Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1635/17.8T8VCT.G1
Relator: VERA SOTTOMAYOR
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
TRABALHADOR INDEPENDENTE
REQUISITOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I - O requisito fundamental para aferir a abrangência do seguro infortunístico laboral que atinge um trabalhador independente, é o do exercício da actividade objecto do contrato de seguro, contudo não é o único requisito, daí que se imponha alguma reflexão sobre os demais requisitos a verificar para que se possa concluir que o acidente a que os autos se reportam é de trabalho.

II – Para que o acidente sofrido por trabalhador independente seja qualificado como de trabalho tem também de se estabelecer um elo de ligação entre o momento da ocorrência do acidente, o local e o tempo de trabalho.

III – Ainda que com as devidas adaptações, sendo os conceitos de «local e tempo de trabalho» coincidentes na NLAT e na Apólice Uniforme do Seguro de Acidentes de Trabalho para Trabalhadores Independentes, a análise jurídica feita no caso concreto, em que está em causa um trabalhador independente, não deve diferir da que seria feita no caso de um trabalhador dependente.

Vera Sottomayor
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães

APELANTE: SEGURADORAS X, S.A.
APELADO: C. B.

I – RELATÓRIO

No Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, Juízo do Trabalho de Viana do Castelo, Juiz 1, C. B., com o patrocínio do Ministério Público, instaurou ação especial emergente de acidente de trabalho contra SEGURADORAS X, S.A., pedindo a sua condenação no pagamento:

- de uma pensão anual e vitalícia, a fixar de acordo com o resultado da Junta Médica;
- de uma indemnização pelos períodos de incapacidade temporária, a fixar de acordo com o resultado da Junta Médica;
- da quantia de €40,00 a titulo de despesas de transporte para deslocação ao tribunal e ao GML;
- dos juros de mora vencidos e vincendos sobre as quantias reclamadas, calculados à taxa de 4% (art. 135º CPT e Portaria nº 391/03, 08/04).

Para sustentar a sua pretensão alegou, em síntese que no dia 21/01/2017, sofreu um acidente quando trabalhava por conta própria, exercendo as funções de pedreiro. À data do acidente tinha transferido para a Ré a responsabilidade por acidentes de trabalho, pela retribuição auferida, ou seja €10.000,00, tendo a Ré declinado responsabilizar-se pela reparação do acidente.

A Ré contestou impugnando a ocorrência do acidente de trabalho, dizendo que quando o mesmo ocorreu o sinistrado encontrava-se na sua propriedade, a executar uma tarefa pessoal, da sua vida privada, em benefício próprio e do seu agregado familiar. A tarefa que motivou o acidente não teve qualquer conexão com a sua situação profissional, não podendo por isso o acidente em causa ser considerado de trabalho.

Conclui pela improcedência da acção com a sua consequente absolvição do pedido.

Foi proferido despacho saneador, fixados os factos assentes, organizada a base instrutória e ordenado o desdobramento dos autos, para fixação da incapacidade para o trabalho.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento e por fim foi proferida sentença, que terminou com o seguinte dispositivo:

Assim, e face a tudo o exposto, decide-se:

Condenar a R. seguradora a pagar ao A.:

- o capital de remição correspondente à pensão de €655,99, com início no dia 21/6/2017;
- a quantia de €2.166,74 de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária;
- a quantia de €40,00 de despesas de deslocação ao GML e a este tribunal;
- juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa de 4%, sendo que, quanto à pensão, os juros são calculados sobre o capital de remição.
Custas pela R. seguradora.
Valor da acção: €10.403,99
Registe e notifique.”
*
A Ré Companhia de Seguros inconformada interpôs recurso da sentença, formulando as seguintes conclusões:

