Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5468/19.9T8VNF-J.G1
Relator: CONCEIÇÃO SAMPAIO
Descritores: INSOLVÊNCIA
DÍVIDA
DEVEDOR
ADMINISTRAÇÃO
MASSA INSOLVENTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/01/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
SUMÁRIO (artigo 663º n º7 do Código do Processo Civil)

I – Importando saber se uma a dívida é uma divida da insolvência ou da massa insolvente, a respetiva qualificação jurídica tem de ser encontrada no regime consagrado pelos arts. 47º e 51º do CIRE.
II - Os créditos sobre a insolvência são os créditos cujo fundamento já existe à data da declaração de insolvência (art. 47º) e os créditos sobre a massa são os créditos constituídos no decurso do processo (art. 51º).
III - Destinando-se a massa insolvente à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, resulta que as dívidas da massa insolvente são pagas com precipuicidade, pelo que os créditos sobre a insolvência, seja qual for a respetiva categoria, são preteridos no confronto com aquelas.
IV - As dívidas resultantes da atuação do devedor a quem foi atribuída a administração devem ser consideradas dívidas da massa insolvente. Em primeiro lugar, dada a analogia destas dívidas com as resultantes da atividade (análoga) do administrador da insolvência e do administrador judicial provisório, em segundo, por uma razão prático-teleológica, se as dívidas fossem qualificadas como dívidas da insolvência dificilmente seria concedido crédito ao devedor, dificultando assim a continuação da atividade e votando definitivamente ao insucesso o instituto da administração pelo devedor.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I - RELATÓRIO

X Engenharia, SA. intentou a presente ação executiva contra A. C. & Filhos, SA. com base na sentença proferida em 24-04-2020 no procedimento cautelar (proc. nº 622/19.6T8BRG-B) que condenou a executada a desligar o posto de transformação de energia elétrica que tem em funcionamento e permitir a execução de todos os trabalhos necessários à instalação dos quadros elétricos e contadores individualizados e demais componentes nas zonas comuns e nas frações B, C, E, G, e I, do prédio aí identificado, pelo período de 15 dias, com a comunicação da concreta data dos trabalhos comunicada pela requerente à requerida com a antecedência mínima de cinco dias. A executada foi ainda condenada no pagamento da quantia de € 500,00 por cada dia de atraso no cumprimento ou de violação do decidido.
À data da condenação, a A. C. & Filhos, SA havia sido já declarada insolvente por decisão de 28-01-2020, mas tinha-lhe sido atribuída a administração do seu património, nos termos do artigo 224º CIRE.
A ação executiva foi proposta a 17-6-2020.
Por despacho de 13-11-2020 foi retirada a administração à insolvente e entregue ao administrador de insolvência.
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Datado de 05/04/2021, a Mmª Juíza “a quo” proferiu o seguinte despacho:

«A presente execução foi apresentada por apenso ao processo de insolvência da sociedade A. C. & Filhos, SA, que foi declarada insolvente a 28-1-2020, por sentença devidamente transitada em julgado.
A 17-6-2020 a X Engenharia, SA intentou a presente ação executiva contra a executada A. C. & Filhos, SA com base na sentença proferida no processo nº 622/19.6T8BRG-B de procedimento cautelar não especificado, em que foi proferida sentença que condenou a executada a desligar o posto de transformação de energia elétrica que tem em funcionamento e permitir a execução de todos os trabalhos necessários à instalação dos quadros elétricos e contadores individualizados e demais componentes nas zonas comuns e nas frações B, C, E, G, e I, do prédio aí identificado, pelo período de 15 dias, com a comunicação da concreta data dos trabalhos comunicada pela requerente à requerida com a antecedência mínima de cinco dias.
A executada foi ainda condenada no pagamento da quantia de € 500,00 por cada dia de atraso no cumprimento ou de violação do decidido supra.
A exequente alega ter intentado a ação executiva contra a aqui insolvente por, nos termos do disposto no artigo 53º, nº1 do CPC, a execução ter de ser instaurada contra a pessoa que no título executivo tenha a posição de devedor.
À data da condenação, a A. C. & Filhos, SA já havia sido declarada insolvente, mas tinha-lhe sido atribuída a administração do seu património nos termos do artigo 224º CIRE.
Apenas por despacho de 13-11-2020 foi retirada a administração pela massa insolvente e entregue ao administrador de insolvência.
