Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
940/14.0T8VCT.G1
Relator: ALDA MARTINS
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
CONTRATO DE SEGURO
EXCLUSÕES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/16/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário: I – O regime jurídico de acidentes de trabalho está gizado segundo princípios e valores muito específicos, mormente o da responsabilidade objectiva e excepcionalidade do não ressarcimento, de modo a não excluir realidades sócio-laborais de plausível verificação, sendo os prémios de seguro – obviamente – calculados em função do regime jurídico assim estabelecido.
II – Ainda que o sinistrado adopte um comportamento arriscado, grave, quiçá temerário, que seja a causa exclusiva do acidente de trabalho, não está excluída a reparação se tal conduta se consubstanciar em omissão dum dever de cuidado atinente unicamente à execução do trabalho, não motivada por razões alheias ao serviço mas, claramente, pela habitualidade ao perigo do trabalho executado e pela confiança na sua experiência profissional, como tantas vezes sucede no exercício de profissões de actividade eminentemente manual e repetitiva.
Decisão Texto Integral:
APELAÇÃO - PROCESSO N.º 940/14.0T8VCT.G1


Relatório

AA, patrocinado pelo Ministério Público, intentou acção declarativa de condenação, com processo especial emergente de acidente de trabalho, contra BB – Companhia de Seguros, SpA. e CC, Lda., pedindo a condenação:
- da R. seguradora, no pagamento do capital de remição correspondente à pensão anual e vitalícia de € 953,36, com início no dia 24/10/2016, bem como de € 35,00 de despesas com deslocações;
- da R. empregadora, no pagamento do capital de remição correspondente à pensão anual e vitalícia de € 101,98, com início no dia 24/10/2016, bem como de € 179,75 de diferenças nas incapacidades temporárias;
- de ambas, no pagamento de juros de mora, à taxa legal de 4%.
Só a R. seguradora apresentou contestação.
Foi proferido despacho saneador, fixada a factualidade assente e organizada a base instrutória.
Procedeu-se à realização de audiência de julgamento, no termo da qual foi proferido despacho de decisão da matéria de facto constante da base instrutória.
Seguidamente, pelo Mmo. Juiz a quo foi proferida sentença que terminou com o seguinte dispositivo:
«Assim, e face a tudo o exposto, decide-se:
Condenar a R. seguradora a pagar ao A.:
- o capital de remição correspondente à pensão anual e vitalícia de € 953,36, com início no dia 24/10/2016, bem como €35,00 de despesas com deslocações;
Condenar a R. “CC” a pagar ao A.:
- o capital de remição correspondente à pensão anual e vitalícia de € 101,98, com início no dia 24/10/2016, bem como €179,75 de diferenças nas incapacidades temporárias;
Vão ambas as RR. condenadas no pagamento de juros de mora, nos termos supra expostos.
Custas pelas RR. – na proporção da respectiva responsabilidade.
Valor tributário: € 14.143,39.»
A R. Seguradora, inconformada, interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
«I) O tribunal recorrido deu como provado, sob o ponto 11 do relatório dos factos provados constantes da decisão recorrida, o seguinte: “11 – Sem antes desligar o motor da máquina de corte de relva, o A. introduziu a mão esquerda no referido colector para retirar relva que ali se encontrava acumulada” (sic)
II) O tribunal recorrido deu ainda como provado, sob os pontos 13 e 14 do relatório dos factos provados constantes da decisão recorrida, o seguinte:
“13 – O facto da máquina de cortar relva estar com o motor ligado não significa que a lâmina de corte esteja em funcionamento.
14 – Para que a máquina tenha a lâmina de corte em rotação, além de ter o motor ligado, é necessário accionar um manípulo e prendê-lo num dispositivo que a máquina dispõe para esse efeito.” (sic)
III) Da conjugação dos factos provados vertidos nos pontos 13 e 14 resulta que (i) para que a lâmina de corte estivesse em rotação não bastava que o motor estivesse em funcionamento; (ii) era necessário ainda accionar um manípulo (fio de vela) e prendê-lo num dispositivo que a máquina dispõe para esse efeito.
