Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
7469/12.1TBBRG-J.G1
Relator: FRANCISCO XAVIER
Descritores: CASO JULGADO
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
ACESSO AOS TRIBUNAIS
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/17/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I. Para aferição do pressuposto subjectivo da excepção da litispendência e do caso julgado (identidade de sujeitos em ambas as acções) há que atender, não apenas à identidade dos sujeitos intervenientes na acção, mas também à qualidade jurídica das partes em confronto, analisando-se para o efeito o conteúdo material ou de direito subjectivo de cada uma das partes, podendo o caso julgado atingir terceiros que não tiveram intervenção numa dessas acções em conflito.
II. O fundamento do caso julgado reside no prestígio dos tribunais e numa razão de certeza ou segurança jurídica.
III. A excepção de caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil, o que implica uma não decisão sobre a nova acção, pressupondo a tríplice identidade de sujeitos, objecto e pedido.
IV. A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, não sendo exigível a coexistência da identidade de sujeitos, de pedido e da causa de pedir, prevista no artigo 581º do Código de Processo Civil.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO

1. J… instaurou acção de separação e restituição de bens, ao abrigo do artigo 146º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, contra MASSA INSOLVENTE DE…, CREDORES DA MASSA INSOLVENTE DE… e I…, pedindo:
a) Que seja declarado que os negócios jurídicos de doação e renúncia a usufruto titulados e descritos nos artigos 1º a 3º da petição, são simulados, condenando-se os RR. A reconhecerem essa simulação e consequente anulação;
b) Que seja declarado que são válidos os negócios dissimulados que existem sob os simulados e, em consequência, condenados todos os RR. A reconhecer essa validade;
c) Que seja ordenado o cancelamento de todos os registos lavrados e incidentes sobre os referidos prédios que sejam posteriores aos actos referidos nos artigos 1º a 3º, e ordenado o registo definitivo de aquisição a favor do A. sobre todos os prédios e/ou direitos constantes dos referidos títulos; e
d) Que seja reconhecida a propriedade do A. sobre os bens e/ou direitos descritos, devendo os bens ser separados da massa insolvente e restituídos aos A.
2. Para tanto, invocou, em síntese, que os negócios realizados de doação e de renúncia ao usufruto, referentes aos prédios que identifica, foram objecto de resolução pelo administrador da insolvência no processo em que foi declarada insolvente a sua ex-mulher, aqui R., e que interpôs acção de impugnação, que não chegou à fase de julgamento, cuja decisão foi confirmada por acórdão da Relação, tendo sido recusado o recurso de revista excepcional.
Acrescenta que os referidos bens foram apreendidos nos presentes autos, mas que são de sua propriedade, pois os negócios realizados foram simulados, porque as partes não quiseram celebrar as doações e renúncia aos usufrutos declarados mas, antes, negócios de compra e venda, invocando ainda a aquisição originária dos mesmos.
3. As RR. MASSA INSOLVENTE DE… e I…, contestaram invocando, além do mais a excepção do “caso julgado”, alegando, em síntese que:
- Anteriormente, interpôs o aqui A. acção de processo ordinário contra a aqui R., requerendo que as doações e renúncias a usufrutos em causa nestes autos fossem consideradas nulas por força de ter existido simulação entre o A. e a R. (sua ex-mulher), alegando que os negócios que, efectivamente, quiseram concretizar eram de compra e venda;
- Agora, sob a égide de uma acção de separação e restituição de bens, vem invocar exactamente o mesmo e requerer também a nulidade das doações, sendo os articulados apresentados praticamente iguais, com excepção do facto de o A. vir agora alegar que houve um terceiro prejudicado com a alegada simulação - o Estado -, precisamente porque foi pela falta dessa alegação que a primeira acção veio a soçobrar;
- Com a presente acção pretende o Autor contornar uma decisão judicial que lhe foi desfavorável, a qual foi sufragada e confirmada pela Relação, tendo transitado em julgado após mais um recurso junto do Supremo Tribunal da Justiça igualmente sem sucesso.