Assim, à data da condenação, apesar de declarada insolvente, era esta que detinha os poderes de administração. Que consequências tem este facto? Um desde já muito importante: não chega a constituir-se a massa insolvente enquanto a administração estiver a cargo da devedora. Também assim entendem Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, 3ª edição Quid Juris, página 812: “Assim, summo rigore, na generalidade dos casos, quando ao devedor é confiada a administração, não está ainda constituída a massa insolvente. O devedor administra todo o seu património, no qual se incluem os bens que podem vir a integrar a massa insolvente. Em face do regime do nº2 do artigo 228º, só haverá apreensão de bens se a administração for confiada ao devedor na assembleia de credores prevista no artigo 156º e o administrador da insolvência, cumprindo com zelo o dever imposto pelo artigo 149º, nº1, tiver, entretanto, feito «imediata apreensão (…) de todos os bens integrantes da massa insolvente”.
Assim, o administrador de insolvência, perante a administração pela devedora de todo o seu património, como foi o caso dos autos de insolvência em causa, apenas pode efetuar a fiscalização da administração que a devedora realiza, não pode efetuar a apreensão dos bens da devedora para a massa insolvente, constituindo esta, pelo que não estão a funcionar em pleno os efeitos da declaração de insolvência.
Desta forma, apesar da insolvência ter sido declarada, tendo a insolvente constituído novas dívidas com a sua administração, após ter sido declarada insolvente, não vemos como tais possam ser dívidas da massa.
Note-se que a exequente invoca a seu favor o facto de que as dívidas constituídas após a prolação da sentença de declaração de insolvência consubstanciam dívidas da massa insolvente. E assim é quando a declaração de insolvência tem todos os seus efeitos.
Mais concretamente, invoca a insolvente o disposto no artigo 51º, nº1, al c) do CIRE que dispõe: “Salvo preceito expresso em contrário, são dívidas da massa insolvente, além de outras como tal qualificadas neste Código: as dívidas emergentes dos atos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente”. Mas quando os factos que dão lugar à condenação que se pretende executar nestes autos tiveram lugar ainda não havia massa insolvente constituída. Pelo que a referência que o artigo 51º, nº1, c) faz aos atos de administração da massa insolvente não se aplicam ao caso em apreço, mas a uma situação distinta: a de o administrador continuar a administrar os bens da massa insolvente após a declaração de insolvência e antes da sua total liquidação.
Pelo que, a ser, como julgamos, a dívida que se executa nos autos da responsabilidade da sociedade insolvente, por ter sido constituída após a declaração de insolvência, mas antes da administração do património da insolvente ter sido constituído em massa insolvente, tem a presente execução que ser extinta nos termos do artigo 88º, nº1 CIRE e a dívida reclamada nos autos de insolvência em ação de verificação ulterior de créditos.
Na verdade, o artigo 88º, nº1 CIRE dispõe que a declaração de insolvência obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer ação executiva intentada pelos credores da insolvência.
A entender-se, porém, que a dívida em questão nos autos é uma dívida da massa- embora, contraditoriamente, não existisse massa insolvente mas apenas declaração de insolvência aquando da sua constituição- então a insolvente é parte ilegítima pois a legitimidade passiva recairia sobre a massa insolvente da A. C. & Filhos, SA e o título constitutivo teria de ser alterado. Pois, por definição uma dívida da massa é uma dívida constituída após a declaração de insolvência por quem administra a massa insolvente, que é o administrador de insolvência nomeado pelo tribunal.
Termos em que também assim a execução teria de ser declarada extinta por falta de legitimidade passiva.
Pelo exposto, nos termos do disposto no artigo 226º, nº4, alínea e) e 726º, nº2, alínea b) por remissão dos artigos 550º, nº2, alínea a) e 551º, nº3 do CPC, bem como o artigo 88º, nº1 CIRE, indefiro liminarmente a presente execução por atingir os bens integrantes da massa insolvente da A. C. & Filhos, SA e, estando a sociedade A. C. & Filhos, SA insolvente, não poderem os autos de execução prosseguir.»