IV) Em face das lesões causadas pela dita lâmina na mão esquerda do sinistrado, a lâmina de corte estava, necessariamente, nesse momento, em rotação, para esse efeito, como tal, face à matéria provada, o motor da máquina de corte de relva estava ligado e o sobredito manípulo teria de estar preso no dispositivo que a máquina dispõe para esse fim.
V) Motivo pelo qual, nunca a factualidade vertida no ponto 11 da matéria de facto dada como provada poderia apenas cingir-se à omissão, pelo sinistrado, do desligamento da máquina de corte de relva, mas, antes, também, à omissão do sinistrado em desprender o referido manípulo do dispositivo existente e colocação do mesmo em posição de inacção.
VI) Assim, atenta a factualidade dada como provada e a coerência exigível entre si, incorreu o tribunal a quo em erro de julgamento ao dar o facto vertido sob o ponto 11 como provado na formulação em que o fez, devendo a sua decisão, no uso dos poderes previstos no artº 662º do Código de Processo Civil (CPC), ser alterada por forma a que o referido facto seja dado como provado com a seguinte formulação:
“11 – Sem antes desligar o motor da máquina de corte de relva e sem desprender o manípulo do dispositivo que a máquina de corte de relva dispõe para o efeito, melhor identificado no ponto 14 infra, colocando-o depois em posição de inacção, o A. introduziu a mão esquerda no referido colector para retirar relva que ali se encontrava acumulada”
VII) Se o sinistrado, ao meter a mão esquerda no colector, a lâmina de corte o cortou, é porque, ao fazê-lo, (i) o motor estava em funcionamento e (ii) o referido manípulo estava accionado – cf. facto provado sob o ponto 14 -, uma vez que esses eram os requisitos para que a dita lâmina estivesse em rotação.
VIII) Logo, ao agir como agiu, introduzindo a mão esquerda no colector, quanto o motor da máquina de corte de relva estava ligado e o sobredito manípulo accionado, elementos imprescindíveis para a rotação das lâminas de corte, o sinistrado agiu com evidente negligência grosseira.
IX) Verificada pelo recorrido a origem e qual o problema em concreto que se verificava – obstrução da máquina em virtude da relva acumulada -, como detectou o autor antes sequer de introduzir a mão no interior do colector, impunha-se que este desligasse o motor e manípulo e procedesse, depois de adoptar tais medidas, à desobstrução do referido colector de relva.
X) Com efeito, a lâmina de corte com o motor em funcionamento e manípulo accionado era, obviamente, um mecanismo extremamente perigoso para o operador da máquina que inserisse a mão no interior da mesma, sendo que o autor tinha conhecimento de tal risco, e não podia deixar de o saber.
XI) Porém, não obstante ter perfeita consciência desses riscos, aceitou corrê-los e, ao invés de promover o necessário para que o motor fosse desligado e manípulo desactivado, introduziu a sua mão esquerda no colector da máquina de corte de relva enquanto o motor da mesma estava em funcionamento e o sobredito manípulo (fio de vela) estava accionado, pelo que, com a respectiva lâmina de corte em rotação, aproximando a mão esquerda da zona de corte daquela máquina, até ser atingida pela dita lâmina de corte, provocando as lesões em causa.
XII) O que, em tudo, caracteriza o comportamento como grosseiramente negligente, face à temeridade em alto grau adoptada pelo autor, que agiu de forma irreflectida, indesculpável e violadora do mais elementar sentido de prudência, sempre considerando que aquele comportamento se revelou causa adequada e exclusiva do sinistro, descaracterizando o sinistro como acidente de trabalho.
XIII) Ao assim não entender, fez o tribunal a quo uma errada aplicação do disposto na alínea b) do nº 1, bem como do nº 3 do artº 14º da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro, devendo, assim, a sua decisão ser revogada e substituída por outra que absolva a apelante da obrigação de indemnizar o apelado pelos danos por si sofridos.»
O sinistrado apresentou resposta ao recurso da R. Seguradora, pugnando pela sua improcedência.
O recurso foi admitido como apelação, com efeito devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

2. Objecto do recurso

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, as questões que se colocam a este tribunal são as seguintes:
- modificação da decisão sobre a matéria de facto;
- descaracterização do acidente de trabalho sofrido pelo A..