4. Respondeu o A., pugnando pela improcedência da excepção.
5. No despacho saneador, considerando-se que os autos forneciam os elementos indispensáveis para decidir da referida excepção, a qual é do conhecimento oficioso (cf. artigos 592.°, n.º 1, alínea b), 577.° e 578.°, do Código de Processo Civil), foi proferida decisão, na qual, julgando-se procedente a excepção dilatória do caso julgado, ao abrigo nos artigos 278.°, n.º 1, alínea e), 576.°, n.ºs 1 e 2, 577.°, n.º 1, alínea i), e 478.°, todos do Código de Processo Civil, absolveram-se as RR. da instância.
6. Inconformado recorreu o A., pedindo a revogação desta decisão, com o consequente prosseguimento dos autos, com os seguintes fundamentos [segue transcrição das conclusões do recurso]:
1. A sentença dos autos não cumpre, antes viola as disposições constantes do artº 607º do C.P.C. por absoluta falta de fundamentação, sendo por isso nula nos termos do disposto no artº 615º, nº1;
2. Entre as duas acções referidas (7459/12.1TBBRG-E) e a presente, não só não se verificam os requisitos do caso julgado (identidade quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir), como ainda, a decisão que foi proferida nos autos 7459/12.1TBBRG-E não chegou sequer a debruçar-se sobre a relação jurídica substancial, ficando-se apenas pela mera verificação da invocação (ou falta dela) dos requisitos da simulação
3. Os réus naquela acção (7459/12.1TBBRG-E) não são os mesmos que foram demandados na presente acção, já que nos presentes autos, para além da Ré demandada naquela acção (Massa insolvente de…) foram ainda demandados a Ré I… e ainda todos os credores da massa insolvente, de acordo com o preceituado nos artºs 141º e ss do CIRE, o que, desde logo, revela a inexistência de identidade quanto aos sujeitos.
4. Inexiste ainda, no caso concreto e entre as duas acções, identidade do pedido, já que, o pedido principal formulado naquela acção inicial era o de se reconhecer não se verificarem em concreto os pressupostos para a resolução em benefício da massa insolvente invocada pelo aí Administrador de Insolvência, e não a declaração de nulidade dos negócios por simulação relativa que surge nessa acção como um corolário, como um decorrente lógico daquele outro pedido, enquanto que, na presente acção, os efeitos jurídicos pretendidos, são o reconhecimento das simulações efectuadas e consequente anulação, o reconhecimento da validade dos negócios dissimulados e o consequente reconhecimento da propriedade e do direito à separação e restituição dos bens apreendidos.
5. Inexiste entre as duas acções identidade de causa de pedir: Determinante para a prolação da sentença referida no Apenso E, ou seja na primeira acção instaurada, foi a total omissão de factos relativos ao referido requisito (intuito de enganar terceiros) o que, na óptica do juiz que a proferiu, fez daquela uma acção manifestamente inviável, pelo que,
6. Tendo sido considerado naquela acção que o A. não alegou factos essenciais que constituem a causa de pedir, e que o A., vem em nova acção, alegar tais factos “inquestionavelmente situados no núcleo essencial da causa de pedir”, não se vê como poderá, considerar-se que existe identidade entre causas de pedir entre as duas acções propostas.
7. A causa de pedir só será considerada a mesma se o núcleo essencial dos factos integradores da previsão das várias normas concorrentes tiver sido alegado no primeiro processo; Não tendo sido, como não foram, alegados factos essenciais que constituem a causa de pedir no primeiro processo, nada obsta a que seja intentada uma nova acção em que se aleguem os factos em falta.
8. A decisão proferida naquela primeira acção, apenas traduz uma situação de caso julgado formal pois que, apenas discorreu sobre os requisitos da simulação, a circunstância de os mesmos terem sido ou não alegados e não sobre a relação jurídica substancial; Não chegou a ser uma decisão de mérito, ou seja, nem sequer se discutiu a verificação, ou não verificação dos factos integradores da causa de pedir.
9. Violou a sentença recorrida, por erro de aplicação, o disposto nos artºs 619º, nº 1 e 580º e 581º do C.P.C.
10. A decisão proferida nos presentes autos, traduz-se numa clara e inequívoca “não decisão”, numa incontornável e inadmissível omissão da realização da justiça material, com consequências intoleráveis na esfera jurídica do recorrente, tendo como consequência prática que o recorrente fica privado de discutir nos Tribunais uma questão jurídica que não chegou a ser materialmente discutida e decidida, ao abrigo de uma qualquer questão formal e consubstancia, por isso uma intolerável, injusta e inadmissível violação do direito de acesso à Justiça, consagrado no artº 20º da CRP.