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Inconformada com esse despacho, a exequente dele vem recorrer formulando as seguintes conclusões:

i- Vem o presente recurso interposto da sentença proferida pelo tribunal a quo que julgou extinta execução apresentada pela Recorrente contra a Recorrida, nos termos e para os efeitos do artº. 88º., nº. 1 do CIRE;
ii- Com efeito, considerou o tribunal a quo que a dívida cujo pagamento se peticiona nos autos, consubstancia uma dívida sobre a insolvência e não uma dívida da massa insolvente, pois que apesar de à data da apresentação da ação já ter a Recorrida sido declara insolvente ainda não se encontrava constituída a massa insolvente;
iii- Para o efeito, entendeu o tribunal de primeira instância que a constituição da massa insolvente não ocorre de forma automática, antes se encontrando dependente da efetiva apreensão a efetuar por parte do administrador da insolvência,
iv- Pelo que, de acordo com um tal entendimento, apesar de a administração da massa insolvente ter sido atribuída à Recorrida, inexistia à data da apresentação da ação qualquer massa que pudesse ser administrada pela Recorrida;
v- Tal entendimento, porém, encontra-se em clara oposição com o disposto no artº. 224º. do CIRE;
vi- Com efeito, estatui o número 1 do mencionado normativo legal que na sentença de declaração de insolvência o juiz pode determinar que a administração da massa insolvente seja assegurada pelo devedor,
vii- Para tanto e conforme o disposto do número 2 da aludida norma legal, torna-se necessário que (i) o devedor a tenha requerido – quando a insolvência seja decretada em virtude da apresentação à insolvência -, (ii) o devedor tenha já apresentado ou se comprometa a fazê-lo no prazo de 30 dias após a sentença de declaração de insolvência, um plano de insolvência que preveja a continuidade da exploração da empresa – quando a sentença seja requerida por terceiros;
viii- Além das referidas situações, poderá também a administração da massa insolvente ser atribuída ao próprio devedor quando este o tenha requerido e assim o deliberarem os credores na assembleia de apreciação do relatório ou em assembleia que a preceda, contando-se o prazo de 30 dias para apresentação do plano de insolvência em apreço da data da respetiva deliberação;
ix- Resulta da conjugação das mencionadas disposições legais que a administração da massa insolvente por parte do devedor ocorre em qualquer uma das circunstâncias previstas no artº. 224º. do CIRE;
x- Todavia, a interpretação efetuada pelo tribunal a quo e que se encontra vertida na sentença recorrida acarreta que – verdadeiramente – a administração da massa por parte do devedor apenas se verifica nas situações em que a atribuição da administração da massa seja precedida da apreensão de bens pelo administrador da insolvência;
xi- Ora, tal interpretação esvaziaria totalmente de sentido o disposto no artº. 224º., nºs. 1 e 2 do CIRE, violando, por isso, o disposto no artº. 9º., nº. 3 do CC;
xii- Refira-se também que nos termos do artº. 46º., nº. 1 do CIRE, a massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e salvo indicação em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo,
xiii- Dispondo o artº. 1º., nº. 1 do CIRE, que o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores, quer pela aprovação e execução de um plano de insolvência – em que se visa a recuperação da empresa compreendida na massa insolvente -, quer pela liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos seus credores.