a) Com o presente recurso, pretende o Recorrente demonstrar o desacerto da decisão proferida pelo Tribunal a quo, que julgou procedente a presente acção emergente de acidente de trabalho, para tanto aplicando erradamente o direito, nomeadamente o disposto no artigo 8.º da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro e no artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 159/99, de 11 de Maio, violando ainda, em consequência, o princípio constitucional da igualdade (artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa).
b) Na verdade, o mencionado erro na aplicação do direito resulta de uma interpretação equivocada, inadmissível à luz do estatuído no artigo 9.º do Código Civil, do regime de reparação de acidentes de trabalho aplicável aos trabalhadores independentes, tendo o Tribunal a quo, incorrectamente, entendido que, para efeitos daquela reparação, é apenas necessário que, no momento do sinistro, a actividade desenvolvida por aquele trabalhador se enquadre dentro da profissionalidade declarada para efeitos de seguro, não se exigindo a verificação dos demais requisitos, de tempo, lugar e atinentes ao(s) dano(s) contemplados no artigo 8.º da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro e, por remissão, do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 159/99, de 11 de Maio.
c) Por outro lado, caso se conclua pela correcção da interpretação sufragada pelo Tribunal a quo, o que apenas se considera por hipótese académica e por cautela de patrocínio, entende a Recorrente que, ainda assim, e atenta a factualidade dada como provada, jamais poderia a sentença ora recorrida concluir e decidir que o sinistro sub-judice configura um acidente de trabalho abrangido pela apólice subscrita pelo Autor junto da Ré, sendo, por isso, injusta e legalmente inamissível a decisão de condenar a Ré.
d) Com efeito, para assim decidir, o Tribunal a quo escudou-se, essencialmente, no teor do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10.02.2015 (processo n.º 3764/04, relator: Serra Leitão, disponível em www.dgsi.pt) que entendeu que, para efeito de reparação de acidente de trabalho de trabalhadores independentes, o critério fundamental a atender é o da profissionalidade, quer dizer, é necessário que o evento danoso ocorra no exercício de uma actividade relacionada com a profissão que foi declarada para efeitos de seguro pelo aludido trabalhador.
e) Todavia, sustentando embora a sua decisão neste entendimento, o Tribunal a quo entendeu ir ainda mais longe, tendo considerado que o mencionado critério da profissionalidade constituiria não um requisito fundamental, mas sim o “único critério a atender”, isto é, a condição exclusiva cuja verificação determina, “sem mais”, que o sinistro em causa consubstanciaria um acidente de trabalho abrangido pela apólice subscrita pelo Autor junta da Ré, dando lugar, nessa medida, à consequente reparação.
f) O legislador, atenta a sensibilidade e importância da matéria em causa, teve o cuidado de definir expressa e cristalinamente o conceito de acidente de trabalho (artigo 8.º da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro e artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 159/99 de 11 de Maio), enunciando claramente os seus requisitos fundamentais (de tempo, lugar e atinentes ao(s) dano(s)), e delimitando, de modo vasto e extenso, as concretas circunstâncias (artigo 9.º da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro) cuja verificação se exige para que um determinado sinistro possa configurar um acidente de trabalho.
g) Salvo o devido respeito, entende a ora Recorrente que o Tribunal a quo não só não fez bom uso do quadro legal, claro e objectivo, sobre o qual se debruçou, como parece tê-lo colocado entre parêntesis, fazendo tabula rasa das regras e requisitos expressamente consagrados na lei, antes optando por fazer assentar a sua decisão numa interpretação equivocada do regime de reparação de acidentes de trabalho aplicável aos trabalhadores independentes, em clara violação do artigo 9.º do Código Civil.
h) É que o critério “único” que sustentou a decisão do Tribunal a quo, a profissionalidade, não resulta sequer, directa ou indirectamente, do disposto nos artigo 8.º da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro e 1.º do Decreto- Lei n.º 159/99 de 11 de Maio, os concretos preceitos legais mobilizados pelo Tribunal a quo para fundamentar a sua douta decisão, como, aliás, não encontra guarida no artigo 9.º da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro e no artigo 6.º Decreto-Lei n.º 159/99 de 11 de Maio (ignorado pelo Tribunal a quo).
i) Efectivamente, o critério da profissionalidade mais não é, na verdade, do que um conceito desenvolvido pela jurisprudência jus-laboral com o fito de auxiliar o julgador em casos, como o controvertido, em que o sinistrado é um trabalhador independente.
j) É que estes específicos trabalhadores, fruto do seu estatuto laboral complexo, gozam de um grau de autonomia na definição do local e na fixação tempo de trabalho que os demais trabalhadores não gozam, ou melhor, para os trabalhadores por conta de outrem a definição e fixação daquelas matérias é da responsabilidade do empregador, tornando a apreciação e decisão das acção emergentes de acidente de trabalho menos tortuosa neste último caso.