11. Deverá pois ser dado integral provimento ao presente recurso e, em consequência, deverá a decisão recorrida ser revogada, ordenando-se o prosseguimento da acção, nos termos referidos e com as legais consequências.

7. Não se mostram juntas contra-alegações.
O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II – OBJECTO DO RECURSO
O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Novo Código de Processo Civil (NCPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho.
Considerando o teor das conclusões apresentadas importa decidir as seguintes questões:
(i) Da nulidade da sentença;
(ii) Do caso julgado; e
(iii) Da inconstitucionalidade invocada.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
A) - OS FACTOS
Com interesse para a decisão relevam as ocorrências processuais resultantes do relato dos autos, sendo ainda de considerar, por resultarem dos documentos juntos aos autos (cf. certidão de fls. 220 a 272) que:
 J… instaurou acção n.º 7459/12.1BBRG-E (Comarca de Braga, Inst. Local – Secção Cível – J2), contra a Massa Insolvente de…, para impugnação das resoluções efectuadas pelo Sr. Administrador Judicial da Insolvência de I… dos negócios de doação dos bens imóveis identificados nos artigos 1º e 2º da petição inicial, efectuadas pela insolvente a favor do A., então seu marido, e de renúncia ao usufruto sobre os bens imóveis identificados no artigo 3º da mesma petição, também a favor do A.;
 Pedindo a condenação da R. a:
a) Ver declaradas nulas as escrituras de doação e renúncia a usufruto identificadas nos artigos 1º a 3º da petição inicial;
b) Ver declarado que os negócios que o A. e a insolvente efectivamente quiseram foram negócios de compra e venda, obrigando-se a R. a, em representação da insolvente, outorgar as competentes escrituras de compra e venda; e
c) Reconhecer não se verificarem em concreto os pressupostos para a invocada resolução em benefício da massa insolvente.
 Com fundamento em simulação relativa, alegando que os intervenientes não quiseram celebrar os negócios de doação e de renúncia ao usufruto, mas antes negócios de compra e venda.
 Os negócios, bens e direitos referidos nos artigos 1º a 3º da petição da acção 7459/12.1BBRG-E são os mesmos que estão em causa nos presentes autos (cf. artigos 1º a 3º da petição inicial).
 Na sentença proferida no processo n.º 7459/12.1BBRG-E, em 22 de Janeiro de 2014, foi decidido julgar improcedente a acção, absolvendo-se a R. do pedido.
 Esta decisão foi confirmada por acórdão da Relação de Guimarães, de 3 de Abril de 2014, do qual foi interporto recurso de revista excepcional, que não foi admitido por acórdão do Supremo Tribunal da Justiça de 16 de Setembro de 2014, tendo as decisões transitado em julgado.
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B) – O DIREITO
1. Da nulidade da sentença
Começa o recorrente por invocar a violação pela sentença do artigo 607º do Código de Processo Civil, por “absoluta falta de fundamentação”, e que, por isso, é nula a sentença, nos termos do n.º 1 do artigo 615º do mesmo código.
No caso, atento o fundamento invocado, só pode o recorrente querer referir-se às norma dos n.ºs 3 e 4 do artigo, que se reportam à fundamentação da sentença, em especial ao n.º 4, onde se estipula que: “[n]a fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência”.
Na decisão recorrida conheceu-se da excepção de caso julgado invocado e, nessa medida, para apreciação da questão colocada o julgador socorreu-se dos articulados e das decisões (sentença, acórdão da Relação e Acórdão do Supremo Tribunal da Justiça) proferidas na acção n.º 7459/12.1TBBRG-E, da Comarca de Braga, juntas aos autos, para em comparação com os articulados da presente acção decidir tal questão.
E, sendo a questão a decidir essencialmente de direito, não vemos que haja, na economia da decisão a proferir, absoluta necessidade de se relacionarem autonomamente os elementos que se retiraram dos documentos a propósito da análise de cada um dos pressupostos de que depende a procedência da excepção em causa.