xiv- Da conjugação dos mencionados preceitos legais decorre, desde logo, que a massa insolvente será constituída pelos bens do devedor à data da prolação da sentença de declaração de insolvência quando a satisfação dos credores se faça através da liquidação do ativo da insolvente ou pela própria sociedade insolvente quando se pretenda a satisfação dos credores através da aprovação e execução de um plano de insolvência,
xv- Pelo que, apenas caso o plano não seja apresentado dentro do prazo legal para tanto fixado ou caso venha a ser rejeitado pelos credores, passará a massa insolvente a ser constituída pelo património do devedor;
xvi- Todavia, em qualquer das situações, a constituição da massa insolvente consubstancia um efeito automático da sentença de declaração de insolvência e, por isso, não se encontra dependente de qualquer ato do administrador nomeado no processo;
xvii- Com efeito, apenas uma tal interpretação é suscetível de ter na letra da lei um mínimo de correspondência e de garantir o não esvaziamento do disposto nos artº. 224º., nºs. 1 e 2 do CIRE, dando, assim, integral cumprimento à regra constante do artº. 9º., nº. 3 do CC;
xviii- Sem prescindir, diga-se ainda, que nos termos do artº. 81º., nº. 1 do CIRE, a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente dos poderes de administração e disposição dos bens, os quais passam a competir ao administrador da insolvência,
xix- Apenas tal não se verificando quando seja confiado ao devedor a administração da massa, pelo que a limitação aos efeitos plenos da declaração de insolvência, apenas se reconduz ao facto de o devedor não ficar impossibilitado de administrar os bens que integram a massa insolvente,
xx- Inexistindo, nesta ou em qualquer outra norma do CIRE qualquer regra que permita sustentar a conclusão extraída pelo tribunal a quo, no sentido da constituição da massa insolvente só ocorrer com a efetiva apreensão de bens por parte do administrador da insolvência;
xxi- Termos em que se constituindo a massa insolvente - de forma automática - com a prolação da sentença de declaração de insolvência também não se pode manter a conclusão extraída pelo tribunal a quo que qualificou a dívida exequenda como dívida sobre a insolvente e não como uma dívida da massa,
xxii- Pois que, nos termos do artº. 51º., nº. 1, alínea c) do CIRE, consubstanciam dívidas da massa insolvente as dívidas emergentes dos atos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente e nos quais se englobam os atos de administração da própria insolvente, nas situações – como aquela que se verifica no caso sub judice -, em que a massa é constituída pela própria sociedade insolvente, em virtude da apresentação de um plano de insolvência;
xxiii- Assim, não restam dúvidas que as dívidas decorrentes da administração da sociedade, após a data da prolação da sentença de declaração de insolvência, consubstanciam dívidas da massa e não dívidas sobre a insolvente, nos termos e ao abrigo do artº. 47º., nºs. 1 e 2 do CIRE;
xxiv- Em face do exposto, incorreu o tribunal a quo num erro de julgamento ao proceder à extinção dos presentes autos, nos termos do artº. 88º. do CIRE;
xxv- Saliente-se também que mediante despacho proferido nos autos principais em 2021.01.05, o tribunal qualificou a dívida dada execução como dívida da massa, ordenando a apensação dos presentes autos ao processo de insolvência;
xxvi- De igual forma, procedeu o tribunal a quo à remoção da Recorrida da administração da massa, por considerar que prejudicou os credores na exata medida que acumulou;
xxvii- Porém, vem agora o tribunal a quo contrariar as decisões por si anteriormente proferidas, ao qualificar a quantia exequenda como dívida sobre a insolvência não dando sequer oportunidade para que as partes se pronunciassem acerca de tal questão, violando, por isso, o disposto no artº. 3º., nº. 3 do CPC,
xxviii- Pelo que, a decisão recorrida é nula, nos termos e para os efeitos do artº. 615º., nº. 1, alínea d) do CPC;
xxix- Mais, tendo o tribunal já anteriormente decidido sobre a natureza da dívida exequenda, não poderia agora voltar a pronunciar-se sobre essa questão, atento o respetivo trânsito em julgado;
xxx- Ademais, refere o tribunal a quo que mesmo que se considerasse que a dívida em apreço consubstancia uma dívida da massa, ainda assim, a presente execução deveria de ser extinta em face da ilegitimidade passiva da Recorrida;
xxxi- Antes de mais, refira-se que o artº. 89º. do CIRE sob a epígrafe “ações relativas a dívidas da massa insolvente” nada refere em termos de legitimidade passiva;
xxxii- De onde decorre que a mesma tem de ser aferida por aplicação das regras gerais de processo cível;
xxxiii- Por outro lado, resulta de uma tal afirmação que o tribunal a quo confunde os critérios determinantes da legitimidade passiva no processo executivo com os do processo declarativo;
xxxiv- Na verdade, contrariamente ao que sucede no âmbito dos processos declarativos em que legitimidade é aferida tendo por base um critério substancial, no processo executivo a legitimidade das partes é aferida com base em critérios meramente formais,
xxxv- Pelo que, no âmbito dos presentes autos, a legitimidade da Recorrida tem de ser aferida através da confrontação das partes no processo com a sentença que serve de título executivo à presente ação;
xxxvi- Ora, dispõe o artº. 53º., nº.1 do CPC, que a execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título executivo tenha a posição de devedor;
xxxvii- Assim, sendo partes legitimas como exequente e executado as partes que no título se encontrem identificados, repetitivamente, como credor e devedor;
xxxviii- Ora, analisada a sentença proferida no âmbito do procedimento cautelar nº. 622/19.6T8BRG-B – a qual serve de título à presente execução -, facilmente se conclui que contrariamente ao que decorre da sentença de que ora se recorre, a Recorrida possui efetivamente legitimidade passiva;
xxxix- Caso assim não se entenda – o que não se concede e apenas se admite por mero dever de patrocínio -, sempre se dirá que o tribunal de primeira instância atribuiu a administração da massa insolvente à Recorrida, pelo que a administração da insolvente se manteve como administradora da massa, administração que apenas cessou em 2020.11.13, mediante a prolação nos autos principais do despacho com a referência nº. 170422179.