3. Fundamentação de facto

Os factos provados são os seguintes:
1 – O A. nasceu a 7/02/1962.
2 – Desempenhava a actividade profissional de jardineiro sob as ordens, direcção e fiscalização da R. “CC”.
3 – Auferia a retribuição anual ilíquida de € 7.516,00.
4 – A R. “C” havia transferido para a R. seguradora a sua responsabilidade por acidente de trabalho ocorrido com o A., mediante contrato de seguro, pelo montante anual de € 6.790,00.
5 – No dia 14 de Março de 2014, pelas 15,30 horas, quando o A. se encontrava no exercício da actividade referida em 2), utilizando uma máquina de cortar relva, foi atingido pela parte cortante dessa máquina, o que lhe provocou esfacelo da mão esquerda com amputação dos dedos D2, D3 e D4.
6 – Em consequência, o A. esteve com ITA desde 15/03/2014 a 9/07/2014 (117 dias) e com ITP de 30% de 10/07/2012 a 23/10/2014 (106 dias); teve alta a 23/10/2014, com uma IPP de 20,0685%.
7 – A máquina que o A. estava a utilizar era uma máquina de corte de relva de quatro rodas, marca Husqvarna, modelo R152SVH-BBC, a qual se encontrava em perfeito estado de conservação.
8 – A determinada altura, o A. retirou o saco de depósito de relva.
9 – De seguida, abriu a tampa traseira do colector da sobredita máquina de corte de relva.
10 – Esse colector liga a zona de corte de relva, com a respectiva lâmina de corte, ao saco de depósito da relva cortada.
11 – Sem antes desligar o motor da máquina de corte de relva, e com a lâmina de corte em rotação, o A. introduziu a mão esquerda no referido colector para retirar relva que ali se encontrava acumulada (alterado nos termos decididos no ponto 4.1.).
12 – Foi ao remover essa relva ali acumulada que a mão do A. entrou em contacto com a lâmina de corte, provocando-lhe as lesões referidas em 5).
13 – O facto de a máquina de cortar relva estar com o motor ligado não significa que a lâmina de corte esteja em funcionamento.
14 – Para que a máquina tenha a lâmina de corte em rotação, além de ter o motor ligado, é necessário accionar um manípulo e prendê-lo num dispositivo que a máquina dispõe para esse efeito.
15 – A R. seguradora pagou ao A. a quantia de € 1.960,64 a título de indemnização pelas incapacidades temporárias.
16 – O A. teve despesas com deslocações a este tribunal e actos médicos.