Acresce que as deficiências da fundamentação da sentença não se confundem com a nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil, pois a falta de motivação de facto ou de direito só induz a nulidade da decisão, de acordo com a jurisprudência largamente dominante, quando é total e absoluta, e não quando é apenas deficiente ou insuficiente.
No caso a sentença está fundamentada, tendo o enquadramento jurídico de cada um dos pressupostos de que depende a procedência da excepção sido analisado em face dos elementos dos processos em confronto e aí referenciados, ainda que sucintamente, e os fundamentos invocados conduzem à decisão tomada. Tal, porém, não significa que a decisão esteja correcta, mas isso nada tem a ver com a falta de fundamentação, mas, antes, com eventual erro de julgamento, o que está de acordo com a pretensão do recorrente no recurso, que defende que, contrariamente ao decidido, não ocorrem os pressupostos do caso julgado.
Deste modo, improcede a arguida nulidade.

2. Do caso julgado
2.1. Com a presente acção pretendia o recorrente, além do mais, ver reconhecido o seu direito de propriedade sobre os bens apreendidos para a Massa Insolvente nos autos em que foi declarada insolvente a sua mulher, invocando, além do mais a existência de simulação relativa, dizendo que os negócios celebrados, de doação e renúncia ao usufruto, não foram os queridos pelas partes, pois o que pretendiam era comprar e vender os bens e direitos em causa.
Os RR. contestantes excepcionaram o caso julgado invocando a sentença proferida na acção acima identificada, alegando existir identidade de sujeitos, de pedido e da causa de pedir.
Na sentença foi julgada procedente a excepção por se julgar estar reunida a tríplice identidade exigida pelo artigo 581º do Código de Processo Civil.
Vejamos:
2.2. Concorda-se com o enquadramento jurídico feito na sentença quanto à distinção entre litispendência e caso julgado e quanto aos pressupostos de que depende a verificação de uma e outra das excepções.
Como ali se refere:
«Segundo preceitua o n.º 1, do artigo 580º, do C P. Civil, as excepções de litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar a litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à excepção de caso julgado.
Ambas as excepções visam evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior (vide artigo 580º, n.º 2, do CPC e, mais detalhadamente (cf. Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, págs. 567 e 574; na jurisprudência, vide, por todos, Acórdãos do STJ, de 26/1/1994 e de 17/2/1994, in BMJ n.ºs 433, pág. 515 e 434, pág. 580, respectivamente).
Repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (cf. artigo 581º, n.º 1, do CPC).
Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica (artigo 581º, n.º 2, do CPC).
Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico (cf. artigo 581º, n.º 3, do CPC).
Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico - consagrando, assim, a conhecida teoria da substanciação (cf. artigo 581º, n.º 4, do CPC).
Ensina Antunes Varela que “para sabermos se há ou não repetição da acção, deve atender-se não só ao critério formal (assente na tríplice identidade dos elementos que definem acção) fixado e desenvolvido no artigo 581.°, do CPC, mas também à directriz substancial traçada no n.º 2, do artigo 580.°, do CPC, onde se afirma que a excepção da litispendência (tal como a do caso julgado) tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior” - vide “Manual de Processo Civil”, 2.ª edição, pág. 302.»

2.3. No caso em apreço, concordamos também com a sentença no sentido de que existe identidade de sujeitos em ambas as acções, porquanto para aferição deste pressuposto subjectivo há que atender, não apenas à identidade dos sujeitos intervenientes na acção, mas também à qualidade jurídica das partes em confronto, analisando-se para o efeito o conteúdo material ou de direito subjectivo de cada uma das partes, podendo o caso julgado atingir terceiros que não tiveram intervenção numa dessas acções em conflito.E, como refere MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, tal eficácia externa do caso julgado verifica-se quando a acção decorreu entre todos os interessados directos (quer activos, quer passivos) e, portanto, esgotou-se a discussão judicial com a intervenção dos sujeitos com legitimidade para discutir a tutela judicial de uma situação jurídica em dada altura temporal, pelo que aquilo que ficou definido entre os legítimos contraditores deve ser aceite por qualquer terceiro que, por várias razões, venham posteriormente a ocupar a titularidade desses interesses e direitos (Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 590/591).
Ora, no caso, não obstante na primeira acção ter sido apenas demandada a Massa Insolvente da R., e agora serem demandos também a Insolvente e os Credores da Massa, tal circunstância não impede o funcionamento do caso julgado, pois em ambas as acções estiveram e estão presentes os mesmos interessados directos, activos e passivos, da relação material controvertida.