xl- Nesta medida, entre a data de prolação da sentença de declaração de insolvência e 2020.11.13, não houve encerramento da sociedade que se manteve em atividade e laboração, não se verificando qualquer diligência de liquidação e partilha da massa insolvente;
xli- A isto acresce que a massa insolvente não constitui um ente jurídico distinto da própria insolvente, pelo que os bens e direitos que integram a massa insolvente continuam a ser propriedade daquela, pelo que a massa insolvente consubstancia um património de afetação, cuja constituição não implica a extinção da personalidade jurídica da insolvente, o que apenas se verifica com a extinção e registo do encerramento da liquidação, nos termos e ao abrigo do artº. 160º., nº. 2 do CSC;
xlii- Assim, fundando-se a presente execução na sentença proferida no âmbito do Procº. nº. 622/19.6T8BRG-B e tendo o incumprimento da referida decisão sido perpetrado diretamente pela administração da Recorrida afigura-se-nos que era justamente contra a Recorrida que a presente ação deveria ter sido proposta;
xliii- Termos em que andou mal o tribunal a quo ao considerar a Recorrida como parte ilegítima.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, sem prejuízo das questões de que o tribunal deva conhecer oficiosamente, são duas as questões a decidir:

- saber se as dívidas decorrentes da administração da sociedade, após a data da prolação da sentença de declaração de insolvência, consubstanciam dívidas da massa ou dívidas sobre a insolvente;
- sendo uma dívida da massa quem deve figurar como parte passiva: a massa insolvente ou a insolvente.
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III - FUNDAMENTAÇÃO

As incidências fáctico-processuais relevantes para a decisão são as que decorrem do relatório que antecede.
Vem o presente recurso interposto da sentença que indeferiu liminarmente a execução apresentada pela Recorrente para cobrança dos montantes devidos a título de sanção pecuniária compulsória pelo incumprimento de obrigação por parte da devedora, ocorrida no decurso da sua administração da massa insolvente.
Com efeito, considerou o tribunal a quo que (i) a dívida que se executa nos autos não consubstancia uma dívida da massa dado que à data da apresentação da ação ainda não existia massa insolvente, mas tão só a declaração de insolvência com atribuição da administração à devedora e (ii) que mesmo que se considerasse que a dívida em apreço consubstancia uma dívida da massa, ainda assim, a presente execução deveria de ser extinta em face da ilegitimidade passiva da Recorrida.
A primeira questão a apreciar prende-se com a natureza da dívida.
Importa saber se a dívida resultante do não cumprimento da obrigação vencida após a declaração de insolvência é uma divida da insolvência ou da massa insolvente, qualificação jurídica que tem de ser efetuada tendo em conta o regime consagrado pelos arts. 47º e 51º do CIRE.
O art. 47º, nº1 preceitua que, declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, qualquer que seja a sua nacionalidade e domicílio. Acrescentando o nº 2 que tais créditos e as dívidas que lhes correspondem, são denominados, respetivamente, créditos sobre a insolvência e dívidas da insolvência.