4. Apreciação do recurso

4.1. A questão que se impõe conhecer primeiramente é a da modificação da decisão sobre a matéria de facto.
Por força do art. 87.º, n.º 1 do Código de Processo do Trabalho, interessa ter em conta o art. 662.º do Código de Processo Civil, que, sob a epígrafe «Modificabilidade da decisão de facto», estabelece no seu n.º 1 que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Retornando ao caso em apreço, verifica-se que a Apelante sustenta que, em face do provado sob os pontos 13 e 14, não podia o ponto 11 ter sido considerado provado apenas parcialmente, devendo antes ter-se como provado nos seguintes termos:
«11 – Sem antes desligar o motor da máquina de corte de relva e sem desprender o manípulo do dispositivo que a máquina de corte de relva dispõe para o efeito, melhor identificado no ponto 14 infra, colocando-o depois em posição de inacção, o A. introduziu a mão esquerda no referido colector para retirar relva que ali se encontrava acumulada.»
Vejamos.
O tribunal recorrido considerou provado, além do mais, o seguinte:
11 – Sem antes desligar o motor da máquina de corte de relva, o A. introduziu a mão esquerda no referido colector para retirar relva que ali se encontrava acumulada.
12 – Foi ao remover essa relva ali acumulada que a mão do A. entrou em contacto com a lâmina de corte, provocando-lhe as lesões referidas em 5).
13 – O facto de a máquina de cortar relva estar com o motor ligado não significa que a lâmina de corte esteja em funcionamento.
14 – Para que a máquina tenha a lâmina de corte em rotação, além de ter o motor ligado, é necessário accionar um manípulo e prendê-lo num dispositivo que a máquina dispõe para esse efeito.
Por outro lado, no que se refere ao ponto 11, advém do quesito 8.º da Base Instrutória, onde se questionava o seguinte:
8.º Sem antes desligar o motor da máquina de corte de relva, e com a lâmina de corte em rotação, o A. introduziu a mão esquerda no referido colector para retirar relva que ali se encontrava acumulada?
Da conjugação dos factos provados sob os pontos 13 e 14 resulta que: (i) para que a lâmina de corte estivesse em rotação não bastava que o motor estivesse em funcionamento; (ii) era necessário ainda accionar um manípulo e prendê-lo num dispositivo de que a máquina dispõe para esse efeito.
Assim, e tendo ainda em conta que sob o ponto 12 se deu como provado que a mão do A. entrou em contacto com a lâmina de corte, provocando-lhe as lesões referidas em 5), forçoso é concluir que a lâmina de corte estava, nesse momento, em rotação, impondo-se que o quesito 8.º tivesse sido considerado como provado na totalidade.
A redacção proposta pela Recorrente extravasa do âmbito do quesito 8.º e, além do mais, limita-se a acrescentar uma conclusão que se retira da apreciação conjugada da factualidade em apreço.
Em face do exposto, decide-se julgar o recurso procedente nesta parte no sentido de dar o quesito 8.º como integralmente provado (alteração introduzida acima no local próprio).
4.2. Posto isto, importa apreciar a questão da descaracterização do acidente de trabalho sofrido pelo A..
Com interesse para a questão dos autos, estabelece o Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais (RRATDP), aprovado pela Lei n.º 98/2009, de 4/09, no que respeita ao conceito de acidente de trabalho e situações de exclusão e redução da responsabilidade:
Artigo 8.º
Conceito
1 - É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
2 - Para efeitos do presente capítulo, entende-se por:
a) «Local de trabalho» todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, directa ou indirectamente, sujeito ao controlo do empregador;
b) «Tempo de trabalho além do período normal de trabalho» o que precede o seu início, em actos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe segue, em actos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho.
Artigo 14.º
Descaracterização do acidente
1 - O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:
a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei;
b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;
c) Resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos do Código Civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, for independente da vontade do sinistrado ou se o empregador ou o seu representante, conhecendo o estado do sinistrado, consentir na prestação.
2 - Para efeitos do disposto na alínea a) do número anterior, considera-se que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la.
