no processo penal, independentemente do destino da pena principal, uma vez que aquela suspensão e esta substituição só estão previstas no CE no âmbito do direito contra-ordenacional» (19).

Assim, improcede o recurso, também nesta parte.
*
IV. Decisão:

Nos termos expostos, acorda-se em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar, na íntegra, a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quatro unidades de conta (art. 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal, art. 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma).
Guimarães, 11/02/2019

Ausenda Gonçalves
Fátima Furtado

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1 Como sucede, nomeadamente, nos casos previstos nos art.s 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, e 410º, n.º 2, al.s a), b) e c), do Código de Processo Penal, e resulta do acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I Série-A, de 28-12-1995
2 Também aqui, nada tem a ver com qualquer destes vícios a adequação da fundamentação utilizada para julgar o objecto em apreço aos princípios jurídicos aplicáveis. Poder-se-á discordar da decisão, como, aliás, o recorrente demonstra ser o caso, mas não são razões de fundo as que subjazem aos vícios imputados. A arguição de tais vícios não procede quando fundada em divergências com o decidido, sendo distintos do erro de julgamento.
3 Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2.ª ed., p. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 8ª Edição, pp. 73 e ss.
4 Cfr. v. g., o Ac. STJ de 2/2/2011 (p. 308/08.7ECLSB.S1 - Maia Costa): «O erro notório na apreciação da prova, vício da decisão previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Porém, o vício, terá de constar do teor da própria decisão de facto, não da motivação dessa decisão, ou da fundamentação de direito».
5 Cfr. Germano Marques da Silva, loc. e p. cit..
6 Cfr. Simas Santos e Leal Henriques, loc. cit., p. p. 80.
7 Direito Processual Penal, 1ª Edição, 1974, Reimpressão, 2004, Coimbra Editora, pág. 193 e ss.
8 Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, p. 261.
9 In Curso de Processo Penal, II, 3ª Edição, 2002, Verbo, pág. 197.
10 Acórdão do STJ de 5-01-2005, proc. 4P3276, relatado pelo Conselheiro Henriques Gaspar.
11 Paulo Pinto de Albuquerque afirma que a reconstituição do facto visa reproduzir, tão fielmente quanto possível, as condições em que se afirma ou supõe ter ocorrido o facto criminoso e repetir o modo de realização do mesmo, consistindo a diligência numa encenação de uma versão provável do facto (Comentário do C. P. P. à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª ed., p. 430. Também Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, Vol. II, 2ª ed., Lisboa, 1999, p. 171) sublinha que «o facto a que se refere este meio de prova é qualquer facto probando, podendo ser o próprio facto típico, uma parte ou um dos seus elementos ou circunstâncias, podendo mesmo ter por objecto um simples facto probatório; importa é que seja relevante para a prova».
12 Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 3ª Ed., 158.
13 O bem jurídico protegido é a integridade física da pessoa humana, englobando o tipo legal um determinado resultado quer através de ofensas no corpo, quer lesando a saúde. Quando se fala em ofensa no corpo, abrange-se o mau trato através do qual o agente é afectado no seu bem-estar físico.
14 Ac. da RE de 10/12/2013 (30/03.0TASTR.E2- Ana Barata Brito).
15 Jesheck, Tratado de Direito Penal, Parte general, Vol. I, p. 251 e ss.
16 Dispõe o preceito:
«1 - Se ao agente dever ser aplicada pena de multa em medida não superior a 240 dias, pode o tribunal limitar-se a proferir uma admoestação.
2 - A admoestação só tem lugar se o dano tiver sido reparado e o tribunal concluir que, por aquele meio, se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
3 - Em regra, a admoestação não é aplicada se o agente, nos três anos anteriores ao facto, tiver sido condenado em qualquer pena, incluída a de admoestação.
4 - A admoestação consiste numa solene censura oral feita ao agente, em audiência, pelo tribunal.».
17 Cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, “As Consequências Jurídicas do Crime”, p. 387.
18 Segundo a Professora Maria João Antunes, a pena de admoestação deve ser autonomizada (in “Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 2013, p. 33).
19 No mesmo sentido, pronunciaram-se António Casebre Latas (in “A pena acessória da proibição de conduzir”, “Sub Judice”, 17, Jan/Março de 2001, pág. 79-81) e Pedro Soares de Albergaria e Pedro Mendes Lima (in “Sub Judice”, 17, Jan/Março de 2001, págs. 68-69).