Por sua vez, o art. 51º, nº1, enumera nas suas várias alíneas, a título meramente exemplificativo, as dívidas da massa insolvente, sendo como tal qualificadas:

a) As custas do processo de insolvência;
b) As remunerações do administrador da insolvência e as despesas deste e dos membros da comissão de credores;
c) As dívidas emergentes dos actos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente;
d) As dívidas resultantes da actuação do administrador da insolvência no exercício das suas funções;
e) Qualquer dívida resultante de contrato bilateral cujo cumprimento não possa ser recusado pelo administrador da insolvência, salvo na medida em que se reporte a período anterior à declaração de insolvência;
f) Qualquer dívida resultante de contrato bilateral cujo cumprimento não seja recusado pelo administrador da insolvência, salvo na medida correspondente à contraprestação já realizada pela outra parte anteriormente à declaração de insolvência ou em que se reporte a período anterior a essa declaração;
g) Qualquer dívida resultante de contrato que tenha por objecto uma prestação duradoura, na medida correspondente à contraprestação já realizada pela outra parte e cujo cumprimento tenha sido exigido pelo administrador judicial provisório;
h) As dívidas constituídas por actos praticados pelo administrador judicial provisório no exercício dos seus poderes;
i) As dívidas que tenham por fonte o enriquecimento sem causa da massa insolvente;
j) A obrigação de prestar alimentos relativa a período posterior à data da declaração de insolvência, nas condições do artigo 93º.”

A classificação e distinção entre dívidas da insolvência e dívidas da massa insolvente assume a maior importância, dado o regime diferenciado a que se encontram sujeitas, desde logo quanto ao momento e modo da respetiva satisfação.
Assim, as dívidas da massa insolvente são satisfeitas primeiramente, o seu pagamento é feito com prioridade sobre os demais créditos sobre a insolvente.
Como decorre do disposto no art. 46º a massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, resultando daqui que as dívidas da massa insolvente são pagas com precipuicidade, pelo que os créditos sobre a insolvência, seja qual for a respetiva categoria, são preteridos no confronto com aquelas (1).
Quanto ao modo, ou melhor, ao nível adjetivo, trata o legislador de forma diferente os créditos sobre a insolvência e os créditos sobre a massa insolvente, prevendo diferentes modos de exercício para a reclamação do crédito.
Quanto ao exercício dos créditos sobre a insolvência, deriva do art. 90º que os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do Código, durante a pendência do processo de insolvência, ou seja, está o credor obrigado a reclamar o seu crédito no processo de insolvência, nos termos do artigo 128º ou 146º, do CIRE.
Já o credor da massa insolvente não tem de deduzir qualquer reclamação, pois que não lhe sendo pago o crédito de que é titular deve lançar mão da ação a que alude o artigo 89º nº 2 do CIRE, a qual corre por apenso.
Daí que não seja indiferente a qualificação do crédito da Recorrente como crédito sobre a massa insolvente ou crédito sobre a insolvência.
De forma lapidar, a propósito do critério de destrinça entre créditos sobre a massa insolvente e créditos sobre a insolvência, diz-nos Catarina Serra que “os créditos sobre a massa são os créditos constituídos no decurso do processo (cfr. art. 51º, nºs. 1 e 2) e os créditos sobre a insolvência são os créditos cujo fundamento já existe à data da declaração de insolvência (cfr. art. 47º, nºs. 1 e 2) (2)”.
Tendo presente esta orientação, no caso concreto, constituindo-se o crédito após a declaração de insolvência, é uma dívida da massa insolvente, pois estamos perante crédito resultante da atuação da devedora a quem foi confiada a administração da massa insolvente, que no uso desse poder de administração decidiu não cumprir o determinado judicialmente, incorrendo por essa via no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória.
A decisão recorrida considera, todavia, que à data da condenação, apesar de declarada insolvente, era a devedora que detinha os poderes de administração e enquanto a administração estiver a cargo da devedora não chega a constituir-se a massa insolvente, por não haver apreensão de bens, pelo que a dívida não pode ser uma dívida da massa insolvente.
Não cremos que assim seja.
A administração da massa pelo devedor foi uma inovação introduzida em 2004 pelo CIRE. Entre outras vantagens, considerava-se que ela permitia aproveitar a familiaridade do devedor com a empresa, o seu conhecimento da empresa e dos motivos da crise e reduzir, em princípio, os custos do processo (3).
A administração da massa pelo devedor é exclusivamente aplicável aos casos em que a massa insolvente envolva uma empresa (art. 223.º do CIRE) e está evidentemente pensada para a recuperação e continuidade da empresa. Daí que se justifique que a administração pelo devedor dependa da existência (ou da sua intenção) de um plano de recuperação.