k) Porém, uma coisa é reconhecer a importância auxiliar do critério da profissionalidade, outra bem distinta é considerar, como o fez o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra atrás referido, que um conceito desenvolvido pela jurisprudência e sem assento legal expresso, goza de primazia em face dos demais critérios especificamente contemplados no artigo 8.º da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro.
l) No mesmo sentido, interpretação ainda mais grave foi a que sustentou a decisão do Tribunal a quo que entendeu que a profissionalidade é “único critério a atender”, isto é, a condição exclusiva cuja verificação determina, “sem mais”, que o sinistro em causa configura um acidente de trabalho abrangido pela apólice subscrita pelo Autor junta da Ré, dando lugar, nessa medida, à consequente reparação.
m) Assim, tendo derrogado tacitamente os requisitos enunciados expressamente no artigo 8.º da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro, substituindo-os pelo critério da profissionalidade, desenvolvido pela jurisprudência e sem consagração expressa na lei, violou o tribunal a quo as regras de interpretação da lei consagradas no artigo 9.º do Código Civil, tendo, em consequência, aplicado erradamente os artigos 8.º da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro e 1.º do Decreto-Lei n.º 159/99 de 11 de Maio.
n) Noutra ordem de considerações, da leitura atenta do Decreto-Lei n.º 159/99 de 11 de Maio ressalta à vista a intenção do legislador de proceder a uma equiparação de regimes entre trabalhadores por conta de outrem e trabalhadores independentes, sendo a este propósito paradigmáticas as constantes remissões para a Lei n.º 100/97 de 13 de Setembro, como sucede, desde logo, no artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 159/99 de 11 de Maio (“Conceito de acidente”).
o) Assim, sendo a equiparação de regimes o objectivo definido pelo legislador, não poderá aceitar-se que, para efeitos de reparação de acidentes de trabalho, sejam substancial e injustificadamente distintos os critérios aplicáveis aos trabalhadores por conta de outrem, por um lado, e aos trabalhadores independentes, por outro.
p) Enquanto que aos primeiros, conforme tem sido entendimento da doutrina e da jurisprudência, é exigida a verificação e prova dos requisitos enunciados nos artigos 8.º e 9.º da (de tempo, lugar e atinentes ao dano) Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro, aos trabalhadores independentes, segundo interpretação sufragada pelo Tribunal a quo na sua douta sentença, é apenas necessário a verificação do critério da profissionalidade.
q) Ora, tal interpretação configura uma clara e flagrante violação do princípio constitucional da igualdade (artigo 13.º da CRP), justamente por pressupor para os trabalhadores por conta de outrem um mais vasto e exigente leque de critérios cuja verificação depende o preenchimento do conceito de acidentes de trabalho do que aquele que, segundo a mencionada interpretação, é imposto aos trabalhadores independentes.
r) Sem prescindir, ainda que, por hipótese académica e mera cautela de patrocínio, se concluísse que a interpretação que esteve na base da decisão proferida pelo Tribunal a quo tem fundamento legal e constitucional, sempre teria aquele Tribunal de concluir pela improcedência da presente acção emergente de acidente de trabalho.
s) Por um lado, conforme resulta da factualidade dada como provada pela douta sentença, desde logo não resultou provado que o sinistro sub-judice ocorreu no local, habitual ou esporádico, e no tempo, normal ou extraordinário, de trabalho do sinistrado, conforme exigem expressamente os artigos 8.º e 9.º da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro e artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 159/99 de 11 de Maio.
t) Por outro lado, não foi sequer feita prova da alegada profissionalidade, quer dizer, do leque de factos dados como provados não resulta, de nenhum modo, que o evento danoso ocorreu no exercício da actividade relacionada com a profissão declarada para efeitos de seguro pelo Autor.
u) Da circunstância de o sinistrado ser pedreiro de profissão e o sinistro ter ocorrido enquanto reparava um coberto na sua propriedade, não pode concluir-se, sem mais, que o aludido evento danoso ocorreu no exercício de uma actividade relacionada com a profissão declarada para efeitos de seguro.
v) Para que assim se poder concluir, sempre teria de ser produzida prova sobre o conteúdo funcional da actividade exercida pelo sinistrado, de modo a concluir-se (ou não) que o evento danoso (decorrente da reparação do telhado) ocorreu no contexto e no exercício da actividade declarada para efeitos de seguro.
w) Ora, não tendo sido produzida a mencionada prova, não poderia o Tribunal a quo ter concluído mecanicamente que, no caso controvertido, se encontra verificado o critério da profissionalidade, nem poderia, em consequência, ter concluído que o aludido sinistro configura um acidente de trabalho abrangido pela apólice subscrita pelo Autor junto da Ré, ora Recorrente.
x) Pelo exposto, não tendo resultado provado o mencionado critério, deveria o Tribunal a quo ter concluído pela improcedência da presente acção especial de acidente de trabalho.”