Quanto ao pedido, traduzindo-se este na pretensão jurídica formulada em juízo, como tutela do direito do autor, embora o fim visado num e noutro processo seja diverso (na primeira visa-se obstar à resolução dos negócios de doação e de renúncia do usufruto, e, na segunda, a separação e restituição dos bens objecto desses negócios), certo é que em ambas as acções se pretende obter a declaração de nulidade dos ditos negócios, por simulação, e o reconhecimento dos negócios de compra e venda querido pelas partes.
No que se reporta à causa de pedir, embora não haja uma perfeita identidade, é inquestionável que em ambas as acções se invoca a simulação relativa como fundamento para o pedido de nulidade dos negócios celebrados e validação dos negócios dissimulados, apenas com a diferença que na primeira acção se não alegaram os factos relativos a um dos requisitos da simulação - o intuito de enganar terceiros – e, agora, alega-se que se pretendeu enganar a Autoridade Tributária, para pagar menos impostos (cf. artigo 35 da petição inicial).
2.4. Diz a recorrente que, no caso, não foi emitida pronúncia na primeira acção quanto à verificação da simulação, por falta de alegação de um dos requisitos desta figura jurídica, pelo que tal decisão apenas constitui caso julgado formal no processo em que foi proferida, não tendo eficácia externa.
De facto, na 1ª acção o tribunal entendeu que “não se mostrando alegado um dos elementos necessários à invocada figura da simulação, a acção terá de ser julgada improcedente, na parte em que vem peticionada a declaração de nulidade das escrituras aludidas … por simulação relativa e a inerente declaração de validade dos negócios alegadamente dissimulados”.
Porém, se tal circunstância poderá constituir objecção à verificação da excepção dilatória do caso julgado subsumível às disposições conjugadas dos artigos 580º, n.º 1, e 581º do Código de Processo Civil, não obsta à verificação da excepção da autoridade do caso julgado, que é o que ocorre na situação em apreço, a qual, de acordo com a jurisprudência dominante, prescinde da coexistência da tríplice identidade a que se reporta o artigo 581º do Código de Processo Civil.
Efectivamente, como se diz no acórdão do Supremo Tribunal da Justiça de 21/03/2013 (proferido no proc. n.º 3210/07.6TCLRS.L1.S1, e disponível, como os demais citados sem outra referência, em: www.dgsi.pt), são essencialmente duas as realidades que se nos deparam no tratamento jurídico das consequências ou efeitos do caso julgado: a) A excepção dilatória do caso julgado; e b) a autoridade do caso julgado.
Como se diz neste aresto:
«Importa … averiguar se se verificou ofensa à autoridade de caso julgado, que não se confunde com a excepção dilatória de caso julgado.
Para cabal resposta, importa traçar o esboço conceptual de tal conceito, em latim denominado auctoritas rei judicatae, seguindo a lição magistral do Prof. Manuel Andrade.
Como aquele emérito civilista de Coimbra ensinou [Manuel D. Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pg. 306], com o brilho e o apurado sentido das realidades que todos lhe reconhecemos, mesmo em gerações posteriores às que tiveram o privilégio de escutar as suas palavras, o fundamento do caso julgado reside no prestígio dos tribunais (considerando que «tal prestígio seria comprometido em alto grau se mesma situação concreta uma vez definida por eles em dado sentido, pudesse depois ser validamente definida em sentido diferente») e numa razão de certeza ou segurança jurídica («sem o caso julgado estaríamos caídos numa situação de instabilidade jurídica verdadeiramente desastrosa»).
Assim, ainda que se não verifique o concurso dos requisitos ou pressupostos para que exista a excepção de caso julgado (exceptio rei judicatae), pode estar em causa o prestígio dos tribunais ou a certeza ou segurança jurídica das decisões judiciais se uma decisão, mesmo que proferida em outro processo, com outras partes, vier dispor em sentido diverso sobre o mesmo objecto da decisão anterior transitada em julgado, abalando assim a autoridade desta.