3 - Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.
Em matéria de repartição do ónus de alegação e prova, atenta a opção técnica do legislador na definição de acidente de trabalho, a tarefa do sinistrado reduz-se à alegação e prova dos elementos constantes do art. 8.º, impendendo sobre o responsável a alegação e prova dos requisitos determinantes da exclusão ou redução da sua responsabilidade, designadamente os do art. 14.º, com todas as vantagens em matéria de tutela e protecção daquele.
Isso significa que, no caso do sinistro dos presentes autos, verificados sem margem para dúvidas os pressupostos do art. 8.º do RRATDP, aquele deve ser qualificado como acidente de trabalho, havendo, contudo, que ponderar a hipótese de exclusão da responsabilidade das RR. nos termos do art. 14.º, n.º 1, al. b) e n.º 3, como sustenta a Apelante.
Com efeito, provou-se que, no dia 14 de Março de 2014, pelas 15,30 horas, quando o A. se encontrava no exercício da sua actividade de jardineiro, utilizando uma máquina de cortar relva, foi atingido pela parte cortante dessa máquina, o que lhe provocou esfacelo da mão esquerda com amputação dos dedos D2, D3 e D4.
A máquina que o A. estava a utilizar era uma máquina de corte de relva de quatro rodas, marca Husqvarna, modelo R152SVH-BBC, a qual se encontrava em perfeito estado de conservação.
A determinada altura, o A. retirou o saco de depósito de relva.
De seguida, abriu a tampa traseira do colector da sobredita máquina de corte de relva.
Esse colector liga a zona de corte de relva, com a respectiva lâmina de corte, ao saco de depósito da relva cortada.
Sem antes desligar o motor da máquina de corte de relva, e com a lâmina de corte em rotação, o A. introduziu a mão esquerda no referido colector para retirar relva que ali se encontrava acumulada.
Foi ao remover essa relva ali acumulada que a mão do A. entrou em contacto com a lâmina de corte, provocando-lhe as lesões referidas.
O facto de a máquina de cortar relva estar com o motor ligado não significa que a lâmina de corte esteja em funcionamento.
Para que a máquina tenha a lâmina de corte em rotação, além de ter o motor ligado, é necessário accionar um manípulo e prendê-lo num dispositivo de que a máquina dispõe para esse efeito.
Da apreciação conjugada da factualidade em apreço decorre que o A. introduziu a mão esquerda no mencionado colector, para retirar relva que ali se encontrava acumulada:
- sem antes desligar o motor da máquina de corte de relva;
- sem antes desprender o manípulo que mantinha a lâmina de corte em rotação, ou, a tê-lo desprendido, sem previamente se assegurar de que a lâmina se imobilizara por completo.
Conclui-se, assim, que o sinistrado actuou com negligência, na medida em que lhe era exigível, tendo em conta as características da máquina com que trabalhava e a tarefa que ia executar, que previamente desligasse o motor, desprendesse o manípulo que mantinha a lâmina de corte em rotação e se assegurasse de que esta se imobilizara totalmente.
Contudo, conforme se alcança do regime jurídico acima delineado, para que o responsável não tenha que reparar os danos decorrentes do acidente de trabalho, exige-se que:
- o sinistrado assuma um comportamento temerário em alto e relevante grau;
- que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão;
- que seja a causa exclusiva do acidente de trabalho.
Isto é, conforme é pacífico na doutrina e na jurisprudência, não basta a culpa leve, traduzida em imprudência, distracção ou imprevidência; exige-se a negligência grosseira, que é a particularmente grave, qualificada, atendendo, designadamente, ao elevado grau de inobservância do dever objetivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo, que tem de ser apreciada em concreto, em face das condições da própria vítima, e não em função de um padrão geral e abstracto de conduta.
Conforme se refere no Acórdão deste Tribunal de 24 de Setembro de 2015, proferido no âmbito do processo n.º 308/12.2TUBRG.G1 (Relator Antero Veiga) Disponível em www.dgsi.pt., “[a] norma pretende desonerar o responsável relativamente a situações cujo risco não será adequado atribuir-lhe. Não deve olvidar-se que quem beneficia da atividade do trabalhador deve assumir os riscos inerentes a essa mesma atividade, considerando que ela é prestada por homens e não por máquinas, sujeitos no seu agir a imprecauções e erros. Os riscos normais, ainda que previsíveis, devem ser suportados pelo empregador, aí se devendo incluir designadamente os decorrentes de alguma imprudência, distração, por parte do trabalhador.