Termina pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que a absolva do pedido.

Contra alegou o Autor defendendo a manutenção do julgado e formula as seguintes conclusões:

“- A cobertura do seguro de acidentes de trabalho dos trabalhadores independentes, nos termos do art. 1º do DL nº159/99, não exige que a actividade prestada seja remunerada nem que o trabalhador labore por conta de outrem.
- Tendo o acidente ocorrido quando o Autor executava trabalho compreendido na actividade de pedreiro, o acidente em causa é um acidente de trabalho coberto pelo seguro contratado.
- Neste sentido, entre outros, ac. TRE de 12/07/2011, Proc. n.º 259/08.5TTFAR.E1,que trata um caso semelhante ao dos autos.”
*
Admitido o recurso na espécie própria e com o adequado regime de subida, foram os autos remetidos a esta 2ª instância.

Dado cumprimento ao disposto na primeira parte do nº 2 do artigo 657º do Código de Processo Civil foi o processo submetido à conferência para julgamento.

II OBJECTO DO RECURSO

Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões da Recorrente (artigos 635º, nº 4, 637º n.º 2 e 639º, nºs 1 e 3, do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 87º n.º 1 do CPT), a única questão trazida à apreciação deste Tribunal da Relação é a de apurar se o acidente sofrido pelo sinistrado é de qualificar como acidente de trabalho.

III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Em 1ª instância resultaram provados os seguintes factos, que se aceitam, por não existir qualquer razão para a sua alteração:

1 - O A. nasceu a ../../….
2 - Desempenha a actividade profissional de pedreiro, por conta própria.
3 - Celebrou com a R. seguradora contrato de seguro, do ramo de acidentes de trabalho, titulado pela apólice …, pelo montante anual de €10.500,00 (documentos de fls. 38 a 40, que aqui se dão por integralmente reproduzidos).
4 - No dia 21/1/2017, pelas 16,00 horas, o A. encontrava-se a proceder à reparação do telhado de um “coberto” numa sua propriedade em …, Monção, quando caiu de um escadote, o que lhe provocou fractura de L2 e contusão do ombro direito.
5 – Em consequência deste evento, o A. encontra-se curado, com uma IPP de 8,925%, tendo tido as incapacidades temporárias fixadas pelo GML.
6 – O A. teve despesas com deslocações a este tribunal e ao GML.

IV - APRECIAÇÃO DO RECURSO

Da qualificação do acidente

Os presentes autos respeitam a uma acção emergente de acidente de trabalho, referente a um sinistro ocorrido em 21/01/2017, sendo por isso o regime aplicável o decorrente dos seguintes diplomas:

- Código do Trabalho revisto (Lei n.º 7/2009, de 12/02);
– Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro (NLAT);
- Decreto-Lei n.º 159/99, de 11 de Maio, alterado pelo Decreto-Lei n.º 382-A/99, de 22 de Setembro.

Insurge-se a Recorrente quanto à aplicação e interpretação do direito efectuada pelo tribunal a quo ao ter qualificado o acidente a que os autos se reportam como de trabalho, em violação ao previsto nos artigos 8.º e 9.º da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro e artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 159/99 de 11 de Maio.

O tribunal de 1ª instância qualificou o acidente como de trabalho com base na seguinte argumentação:

“Conforme se decidiu no Ac. da Rel. de Coimbra de 10/2/05 (relator Sr. Dr. Serra Leitão, in www.dgsi.pt):

“…o critério fundamental para aferir da abrangência do seguro infortunístico laboral, perante um sinistro que atinge um trabalhador independente, será dado pela actividade que ele no momento exercia. Se ela se integra no âmbito da sua profissionalidade e pela qual ele estava seguro, então independentemente de estar a laborar para si ou para outrem, com remuneração ou sem ela, o sinistro de que eventualmente venha a ser vítima, estará a coberto do contrato de seguro que celebrou.”