A feliz síntese do acórdão da Relação de Coimbra, de 28-09-2010, de que foi Relator, o Exmo. Desembargador, Jorge Arcanjo [Proc. n.º 392/09.6 TBCVL.S1, in www.dgsi.pt], afigura-se-nos cabalmente adequada ao traçado da fronteira entre estas duas figuras jurídico-processuais, pelo que importa aqui registar a parte do seu sumário, que importa à presente decisão:
I - A excepção de caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil (razões de economia processual), o que implica uma não decisão sobre a nova acção, pressupondo a tríplice identidade de sujeitos, objecto e pedido.
II - A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, não sendo exigível a coexistência da tríplice identidade prevista no artº 498° do CPC» (actual artigo 581º).
[Em idêntico sentido, cf. ainda, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal da Justiça de 19/05/2010 (Processo nº 3749/05.8TTLSB.L1.S1), e o Acórdão da Relação de Coimbra, de 06/11/2011 (proc. n.º 816/09.2TBAGD.C1), onde se concluiu que: “6 - Da excepção de caso julgado se distingue a autoridade de caso julgado, pressupondo esta a aceitação da decisão proferida em processo anterior, cujo objecto se insere no objecto da segunda, obstando-se, deste modo, que a relação ou situação jurídica material definida pela primeira decisão possa ser contrariada pela segunda, com definição diversa da mesma relação ou situação, não se exigindo neste caso a coexistência da tríplice identidade mencionado no artigo 498º do Código de Processo Civil. 7 - O efeito preclusivo do caso julgado determina a inadmissibilidade de qualquer ulterior indagação sobre a relação material controvertida definida em anterior decisão definitiva.”]

2.5. Ora, no caso dos autos, a primeira acção - de impugnação da resolução dos negócios de doação e de renúncia ao usufruto, em que se invocou, tal como na presente acção, a simulação relativa dos negócios celebrados para se obter a declaração de validade dos negócios dissimulados, com a consequente transferência da propriedade dos bens e direitos em causa para o A. – foi julgada improcedente e tal decisão transitou em julgado com o trânsito das decisões proferidas em recurso.
Em consequência, operou a resolução dos negócios celebrados entre o A. e a Insolvente, o que teve como consequência que tais negócios deixaram de subsistir na ordem jurídica, regressando os bens à titularidade da Insolvente, mantendo-se aprendidos a favor da massa.
Com o trânsito em julgado desta decisão ficou definitivamente decidido que os ditos bens e direitos não são pertença do A., mas sim da Insolvente, integrando o acervo da Massa Insolvente.
E tal decisão, proferida em processo em que interveio o A. e a Massa Insolvente impõe-se, não só a estes intervenientes mas também a terceiros reflexamente afectados com a decisão, por via da autoridade do caso julgado, não sendo mais possível voltar a discutir-se a titularidade de tais bens e direitos, como se visa com a presente acção.
Na verdade, sob a capa do pedido de separação e restituição de bens, o A. pretende voltar a discutir a propriedade dos bens e direitos objecto das escrituras de doação e de renúncia ao usufruto, visando retirar da massa insolvente aqueles bens e direitos, quando por via do trânsito em julgado da sentença que decretou a improcedência da acção de impugnação efectivou-se a resolução dos ditos negócios operada pelo Administrador da Insolvência, com as consequências previstas no n.º 1 do artigo 126º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, operando o ingresso dos bens no acervo da massa insolvente.
Neste contexto, a ser admissível a presente acção, onde se iria novamente discutir a titularidade dos bens, correr-se-ia o risco de obtenção de decisões contraditórias, pondo em causa o prestígio dos tribunais e a certeza ou segurança jurídica das decisões judiciais que com o caso julgado se visa obstar.
Deste modo ocorre a excepção material do caso julgado, que importa igualmente a absolvição da instância.

2.6. Numa outra perspectiva, poderíamos dizer que há impossibilidade originária da lide, porquanto tendo operado a resolução dos negócios celebrados entre o A. e a então sua mulher, ora insolvente, com efeitos retroactivos, por força do disposto no n.º 1 do artigo 126º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, não pode na presente acção discutir-se novamente, por via da invocação da simulação, a insubsistência dos negócios de doação e de renúncia, que já não existem, nem a persistência dos negócios de compra e venda que já não podem ocorrer, situação que nos levaria a decretar a absolvição da instância nos termos da alínea e) do artigo 277º do Código de Processo Civil.