De acordo com o n.º2 do art. 224.º do CIRE, a administração pelo devedor depende da verificação de quatro requisitos: que o devedor a tenha requerido; que o devedor tenha já apresentado, ou se comprometa a fazê-lo no prazo de 30 dias após a sentença de declaração de insolvência, um plano de insolvência que preveja a continuidade da exploração da empresa por si próprio; que não haja razões para recear atrasos na marcha do processo ou outras desvantagens para os credores; e que o requerente da insolvência, quando não seja o insolvente, dê o seu acordo.
No campo dos efeitos dos atos praticados pelo devedor assume crucial relevância a qualificação das dívidas resultantes da atuação do devedor.
Os atos que respeitem as condições do art. 226.º do CIRE, nomeadamente a necessidade de intervenção do administrador da insolvência, são, em princípio, válidos e eficazes. Quanto às dívidas, elas devem ser consideradas dívidas da massa insolvente.
A atribuição desta qualificação é explicitada por Catarina Serra com a indicação de duas razões fundamentais: primeiro, dada a analogia destas dívidas com as reguladas nas als. d).e h) do n.º 1 do art. 51.º do CIRE, respeitantes às dívidas resultantes da atividade (análoga) do administrador da insolvência e do administrador judicial provisório; segundo, por uma razão prático-teleológica, se as dívidas fossem qualificadas como dívidas da insolvência ninguém concederia crédito ao devedor; sem crédito não haveria empresa, ainda para mais insolvente, que pudesse continuar em atividade e aí é que o instituto da administração pelo devedor estaria definitivamente condenado (4).
A circunstância de não haver lugar à apreensão de bens quando a administração seja assegurada pelo devedor, não conduz à “inexistência” da massa insolvente, como pressupõe a decisão recorrida.
A massa insolvente é integrada por todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo.
Está claro que a atribuição da administração ao devedor ao diferir a apreensão de bens para a massa insolvente, obriga a que o regime da administração tenha de ser entendido em termos hábeis, pois na verdade o devedor continua a administrar todo o seu património, mantendo-se a empresa insolvente no comércio jurídico.
Como afirma Carvalho Fernandes “Pelo que respeita à administração da massa insolvente pelo devedor, importa ter presente que a referência a massa insolvente tem aqui de ser tomada como feita ao conjunto de bens que podem (vir a) se apreendidos no processo de insolvência, uma vez que (…) na generalidade dos casos em que a administração desse conjunto patrimonial é atribuído ao devedor, a sua efectiva apreensão ainda não se verificou“ (5).
Todavia, praticado ato pelo devedor a quem foi confiada a administração, gerador de consequências sobre o património os encargos que daí decorram projetam-se na massa insolvente, conforme decorre do disposto no artigo 51.º do CIRE.
Conformemente, tendo a devedora constituído novas dívidas com a sua administração, tais dívidas porque contraídas no decurso do processo são dívidas da massa insolvente.
Assente que o crédito cuja cobrança se reclama na execução é um crédito sobre a massa insolvente, importa seguir para a apreciação da segunda questão posta no recurso: a da legitimidade passiva.
A exequente propôs a execução contra a executada A. C. & Filhos, S.A que figura no título executivo como devedora.
Aquando da propositura da execução já a executada tinha sido declarada insolvente, tendo-lhe então sido atribuída a administração da massa insolvente.

A solução jurídica da questão, que entronca com a representação da insolvente, é encontrada no regime previsto nos nºs 4 e 5 do art. 81º, do CIRE:

4 - O administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência.
5 - A representação não se estende à intervenção do devedor no âmbito do próprio processo de insolvência, seus incidentes e apensos, salvo expressa disposição em contrário.
A lei atribui apenas ao Administrador de Insolvência a incumbência de representar o insolvente em todos os atos de caracter patrimonial que interessem à insolvência.

Nas palavras de Maria do Rosário Epifânio “constitui função (pelo menos primacial) do administrador da insolvência a prossecução dos interesses da massa insolvente e não do próprio insolvente” (6).
No caso, os efeitos visados pela Exequente são suscetíveis de comprometer o património da insolvente em detrimento dos interesses gerais da massa insolvente, para o que regula o art. 81º, nº4 do CIRE, havendo a insolvente de ser representada pelo Administrador da Insolvência.
Tendo a execução sido intentada contra A. C. & Filhos, SA., já insolvente, por ser quem figura no título executivo e a quem foi cometida a administração da massa insolvente, estamos perante uma situação, não de ilegitimidade ou falta de personalidade judiciária, mas de “insuficiente identificação do sujeito processual” pois que haveria de se identificar também o administrador da insolvência que a representa.