Se é de aceitar que a responsabilidade do empregador seja “temperada” quando ocorram situações que interferem no risco que socialmente se considera deverem assumir (como os atos dolosos do trabalhador, a culpa grosseira, o desrespeito gratuito de ordens e regras), não parece aceitável desresponsabilizá-lo por uma falta do trabalhador cometido por imprudência por imprecaução, decorrentes de habituação ao risco; já que sabemos serem essas falhas inerentes ao próprio agir dos indivíduos.”
Também Júlio Gomes O Acidente de trabalho – O acidente in itinere e a sua descaracterização, Coimbra Editora, 2013, pp. 267-268. nos ensina que “(…) desde a sua génese que os sistemas de reparação dos acidentes de trabalho assentam na normal coexistência entre o risco (ou a responsabilidade objetiva do empregador) e a culpa do sinistrado: boa parte dos acidentes de trabalho decorre de distrações, inadvertências, imperícia, mas também desatenção e mesmo desrespeito por regras de segurança. Só em casos excecionais é que a responsabilidade do empregador deve ser excluída nestas situações – em suma, a descaracterização do acidente deve restringir-se a situações muito graves também do ponto de vista do juízo de censura ao sinistrado – sob pena de a pessoa que trabalha e que, como pessoa que é, comete erros, com maior ou menor frequência, ficar desprovida de proteção por um erro momentâneo.”
Ora, na situação em apreço, concede-se que o sinistrado adoptou um comportamento arriscado, grave, quiçá temerário, que foi a causa exclusiva do acidente de trabalho.
Não obstante, tal comportamento negligente consubstanciou-se em omissão dum dever de cuidado atinente unicamente à execução do trabalho, não motivado por razões alheias ao serviço mas, claramente, pela habitualidade ao perigo do trabalho executado e pela confiança na sua experiência profissional.
Da factualidade provada resulta que o comportamento do sinistrado não tem outra justificação se não essa, aliás como tantas vezes sucede no exercício de profissões de actividade eminentemente manual e repetitiva. E é precisamente porque assim é que o regime jurídico de acidentes de trabalho está gizado segundo os princípios e valores acima aludidos, mormente o da responsabilidade objectiva e excepcionalidade do não ressarcimento, de modo a não excluir realidades sócio-laborais de plausível verificação, sendo os prémios de seguro – obviamente – calculados em função do regime jurídico assim estabelecido.
Acolhendo e aplicando esta doutrina, vejam-se, além do já citado, os Acórdãos deste Tribunal de 21 de Janeiro de 2016, proferido no âmbito do processo n.º 84812.3TTCBR.G1 (Relatora Manuela Fialho), de 3 de Março de 2016, proferido no âmbito do processo n.º 5/14.3TUBRG.G1 (Relator Sérgio Almeida), e de 15 de Dezembro de 2016, proferido no âmbito do processo n.º 15/15.4T8BGC.G1 (Relatora Vera Sottomayor) Todos disponíveis em www.dgsi.pt..
É esta também a jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça, conforme se alcança do Acórdão de 3 de Março de 2016, proferido no âmbito do processo n.º 568/10.3TTSTR.L1.S1 (Relator Gonçalves Rocha), bem como dos aí citados Também disponíveis em www.dgsi.pt..
Improcede, pois, o recurso da R. Seguradora.

5. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar a apelação improcedente e em confirmar a sentença recorrida.
Custas pela Apelante.

Guimarães, 16 de Fevereiro de 2017

(Alda Martins)
(Eduardo Azevedo)
(Vera Sottomayor)


Sumário (elaborado pela Relatora):
I – O regime jurídico de acidentes de trabalho está gizado segundo princípios e valores muito específicos, mormente o da responsabilidade objectiva e excepcionalidade do não ressarcimento, de modo a não excluir realidades sócio-laborais de plausível verificação, sendo os prémios de seguro – obviamente – calculados em função do regime jurídico assim estabelecido.
II – Ainda que o sinistrado adopte um comportamento arriscado, grave, quiçá temerário, que seja a causa exclusiva do acidente de trabalho, não está excluída a reparação se tal conduta se consubstanciar em omissão dum dever de cuidado atinente unicamente à execução do trabalho, não motivada por razões alheias ao serviço mas, claramente, pela habitualidade ao perigo do trabalho executado e pela confiança na sua experiência profissional, como tantas vezes sucede no exercício de profissões de actividade eminentemente manual e repetitiva.


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(Alda Martins)