Com efeito, embora o D.L. 159/99, de 11/5, tenha operado uma distinção entre trabalhadores independentes cuja produção se destina exclusivamente ao consumo próprio e aqueles que por via de regra laboram para outrem, mediante em regra contratos de prestação de serviços, certo é que essa distinção apenas releva para efeitos de obrigatoriedade ou não de seguro.

Permite, assim, a lei que trabalhadores independentes, que não laborem por conta de outrem e cuja a actividade não seja de todo remunerada, possam beneficiar das prestações previstas na LAT, desde que tenham celebrado o competente seguro, que neste caso não será obrigatório.

O que nos leva a concluir que a única condição fundamental para que haja lugar à reparação por acidente de trabalho, é que o evento danoso ocorra no exercício de uma actividade relacionada com a profissão que foi declarada para efeitos de seguro, sendo irrelevante a qualidade em que o trabalhador se encontrava a desempenhar essa actividade: de forma gratuita ou onerosa, no local de trabalho habitual ou noutro local (que pode mesmo ser o domicílio), no âmbito da prestação normal da actividade ou num evento extraordinário.

Ou dito de forma mais clara, é apenas necessário que a actividade que estava a ser desenvolvida se enquadre dentro da profissionalidade declarada para efeitos de seguro.
Ora, a reparação do telhado de um coberto enquadra-se claramente nas funções normalmente desempenhadas por um pedreiro.
E sendo este o único critério a atender, como vimos supra, terá que se concluir, sem mais, que o sinistro que vitimou o A. é um acidente de trabalho abrangido pela apólice que subscreveu junto da R. seguradora.”
Discute-se assim a responsabilidade pela reparação de acidente sofrido por trabalhador independente, vejamos então se assiste razão à recorrente.

Como é consabido, actualmente, o trabalhador que exerce alguma actividade por conta própria está obrigado a fazer um seguro de acidentes de trabalho, tal como decorre do artigo 1.º do DL n.º 159/99 de 11/05, seguro este que garanta, com as devidas adaptações, as prestações definidas na Lei dos Acidentes de Trabalho para os trabalhadores por conta de outrem e seus familiares. Estipula o art.º 2 do citado Decreto-Lei que este seguro rege-se também com as devidas adaptações, pelas disposições da Lei dos Acidentes de Trabalho (Lei n.º 100/97 de 13/09) e seus diplomas complementares.

Acresce dizer que também é aplicável a Norma Regulamentar n.º 3/2009-R, de 5 de Março, publicada no Diário da República, IIª Série, n.º 57, de 23 de Março de 2009 que aprovou a parte uniforme das «Condições Gerais da Apólice de Seguro Obrigatório de Acidentes de Trabalho para Trabalhadores Independentes», que ainda se encontra em vigor.

Do exposto resulta que quer o Decreto-Lei n.º 159/99, quer a Norma Regulamentar n.º 3/2009-R referem-se à Lei n.º 100/97, de 13/09, sendo certo que esta, bem como o respectivo regulamento, resultante do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30/04, foram revogados pelo artigo 186.º, alínea a), da Lei n.º 98/2009, de 04/09, (doravante NLAT), que aprovou o actual Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e das Doenças Profissionais e que entrou em vigor no dia 01 de Janeiro de 2010.

Contudo, resulta do previsto no artigo 181.º, da NLAT, que “as remissões de normas contidas em diplomas legislativos para a legislação revogada com a entrada em vigor da presente lei consideram-se referidas às disposições do Código do Trabalho e da presente lei”.

É precisamente o caso do Decreto-Lei n.º 159/99, de 11 de Maio, cuja remissão deve, agora, considerar-se feita para a NLAT.

Por fim, referimos que o artigo 184.º, da NLAT, prescreve que a regulamentação relativa ao seguro obrigatório de acidentes de trabalho dos trabalhadores independentes consta de diploma próprio – diploma este que continua a ser o Decreto-Lei n.º 159/99, de 11/05.

Resulta do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 159/99, de 11/05, o seguinte:

Através do seguro de acidentes de trabalho pretende-se garantir aos trabalhadores independentes e respectivos familiares, em caso de acidente de trabalho, indemnizações e prestações em condições idênticas às dos trabalhadores por conta de outrem e seus familiares.