A distinção entre situações de verdadeira falta de personalidade judiciária e outras em que a falta de personalidade é aparente traduzindo, designadamente, uma errada identificação dos sujeitos é feita por Abrantes Geraldes (7), para quem muitas destas situações podem ser retificadas por via direta, através de uma simples interpretação corretiva que estabeleça a precisa correspondência entre a identificação do sujeito e a verdadeira intenção da parte (pondo de lado uma visão positivista e formal).
A propósito da legitimidade, embora no âmbito de ação declarativa, escreveu-se no acórdão do STJ de 16.06.2016: «Do ponto de vista processual, a legitimidade do R, enquanto pressuposto processual, advém do seu interesse em contradizer, enquanto visado na relação controvertida, tal como o autor a desenha. E do ponto de vista substantivo, a legitimidade advém da sua qualidade de devedor. (…) Atentos estes parâmetros, é inequívoca a legitimidade processual da R, pois foi a insolvente X, representada pelo respectivo administrador de insolvência, quem promoveu o despedimento da trabalhadora, pelo que lhe pertence a titularidade passiva da relação material controvertida tal como foi configurada pela autora. Por outro lado, e como conclui a decisão impugnada, é inegável a legitimidade substantiva da R, pois é sobre ela o crédito reclamado pela trabalhadora, dado que, e não obstante a sua declaração de insolvência, mantém a sua personalidade jurídica e judiciária, bem como a sua capacidade judiciária, tanto mais que não foi encerrada, mantendo-se em laboração. (…) Ora, o devedor neste caso é a sociedade demandada, pois, e conforme argumenta o acórdão sujeito, “apesar da massa insolvente estar dotada de autonomia patrimonial, o certo é que a mesma não constitui um ente jurídico distinto do próprio insolvente, a quem os bens/direitos integrantes daquela massa continuam a pertencer, apesar de poder estar privado dos correspondentes poderes de administração e de disposição que são transferidos para o administrador nos termos impostos pelo art. 81º/1 do CIRE”, salvas as situações em que a administração da massa seja cometida ao próprio insolvente, o que não aconteceu no caso presente. (…) Estamos, assim, perante um património de afectação cuja constituição não implica a extinção da personalidade jurídica do insolvente, mesmo nos casos em que este assuma a natureza de sociedade comercial, cuja personalidade apenas se extingue com o registo do encerramento da liquidação (art. 160º/2 do CSC)».
De acordo com o art. 53º., nº.1 do CPC, a execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título executivo tenha a posição de devedor. No título dado à execução (sentença) é a A. C. & Filhos, SA. quem figura como devedora, tendo a dívida sido constituída após a sua declaração de insolvência e no decurso da administração pela própria devedora.
Assim sendo, haverá que interpretar-se a executada A. C. & Filhos, SA., como representada pelo administrador da insolvência, sendo assim parte legitima na execução.
Nestes termos, impõe-se que a execução prossiga contra a insolvente A. C. & Filhos, SA. representada pelo administrador da insolvência.
A apelação será de proceder.
*
IV - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, e, consequentemente, em revogar a decisão recorrida, determinando que a execução prossiga os seus termos.
Custas pela massa insolvente.
Guimarães, 1 de Julho de 2021

Assinado digitalmente por:
Rel. – Des. Conceição Sampaio
1º Adj. – Des. Elisabete Coelho de Moura Alves
2º Adj. - Des. Fernanda Proença Fernandes


1. Neste sentido, acórdão do STJ de 16.06.2016, disponível em www.dgsi.pt.
2. In O Novo Regime Português da Insolvência, Uma Introdução, Almedina, 3ª Edição, pág. 30.
3. CATARINA SERRA, Ob. cit. pág. 51.
4. Insolvência e consequências da sua declaração, 2013, CEJ, “A privação de administrar e dispor dos bens, a inabilitação e a administração da massa pelo devedor”, pag. 140.
5. In Colectânea de estudos sobre a Insolvência, Quid Juiris, pag. 248.
6. In Manual de Direito da Insolvência, pag. 103.
7. Temas da Reforma do Processo Civil, II, 3ª ed. revista e ampliada, Coimbra, Almedina, 2000, pag. 66.