3. Da inconstitucionalidade
Por fim, suscita o apelante a questão da inconstitucionalidade, invocando que a decisão proferida nos presentes autos, traduz-se numa clara e inequívoca “não decisão”, numa incontornável e inadmissível omissão da realização da justiça material, com consequências intoleráveis na esfera jurídica do recorrente, tendo como consequência prática que o recorrente fica privado de discutir nos Tribunais uma questão jurídica que não chegou a ser materialmente discutida e decidida, ao abrigo de uma qualquer questão formal e consubstancia, por isso uma intolerável, injusta e inadmissível violação do direito de acesso à Justiça, consagrado no artigo 20º da Constituição.
Porém, carece de fundamento tal alegação.
Como vem defendo a jurisprudência constitucional, o direito de acesso aos tribunais ou à tutela jurisdicional, condensado no artigo 20º, nº 1, da Constituição, implica a garantia de uma protecção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efectiva. Ele desdobra-se, por isso, em três momentos distintos: primeiro, no direito de acesso a "tribunais" para defesa de um direito ou de um interesse legítimo, isto é, um direito de acesso à “Justiça”, a órgãos jurisdicionais, ou, o que é mesmo, a órgãos independentes e imparciais (artigo 206º da Constituição) e cujos titulares gozam das prerrogativas da inamobilidade e da irresponsabilidade pelas suas decisões (artigo 218º, nºs 1 e 2, da Lei Fundamental); segundo, uma vez concretizado o acesso a um tribunal, no direito de obter uma solução num prazo razoável; terceiro, uma vez ditada a sentença, no direito à execução das decisões dos tribunais ou no direito à efectividade das sentenças (cf. J.J.Gomes Canotilho, Direito Constitucional,5ªed., Coimbra, Almedina, 1991, p.666-668 ; J. González Pérez, El Derecho a la Tutela Jurisdiccional, Barcelona, Civitas, 1984, p. 40 ss.; A Cano Mata, Declaraciones de Inadmision de Recursos Contencioso-Administrativos y Derecho de Tutela Judicial Efectiva sin Indefension, in Revista de Derecho Publico, Ano XIII, Vol II, p. 293 ss.).
No caso em apreço, tendo o A. recorrido aos tribunais e obtido decisão quanto à titularidade dos bens em causa nos autos, não vemos como é que o trânsito em julgado desta decisão e a afirmação da sua força vinculativa afecta os direitos em causa. Pelo contrário, se o A. pudesse prosseguir com a nova acção estar-se-ia a obstar à efectivação da sentença transitada, pondo em causa o prestígio dos tribunais e os princípios da certeza ou segurança jurídica das decisões judiciais.
E, como se disse no acórdão da Relação de Coimbra de 22/09/2015 (proc. n.º 101/14.8TBMGL.C1) “[o] princípio da segurança jurídica, que tem o caso julgado como seu postulado destacado, assume-se como basilar do Estado de Direito Democrático, pelo que o exposto entendimento não constitui um obstáculo arbitrário ou desproporcionado ao direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva”.

4. Em face do exposto, improcede a apelação, com a consequente confirmação da decisão recorrida.
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C) - SUMÁRIO
I. Para aferição do pressuposto subjectivo da excepção da litispendência e do caso julgado (identidade de sujeitos em ambas as acções) há que atender, não apenas à identidade dos sujeitos intervenientes na acção, mas também à qualidade jurídica das partes em confronto, analisando-se para o efeito o conteúdo material ou de direito subjectivo de cada uma das partes, podendo o caso julgado atingir terceiros que não tiveram intervenção numa dessas acções em conflito.
II. O fundamento do caso julgado reside no prestígio dos tribunais e numa razão de certeza ou segurança jurídica.
III. A excepção de caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil, o que implica uma não decisão sobre a nova acção, pressupondo a tríplice identidade de sujeitos, objecto e pedido.
IV. A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, não sendo exigível a coexistência da identidade de sujeitos, de pedido e da causa de pedir, prevista no artigo 581º do Código de Processo Civil.
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IV – DECISÃO
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas a cargo do Recorrente.
Guimarães, 17 de Dezembro de 2015
Francisco Cunha Xavier
Francisca Mendes
João Diogo Rodrigues