O carácter de obrigatoriedade do seguro não abrange os trabalhadores independentes cuja produção se destine exclusivamente ao consumo ou utilização por si próprio e pela sua família.”

E prescreve o artigo 1.º do citado diploma legal sob a epígrafe “Obrigatoriedade de seguro”, o seguinte:

«1. Os trabalhadores independentes são obrigados a efectuar um seguros de acidentes de trabalho que garanta, com as devidas adaptações, as prestações definidas na Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, para os trabalhadores por conta de outrem e seus familiares.
2. São dispensados de efectuar este seguro os trabalhadores independentes cuja produção se destine exclusivamente ao consumo ou utilização por si próprio e pelo seu agregado familiar».

Daqui decorre que o legislador pretendeu que trabalhadores independentes beneficiassem do regime de reparação dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais, desde que celebrassem um contrato de seguro (obrigatório ou facultativo) do qual fez depender a atribuição dos benefícios resultantes da referida legislação.

Conforme se refere a este propósito no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 12/07/2011, proferido no Proc. n.º 259/08.5TTFAR.E1, acórdão este citado nas contra alegações de recurso.

A norma citada prevê dois tipos de situações: (i) a, diremos, genérica, do trabalhador que exerce a actividade por conta própria – mas não destrinçando a lei que a mesma actividade tenha ou não que ser remunerada e tenha ou não que ser prestada a outrem –, em que é obrigatória a celebração do contrato de seguro; (ii) a do trabalhador independente, cuja produção se destina exclusivamente ao seu consumo ou do seu agregado familiar, caso em que a celebração do contrato de seguros se torna meramente facultativa.

Como já se deixou implícito, a situação típica, normal, é a de um trabalhador independente que exerce a actividade para outrem e que em contrapartida lhe é pago o resultado dessa actividade (v.g. em regime de contrato de prestação de serviços, ou outro).

Todavia, a actividade desse trabalhador independente pode não se esgotar aí: ele pode, por exemplo, fazer um trabalho esporádico a outrem de modo gracioso, ou pode até realizar um trabalho para si mesmo e/ou para o seu agregado familiar.

Ora, tais situações, segundo se entende, caem no âmbito da letra da lei do seguro de acidentes para trabalhadores independentes (Decreto-Lei n.º 159/99, de 11-05), maxime no n.º 1 do artigo 1.º, uma vez que aí não se distingue se a actividade tem ou não que ser remunerada ou se tem ou não que se prestada exclusivamente a outrem.

Mas tal interpretação insere-se também no espírito da lei: se o que se pretende com o seguro obrigatório de acidentes de trabalho para trabalhadores independentes é garantir a estes e seus familiares os benefícios que emergem da Lei 100/97, em condições idênticas às dos trabalhadores por conta de outrem e seus familiares, mal se compreenderia que se no trabalho por si desenvolvido o trabalhador independente exercesse uma actividade quer para outrem, quer para si mesmo ou para o agregado familiar, caso sofresse um acidente nesta última situação, o mesmo não fosse considerado acidente de trabalho e, como tal, o trabalhador e seus familiares ficassem sem direito às indemnizações e prestações previstas na lei dos acidentes de trabalho.

Naturalmente que a situação já se apresenta distinta se o trabalhador independente apenas realiza a actividade/produção para si próprio e/ou agregado familiar: aí compreende-se que o «risco» corra por conta do trabalhador e, por isso, que não exista a obrigatoriedade da celebração do contrato de seguro. Contudo, celebrado este, não pode o mesmo deixar de abranger qualquer eventual acidente sofrido pelo trabalhador.

Assim, e em jeito de conclusão, acompanhamos os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-02-2005 (CJ, 2005, I, pág. 60) e do Tribunal da Relação do Porto de 08-09-2008 (CJ, 2008, IV, 229), quando neles se afirma que a actividade constitui o critério fundamental para aferir da abrangência do seguro infortunístico laboral que atinge um trabalhador independente: se aquela «…se integra no âmbito da sua profissionalidade e pela qual ele estava seguro, então independentemente de estar a laborar para si ou para outrem, com remuneração ou sem ela, o sinistro de que eventualmente venha a ser vítima, estará a coberto do contrato de seguro que celebrou (salvo naturalmente as hipóteses de invalidade deste)».”

Esta é também a posição que tem sido subscrita por este Tribunal da Relação, designadamente no Acórdão de 31/10/2018, proferido no Proc. n.º 3383/16.7T8VCT (relator Eduardo Azevedo), do qual fui 1ª Adjunta (consultável em www.dgsi.pt.).

A este propósito e em situação semelhante se escreveu o seguinte: “conclui-se também que para os trabalhadores independentes como aqueles que se encontram em iguais circunstâncias dos autos não “é necessário reunir as condições semelhantes previstas para os trabalhadores por conta de outrem, nomeadamente, que se encontre a desempenhar uma actividade remunerada, bem como, que a mesma seja desempenhada em benefício de terceira pessoa”.

Quando ocorreu o acidente, o recorrido estava a praticar actos da vida privada, indefectivelmente relacionados com as actividades declaradas para efeitos de cobertura de riscos do seguro (de acabamentos e agrícolas) e que, como se constata, têm uma aplicação pratica significativamente vasta (cfr ainda Classificação Portuguesa das Actividades Económicas no seu código 45450 quanto ao directamente declarado para os acabamentos).

Sendo assim os efeitos desse acidente estão, em princípio, abrangidos pelo regime dos acidentes de trabalho e daí pela apólice de seguro dos autos.”

Assim, temos por certo que o requisito fundamental para aferir a abrangência do seguro infortunístico laboral que atinge um trabalhador independente, é o do exercício da actividade objecto do contrato de seguro, contudo não é o único requisito, daí que se imponha alguma reflexão sobre os demais requisitos a verificar para que se possa concluir que o acidente a que os autos se reportam é de trabalho.

Ora, o art.º 8º, da NLAT consagra o conceito de acidente de trabalho, nele se estipulando o seguinte

“1 - É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
2 - Para efeitos do presente capítulo, entende-se por:
a) «Local de trabalho» todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, direta ou indiretamente, sujeito ao controlo do empregador;
b) «Tempo de trabalho além do período normal de trabalho» o que precede o seu início, em atos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe segue, em atos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho.”

Por outro lado na Apólice Uniforme do Seguro de Acidentes de Trabalho para Trabalhadores Independentes também se define local e tempo de trabalho da seguinte forma:

Local de trabalho: Todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho, considerando-se como tal a própria residência habitual ou ocasional do trabalhador, nos casos em que o trabalho seja efetuado em casa.

Tempo de trabalho: Além do período normal de laboração, o que preceder o seu início, em atos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe seguir, em atos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho.”

Daqui ressalta, ainda que com as devidas adaptações, que os conceitos de «local e tempo de trabalho» são coincidentes na NLAT e na Apólice Uniforme do Seguro de Acidentes de Trabalho para Trabalhadores Independentes.

Tal como se resulta do sumário do recente acórdão do STJ de 19-12-2018, proferido no proc. n.º 79/16.3T8CTB.C1.S1 (relator Chambel Mourisco)

I. Com as devidas adaptações, os conceitos de «local e tempo de trabalho» são coincidentes na Lei dos Acidentes de Trabalho e na Apólice Uniforme do Seguro de Acidentes de Trabalho para Trabalhadores Independentes.
II. A qualificação de um acidente de trabalho exige que se estabeleça um elo de ligação entre o momento da ocorrência do acidente e local e tempo de trabalho.”

Retornando ao caso em apreço, teremos de dizer que da factualidade provada resulta que o autor desempenha a actividade profissional de pedreiro, por conta própria, celebrou com a R. seguradora contrato de seguro, do ramo de acidentes de trabalho, titulado pela apólice …, pelo montante anual de €10.500,00 e no dia 21/1/2017, pelas 16,00 horas, quando se encontrava a proceder à reparação do telhado de um “coberto” numa sua propriedade em …, Monção, caiu de um escadote, o que lhe provocou fractura de L2 e contusão do ombro direito.

Resulta desta factualidade que o autor exerce a actividade de pedreiro, como trabalhador independente, que tinha a sua responsabilidade emergente de acidentes de trabalho transferida para a Ré, tendo sofrido um acidente no exercício dessa actividade quando reparava o seu próprio telhado.

Estes factos permitem-nos concluir não só que o evento danoso ocorreu em actividade relacionada com a profissão que foi declarada para efeitos de seguro (pedreiro), pois como é de conhecimento geral que o pedreiro é aquele que trabalha em construções com pedra, tijolo, cimento, betão ou outros materiais, não restando dúvidas de que o sinistrado na altura do sinistro realizava tarefa enquadrável no amplo leque das tarefas que são executadas no exercício da actividade de pedreiro. Como também ocorreu no local de trabalho, (este pode ser na sua residência habitual ou ocasional) e no tempo de trabalho, pois tendo ocorrido pelas 16.00 horas, ainda que num sábado, tratando-se de trabalhador independente, que em regra não está sujeito a um horário de trabalho, as regras da experiência impõe que se considere que estaria dentro do período normal de laboração.

Acresce dizer que a lei do seguro de acidentes de trabalho para trabalhadores independentes prevê a possibilidade do trabalhador exercer a actividade objecto do contrato de seguro para si próprio ou para o seu agregado familiar, pelo que está abrangido pelo contrato de seguro para trabalhadores independentes nos termos já acima melhor explicitados.

Em suma, ao contrário do defendido pela recorrente, ainda que se possa afirmar que o tribunal a quo para concluir pela existência de acidente de trabalho elegeu como único requisito a preencher o referente ao exercício de actividade relacionada com a profissão – critério da profissionalidade -, o certo é que a factualidade provada permite-nos concluir pela verificação de todos os demais requisitos integradores do conceito de acidente de trabalho, já que este ocorreu no exercício das funções integradoras da profissão desempenhada pelo sinistrado (pedreiro), em local esporádico de exercício da sua actividade (numa propriedade sua) e no tempo que é de considerar normal de trabalho (acidente ocorreu às 16.00 horas).

Por fim, importa ainda referir que não vislumbramos qualquer violação do princípio constitucional da igualdade, consagrado no artigo 13.º da CRP, uma vez que os conceitos de local e tempo de trabalho são coincidentes para os trabalhadores por conta de outrem e para os trabalhadores independentes, ainda que para estes devam ser interpretados de forma adaptada, pois em regra estes trabalhadores não estão vinculados nem ao local de trabalho, nem ao horário de trabalho.

No entanto, em situação semelhante a análise jurídica do caso concreto estando em causa um trabalhador independente não difere da que seria feita caso se tratasse de trabalhador subordinado.

A este propósito, ainda que em situação não coincidente mas de alguma forma similar, se escreveu no já citado acórdão do STJ de 19/12/2018 (relator Chambel Mourisco) o seguinte:

A recorrente coloca uma segunda questão que consiste em saber se a interpretação feita pelo acórdão recorrido ao considerar não existir qualquer conexão espacial e temporal entre a deslocação do sinistrado e a sua atividade profissional, bem como a interpretação que faz do diploma relativo ao seguro profissional dos trabalhadores independentes viola os princípios da proporcionalidade, universalidade, igualdade, do direito ao trabalho, da concreta igualdade de condições e tratamento para situações de trabalho idênticas, previstos nos artigos 12.°, 13.°, 58.°, 59.°, da Constituição da República Portuguesa.

Como já se referiu ao analisar a questão anterior verifica-se que, com as devidas adaptações, os conceitos de «local e tempo de trabalho» são coincidentes na LAT e na Apólice Uniforme do Seguro de Acidentes de Trabalho para Trabalhadores Independentes.

A análise jurídica feita no caso concreto, em que está em causa um trabalhador independente, não difere da que seria feita no caso de um trabalhador dependente.

Assim, não se vislumbra que a interpretação feita pelo acórdão recorrido tenha violado os alegados princípios da proporcionalidade, universalidade, igualdade, do direito ao trabalho, da concreta igualdade de condições e tratamento para situações de trabalho idênticas, previstos nos artigos 12.°, 13.°, 58.°, 59.°, da Constituição da República Portuguesa.”

Concluindo, improcede o recurso e mantém-se a decisão recorrida.

V – DECISÃO

Pelo exposto, e ao abrigo do disposto nos artigos 87º do C.P.T. e 663º do C.P.C., acorda-se, neste Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso de apelação interposto por SEGURADORAS X, S.A., confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da Recorrente.
Notifique.
Guimarães, 7 de Fevereiro de 2019

Vera Maria Sottomayor (relatora)
Antero Dinis Ramos Veiga
Alda Martins